Maibi
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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"Pays affreux et désolé! Une malédiction pèse-t-elle sur le sol? Je
crois voir du sang aux racines de cet arbre rabougri et souffreteux."
H. Heine — Atta Troll
Uma figura
alentada e bruta, com uma bocaça mascarada pela franja da bigodeira ruça, dizia
à outra personagem, chupada, esfanicada de sezões e mau passadio, com uns raros
pelos duros nos cantos dos lábios e no queixo prógnato:
— Então, o
negócio está feito... estamos entendidos. Você nada me deve e deixa a Maibi com
o Sérgio.
— Sim senhor
— respondeu o escanzelado, retendo um suspiro.
Pronunciava-se
este diálogo junto ao balcão, no armazém, entre o Tenente Marciano, dono do
Soledade, e um seu freguês, o Sabino da Maibi. Quando a operação hedionda
finalizou-se assim, de uma assentada, entre os dois homens, o sol descambava,
mordendo o friso verde-negro da mata, e a luz de fora filtrava-se por entre as
brechas das paxiúbas mal ajustadas, no barracão, como se coada fosse por entre
as barras férreas de um calabouço, guardando dois réprobos.
Mas, que
negócio fora afinal firmado? O Sabino devia ao patrão sete contos e duzentos,
que a tanto montava a adição das parcelas de dívidas de quatro anos atrás, e
cedia a mulher a um outro freguês do seringal, o Sérgio, que por sua vez
assumia a responsabilidade de saldar essa dívida. O mais comum dos arranjos
comerciais, essa transferência de débito, com o assentimento do credor, por
saldo de contas.
A troca
interessava ao patrão, que ficava mais seguro com o Sérgio, rapaz afamado como
trabalhador insigne. E o Sabino iria labutar com ânimo, na esperança, agora bem
realizável, de tirar saldo no fim do ano. Com a mulher, a sua peia maior também
tinha desaparecido: os sete contos e tanto, que neles pensar, era se lançar,
pela certa, num deplorável estado de desalento. Compreendia o Sabino que, em
companhia da esposa, por mais que trabalhasse, nunca pagaria a dívida crescente
e escravo se tornava. O débito era um par de machos...
"Tirar
saldo" é a obsessão do trabalhador, no seringal. E como não ser assim, se
o saldo é a liberdade? O regime da indústria seringueira tem sido abominável.
Instituiu-se o trabalho com a escravidão branca! Incidente à parte na
civilização nacional, determinaram-no as circunstâncias de uma exploração sem
lei. O código surgiu mesmo nas contingências da luta. Não por intimações de uma
autoridade, que não existia, mas por acordo tácito entre todos. Demais, fora
preciso organizar, em plena selva, aquilo de que o pensamento social do país,
focado na Rua do Ouvidor, não cogitara nunca. Dir-se-ia uma nação de
malandrins, um país de cocagne; jamais se sentiu a necessidade de dar ordem ao
trabalho, como se este a ninguém preocupasse. Incrível dizer-se, — foram
seringueiros que golpearam a lei fundamental da nação livre! Porquanto,
aconteceu que, ante condições especialíssimas, o que se houvera seguido
espontaneamente, não bastava. Um seringal, em fim de contas, não era a estância
de gado, nem uma fazenda de café, nem o engenho de cana. O que satisfazia na
campanha do Rio Grande, no oeste de São Paulo, no interior de Pernambuco, não
era suficiente no Madeira, no Purus, no Juruá. Desde logo, o que a legislação
não previu, a indústria nascente fundou. Não era o exercício de uma simples
crueldade, mas o resultado dos interesses do Capital, que instituíram a sua
própria defesa. Lógico, pelo menos fatal. Os estatutos da nova sociedade, que
quis viver, receberam esta base: — não poder o seringueiro abandonar o
seringal, sem estar quite para com o patrão.
Por isso, em
muitas ocasiões, dera ao Sabino o ímpeto de sacudir fora o balde de leite,
cruzar os braços na estrada, nela ficando hirto, até a morte sobrevir; outras
vezes, pensara em correr os riscos de roubar uma canoa e fugir para Manaus...
