12/05/2017

11 e 20 (Conto), de Medeiros e Albuquerque


11 e 20
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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...O criado que nos servia o jantar acabava de tirar os últimos pratos. Pôs ao centro da mesa um grande jarro cheio de flores e desapareceu discretamente. Cada um de nós tinha perto de si uma xícara de café fumegante. Fazia frio. Lá fora, a chuva caía em jorros. Pensamos um momento em sair dali e ir para a sala de visitas ou para o meu gabinete. O Alberto protestou:
— Para quê?! Vamos ficar aqui mesmo. É uma viagem inútil.
Estávamos tão bem, que eu só repliquei pelo vago desejo de o contrariar, de, pelo menos, dizer qualquer coisa:
— Não me parece que a viagem fosse muito longa; acredito que se gastaria mais tempo em ir ao Polo Norte...
O Alberto não respondeu logo. Cortou vagarosamente a ponta do charuto, acendeu-o e soltou um primeiro novelo de fumo...
A conversa tinha sido animada durante todo o jantar. Faláramos de tudo: de amor, de literatura, de filosofia e, por fim, de música. Uma narrativa do Lino nos atirara a um vago estado de tristeza e cisma, de que tínhamos dificuldade de sair.
Afinal, o Alberto atendeu à minha objeção:
— Por pequeno que seja o prazer junto do qual nós estamos, é sempre loucura afastarmo-nos dele um passo, uma polegada, um centímetro!
E tinha na voz, dizendo isto, uma amargura profunda e desanimada. Mas o Lino atalhou:
— De nós três és tu precisamente o menos apto para nos dar tal conselho: tu, que tens passado por seca e meca, corrido os cinco continentes, viajado por todos os mares, que não te aquietas, não te acomodas em parte alguma... Andas de antípoda a antípoda e pregas a imobilidade para ir de uma sala a outra!
— Tens razão... Menos, porém, do que podes acreditar. Eu creio que há nisto uma maldição. Sinto, vejo, compreendo melhor do que ninguém a vantagem de ficar tranquilo. Quando, todavia, estou mais persuadido de todas as excelentes razões para não sair de onde me encontro, acho-me, sem saber porquê, com um bilhete de viagem para a Europa ou para a Ásia, a bordo de qualquer navio. Devo ser da linhagem do Judeu Errante.
— Pois olha — murmurei eu —, nem sabes como te invejo! Em primeiro lugar, há decerto uma grande delícia em correr o mundo, ver céus, ver terras, ver povos estranhos. Depois, ser-me-ia, sobretudo, um prazer, a bordo, aqui e acolá, ter uns meigos e fugitivos amores, apenas começados e imediatamente acabados. Restaria deles a mim e às minhas mal conhecidas amantes uma saudade profunda e suavíssima. Saberia dominar tudo quanto tenho de baixo e grosseiro: aparecer-lhes-ia como um homem superior, desinteressado e nobre. Ficaria na memória delas, como a recordação de uma aventura fugaz e divina. A todas as horas imaginaria sempre que num canto remoto da Terra, fosse onde fosse, em Paris ou na China, em Londres ou na Austrália, haveria uma mulher pensando em mim. — E teria também amigos, feitos rapidamente no tombadilho dos navios, no encontro de cidades longínquas. A uns eu me faria passar por uma alma torturada e melancólica; a outros como um tipo de energia; a outros afinal daria a inveja que a todos inspira a figura romanesca de D. Juan. E cada um me faria as suas confidências. No silêncio do meu quarto, no aconchego tépido desta sala, em qualquer parte onde eu me sentisse desamparado e só, tiraria da minha memória, ora a evocação desse harém, ora o romance de todas essas almas amigas, que me tivessem confiado, como a um confessor leigo, o segredo de suas vidas... A cada um eu contaria também, como se tivesse ocorrido comigo, um fato perfeitamente análogo, para que, quando pensassem nas suas aventuras, fossem também um pouco forçados a pensar em mim.
