Uma Noite
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO
1
— Você sabe que não tenho pai nem mãe, —
começou a dizer o Tenente Isidoro ao alferes Martinho. Já lhe disse também que
estudei na Escola Central. O que não sabe é que não foi o simples patriotismo
que me trouxe ao Paraguai; também não foi ambição militar. Que sou patriota, e
me baterei agora, ainda que a guerra dure dez anos, é verdade, é o que me
aguenta e me aguentará até o fim. Lá postos de coronel nem general não são
comigo. Mas, se não foi imediatamente nenhum desses motivos, foi outro; foi,
foi outro, uma alucinação. Minha irmã quis dissuadir-me, meu cunhado também; o
mais que alcançaram foi que não viesse soldado raso, pedi um posto de tenente,
quiseram dar-me o de capitão, mas fiquei em tenente. Para consolar a família,
disse que, se mostrasse jeito para a guerra, subiria a major ou coronel; se não,
voltaria tenente, como dantes. Nunca tive ambições de qualquer espécie.
Quiseram fazer-me deputado provincial no Rio de Janeiro, recusei a candidatura,
dizendo que não tinha ideias políticas. Um sujeito, meio gracioso, quis
persuadir-me que as ideias viriam com o diploma, ou então com os discursos que
eu mesmo proferisse na assembleia legislativa. Respondi que, estando a assembleia
em Niterói, e morando eu na corte, achava muito aborrecida a meia hora de
viagem, que teria de fazer na barca, todos os dias, durante dois meses, salvo
as prorrogações. Pilhéria contra pilhéria; deixaram-me sossegado...
CAPÍTULO
2
Os dois oficiais estavam nas avançadas do
acampamento de Tuiuti. Eram ambos voluntários, tinham recebido o batismo de
fogo na batalha de 24 de maio. Corriam agora aqueles longos meses de inação,
que só terminou em meados de 1867. Isidoro e Martinho não se conheciam antes da
guerra, um viera do Norte, outro do Rio de Janeiro. A convivência os fez
amigos, o coração também, e afinal a idade, que era no tenente de vinte e oito
anos, e no alferes de vinte e cinco. Fisicamente, não se pareciam nada. O
Alferes Martinho era antes baixo que alto, enxuto de carnes, o rosto moreno,
maçãs salientes, boca fina, risonha, maneiras alegres. Isidoro não se podia dizer
triste, mas estava longe de ser jovial. Sorria algumas vezes, conversava com
interesse. Usava grandes bigodes. Era alto e elegante, peito grosso, quadris
largos, cintura fina.
Semanas antes, tinham estado no teatro do
acampamento. Este era agora uma espécie de vila improvisada, com espetáculos,
bailes, bilhares, um periódico e muita casa de comércio. A comédia representada
trouxe à memória do alferes uma aventura amorosa que lhe sucedera nas Alagoas,
onde nascera. Se não a contou logo, foi por vergonha; agora, porém, como
estivesse passeando com o tenente e lhe falasse das caboclinhas do Norte,
Martinho não pôde ter mão em si e referiu os seus primeiros amores. Podiam não
valer muito; mas foram eles que o levaram para o Recife, onde alcançou um lugar
na secretaria do governo; sobrevindo a guerra, alistou-se com o posto de
alferes. Quando acabou a narração, viu que Isidoro tinha os olhos no chão,
parecendo ler por letras invisíveis alguma história análoga. Perguntou-lhe o
que era.
— A minha história é mais longa e mais
trágica, respondeu Isidoro.
— Tenho as orelhas grandes, posso ouvir
histórias compridas, replicou o alferes rindo. Quanto a ser trágica, olhe que
passar, como eu passei, metido no canavial, à espera de cinco ou dez tiros que
me levassem, não é história de farsa. Vamos, conte; se é coisa triste, eu sou
amigo para tristezas.
Isidoro começou a sentir desejo de contar a
alguém uma situação penosa e aborrecida, causa da alucinação que o levou à
guerra. Batia-lhe o coração, a palavra forcejava por subir à boca, a memória ia
acendendo todos os recantos do cérebro. Quis resistir, tirou dois charutos,
ofereceu um ao alferes, e falou dos tiros das avançadas. Brasileiros e
paraguaios tiroteavam naquela ocasião, — o que era comum, — pontuando com balas
de espingardas a conversação.
