12/09/2017

Caiporismo (Conto), de Artur Azevedo


Caiporismo

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
— Oh! Secundino!

— Oh! Borges!

— Tu no Rio de Janeiro!

— Há oito dias.

— Vieste a passeio?

— Não, meu amigo; vim tocado pela desgraça.

— Pela desgraça?

— “Desgraça” é talvez forte demais. Pelo caiporismo, se quiseres.

— E és tão caipora assim?

— Pertenço ao número dos tais que caem de costas e quebram o nariz!

— Oh, diabo! entremos neste café, e, enquanto tomamos alguma coisa, conta-me qual tem sido a tua vida nestes doze anos de ausência.

Passava-se isto na Rua do Ouvidor, em frente ao Pascoal. Os dois amigos e comprovincianos entraram no Café do Rio, e sentaram-se a uma das mesas.

II
— A minha vida, principiou Secundino, resume-se numa palavra: miséria. Quando vieste da Vitória e lá me deixaste, eu era ainda, por bem dizer, uma criança. Vivia em casa de minha família, onde nada me faltava. Morreu meu pai, morreu minha mãe, minhas irmãs casaram-se, e eu fiz-me sócio de uma loja de fazendas. Ao fim de seis meses, abriram-me falência. Saí com uma mão atrás e outra adiante, e fui ser caixeiro de um bruto, um ingrato, que, ao fim de oito anos, em vez de me dar sociedade, passou a casa a um sujeito meu desafeto. Desgostoso, abandonei o comércio e quis ser empregado público. Apresentei-me em quatro concursos, e, apesar de bem classificado, não consegui que me nomeassem. Fundei uma folha, que acabou logo por falta de assinantes. Contratei casamento com a filha de um fazendeiro rico de São Mateus, e a minha querida noiva, que me estimava muito, morreu um mês antes do dia marcado para o casamento. Afinal, desesperado, baldo inteiramente de recursos, aceitei um lugar de contínuo na Tesouraria da Fazenda...

— Tu?! Com as tuas habilitações?!

— É para que vejas, respondeu Secundino com lágrimas na voz. Mas isso mesmo foi considerado muito para mim. Demitiram-me acintosamente por não ter votado no candidato oficial nas últimas eleições. Resolvi então vir para o Rio de Janeiro, ao Deus dará... Arranjei duzentos e tantos mil-réis, vendendo tudo o quanto possuía, e aqui estou sem emprego, sem esperanças, sem promessa, sem relações, e com sessenta mil-réis no bolso. É tudo quanto me resta da minha fortuna.

— Pois bem, ofereço-te um emprego.

— Deveras.

— Oh! não é coisa para arregalares desse modo os olhos. É um biscate, que te pode servir enquanto não arranjar coisa melhor.

— Tudo me serve, meu amigo: a minha situação é desesperadora.

— Pois bem. Conheces a viúva Salgado?

— Não conheço aqui ninguém.

— Tens razão. A viúva Salgado é uma senhora riquíssima. Tem duas filhas. Quer que elas saibam francês, inglês, e me incumbiu de contratar um professor que lhe dê lições em casa, duas vezes por semana, ganhando cento e vinte mil-réis mensais.

— Mas é uma pechincha.

— Não tens que perder tempo. Aqui está um cartão meu para te apresentares hoje mesmo, agora mesmo, se quiseres, em casa da viúva Salgado.

— Onde é.

— Rua do Catete.

— Número?

— Não sei o número, mas o condutor te indicará a casa. Não há quem não conheça a viúva Salgado. Olha, toma-se o bonde ali defronte e para-se mesmo na porta. Sabes onde é o Ministério dos Estrangeiros?

— Não.

— Conheces o Palácio de Nova Friburgo? deves conhecer, que diabo! já tens oito dias de Rio de Janeiro!

— Conheço.

— Pois é nessas imediações; quase defronte.

— Já sei pouco mais ou menos onde deve ser.

— Pois vais tomar o bonde, e sê feliz.

Daí a dois minutos, Secundino partia para a Rua do Catete.

III
O bonde parou no Largo da Carioca.

Uma senhora de meia idade, muito gorda, muito feia, mas luxuosamente vestida, aproximou-se para entrar no carro. Havia um único lugar desocupado ao pé de Secundino. Este encolheu-se todo para deixar entrar a senhora, que só a muito custo conseguiu abrir caminho entre os joelhos do provinciano e o banco da frente.

Depois de sentada, a senhora gorda encarou o seu vizinho com um olhar cheio de ódio, e disse bem alto, para que todos ouvissem:

— Com efeito! Sempre há sujeitinhos muito malcriados! E repetiu, depois de alguns segundos:

— Sujeitinhos muito malcriados!

— Isso é comigo, minha senhora? perguntou Secundino timidamente.

— Pois com quem há de ser? Se fazia tanto empenho em ficar na ponta do banco, devia levantar-se um instantinho para deixar-me passar sem me magoar as pernas nem amarrotar o vestido! Ora vejam como ficou esta saia!

— Minha senhora, quem não quer se sujeitar a estas contrariedades não anda de bonde: aluga um carro.

— Cale-se! Não seja insolente! Você responde assim por ver que não tenho um homem a meu lado.

E a senhora gorda percorreu com os olhos todos os passageiros do bonde, na esperança de que algum tomasse as dores por ela.

— O meu caiporismo! refletiu Secundino. E, enfiado, apeou-se no largo da Mãe do Bispo.

IV
Veio outro bonde. O provinciano entrou nele, e um quarto e hora depois, subia a escada da viúva Salgado. Calcou o botão de uma campainha elétrica, Veio um copeiro encasacado. Secundino entregou o cartão do seu amigo Borges, e esperou.

Daí a cinco minutos abriram-lhe a porta da sala, uma sala opulenta, atapetada com luxo, mobiliada suntuosamente, cheia de quadros e quinquilharias.

Esperou meia hora. Rasgou-se afinal, um reposteiro de seda, e apareceu a dona da casa.

A viúva, mal encarou Secundino, gritou, cheia de surpresa e de cólera:

— Pois é você, seu malcriado?! E eu que supunha ser o senhor Borges! Ponha-se já, já no olho da rua! Já!...

Secundino reconheceu na viúva Salgado a senhora gorda do bonde. Saiu da sala precipitadamente e desceu a escada aos pulos. Só respirou na rua.

Foi realmente, muito caiporismo!

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