O Alberto tinha saído de junto da mesa. Sentara-se num pequeno sofá, cruzara as pernas e enquanto, com um gesto do dedo mínimo, fazia cair a cinza do charuto, tinha nos olhos e nos lábios uma expressão levemente irônica. Mal eu acabara, ele falou. Falou com uma voz abafada e lenta, articulando molemente as sílabas:
— E que prazer tiraria daí? Terias, somadas às tuas, as amarguras de todos esses desgraçados. Cuidas então que não tive tais amores? tais amizades? Menti a todos eles. Hoje, quando evoco essas figuras passageiras, não posso deixar de pensar que elas também me iludiram. Das mulheres que se me afiguraram mais cândidas, penso nas torpezas, nas misérias, nas traições. Era o que certamente havia sob essas máscaras tão vis ou mais vis ainda que a minha. Há bocas divinas, que eu beijei nos arroubos mais sublimes do amor e cujos beijos me fazem hoje um asco profundo. Quereria saber bem, não haver mais nos meus lábios uma só das células maculadas com esse contato. Quereria cauterizá-los a ferro em brasa, se a ferro em brasa me fosse também possível queimar no cérebro o ponto exato onde está a memória implacável desses minutos de um gozo misérrimo, tão caramente compensado! E os amigos? Tive-os, tenho-os ainda... Confidências? Eu as recebi em toda a parte. Ao ver a leviandade com que alguns me abriam os corações, eu sentia neles a sofreguidão de repartirem com outros o peso doloroso da sua alma! O que cada um de nós conta de preferência são as suas dores, as suas angústias, os seus suplícios... Dizem que é amizade, e é egoísmo. Querem Cireneus para as suas cruzes!
Nós estávamos habituados aos paradoxos pessimistas do Alberto. Seria por isso que ninguém se deu ao trabalho de contestá-lo? Seria antes porque achássemos alguma coisa de justo sob a aparente extravagância dos seus exageros? O certo é que nos detivemos calados. Foi ele mesmo que retomou a palavra:
— Na última viagem que eu fiz de Liverpool aos Estados Unidos, tive um companheiro, de quem, no primeiro dia, julguei poder fazer um excelente amigo. Era um belo homem. Tinha cerca de quarenta anos. Tipo inglês, louro, alto, forte, olhos de um azul-escuro no qual havia certa expressão de serenidade grave, todo ele inspirava uma simpatia profunda. Elegante, sem maneirismo nem afetação, fazia gosto admirá-lo.
Creio que cada um de nós teve o mesmo movimento de simpatia pelo outro. Quando nos vimos no mesmo camarote e soubemos que teríamos de fazer juntos a mesma travessia, foi ele quem tomou a iniciativa de se me apresentar. Fiz o mesmo. Uma hora depois, passeávamos juntos no tombadilho. Como o inglês que eu falava não fosse um primor de correção, passamos a conversar em francês.
Era deveras deliciosa a sua palestra erudita e fina. Rico, tinha viajado bastante, enquanto moço. Fora depois viver, casado e feliz, na sua terra natal: a Escócia. "Há três anos, porém", disse-me ele, "desde que perdi um amigo querido, caí num tal estado de espírito que não posso definir. É agora somente, por uma necessidade inelutável, que sou forçado a ir aos Estados Unidos, onde me demorarei, no máximo, oito dias. Só a presença da minha Kate pode dar-me um pouco da tranquilidade de espírito de que preciso."
Efetivamente, a nota predominante da sua fisionomia era a tristeza. Falou-me da filha apaixonadamente. A pequenina tinha então sete anos. O retrato que ele me fez ver mostrou-ma como uma criança lindíssima.
— Será hoje — disse então — a primeira noite em que terei de dormir sem ter na minha a sua mãozinha!
O modo pelo qual ele disse essa frase, pareceu-me estranho. Estranho, ou pelo menos exagerado. Continuamos a conversar. O vapor era de excelente marcha. À tarde, havíamos perdido a terra de vista. Ficamos juntos à hora das refeições, juntos estivemos desde a manhã até às dez da noite.
— Que cacetes! — exclamou o Lino.
— Creio que não... — volveu o Alberto. — Suponho que nos encantamos reciprocamente. Ambos tínhamos vivido muito, corrido céus e terras diversos; mas parece que nenhum havia encontrado ainda o companheiro ideal, o amigo perfeito, a alma gêmea da sua: e cada um de nós julgou reconhecer tudo isso, subitamente, no outro.
O vapor vinha cheio; mas naquele primeiro dia o tombadilho não estava muito frequentado. Passageiros pouco habituados, deixavam-se ficar embaixo, enjoados. Às vezes, os que tinham vindo para cima, sacudidos por um grande mal-estar, aproximavam-se de repente da amurada, tomados de vômitos incoercíveis... Outros ficavam-se sentados, com os olhos rasos de pranto, pensando ainda nos que acabavam de deixar... Grupos de crianças punham um pouco de animação naquilo, correndo, perseguindo-se uns aos outros. Às vezes quando o vapor dava guinadas mais fortes, alguns caíam e os demais, em grande alarido, zombavam da sua queda. Havia, entretanto, viajantes que estavam bem à vontade, alegres, uns passeando, outros lendo, outros jogando. Uma mulher morena, uma bela mulher, alta, elegante, cheia de corpo, com uns grandes e radiantes olhos negros, de uma formosura esplêndida, passou todo o dia sentada em uma chaise longue, imóvel, fitando o mar, fitando-o com olhos absortos de quem, continuando uma íntima cisma, olha sem ver... Fomos os únicos que estivemos todo o tempo no tombadilho: a bela passageira e nós. Às dez horas, quando íamos descer ouvimos o comandante que viera conversar com ela, dizer-lhe que estava satisfeitíssimo com a viagem:
— Estamos, graças a uma brisa de popa, andando à razão de vinte milhas por hora.