Algumas delas coincidiam porventura com os
pontos finais das frases, levando a morte a alguém; mas que essa pontuação
fosse sempre exata ou não, era indiferente aos dois rapazes. O tempo
acostumara-os à troca de balas; era como se ouvissem rodar carros pelas ruas de
uma cidade em paz. Martinho insistia pela confidência.
— Levará mais tempo que fumar este charuto?
— Pode levar menos, pode também levar uma
caixa inteira, redarguiu Isidoro; tudo depende de ser resumido ou completo. Em
acampamento, há de ser resumido. Olhe que nunca referi isto a ninguém; você é o
primeiro e o último.
CAPÍTULO
3
Isidoro principiou como vimos e continuou
desta maneira:
— Morávamos em um arrabalde do Rio de
Janeiro; minha irmã não estava ainda casada, mas já estava pedida; eu
continuava os estudos. Vagando uma casa fronteira à nossa, meu futuro cunhado
quis alugá-la, e foi ter com o dono, um negociante da Rua do Hospício.
— Está meio ajustada, disse este; a pessoa
ficou de mandar-me a carta de fiança amanhã de manhã. Se não vier, é sua.
Mal dizia isto, entrou na loja uma senhora,
moça, vestida de luto, com um menino pela mão; dirigiu-se ao comerciante e
entregou-lhe um papel; era a carta de fiança. Meu cunhado viu que não podia
fazer nada, cumprimentou e saiu. No dia seguinte, começaram a vir os trastes;
dois dias depois estavam os novos moradores em casa. Eram três pessoas; a tal
moça de luto, o pequeno que a acompanhou à Rua do Hospício, e a mãe dela, D.
Leonor, senhora velha e doente. Com pouco, soubemos que a moça, D. Camila,
tinha vinte e cinco anos de idade, era viúva de um ano, tendo perdido o marido
ao fim de cinco meses de casamento. Não apareciam muito. Tinham duas escravas
velhas. Iam à missa ao domingo. Uma vez, minha irmã e a viúva encontraram-se ao
pé da pia, cumprimentaram-se com afabilidade. A moça levava a mãe pelo braço.
Vestiam com decência, sem luxo.
Minha mãe adoeceu. As duas vizinhas
fronteiras mandavam saber dela todas as manhãs e oferecer os seus serviços.
Restabelecendo-se, minha mãe quis ir pessoalmente agradecer-lhes as atenções.
Voltou cativa.
— Parece muito boa gente, disse-nos.
Trataram-me como se fôssemos amigas de muito tempo, cuidadosas, fechando uma
janela, pedindo-me que mudasse de lugar por causa do vento. A filha, como é
moça, desfazia-se mais em obséquios. Perguntou-me por que não levei Claudina, e
elogiou-a muito; já sabe do casamento e acha que o Dr. Lacerda dá um excelente
marido.
— De mim não disse nada? perguntei eu rindo.
— Nada.
Três dias depois vieram elas agradecer o
favor da visita pessoal de minha mãe. Não estando em casa, não pude vê-las.
Quando me deram notícia, ao jantar, achei comigo que as vizinhas pareciam
querer meter-se à cara da gente, e pensei também que tudo podia ser urdido pela
moça, para aproximar-se de mim. Eu era fátuo. Supunha-me o mais belo homem do
bairro e da cidade, o mais elegante, o mais fino, tinha algumas namoradas de
passagem, e já contava uma aventura secreta. Pode ser que ela me veja todos os
dias, à saída e à volta, disse comigo, e acrescentei por chacota: a vizinha
quer despir o luto e vestir a solidão. Em substância, sentia-me lisonjeado.
Antes de um mês, estavam as relações
travadas, minha irmã e a vizinha eram amigas. Comecei a vê-la em nossa casa.