Chegar de sua terra, no insólito desejo de fortuna, para estabelecer-se um dia
no Sitiá, com um campo de panasco e uns novilhos e cabras; e, em troca, ali ficar
no estranho deserto alagadiço de um fundão do Amazonas, comido de "praga",
e a cair de sezões! Com a situação, que se lhe oferecia, de solevado, o seu
pobre coração renascia. Haveria de voltar à sua terra, se Deus quisesse!
Bem tempo
fazia que deixara o Baixo Amazonas, primeira etapa de seu êxodo de condenado.
Lá trabalhara três anos, sem vantagem. Afora um pouco de "tapuru", a
seringa era "fraca", "itaúba". No lago do Castanho,
casara-se com aquela cabocla, linda cunhã, enguiço núbil, tentação que lhe chegara
para atrapalhar a vida, pois, se tivesse vindo sozinho, nessa época, labutar no
alto, na seringa, estaria certamente, a essas horas, no seu querido Ceará. É
verdade que, em companhia da Maibi, mais doce lhe correra a existência...
Contudo, tinha sido um atropelo. Conseguira desenvencilhar-se dela, e ganhando;
mas tinha saudade da "danada" da cabocla. Ah! os seus olhos, tingidos
no sumo do pajurá; o seu andar miúdo e ligeiro de um maçarico; ah! os seus
cabelos de um negro da polpa de mutum "fava"; o seu vulto roliço...
As carícias ardentes iriam agora aplicar-se em outro... Nos braços de outro ela
se arrebataria em juras e suspiros... Fora-lhe bem duro apartar-se; mas "era
o jeito". E o seringueiro procurava abafar pensamentos que o
incomodavam...
O certo é
que, ao sair do armazém, a sensação do Sabino foi a de desafrontado de uma
carregosa canga.
O dia, um
domingo de março, era de movimento no barracão; os fregueses das barracas do
seringal vinham em visita e a negócios. Escasseavam a farinha "d’água",
o pirarucu e o jabá, mas o "vapor da casa" estava para chegar com o
aviamento. E a gente afluía, insofrida, a buscar mantimentos, e curiosa de uns "brabos",
que o vapor traria; mas, no fundo, convergida pelas exigências irrevogáveis da
sociabilidade, cada vez mais intensas no regímen de isolamento que os devorava.
Ao
anoitecer, grande número de fregueses enchia a sala maior do barracão, para a "rocega".
A gaita começava a soar, nos soluçosos bemóis de uma valsa ronceira. E então,
aqueles homens, no meio dos quais havia apenas duas mulheres, se agarraram aos
pares, desabalando-se a dançar sobre o soalho flácido e ondulado das paxiúbas.
Um "farol de gás" prendia-se ao pendural das tesouras, no
travejamento quase perdido no fumo envolvente do tabaco. Cessada a música, era
um rumor alto de conversa e risadas, até que a harmônica, incansável e fanhosa,
gemesse novos compassos.
Tarde da
noite, a uma observação do Tenente, — "basta por hoje, rapaziada!", a
sala se esvaziara. Os seringueiros demandaram seus pousos. O barracão ficara
acaçapado e tétrico, mais negro ainda na noite, onde fuzilava, entreluzindo, o
pequenino diamante azul de uma única estrela abandonada.
A primeira
cara que o Marciano viu, pela manhã seguinte, foi a do Sabino. O patrão
disparou logo:
— Está
arrependido? Se quiser, pode ir para outro seringal; não me desgosta. Se deseja
ficar, também pode... Não proíbo... Faça o que entender.
O Sabino
declarou que não se havia arrependido; não metia o pé atrás, e que queria
trabalhar, mas numa "colocação, no centro". Tencionava ficar na do
Paulino, que morrera, havia quatro dias passados, picado por uma tucanaboia. A
estrada de dois "frascos" e meio não era grande coisa, mas sempre
influía. Demais, contava que seu Tenente lhe aviasse todo o pedido. Não era muito:
uma tarrafa, um par de calças de zuarte, pílulas "carapanã" e "taurinas",
caixas de bala, a farinha e o pirarucu; coisas que um homem, degradado naqueles
mundos não podia prescindir. Deveria então começar a roçar a estrada? Na semana
que entrava, queria estar "sangrando as madeiras"...
O Tenente
assentia com desusada benevolência:
— Pois sim!
Pois sim!... Há de se arranjar tudo... O Rio Iaco chegará por estes dias...