Ela respondeu com um simples sorriso de cortesia, indicando bem claramente que não queria continuar a conversa. Ele insistiu:
— Assim terá o prazer de uma viagem extremamente rápida.
Ela fez um gesto de profundo desprendimento e disse apenas:
— Oh! Para mim, é o mesmo...
E, parecia indicar que para ela o tempo já não tinha valor... Que fosse um dia ou fosse um ano, corresse o vapor como uma seta, ou vogasse no mar eternamente, como um desses navios fantasmas das lendas misteriosas, tudo lhe era soberanamente indiferente!
Que segredo haveria naquela alma de mulher? Foi de tal modo triste, de tal modo desalentada a inflexão de sua voz, que eu desci com um frio no coração... O dia passara para mim, ao contrário do que é habitual, sem uma sombra de tristeza; bastaram todavia aquelas palavras tão banais pelo significado, mas tão amargas pela expressão, para fazerem refluir-me ao espírito, toda a amargura do meu pessimismo.
Não disse uma só palavra — senão, ao deitar-me, um simples — Boa-Noite — ao meu companheiro de quarto. Dos nossos dois beliches, superpostos, o dele era o de cima.
Daí a pouco, eu estava dormindo um sono pesado.
Acordei de súbito. Um pesadelo horrível me torturava. Via-me em uma revolução. Tinham armado na rua uma barricada, com grandes pedras. Contra as forças do Governo, eu me batia com um denodo heroico. Houve um momento em que tive a temeridade de escalar a barricada, trepar-me ao alto e de lá, em pé, pôr a arma à cara com toda a serenidade, e visar um inimigo. Nisto, uma pedra rolou a meus pés e eu caí — caí para o lado dos adversários. Rápido, um deles adiantou-se, tomou-me uma das mãos e começou a arrastar-me pela rua, correndo. Era uma corrida vertiginosa. Meu corpo, inteiramente chagado, doía horrivelmente. Nas feridas, abertas em carne viva, a terra das ruas entrava, aumentado a tortura... A cabeça, minha pobre cabeça, era, sobretudo, o que me fazia sofrer; ouvia-a, sentia-a bater, de choque em choque nos ângulos das pedras, e cada vez uma dor finíssima, terebrante, varava-me o cérebro como um estilete agudíssimo... O soldado que me levava, prendia-me apenas pela mão, a larga mão ossuda e forte que apertava a minha... Foi nessa ocasião, quando já tinha percorrido um extenso trecho, deixando como vestígio, pelo caminho, laivos do meu sangue, que eu despertei.
Despertei e senti que o que me acordara tinha sido a mão do meu companheiro de viagem, que apertava a minha desesperadamente. No primeiro instante, custei a compreender a situação. Estremunhado, com a lembrança nítida do pesadelo, no escuro do camarote, sentindo uma intensa dor de cabeça, não percebi o que queria dizer aquele homem, junto de mim, segurando tão fortemente a minha mão.
Da sua voz, eu guardo ainda nos ouvidos o tom de angústia e de terror...
Ele me dizia:
— Desculpe-me: eu sei que o incomodo muito... Eu estou doido... Mas não largue a minha mão... Não largue...
Este pedido que eu não lhe largasse a mão, voltava insistentemente, com um desespero incrível. De fato, porém, era ele que segurava, que se agarrava a mim com uma fúria incrível, quase esmagando meus dedos...
Procurei acalmá-lo. Tive por algum tempo a convicção de que era realmente um acesso de loucura.
Disse umas vagas frases de consolo; pedi-lhe que se deitasse. Ele não me atendia:
— Ainda não... ainda não... não largue a minha mão... daqui a pouco... daqui a pouco...
Apesar da luta, apesar do esforço, eu sentia que essa mão tão crispada à minha estava gelada. Era um frio intenso que me penetrava as carnes, que me subia pelo braço... O desgraçado arquejava...
— Sente alguma coisa? — perguntei eu.
— Não... Não imagina... É horrível... Não largue minha mão...
Isto durou pouco mais de meia hora. Depois eu senti-o aquietar-se. Deu um grande suspiro de quietação e alívio, tirou a mão da minha, saltou rapidamente para o seu beliche e disse-me: Merci!
Na cama, eu senti-o, entretanto, que chorava, chorava mordendo os travesseiros, abafando os soluços para que eu os não ouvisse.
