12/12/2017

O Rebelde (Conto), de Inglês de Souza




O Rebelde

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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CAPÍTULO 1

A primeira vez que o vi foi em Vila Bela, em 1832, já lá vão mais de quarenta anos. Eu não passava dum curumim de onze anos, curioso e vadio, como um bom filho do Amazonas. Paulo da Rocha orçava pelos cinquenta, parecendo muito mais velho. Pois, apesar dessa enorme desproporção de idades, ligava-nos uma amizade terna, inexplicável para toda a gente.

O velho, ríspido e severo, era extremamente bondoso para comigo. Não sei que ímã oculto me atraía para aquele mulato de cabeça branca, de quem meus pais não gostavam, e que inspirava a quase toda a população da vila uma antipatia mesclada de horror.

Paulo da Rocha era pernambucano, e fora um dos rebeldes de 1817, um soldado fiel do capitão Domingos José Martins, o espírito-santense.

Em 1832, os principais habitantes de Vila Bela eram portugueses ou brasileiros do tempo do rei velho, que se não haviam ainda familiarizado com o novo regime, e detestavam cordialmente todo e qualquer movimento contra a legalidade estabelecida, mesmo porque o receio das convulsões políticas posteriores à independência, que ainda perduravam, os trazia em contínuos sobressaltos. No terror dos inovadores, associavam toda ideia revolucionária às sangrentas carnificinas que desonravam o solo virgem da nova pátria.

A fértil imaginação amazonense fizera do antigo revolucionário um personagem misterioso, sinistro e perigoso, de cuja alma já estaria de posse o Inimigo, ainda em vida do corpo.

Emprestara-lhe o vulgo uma quantidade enorme de crimes. Diziam as velhas mexeriqueiras, sentadas à soleira da porta por noites de luar, que ao bater da meia-noite via-se vagar pelas ruas a alma do pernambucano, a purgar culpas passadas. As crianças fugiam à presença do velho, e os matutos benziam-se quando o viam passar curvado sob o peso da meditação constante, ou de algum desgosto indefinido, arrimado no seu bastão de maçaranduba, com o crânio, a meio despido, exposto aos raios do sol.

Todos se calavam quando ele aparecia. As mães de família faziam aos filhinhos a escusada recomendação de fugir às vizinhanças da casa maldita em que morava o mulato; ou acalentavam as criancinhas, com umas cantigas ingênuas, em que o velho do outro mundo era comparado ao murucututu de cima dos telhados, terrível espantalho dos pequenos mal dormidos.

Todos lhe tinham medo, e talvez por isso atraía-me para ele uma simpatia irresistível. Desde a mais tenra infância, vivi sempre em contradição de sentimentos e de ideias com os que me cercavam: gostava do que os outros não queriam, e tal era a predisposição malsã do meu espírito rebelde e refratário a toda a disciplina, que o melhor título dum homem ou dum animal à minha afeição era ser desprezado por todos.

Eu não podia ver um cão leproso, enxotado com asco, que não corresse a dar-lhe metade da merenda que me tocava nas liberalidades da mamãe.

A minha imaginação exaltava-se com a singularidade, ao mesmo tempo que uma curiosidade feminina me impelia a buscar a última palavra em todos os segredos, a razão de ser de todos os mistérios. Gostava do maravilhoso, e com risco de ser devorado pela esfinge queria decifrar-lhe o enigma. A vista duma feiticeira enchia-me de gozo. Sentia o desejo ardente de ver um lobisomem, e o canto agoureiro do acauã fazia-me estremecer de susto e de prazer, e embrulhando-me na rede, punha o ouvido à escuta, tentando descobrir naquelas notas tristes e plangentes a verdade desse encantamento poderoso.

Foi isso mais ou menos o que senti a primeira vez que encontrei no meu caminho o rebelde de 1817, temido e desprezado ao mesmo tempo. Em breve aquele vago temor, aquela curiosidade dolorosa se transformou em simpatia e respeitosa amizade. Naquele pobre velho uma voz oculta me indicara um herói das antigas lendas, que a minha avó me contava à luz mortiça da lamparina de azeite de andiroba, um homem como eu sonhava nos meus devaneios infantis.

Tudo no velho do outro mundo contribuía para excitar-me a imaginação e avivar o afeto que me inspirava; a grande cabeça calva, o nariz adunco, os olhos vivos, uns olhos de ave de rapina, a boca enorme, ornada de belos dentes, cuja deslumbrante alvura era realçada por um sorriso sério e pensativo, duma bondade de Cristo; a fala breve e ríspida, duma rispidez franca, serena e boa; o porte alto e até aquelas rugas severas do rosto cor de cobre; a sua indiferença pelas vicissitudes comezinhas da vida; o nenhum caso que fazia das intrigas da terra; tudo me indicava no pernambucano um personagem ideal e fantástico, como eu imaginava os meus heróis.