Com efeito,
uma semana depois, o vapor atracava ao Soledade, no alvoroço da gente insofrida
em aguardá-lo. Muitas horas levou a despejar carga. Algumas reses foram
atiradas do portaló para a água, onde caíram, nadando expeditas para a terra.
Caixas, paneiros, fardos e garrafões passavam pela prancha, atropeladamente,
como se fossem baldeados por contrabandistas em pânico. Numa agitada faina,
tudo se amontoava em terra, a fim de ser transportado ao armazém, a não ser o
gado disperso, que aparava os brotos, espontando as canaranas na beira.
Com o
carregamento desembarcara o pessoal, que o guarda-livros fora buscar ao Ceará.
Umas vinte cabeças, gente do Crato e de Carateús. Os agenciados tinham sido, no
porto de Camocim, cinquenta ao todo. Mas, uns haviam fugido no Pará, outros em
Manaus e cinco haviam "dado o prego" com as febres.
— Oh!
canalha safada! — tal a frase que o empregado entremeava, a cada passo,
aludindo aos engajados, no relatar facundo, ao Marciano, dos trâmites da
missão, de que fora incumbido. Um subprefeito em Manaus, a quem dera queixa,
ninguém mandara ao encalço dos homens foragidos no Mocó... Estava toda a
campanha amaldiçoada em trinta contos. O guarda-livros culpava também do
desastre da expedição à "casa aviadora", porque esta demorara em
Belém a partida do navio, e o gerente tinha "quebrado o corpo",
recusando-se a adiantar os "borós", para acudir ao sustento do
pessoal...
O momento
chegou, em plena noite, que o Rio Iaco, estrepitoso do vapor vomitado pelo tubo
de descarga, recolhida a prancha, desamarrados os cabos, largou brandamente do
barranco. Um apito roncante, de "sereia", ecoou sinistro, ululando no
ermo.
Após o berro
da despedida do "gaiola", a vida no Soledade seguiu o curso normal.
Da célula central, — o barracão, irradiavam outras células, — as barracas, no
sistema orgânico dessa fraca e fundamental urdidura, que cobre léguas quadradas
com o trabalho de alguns homens apenas. Pelos varadouros e igarapés, os
aviamentos parciais eram transportados pelos "fregueses do toco", em
jamaxis ou canoas.
Marciano,
antes da dispersão dos novos fregueses, reunira-os na vasta sala do Soledade e
dirigira-lhes uma fala. Exigia trabalho e freguês com saldo. Isto de gente
devendo, não era com ele... Não queria saber de histórias, queria borracha! E,
desprezando escrúpulos e cuidados na conservação da riqueza florestal, com que
a boa Natureza lhe presenteara, resumia brutalmente na homilia, o programa
absurdo da sua exploração: "Quem for tatu que cave; quem for macaco que
trepe." Explicava esse lema bizarro. Não se opunha que as seringueiras
fossem lavradas das raízes aos galhos, num decreto de extinção formal.
Construíssem mutás, — arapucas desengonçadas, grosseiros andaimes para atingir,
em faixa mais alta, os vasos captores da goma preciosa; ou empregassem o "arrocho",
— medonho apertão, dia a dia constringido, para que o tronco, esganado no
garrote, ressumasse até às fezes a seiva valiosíssima. Um máximo de produto,
mesmo à custa do aniquilamento das árvores, exigia o patrão, na formidável
ignorância, que, generalizada, liquidaria a principal riqueza da bacia
amazônica, estancando-a na sua fonte.
Ao fim
dessas recomendações imperiosas, de crime ou inconsciência, os "brabos"
foram se estabelecer, às pressas, nas estradas recém abertas pelo "mateiro",
na última invernia.
A lufa-lufa
de "meter gente nas colocações" cessou por fim. Iniciara-se o
ramerrão do "fabrico". Até o termo da safra, entrava mês, saía mês, o
Tenente, na ponte do Soledade, ou sentado na varanda, tranquilizado de fortuna
por um gordo saldo no Prusse, mas, calculando a conta de lucros e de perdas
provável, consumia charutos caros, passando os olhos pelos jornais, ou
pervagando-os pelas margens do rio em debruns uniformes de ueranas insípidas.
