Vinte anos! Vinte anos!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Gonçalves, despeitado, amarrotou o papel, e
mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de
barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou
doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás
da Lapa.
Não há leitor, menos ainda leitora, que não
imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga
de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora,
para a roça, por exemplo. Vão conjecturas! Não se trata de amores, não é mesmo
carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com
endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na
província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a
mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é
que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos
primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os
vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai
em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda
bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os
fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro
meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma
carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que
enterneceriam a mais dura pedra do mundo.
O correspondente não era pedra, mas também
não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía
cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para
gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso
pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou
dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro
escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara
outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo
da conta, que devolveu.
Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava
a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra
coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma coisa que
realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente...
Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que
necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de
escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a
primeira: a última ameaçava-o com a miséria.
Depois de dizer o diabo do correspondente, de
fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que
era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e
dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um
tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos.
— Deixa estar, patife! quebro-te a cara.
E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras,
chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou
ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa;
estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão — o que
lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu.
— Não, patife! não me pregas outra.
Eram os vinte anos que irrompiam cálidos,
férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali
fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor.
Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava
entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar
a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os
sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes
de chegar à Rua de
Uruguaiana, alguém chamou por ele.
— Gonçalves! Gonçalves!
Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro
de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e
pegou-o pelo ombro.
— Onde vais?
— Já volto...
— Vem cá primeiro.
E tomando-lhe o braço, voltou para o café,
onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da mesma
idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um
pelintra, donde os quatro colegas concluíram que não se tratava de nenhum crime
público, inconfidência ou sacrilégio, — mas de algum credor ou rival. Um deles
chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz.
— Que Brito? perguntou o Gonçalves.
— Que Brito? O preferido, o tal, o dos
bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?
Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara
de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito séria.
Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal
Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara.
Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e
demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que
efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras,
cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram
inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo,
análise das belezas.
— Mais café, disse Gonçalves.
— Não quer cognac?
— Traga... não... está bom, traga.
Vieram ambas as coisas. Uma das belezas
citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um
prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser
ministro.
— E o Gonçalves genro do ministro!
— Deixa de graças, redarguiu rindo o
Gonçalves.
— Que tinha?
— Não gosto de graças. Eu genro? Demais,
vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical...
— Sim, mas os radicais também se casam,
observou um.
— Com as radicais, emendou outro.
— Justo. Com as radicais...
— Mas você não sabe se ela é radical.
— Ora bolas, o café está frio! exclamou
Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que
eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles?
— Não.
— Nem eu.
— Deve ser um bom autor.
— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu
lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe
pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?
E contou a anedota, que na verdade era alegre
e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas
e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira
xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como
falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo
na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio
Spencer, veio Buchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa,
uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um
relógio os surpreendeu batendo cinco horas.
— Cinco horas! exclamaram dois ou três.
— No meu estômago são sete, ponderou um dos
outros.
— Onde jantam vocês?
Resolveram fazer uma revista de fundos e ir
jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem,
sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía
a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de São Francisco. De
caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram
outras no ponto dos bondes de São Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a
curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou
que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida
ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bonde em que ela
fosse; os outros ouviram rindo.
Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à
Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para ver o
espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as
senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de
física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas,
trocadilhos, pachuchadas; muita alegria em todos, mas principalmente no
Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada.
Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma
caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos!
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