Era bonita e graciosa, tinha os olhos garços e ria por eles. Posto conservasse
o luto, temperado por alguns laços de fita roxa, o total da figura não era
melancólico. A beleza vencia a tristeza. O gesto rápido, o andar ligeiro, não
permitiam atitudes saudosas nem pensativas. Mas, quando permitissem, a índole
de Camila era alegre, ruidosa, expansiva. Chegava a ser estouvada. Falava muito
e ria muito, ria a cada passo, em desproporção com a causa, e, não raro, sem
causa alguma. Pode dizer-se que saía fora da conta e da linha necessárias; mas,
nem por isso enfadava, antes cativava. Também é certo que a presença de um
estranho devolvia a moça ao gesto encolhido; a simples conversação grave
bastava a fazê-la grave. Em suma, o freio da educação apenas moderava a
natureza irrequieta e volúvel. Soubemos por ela mesma que a mãe era viúva de um
capitão-de-fragata, de cujo meio soldo vivia, além das rendas de umas casinhas
que lhe deixara o primeiro marido, seu pai. Ela, Camila, fazia coletes e roupas
brancas. Minha irmã, ao contar-me isto, disse-me que tivera uma sensação de
vexame e de pena, e mudou de conversa; tudo inútil, porque a vizinha ria
sempre, e contava rindo que trabalhava de manhã, porque, à noite, o branco lhe
fazia mal aos olhos. Não cantava desde que perdera o marido, mas a mãe dizia
que "a voz era de um anjo". Ao piano era divina; passava a alma aos
dedos, não aquela alma tumultuosa, mas outra mais quieta, mais doce, tão metida
consigo que chegava a esquecer-se deste mundo. O aplauso fazia-a fugir, como
pomba assustada, e a outra alma passava aos dedos para tocar uma peça jovial
qualquer, uma polca por exemplo, — meu Deus! às vezes, um lundu.
Você crê naturalmente que essa moça me
enfeitiçou. Nem podia ser outra coisa. O diabo da viuvinha entrou-me pelo
coração saltando ao som de um pandeiro. Era tentadora sem falar nem rir;
falando e rindo era pior. O péssimo é que eu sentia nela não sei que
correspondência dos meus sentimentos mal sopitados. Às vezes, esquecendo-me a
olhar para ela, acordava repentinamente, e achava os olhos dela fitos em mim.
Já lhe disse que eram garços. Disse também que ria por eles. Naquelas ocasiões,
porém, não tinham o riso do costume, nem sei se conservavam a mesma cor. A cor
pode ser, não a via, não sentia mais que o peso grande de uma alma escondida
dentro deles. Era talvez a mesma que lhe passava aos dedos quando tocava. Toda
essa mulher devia ser feita de fogo e nervos. Antes de dois meses estava
apaixonado, e quis fugir-lhe. Deixe-me dizer-lhe toda a minha corrupção, — nem
pensava em casar, nem podia ficar ao pé dela, sem arrebatá-la um dia e levá-la
ao inferno. Comecei a não estar em casa, quando ela ia lá, e não acompanhava a
família à casa dela. Camila não deu por isso na primeira semana, — ou simulou
que não. Passados mais dias, perguntou a minha irmã:
— O Doutor Isidoro está zangado conosco?
— Não! por quê?
— Já nos não visita. São estudos, não? Ou
namoro, quem sabe? Há namoro no beco, concluiu rindo.
— Rindo? perguntei a minha irmã, quando me
repetiu as palavras de Camila.
A pergunta em si era uma confissão; o tom em
que a fiz, outra; a seriedade que me ficou, outra e maior. Minha irmã quis
explicar a amiga. Eu, de mim para mim, jurei que não a veria nunca mais. Dois
dias depois, sabendo que ela vinha à nossa casa, deixei-me estar com o pretexto
de me doer a cabeça; mas, em vez de me fechar no gabinete, fui vê-la rir ou
fazê-la rir. A comoção que lhe vi nos primeiros instantes reconciliou-nos.
Reatamos o fio que íamos tecendo, sem saber bem onde pararia a obra. Já então
ia só a casa delas; meu pai estava enfraquecendo muito, minha mãe fazia-lhe
companhia, minha irmã ficava com o noivo, eu ia só. Não percamos tempo que os
tiros se aproximam, e pode ser que nos chamem. Dentro de dez dias estávamos
declarados. O amor de Camila devia ser forte; o meu era fortíssimo. Foi na sala
de visitas, sozinhos, a mãe cochilava na sala de jantar. Camila, que falava
tanto e sem parar, não achou palavra que dissesse. Eu agarrei-lhe a mão, quis
puxá-la a mim; ela, ofegante, deixou-se cair numa cadeira. Inclinei-me,
desatinado, para lhe dar um beijo; Camila desviou a cabeça, recuou a cadeira
com força e quase caiu para trás.
— Adeus, adeus, até amanhã, murmurou ela.