O barracão
do Soledade dominava, em mangrulho, a chateza da veiga circundante. E, como se
uma grandiosa relha de charrua tivesse tentado aradar a planície, a água
refundava o sulco fertilizante, num augusto lavrar, para as searas de Pã... A
mata pintava-se de um mesmo verde Veronese; o céu embebia-se da mesma aguada
azul da Prússia; as horas escorriam na lentura de um óleo denso, dessangrando
por um fino sangradouro; o sol rojava-se diariamente pelos seus paços
imperiais, num servilismo de escravo...
Foi durante
uma tarde vazia, fúlgida e vagarosa, que o Marciano divisou uma canoa, dobrando
a curva do remanso, de rumo ao barracão. Da margem oposta ela atravessou, dando
ondulações em viés à túnica lisa e cinzenta do rio. Na proa, o remador
amiudava, sôfrego, as remadas. Mal encostando a embarcação, ele saltara em
terra. Era o Sérgio, que vinha pálido, visivelmente emocionado. Acercando-se do
patrão, contou-lhe que aproveitara uns dias de chuva, nos quais não pudera "cortar",
para fazer uma viagem ao "centro"; mas que ao voltar, não encontrara
mais em casa a Maibi. A cabocla desaparecera; só deixara uma anágua no baú de
marupá. Estava farto de procurar... iria até à extrema de baixo, indagando...
chegaria mesmo ao Umarizal. E o Sérgio, devastado de indignação e angústia,
desceu precipitadamente a escada da ponte.
O Tenente,
com o seu pretendido faro de antiga autoridade policial em São João de
Uruburetama, lembrou-se do Sabino. Quem saberia se o cearense, enciumado, não
dera sumiço à rapariga? Ocorreu-lhe mandar ao centro um "homem" de
confiança, ver se lá deparava com o indiciado e, à sorrelfa, bispava alguma coisa...
Sentado num
banco, na cozinha, o Zé Magro cortava e recortava o rolo de "Acará",
cantarolando em surdina:
Migo, migo, migo, migo
Este molho de tabaco,
Que fumo de tico em tico
E masco de taco em taco.
Este molho de tabaco,
Que fumo de tico em tico
E masco de taco em taco.
quando ouviu
que o chamavam. Acudiu pronto, cessando o trauteio. Recebidas as ordens e
instruções do Tenente, tomou do rifle e partiu.
De um pulo
atravessou o campo, transpôs uma "estiva" e afundou na mata,
desaparecendo pelo "travessão". Um pouco mais tarde, o "próprio",
de sobrerrolda, topava com o Sabino, que saía da boca da estrada. Este vestia
uma camisa sórdida, calças trapejando nos pés, metidos em sapatas de borracha;
e tinha a cabeça rebuçada na chita do mosquiteiro. Aparelhava-o um terçado
enfiado na cinta, nas mãos o machadinho e o balde; pendido ao flanco um pequeno
saco, e o rifle atravessado nas costas. O uniforme traduzia a miséria e o
arriscado do ofício.
Entabularam
conversa.
— Bom dia
hoje?... Leite muito, hein?... — indagou o Zé Magro.
Sabino
respondeu-lhe, dominando a custo a comoção que o abatia:
— Nem por isto...
— E, esforçando-se por se acalmar: — botei "uma madeira em pique",
pau monstro, apaideguado... E boa que admira... É para doze tigelas. Só ela dá
um "frasco". Eu não via o diabo. Passava junto e não dava com a
bruta... E no entanto estava logo depois da boca da primeira "manga".
O outro,
surpreso da serenidade do Sabino, resmoneou desconcertado, referindo-se ao
capricho costumeiro da "mãe da seringueira", que escondia as árvores.
E, para disfarçar a espionagem, revelou-se curioso:
— Bem queria
ver esse pau... se é o que Você diz!
— Pois vá —
replicou o Sabino. — Há de se admirar, e Você, apesar de não ser nenhum "brabo",
nunca viu coisa igual. Fica logo ao pé de um açacuzeiro, depois de um cerrado
de "unhas de gato" e jurarás...
— Está bom,
deixe-me espiar.
E o Zé Magro
foi endireitando para o maciço da mata, onde, mesmo por detrás do "defumador",
desembocava a estrada.
Sabino, que
ficou atentando no espião, mal este desaparecera, tomou a própria cabeça entre
as mãos e sacudia-se todo, ourado em paroxismos epilépticos. Andava para um
lado e para o outro; ia, voltava, levando as mãos ao peito, como para arrancar
uma víscera de dentro, e puxava os cabelos, enlaçando soluços a rugidos.