Foi-me impossível dormir.
A trepidação rítmica da máquina, batendo cadenciada, parecia o largo pulsar de uma respiração que arquejava... Fora, havia um batido de águas carinhoso, quase rente à escotilha do nosso camarote, lambendo de manso a quilha do navio.
A cabeça doía-me horrivelmente.
Às vezes, por momentos fugacíssimos, as pálpebras se me cerravam, numa vaga modorra e, ao despertar eu ficava em dúvida se efetivamente alguma coisa sucedera ou apenas tinha sido um sonho.
Mas, a confirmar-me da realidade dos fatos, eu sentia o choro do meu companheiro, um choro contínuo e magoado, mas tão fraco, tão baixinho que o rumor do mar mal o deixava ouvir.
Seria realmente um louco?
A razão de tudo aquilo, só no dia seguinte o vim a perceber.
Fui eu quem primeiro saiu do camarote.
Quando, uma hora depois, passeava no tombadilho, Jorge — o meu companheiro se chamava Jorge Sidney — subiu e veio saudar-me.
Estava pálido, com olheiras roxas, a face tão desfeita, como se houvesse envelhecido de muitos anos.
Não trocamos, no primeiro instante, senão um cumprimento banal; nenhum de nós dois aludiu aos fatos da noite. Não achamos, porém, meio algum de encetar conversa: evidentemente a lembrança daqueles estranhos sucessos nos obsedava.
Afinal, como se tivéssemos chegado ao ponto mais deserto do tombadilho, bem no extremo da popa, Jorge me deteve:
— O senhor há de considerar-me um louco — disse ele.
Eu fiz um vago gesto de negação. Ele continuou:
— Não me interrompa. Talvez, se o fizesse, me faltasse força para ir até o fim. Conhecemo-nos apenas há um dia, mas eu julgo tê-lo reconhecido como um homem de honra, a quem se pode confiar um segredo. É o segredo horrível da minha vida, que não há por todo o mundo uma só pessoa que conheça, o que lhe vou narrar.
Debruçamo-nos ambos à amurada.
O bater da hélice deixava um rasto branco de espuma, assinalando a esteira do navio. Não havia na superfície do oceano o vestígio de uma vela qualquer. Céu e mar: nada mais...
O sol punha faiscações de ouro no ondular das águas, agitadas levemente. No azul, um azul muito claro, não existia senão um leve farrapo de nuvem, um cúmulo de algodão alvíssimo, que vogava lentamente, subindo de um ponto remoto do horizonte para o calmo zênite luminoso...
E ele me contou o drama da sua existência — drama ocorrido em uma noite, rápido e terrível.
Estava hospedado na sua casa de campo, na Escócia, um dos seus amigos, Nataniel Break. Era um industrial riquíssimo. Tinha ficado ali, por alguns dias, a caminho de Londres, onde ia efetuar uma transação avultada. Vendera para isso uma das suas fábricas, cuja importância, que montava a 25.000 libras, trazia ainda consigo.
Na véspera da sua partida foram fazer um passeio; ele ia ver uma fábrica que ficava a curta distância.
Em certo momento, como parassem à margem de um rio que corria perto da casa de Jorge, Nataniel lembrou-se de colher uma flor aquática lindíssima, que brotara num pequenino remanso do rio, — rio que, então avolumado pelas cheias, passava torrencial, bramindo, espumando. A dois passos havia uma cascata. Ouvia-se-lhe o fragor. Mas, naquele humilde recanto, protegida por grossas pedras limosas, tinha podido conservar-se a delicada flor, cujo caule finíssimo emergia da água. A corola azul, com o centro de um leve cor-de-rosa desmaiado, oscilava docemente. Nataniel quis apanhá-la. O amigo advertiu-o do perigo. Ele insistiu. "Deita-te de bruços na margem e dá-me a tua mão." Jorge obedeceu. O outro desceu, quebrou o talo da flor, meteu-a entre os dentes — tudo isto com a mão esquerda, a direita fortemente agarrada à do Jorge.
Quando quis subir e teve de dar um forte impulso para içar o corpo, as pedras rolaram sob seus pés. Ficou suspenso unicamente por aquela mão, da qual dependia sua vida, ou sua morte.
— Nesse momento...
Nesse momento, disse-me Jorge, uma ideia diabólica atravessou-me o cérebro. Se aquele homem morresse, eu podia apoderar-me das 25.000 libras, que estavam em minha casa, na sua mala de viagem.
Fidalgo pobre, vivendo apenas de escassos rendimentos, aquela soma seria para mim a garantia do futuro — do futuro da minha filha, que era, sobretudo, o objeto constante das minhas preocupações.