No dia seguinte, como eu formulasse o pedido
de casamento, respondeu-me que pensasse em outra coisa.
— Nós nos amamos, disse ela; o senhor ama-me
desde muito, e quer casar comigo, apesar de ser uma triste viúva pobre...
— Quem lhe fala nisso? Deixa de ser viúva,
nem pobre, nem triste.
— Sim, mas há um obstáculo. Mamãe está muito
doente, não quero desampará-la.
— Desampará-la? Seremos dois ao pé dela, em
vez de uma só pessoa. A razão não serve, Camila; há de haver outra.
— Não tenho outra. Fiz esta promessa a mim
mesma, que só me casaria depois que mamãe se fosse deste mundo. Ela, por mais
que saiba do amor que lhe tenho, e da proteção que o senhor lhe dará, ficará
pensando que eu vou para meu marido, e que ela passará a ser uma agregada
incômoda. Há de achar natural que eu pense mais no senhor que nela.
— Pode ser que a razão seja verdadeira; mas o
sentimento, Camila, é esquisito, sem deixar de ser digno. Pois não é natural
até que o seu casamento lhe dê a ela mais força e alegria, vendo que a não
deixa sozinha no mundo?
Talvez que esta objeção a abalasse um pouco;
refletiu, mas insistiu.
— Mamãe vive principalmente das minhas
carícias, da minha alegria, dos meus cuidados, que são só para ela...
— Pois vamos consultá-la.
— Se a consultarmos quererá que nos casemos
logo.
— Então não suporá que fica sendo agregada
incômoda.
— Já, já, não; mas pensá-lo-á mais tarde; e
quer que lhe diga tudo? Há de pensá-lo e com razão. Eu, provavelmente, serei toda
de meu marido: durante a lua-de-mel, pelo menos, — continuou rindo, e concluiu
triste: — e a lua-de-mel pode levá-la. Não, não; se me ama deveras, esperemos;
a minha velha morrerá ou sarará. Se não pode esperar, paciência.
Creio que lhe vi os olhos úmidos; o riso que
ria por eles deixou-se velar um pouco daquela chuvazinha passageira. Concordei
em esperar, com o plano secreto de comunicar à mãe de Camila os nossos desejos,
a fim de que ela própria nos ligasse as mãos. Não disse nada a meus pais, certo
de que ambos aceitariam a escolha; mas ainda contra a vontade deles, casaria.
Minha irmã soube de tudo, aprovou tudo, e tomou a si guiar as negociações com a
velha enferma. Entretanto, a paixão de Camila não lhe trocou a índole.
Tagarela, mas graciosa, risonha sem banalidade, toda vida e movimento... Não me
canso em repetir essas coisas. Tinha dias tristes ou calados; eram aqueles em
que a moléstia da mãe parecia agravar-se. Eu padecia com a mudança, uma vez que
a vida da mãe era empecilho à nossa ventura; sentimento mau, que me enchia de
vergonha e de remorsos. Não quero cansá-lo com as palavras que trocávamos e
foram infinitas, menos ainda com os versos que lhe fiz; é verdade, Martinho,
cheguei ao extremo de fazer versos; lia os de outros para compor os meus, e daí
fiquei com tal ou qual soma de imagens e de expressões poéticas...
Um dia, ao almoço, ouvimos rumor na escada,
vozes confusas, choro; mandei ver o que era. Uma das escravas da casa fronteira
vinha dar notícia... Cuidei que era a morte da velha, e tive uma sensação de
prazer. Ai, meu amigo! a verdade era outra e terrível.
— Nhã Camila está doida!
Não sei o que fiz, nem por onde saí, mas
instantes depois entrava pela casa delas. Nunca pude ter memória clara dos
primeiros instantes. Vi a pobre velha, caída num sofá da sala; vinham de dentro
os gritos de Camila. Se acudi ou não à velha, não sei; mas é provável que
corresse logo para o interior, onde dei com a moça furiosa, torcendo-se para
escapar às mãos de dois calceteiros que trabalhavam na rua e acudiram ao pedido
de socorro de uma das escravas. Quis ajudá-los; pensei em influir nela com a
minha pessoa, com a minha palavra; mas, ao que cuido, não via nem ouvia nada.