Parecia investir para a estrada a chamar alguém; depois, como que arrependido,
corria até o aceiro da floresta, atolava-se no chavascal próximo... Produzia a
impressão de que fosse ameaçado por um açoite de fogo, e o perseguidor
instrumento sinistro chegasse a alcançar a vítima, fazendo-a saltar e
volver-se, fugindo ao contato espicaçante dos látegos.
Enquanto
isso, o Zé Magro seguia pensativo e suspicaz, à cata da seringueira fenomenal.
A estrada frondejada é apenas um trilho, em busca das árvores a cortar. Mas,
quase sempre, a linha poligonal mantém a orientação que a fecha sobre si mesma.
Por vezes dispartem dela outros polígonos menores — as "voltas", ou
simples linhas — as "mangas"; mas, sempre o seu traço total é o de um
carreiro, enrodilhando a centena de "madeiras" a explorar. O
seringueiro no "fabrico" percorre-a às pressas. Vai muitas vezes
mesmo antes que amanheça, então à luz do "farol" ou lamparina,
embutindo as tigelinhas sob o golpe pequeno e em diagonal, na devida "arreação";
voltará imediatamente, nas mesmas pegadas, a fim de recolher no balde o leite
das tigelas. Manhã alta chega o seringueiro estropeado, e tem ainda de defumar
o látex, d’olhos castigados ao fumo acre dos cocos, ardendo embaixo do "boião".
No hábito do
serviço, o Zé Magro seguia a passos rápidos, mal notara o açacuzeiro no cerrado
de cipós, e já se quedava aterrado diante o espetáculo imprevisto e singular.
Uma mulher, completamente despida, estava amarrada a uma seringueira. Não se
lhe via bem a face na moldura lustrosa, em jorro negro e denso, dos cabelos
fartos.
O Zé Magro
acercou-se, tremendo, a examinar a realidade terrível; na crucificada
reconheceu, estupefato, a mulher do Sabino e do Sérgio.
Atado com
uns pedaços de ambécima à "madeira" da estrada, o corpo acanelado da
cabocla adornava, bizarramente, a planta que lhe servia de estranho pelourinho.
Era como uma extravagante orquídea, carnosa e trigueira, nascida ao pé da
árvore fatídica. Sobre os seios túrgidos, sobre o ventre arqueado, nas pernas
rijas, tinha sido profundamente embutida na carne, modelada numa argila baça,
uma dúzia de tigelas. Devia o sangue da mulher enchê-las e por elas
transbordar, regando as raízes do poste vivo que sustinha a morta. Nos
recipientes o leite estava coalhado, — um sernambi vermelho...
Tinha esse
espetáculo, de flagício inédito, a grandeza emocional e harmoniosa de imenso
símbolo pagão, com a aparência de um holocausto cruento, oferecido a uma
divindade babilônica, desconhecida e terrível. É que, imolada na árvore, essa
mulher representava a terra...
O martírio
de Maibi, com a sua vida a escoar-se nas tigelinhas do seringueiro, seria ainda
assim bem menor que o do Amazonas, oferecendo-se em pasto de uma indústria que
o esgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a imagem
imponente e flagrante de sua sacrificadora exploração. Havia uma auréola de
oblação nesse cadáver, que dir-se-ia representar, em miniatura, um crime maior,
não cometido pelo Amor, num coração desvairado, mas pela Ambição coletiva de
milhares d’almas, endoidecidas na cobiça universal.
Precipitado,
o Zé Magro voltou, e, quando apareceu na boca da estrada, quem o visse não o
reconheceria. A emoção como que dera uma pátina ao bronze mate de seu rosto.
Olhou em torno. Tomando do rifle, aperrou-o e, em sinal de socorro, fez fogo
várias vezes seguidamente. A mata dormente, ao meio-dia cálido, não despedia o
menor murmúrio. Parecia, de imóvel, marmorizada numa hipnose. O Zé Magro olhou
mais detidamente em volta. Ansiado, não se conteve, bramiu:
— Sabino!
Eh! Sabino!
Só o grito
áspero de um cauré acudiu ao chamado.
— Sabino... Sabino!
E ao novo
apelo mais fremente, nem o malvado gavião respondeu mais.
muito bom este texto
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