Num segundo, eu vi, eu senti no meu cérebro o atordoamento de uma luta horrível; todo o meu passado de irrepreensível honestidade, toda a hediondez de ser o assassino de um dos meus íntimos amigos, tudo isso defendia-se contra o assalto monstruoso daquela tentação miserável. Mas a tentação venceu! Era tão fácil simular um acidente! O próprio Nataniel podia não perceber o meu propósito criminoso: bastava que eu desprendesse minha mão da sua e ele acreditaria que ela me tinha escapado.
No momento da execução, as coisas não correram com a mesma simplicidade. É verdade que me bastou um gesto brusco para puxar a mão — à qual ele se agarrava com um desespero enorme, estando, como estava, inteiramente pendurado dela. Foi menos de um segundo. Tive apenas o tempo de ver-lhe o olhar — um terrível olhar de assombro e pavor ante o meu crime...
Que era um crime, eu vi bem que ele compreendeu naquele momento decisivo. E foi, entretanto, uma fração de segundo: caiu para trás, bateu em cheio com a cabeça numa pedra, fez-se uma poça vermelha na água clara, mas logo o corpo, levado pela correnteza, foi a caminho da cachoeira... Mais alguns minutos e estaria longe.
Feliz ou infelizmente, eu tive a partir desse momento, uma tranquilidade extraordinária. Levantei-me, limpei a terra que havia no meu peito por ter estado de bruços, e segui tranquilamente, afastando-me de casa.
Devia voltar, dar-me como testemunha do fato, afirmando que fora um acidente?
Não haveria quem me não acreditasse. Vi, porém, logo, que se tal sucedesse, eu teria de fazer restituir as 25.000 libras: nada explicaria o seu desaparecimento.
Ao sairmos de casa, estava combinado que iríamos até certo ponto juntos e aí nos separaríamos: ele para ver uma fábrica dos arredores, e eu para visitar uma velha parenta, cuja herdade distava da minha uns bons quilômetros. Fui. Ganhei rapidamente o tempo perdido. Passei lá um dia delicioso. Estive amável, jovialíssimo, de uma naturalidade perfeita — ninguém seria capaz de notar em mim a mínima sombra de uma preocupação qualquer. Falei algum tempo de Nataniel: falei sem afetação nem exagero, mas referi a nossa velha amizade e a satisfação que sentira em tornar a vê-lo. Foi um assunto, entre mil outros, na nossa palestra: não tive ao tratar dele a mínima insistência suspeita. Minhas palavras chegaram apenas ao bastante para deixar no espírito dos meus interlocutores mais um testemunho da minha muita amizade pelo homem que acabara de assassinar.
Despedi-me à tarde. Parti para casa.
Em meio do caminho, encontrei portadores que vinham à minha procura. Tive, é certo, um momento de angústia terrível, quando os enxerguei: alguém me teria visto praticar o crime? Ninguém. Vinha prevenir-me. Não se sabia se era um acidente ou um homicídio.
Senti, senti imediatamente que fisionomia devia tomar, que gestos devia fazer, que interjeições devia ter... Precipitei-me a galope. Entrei em casa como um louco. Todos se afastaram respeitosamente ante a minha dor. Homens que estavam ali como simples curiosos, levaram os lenços aos olhos, vencidos pelo espetáculo daquele imenso desespero.
Eu gritava, fora de mim, possuído pelo papel: Meu amigo! Meu amigo!
E ia nessas palavras tanta amargura que todos se sentiam dominados pelo meu sofrimento.
Achei-o deitado de costas, num sofá apenas forrado por um lençol branco. Sua leve roupa clara de touriste elegante, encharcada, aderia ao corpo. Os olhos estavam semicerrados: era hedionda uma linha branca que se via entre as pálpebras. Quando o apanharam já tinha perdido todo o sangue. O cabelo louro ficara perfeitamente limpo. Exatamente por isso, era ainda mais horrível notar a enorme fenda que passava transversalmente sobre o olho esquerdo: os ossos estavam bem separados. Ao bater na pedra que lhe fizera aquela ferida, deixara nela um largo pedaço de pele — era o osso que se via, com as estilhas irregulares da fratura!
Houve um momento em que, possuído de um acesso extremo de dor, abracei meu amigo, solevantando-o um pouco do canapé. Mas, como se ele tivesse receio de que eu o fosse beijar, senti que furtava a cabeça... senti ou julguei sentir. A verdade é que ele quebrara a espinha dorsal justamente ao nível do pescoço e, tendo eu erguido o corpo, a cabeça caiu para trás. Caiu um pouco torcida para meu lado, e por entre os lábios lívidos, arregaçados por sobre os dentes muito brancos, numa expressão que parecia ser a de um sorriso sardônico, passou uma golfada de água, de uma água grossa, saburrosa, viscosa, que sujou o lençol com um risco lamacento. Quando julguei perceber o gesto de sua cabeça, furtando-se ao meu beijo, tive um calafrio da cabeça aos pés. Logo, porém, ouvi na assistência alguém que me explicava o caso, enumerando as diversas contusões e fraturas: a da espinha, a do crânio na parte posterior e a que ficava sobre o olho esquerdo.