Não afirmo também se lhe disse alguma coisa e o que foi. Os gritos da moça eram
agudos, os movimentos raivosos, a força grande; tinha o vestido rasgado, os
cabelos despenteados. Minha família chegou logo; o inspetor de quarteirão e um
médico apareceram e deram as primeiras ordens. Eu, tonto, não sabia que
fizesse, achava-me num estado que podia ser contágio do terrível acesso. Camila
pareceu melhorar, não forcejava por desvencilhar-se dos homens que a retinham;
estes, confiando na quietação dela, soltaram-lhe os braços. Veio outra crise,
ela atirou-se para a escada, e teria lá chegado e rolado, se eu não a
sustivesse pelos vestidos. Quis voltar-se para mim; mas os homens acudiram e
novamente a retiveram.
Algumas horas correram, antes que as ordens
todas da autoridade fossem expedidas e cumpridas. Minha irmã veio ter comigo
para levar-me para a outra sala ou para casa; recusei. Uma vez ainda a
exaltação e o furor de Camila cessaram, mas os homens não lhe deixaram os
braços soltos. Quando se repetiu o fenômeno, o prazo foi mais longo, fizeram
sentá-la, os homens afrouxaram os braços. Eu, cosido à parede, fiquei a olhar
para ela, notando que as palavras eram já poucas, e, se ainda sem sentido, não
eram aflitas, nem ela repetia os guinchos agudos. Os olhos vagavam sem ver;
mas, fitando-me de passagem, tornaram a mim, e ficaram parados alguns segundos,
rindo como era costume deles quando tinham saúde. Camila chamou-me, não pelo
nome, disse-me que fosse ter com ela. Acudi prontamente, sem dizer nada.
— Chegue-se mais.
Obedeci; ela quis estender-me a mão, o homem
que a segurava, reteve-a com força; eu disse-lhe que deixasse, não fazia mal,
era um instante. Camila deu-me a mão livre, eu dei-lhe a minha. A princípio,
não tirou os olhos dos meus; mas já então não ria por eles, tinha-os quietos e
apagados. De repente, levou a minha mão à boca, como se fosse beijá-la. Tendo
libertado a outra (foi tudo rápido) segurou a minha com força e cravou-lhe
furiosamente os dentes; soltei um grito. A boca ficou-lhe cheia de sangue.
Veja; tenho ainda os sinais nestes dois dedos...
Não me quero demorar neste ponto da minha
história. Digo-lhe sumariamente que os médicos entenderam necessário recolher
Camila ao Hospício de Pedro II. A mãe morreu quinze dias depois. Eu fui
concluir os meus estudos na Europa. Minha irmã casou, meu pai não durou muito,
minha mãe acompanhou-o de perto. Pouco tempo depois, minha irmã e meu cunhado
foram ter comigo. Já me acharam não esquecido, mas consolado. Quando tornamos
ao Rio de janeiro passavam quatro anos daqueles acontecimentos. Fomos morar
juntos, mas em outro bairro. Nada soubemos de Camila, nem indagamos nada; ao
menos eu.
Uma noite, porém, andando a passear,
aborrecido, começou a chover, e entrei num teatro. Não sabia da peça, nem do
autor, nem do número de atos; o bilheteiro disse-me que ia começar o segundo.
Na terceira ou quarta cena, vejo entrar uma mulher, que me abalou todo;
pareceu-me Camila. Fazia um papel de ingênua, creio; entrou lentamente e travou
frouxamente um diálogo com o galã. Não tinha que ver; era a própria voz de
Camila. Mas, se ela estava no Hospício, como podia achar-se no teatro? Se havia
sarado, como se fizera atriz? Era natural que estivesse a costurar, e se alguma
coisa lhe restava das casinhas da mãe... Perguntei a um vizinho da plateia como
se chamava aquela dama.
— Plácida, respondeu-me.
Não é ela, pensei; mas refletindo que podia
ter mudado de nome, quis saber se estava há muito tempo no teatro.
— Não sei; apareceu aqui há meses. Acho que é
novata na cena, fala muito arrastado, tem talento.
Não podia ser Camila; mas tão depressa achava
que não, um gesto da mulher, uma inflexão de voz, qualquer coisa me dizia que
era ela mesma. No intervalo lembrou-me de ir à caixa do teatro. Não conhecia
ninguém, não sabia se era fácil entrar desconhecido, cheguei à porta de
comunicação e bati. Ninguém abriu nem perguntou quem era. Daí a nada vi sair de
dentro um homem, que empurrou simplesmente a porta e deixou-a cair. Puxei a
porta e entrei. Fiquei aturdido no meio do movimento; criei ânimo e perguntei a
um empregado se podia falar a D. Plácida. Respondeu-me que provavelmente estava
mudando de trajo, mas que fosse com ele. Chegando à porta de um camarim, bateu.
