11/09/2017

Vinte anos! Vinte anos! (Conto), de Machado de Assis


Vinte anos! Vinte anos!
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Gonçalves, despeitado, amarrotou o papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás da Lapa.

Não há leitor, menos ainda leitora, que não imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vão conjecturas! Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo.

O correspondente não era pedra, mas também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo da conta, que devolveu.

Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma coisa que realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente... Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última ameaçava-o com a miséria.

Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos.

— Deixa estar, patife! quebro-te a cara.

E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão — o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu.

— Não, patife! não me pregas outra.

Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de
Uruguaiana, alguém chamou por ele.

— Gonçalves! Gonçalves!

Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e pegou-o pelo ombro.

— Onde vais?

— Já volto...

— Vem cá primeiro.

E tomando-lhe o braço, voltou para o café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluíram que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, — mas de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz.

— Que Brito? perguntou o Gonçalves.

— Que Brito? O preferido, o tal, o dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?

Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras, cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo, análise das belezas.

— Mais café, disse Gonçalves.

— Não quer cognac?

— Traga... não... está bom, traga.

Vieram ambas as coisas. Uma das belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser ministro.

— E o Gonçalves genro do ministro!

— Deixa de graças, redarguiu rindo o Gonçalves.

— Que tinha?

— Não gosto de graças. Eu genro? Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical...

— Sim, mas os radicais também se casam, observou um.

— Com as radicais, emendou outro.

— Justo. Com as radicais...

— Mas você não sabe se ela é radical.

— Ora bolas, o café está frio! exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles?

— Não.

— Nem eu.

— Deve ser um bom autor.

— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?

E contou a anedota, que na verdade era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Buchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.

— Cinco horas! exclamaram dois ou três.

— No meu estômago são sete, ponderou um dos outros.

— Onde jantam vocês?

Resolveram fazer uma revista de fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem, sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de São Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram outras no ponto dos bondes de São Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bonde em que ela fosse; os outros ouviram rindo.

Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas, trocadilhos, pachuchadas; muita alegria em todos, mas principalmente no Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos!

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