No fim de algum tempo, o comissário de polícia pediu aos meus amigos que me tirassem dali.
Contou-me então como se achara o corpo. Disse-me que perto do lugar tinham prendido um vagabundo, sobre o qual recaíam suspeitas. Quando o prenderam, ele teve tempo de jogar à água qualquer coisa que se não pudera achar. Seria o dinheiro roubado? Seria alguma joia? Eram estas e outras informações que esperavam de mim.
Eu lhes disse imediatamente que sabia ter o meu amigo realizado dias antes uma transação importante, cujo valor em notas de banco, é possível que trouxesse consigo.
Indiquei que me parecia útil que a sua bagagem fosse imediatamente selada e recolhida.
Pedi apenas licença por alguns minutos para ir a meu quarto mudar de roupa.
Era em outro pavimento. Subi sozinho. Entrei no meu quarto, passei por uma porta interna de comunicação para aquele em que estava hospedado Nataniel, e como eu sabia, na mala de viagem, o lugar exato em que estava o dinheiro, tirei-o, escondi-o, fechei a porta, tomei outra roupa e desci.
Tudo isto foi extremamente breve. Na azáfama em que todos estavam deve ter parecido imediato, de uma prontidão nunca vista. Subi com o comissário, fiz revistar e selar as malas. A ausência do dinheiro foi constatada. Quando o agente me comunicou essa notícia, eu tive um rugido de vingança contra o assassino — o suposto, o desgraçado vagabundo a quem acusavam falsamente! Mas não houve para ninguém, a partir desse instante, dúvida alguma sobre a sua culpabilidade. Que instinto do mal me levava a acumular crimes no meu caminho!
Desci. Estive ainda uma vez de joelhos! Abracei-o de novo, de novo chorei sobre o seu corpo... Era quase sincero o meu sentimento, de tal modo eu estava possuído do papel que representava. Afinal, pondo-me de pé, eu disse entre soluços: Nataniel meu amigo, tu hás de ser vingado! E tomando sua mão fria úmida, apertei-a na minha, com o gesto de um amigo que se despede de outro, fazendo-lhe uma promessa decisiva. A cena era um pouco teatral, mas por isso mesmo parecia grandiosa e com o tom ardente que animava minha voz, fez uma impressão imensa no auditório.
Mas, o que foi para mim a sensação desse momento, eu não sei dizer: foi horrível! Quando eu apertei aquela mão inerte, pareceu-me senti-la segurar-me com toda a força. Tive a impressão de que ela me apertava, como o fizera horas antes quando o corpo do meu amigo pendia sobre o abismo. Mais do que isso. Tive a certeza que desta vez ela não me largaria. Um frio, um frio de morte, um frio como nunca sentira, subiu-me pela mão, pelo punho, pelo braço, entorpecendo-o... Eu dissera que ele havia de ser vingado e o rictus sardônico da boca parecia mais irônico ainda, a atestar que a vingança viria de fato, — mas viria, não sobre o desgraçado que estava preso, viria sobre mim! Tirei a mão num gesto um pouco brusco. Alguém a meu lado, um curioso que eu não conhecia, e entrara ajudando a trazer o corpo, disse, tirando o relógio, e falando a outro: — São onze e vinte. — Que me importava essa frase banal?
Todas aquelas emoções me tinham alquebrado. Subi. Fui até à cama de minha filhinha. O mesmo frio me entorpecia a mão e o braço: parecia carregar um braço de mármore, pesado e gélido. Quando me sentei à beira da cama de Kate, ela dormia um sono de anjo; seu rosto corado e mimoso, enquadrado na moldura dos longos cabelos louros, tinha uma expressão serena e risonha. Uma camisinha branca, bordada com folhos de rendas enfiados por fitinhas verde-claras, fechava-se no seu pescoço delicado, nos seus punhos gentis. Uma de suas mãozinhas, que estava do lado de fora meio fechada, parecia um lírio em botão, caído ali, pequenino e mimoso.