— D. Plácida?
— Quem é?
— Está aqui um senhor que lhe deseja falar.
— Que espere!
A voz era dela. O sangue entrou a correr-me
acelerado; afastei-me um pouco e esperei. Minutos depois, a porta do camarim
abriu-se, saiu uma criada; enfim, a porta escancarou-se, e apareceu a figura de
atriz. Aproximei-me, e fizemos teatro no teatro: reconhecemo-nos um ao outro.
Entrei no camarim, apertamos as mãos, e durante algum tempo não pudemos dizer
nada. Ela, por baixo do carmim, empalidecera; eu senti-me lívido. Ouvi apitar;
era o contrarregra que mandava subir o pano.
— Vai subir o pano, disse-me ela com a voz
lenta e abafada. Entro na segunda cena. Espera-me?
— Espero.
— Venha cá para os bastidores.
Falei-lhe ainda duas vezes nos bastidores.
Soube na conversação onde morava, e que morava só. Como a chuva aumentasse e
caísse agora a jorros, ofereci-lhe o meu carro. Aceitou. Saí para alugar um
carro de praça; no fim do espetáculo, mandei que a recebesse à porta do teatro,
e acompanhei-a dando-lhe o braço, no meio do espanto de atores e empregados.
Depois que ela entrou, despedi-me.
— Não, não, disse ela. Pois há de ir por
baixo d’água? Entre também, venha deixar-me à porta.
Entrei e partimos. Durante os primeiros
instantes, parecia-me delirar. Após quatro anos de separação e ausência, quando
supunha aquela senhora em outra parte, eis-me dentro de uma carruagem com ela,
duas horas depois de a tornar a ver. A chuva que caía forte, o tropel dos
cavalos, o rodar da carruagem, e por fim a noite, complicavam a situação do meu
espírito. Cria-me doido. Vencia a comoção falando, mas as palavras não teriam
grande ligação entre si, nem seriam muitas. Não queria falar da mãe; menos
ainda perguntar-lhe pelos acontecimentos que a trouxeram à carreira de atriz.
Camila é que me disse que estivera doente, que perdera a mãe fora da Corte, e
que entrara para o teatro por ver um dia uma peça em cena; mas sentia que não
tinha vocação. Ganho a minha vida, concluiu. Ao ouvir esta palavra, apertei-lhe
a mão cheio de pena; ela apertou a minha e não a soltou mais. Ambas ficaram
sobre o joelho dela. Estremeci; não lhe perguntei quem a levara ao teatro, onde
vira a peça que a fez fazer-se atriz. Deixei estar a mão no joelho. Camila
falava lentamente, como em cena; mas a comoção aqui era natural. Perguntou-me
pelos meus; disse-lhe o que havia. Quando falei do casamento de minha irmã,
senti que me apertou os dedos; imaginei que era a recordação do malogro do
nosso. Enfim, chegamos. Fi-la descer, ela entrou depressa no corredor, onde uma
preta a esperava.
— Adeus, disse-lhe.
— Está chovendo muito; por que não toma chá
comigo?
Não tinha a menor vontade de ir-me; ao
contrário, queria ficar, a todo custo, tal era a ressurreição das sensações de
outrora. Entretanto, não sei que força de respeito me detinha à soleira da
porta. Disse que sim e que não.
— Suba, suba, replicou ela dando-me o braço.
A sala era trastejada com simplicidade, antes
vizinha da pobreza que da mediania. Camila tirou a capa, e sentou-se no sofá,
ao pé de mim. Vista agora, sem o caio nem o carmim do teatro, era uma criatura
pálida, representando os seus vinte e nove anos, um tanto fatigada, mas ainda
bela, e acaso mais cheia de corpo. Abria e fechava um leque desnecessário. Às
vezes apoiava nele o queixo e fitava os olhos no chão, ouvindo-me. Estava
comovida, decerto; falava pouco e a medo. A fala e os gestos não eram os de
outro tempo, não tinham a volubilidade e a agitação, que a caracterizavam;
dir-se-ia que a língua acompanhava de longe o pensamento, ao invés de outrora,
em que o pensamento mal emparelhava com a língua. Não era a minha Camila; era
talvez a de outro; mas, que tinha que não fosse a mesma? Assim pensava eu, à
medida da nossa conversação sem assunto. Falávamos de tudo o que não éramos, ou
nada tinha com a nossa vida de quatro anos passados; mas isso mesmo era disperso,
desalinhado, roto, uma palavra aqui, outra ali, sem interesse aparente ou real.