Mão bendita, mão de minha filha... Foi quando a tomei na minha que para logo o frio se dissipou e a vida me voltou... Pensei dentro de mim: ela me perdoa, porque vê que eu sou criminoso por sua causa. Mas imediatamente outro pensamento protestou, indignado: Vil! não atribuas a tua filha pensamentos torpes! Se ela soubesse, se compreendesse o que tu fizeste, ela te reprovaria... Essa mão pequenina nunca se furtaria como a tua a retirar qualquer homem de um abismo... Se a salvação te vem dela, é que a sua bondade salva até mesmo os miseráveis como tu! Acolhe-te a ela e beija-a contrito, com teus lábios impuros, como se beija um coisa sagrada!
Baixei a cabeça, a chorar, a chorar como um doido. Houve um momento em que Kate acordou. Devia estar em meio de sonho... Disse, sorrindo, em parte reconhecendo-me, em parte continuando a sonhar: Ih! papai! a cabritinha... Desprendeu a mão, passou o bracinho em volta do meu pescoço, chegando à sua a minha cabeça e, com a facilidade que as crianças têm em ir da vigília ao sono, fechou imediatamente as pálpebras e continuou a ver a cabritinha dos seus sonhos... Eu fiquei com a cabeça junto da sua. Aos poucos venceu-me a fadiga e adormeci.
Jorge parou um pouco nesse momento. Eu continuava de cabeça baixa, olhando para os novelos brancos que a espuma fazia e desfazia na esteira do navio.
Até então, meu companheiro tinha desenrolado a sua narração em voz baixa, mas com uma rapidez extraordinária. As frases saíam-lhe aos arrancos: frases curtas, incisivas, destacadas. Parecia não guardar consciência da minha presença e estar fazendo um grande monólogo. Curvado a meu lado, apoiando os braços cruzados sobre a amurada, ficara tão perfeitamente imóvel como eu. Só os lábios deviam agitar-se.
Quando parou, pareceu lembrar-se da minha presença:
Oh! eu estou descendo a detalhes inúteis, estou a importuná-lo. Mas há três anos que eu trago comigo este segredo horrível. Não há ninguém, absolutamente ninguém que suspeite a sua existência. Não se passa, entretanto, uma só noite em que eu não reviva toda esta história, cena por cena, minúcia por minúcia. Já agora perdoe-me por mais algum tempo e ouça a explicação do que viu esta noite. O que resta é muito pouco.
Eu permanecia imóvel, impassível, sem a menor mudança de atitude. Não sabia bem se devia ou não continuar a ouvir essa confissão. Estava irritado com aquele desconhecido, que abusando da simpatia que me inspirara, certo que eu saberia, custasse o que custasse, guardar o seu segredo vinha confiar-mo para que de ora em diante eu trouxesse mais esse peso na consciência. Mas enquanto eu hesitava, ele retomou a palavra:
Nataniel foi enterrado sumptuosamente. A família agradeceu comovida, os extremos de caridade que eu tivera com ele. O suposto assassino foi condenado a trabalhos forçados por toda a vida... Em vão ele alegou que jogara ao rio um relógio de prata que furtara a um operário. Ninguém o acreditou...
Quando Jorge disse isto, eu devo ter tido um movimento, uma expressão qualquer inconsciente de surpresa e de indignação. Devo ter tido, porque ele me respondeu:
Não me condene! Eu senti desejos de salvar esse homem, de levantar dúvidas sobre a sua culpabilidade. Vi, porém, que por um lado era inútil, por outro perigoso. Inútil — porque a convicção geral se tinha firmado de tal maneira que ninguém me acreditaria; perigoso — porque eu só poderia inocentá-lo, acusando-me. Era o que eu devia ter feito, mas faltou-me a coragem — não pela pena, porque o pobre diabo, nas galés onde está, tem sofrido menos do que eu — mas pela separação de minha filha, de quem eu teria de me afastar. Eu provarei gostosamente as mais cruéis torturas, contanto que me furte a essa!
Fez uma pausa. A narração começava a impacientar-me. Tinha vontade que pusesse termo a ela.
Na noite seguinte à da morte de Nataniel eu estava na sala da minha biblioteca, sozinho, fumando e cismando, quando de repente senti uma constrição singular na minha mão e um frio, o mesmo frio da véspera. Era absolutamente o mesmo aperto, o mesmo shake-hands com que Nataniel me segurara no dia anterior. Mas desta vez pareceu-me que a mão invisível, a mão de gelo puxava-me para a janela aberta, como se me quisesse fazer saltar por ela; e isso seria a morte. Fiz força na cadeira lutando como alguém que não quer ser arrastado por outrem que o esteja atraindo e sacudi o braço, para desentorpecê-lo! O frio era cada vez maior. A força oculta buscava levar-me com uma energia imensa. Neste momento, levantei os olhos e notei, olhando para o relógio que me ficava fronteiro, que eram onze horas e vinte minutos. Começava a fraquear, sentia que ela podia mais do que eu, que dentro em pouco teria de ser vencido.
Da mão glacial eu tinha a sensação nítida, tanto da palma junto à minha palma, como dos dedos cingindo-me com um esforço desesperado.
Do meu gabinete passa-se diretamente para o quarto de Kate. Lembrei-me do que sucedera no dia anterior e pensei em ir para o seu lado. Receava, porém, levantar-me. Era, entretanto, o único recurso. Pus-me de pé. Começou então uma luta medonha entre mim e a força misteriosa. Como eu deveria parecer ridículo a quem me visse — a mim — um homem ativo e forte, debatendo-me no meio da vasta sala deserta, contra um vago espectro que ninguém conseguiria distinguir. E todavia, como era pavoroso! Também eu não enxergava o espectro — se espectro havia — mas sentia perfeitamente aquela mão robusta e gélida que procurava levar-me para a voragem. Eu tinha dito hipocritamente: Nataniel, meu amigo, tu serás vingado! Pois bem: era a vingança que vinha — não a que devia recair sobre um inocente, mas a que vinha ferir o verdadeiro culpado!
Afinal, pude chegar junto à cama de minha Kate, pude a muito custo tomar sua mãozinha. Mal eu consegui tocar nela, a mão misteriosa e daninha pareceu sumir-se, desfazer-se, e a vida e o calor voltaram-me ao braço. — Kate, minha Kate, então, como sempre, tu foste o meu anjo bom, a minha salvação.
Jorge disse isto com um tom de tão íntima dor, de tão profunda comoção, que eu me senti dominado pela evocação dessa criança loura e pequenina, dessa mimosa filhinha cujo contato era um exorcismo bastante, até mesmo na sombra e no mistério, contra as agressões do Invisível.
Jorge continuou:
Desde então, todas as noites, quando se aproximava a hora fatal, eu ia tomar na minha a mão de Kate. Que o não fizesse e sentia logo a Presença Invisível, rondando em torno de mim; a mão de gelo estendia-se na sombra para atrair-me e imediatamente para evitá-la, eu era forçado a buscar o contato de minha filhinha.
Sempre que ele aludia a Kate, sentia-se vibrar na sua voz uma ternura infinita.
Há três anos que isto dura. Esta foi a minha primeira noite em que dormi longe de minha filha. A viagem que estou empreendendo era inadiável. Tive de deixar Kate. Procurei raciocinar e convenci-me que esse fato, essa coincidência das onze e vinte era apenas uma alucinação. Se, de fato, há uma vida além desta, se há uma eternidade de sofrimentos, quem nos viria disputar alguns minutos de existência aqui? A eternidade não bastaria para satisfazer as piores vinganças? Fosse como fosse, esta noite, eu acabava de adormecer quando acordei puxado por alguém: era a mão de morte, a mão de gelo que me atraía com força. Foi então que eu o acordei. Viu a força desesperada que ela fazia? É sempre assim! Felizmente ao cabo de quarenta minutos, quando deu meia-noite, pareceu-me sentir que a Inimiga se tinha fatigado; pude deitar-me; mas não consegui conciliar o sono. Que vai ser de mim esta noite?! Sinto que não o posso importunar mais. Já pedi ao comandante um camarote à parte. Deus me proteja! Minha Kate! Minha Kate!...
E o desgraçado começou a soluçar com o rosto nas mãos, chorando como uma criança.
Quis consolá-lo; mas não achei uma palavra para isso. Logo, a meus olhos duas visões surgiram: a de Nataniel, estendido no seu caixão, lívido e morto e a de um mísero vagabundo, que estava a essas horas num cárcere da Escócia, condenado e inocente.
Ficáramos assim naquela situação embaraçosa, quando o comandante, que andava procurando Jorge, para escolher com ele o novo camarote, veio chamá-lo.
Enxugou os olhos, procurou compor a fisionomia e seguiu. Nunca mais o vi.
— Nunca mais?
— Nunca mais. Pouco depois de me deitar, nessa noite, senti um reboliço enorme a bordo. O vapor tinha parado. Vesti-me às pressas e subi ao tombadilho. Alguém tinha caído ao mar. Era Jorge. Um marinheiro o vira aproximar-se da amurada, lutando, aos arrancos. Pensara porém que ele ia vomitar, nauseado pelos balanços do navio. A ocorrência era tão frequente, que não incomodava ninguém. Chegado, porém, à amurada, ele se atirara ao mar.
Puxei o relógio; eram onze e meia.
O caso devia, portanto, ter ocorrido às onze e vinte.
Todas as pesquisas para achar o corpo foram infrutíferas, embora o vapor tivesse ficado imóvel até à manhã seguinte.
Mas na manhã seguinte só se via céu e mar: nada mais...

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