De uma vez perguntei-lhe:
— Espera ficar no teatro muito tempo?
— Creio que sim, disse ela; ao menos,
enquanto não acabar a educação de meu sobrinho.
— É verdade; deve estar um mocinho.
— Tem onze anos, vai fazer doze.
— Mora com a senhora? perguntei depois de um
minuto de pausa.
— Não; está no colégio. Já lhe disse que moro
só. Minha companhia é este piano velho, concluiu levantando-se e indo a um
canto, onde vi pela primeira vez um pequeno piano, ao pé da porta da alcova.
— Vamos ver se ele é seu amigo, disse-lhe.
Camila não hesitou em tocar. Tocou uma peça
que acertou de ser a primeira que executara em nossa casa, quatro anos antes.
Acaso ou propósito? Custava-me a crer que fosse propósito, e o acaso vinha
cheio de mistérios. O destino ligava-nos outra vez, por qualquer vínculo,
legítimo ou espúrio? Tudo me parecia assim; o noivo antigo dava de si apenas um
amante de arribação. Tive ímpeto de aproximar-me dela, derrear-lhe a cabeça e
beijá-la muito. Não teria tempo; a preta veio dizer que o chá estava na mesa.
— Desculpe a pobreza da casa, disse ela
entrando na sala de jantar. Sabe que nunca fui rica.
Sentamo-nos defronte um do outro. A preta
serviu o chá e saiu. Ao comer não havia diferença de outrora, comia devagar;
mas isso, e o gesto encolhido, e a fala a modo que amarrada, davam um composto
tão diverso do que era antigamente, que eu podia amá-la agora sem pecado. Não
lhe estou dizendo o que sinto hoje; estou mostrando francamente a você a falta
de delicadeza da minha alma. O respeito que me detivera um instante à soleira
da porta, já me não detinha agora à porta da alcova.
— Em que é que pensa? perguntou ela após
certa pausa.
— Penso em dizer-lhe adeus, respondi
estendendo-lhe a mão; é tarde.
— Que sinais são estes? perguntou ela
olhando-me para os dedos.
Certamente empalideci. Respondi que eram
sinais de um golpe antigo. Mirou muito a mão; eu cuidei a princípio que era um
pretexto para não soltá-la logo; depois ocorreu-me se acaso alguma
reminiscência vaga emergia dos velhos destroços do delírio.
— A sua mão treme, disse ela, querendo
sorrir.
Uma ideia traz outra. Saberia ela que
estivera louca? Outra depois e mais terrível. Essa mulher que conheci tão esperta
e ágil, e que agora me aparecia tão morta, era o fruto da tristeza da vida e de
sucessos que eu ignorava, ou puro efeito do delírio, que lhe torcera e
esgalhara o espírito? Ambas as hipóteses, — a segunda principalmente, —
deram-me uma sensação complexa, que não sei definir, — pena, repugnância,
pavor. Levantei-me e fitei-a por alguns instantes.
— A chuva ainda não parou, disse ela;
voltemos para a sala.
Voltamos para a sala. Tornou ao sofá comigo.
Quanto mais olhava para ela, mais sentia que era uma aleijada do espírito, uma
convalescente da loucura... A minha repugnância crescia, a pena também; ela,
fitando-me os olhos que já não sabiam rir, segurou-me a mão com ambas as suas;
eu levantei-me para sair...
Isidoro deu uma volta e caiu; uma bala paraguaia
varou-lhe o coração, estava morto. Não se conheceu outro amigo ao alferes. Por
muitas semanas o pobre Martinho não disse uma só chalaça. Em compensação,
continuou sempre bravo e disciplinado. No dia em que o Marechal Caxias, dando
novo impulso à guerra, marchou para Tuiu— Cuê, ninguém foi mais resoluto que
ele, ninguém mais certo de acabar capitão; acabou major.
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