Ao passo que o nome de Paulo da Rocha afugentava os meus companheiros espavoridos, todo o meu cuidado era descobrir um novo expediente para visitá-lo, sem despertar a desconfiança de minha mãe.

À hora da sesta, meu pai, depois de ter-me feito sentar numa cadeira da sala de visitas, com a Artinha latina nas mãos, retirava-se para seu quarto e momentos depois, coberto de jornais velhos, ressonava. A mamãe andava ainda a dar uns giros pela casa, recomendando silêncio aos moleques e cuidando no café que se havia de servir às seis horas, mas acabava também por se recolher à beatitude da rede, vencida pelo calor e derreada pela monotonia do seu viver caseiro. A habitação ficava silenciosa e triste. As escravas agrupavam-se na cozinha e cochilavam, conversando em voz baixa. Os moleques trepavam às goiabeiras do quintal, fartando-se de frutas. Só de vez em quando um galo invadia a varanda deserta, e cortava bruscamente o silêncio, acompanhando com o canto barulhento e alegre as sonoras badaladas do grande relógio de parede, que viera do Reino.

 O calor era intenso, o sol brilhava com esplendor ofuscante, fazendo estalar os telhados. A vila parecia toda entregue ao repouso pós-meridiano da sesta costumeira. Descalço, pé ante pé, eu atravessava a casa e me esgueirava pelo portão do quintal.

Mal me sentia ao abrigo das vistas fiscais da criadagem, deitava a correr pelo caminho do cemitério até chegar à casinha de Paulo da Rocha, escondida entre laranjeiras copadas. Lá estava ele sempre, a essas horas do dia, sentado num banco de cedro, encostado a uma mesa tosca, e mergulhado na leitura de algum livro velho, roído de traças.

Conversávamos sobre o tempo antigo, ou lendo as histórias extraordinárias que haviam sucedido em Pernambuco, e que ele se gabava de ter presenciado. Gostava de excitar-me a imaginação infantil com a narração desses feitos gloriosos que me faziam estremecer de alegria e seguir com os olhos acesos e as faces ardentes de entusiasmo as palavras e gestos do velho, transfigurado pelas reminiscências do passado.

Ah, se o tivessem visto e ouvido assim os habitantes de Vila Bela!



CAPÍTULO 2

O Rocha era viúvo e tinha uma única filha, rapariguinha gentil de dezesseis a dezessete anos, pensativa e séria como o pai. A vida que passava em Vila Bela a pobre mocinha abafara os impulsos da jovialidade natural. Desprezada de todos, vivendo isolada, entregue unicamente aos cuidados dum pai velho e triste, a interessante Júlia conhecera desde os mais tenros anos a desgraça, e parecia resignada à sua infeliz sorte.

Aquele velho e aquela menina compreendiam-se perfeitamente. Ele nunca tinha um movimento de mau humor, um gesto de descontentamento. Ela não parecia sofrer um desgosto. Serena, silenciosa, atenta ao menor desejo do pai para preveni-lo e contentá-lo, parecia que a sua vida dependia da vontade daquele homem, severo e ríspido para toda a gente, bondoso e paternal no interior do seu modesto habitáculo. A mocinha conhecia-lhe todos os gestos e as mais insignificantes predileções. Parecia adivinhar quando o pai gostaria de estar só, entregue aos seus pensamentos, ou quando sentiria prazer em ouvir as modinhas da terra natal, do seu Pernambuco, tão cheio de poesia e de tradições gloriosas, modinhas que em pequena lhe ensinara para suavizar as agruras do exílio e a saudade intensa dos tempos da mocidade.

Às vezes era Júlia quem nos fazia a leitura, sentada ao pé da mesa de jantar, com o livro na mão, repetindo em voz suave, repassada de doçura, aquelas histórias de batalhas e mortes, já muito nossas conhecidas.

O velho, com o queixo apoiado nas mãos, que repousavam sobre o bastão de maçaranduba, seguia atentamente o movimento labial da jovem, como se ouvisse alguma coisa ignorada. Quanto a mim, a minha atenção repartia-se entre o velho, a história e a menina, mas com parcialidade pela menina.

Como eram agradáveis esses momentos de suave intimidade, e como duravam pouco!

Era com o maior pesar que eu lobrigava ao longe, aproximando-se receosa, a crioula, que vinha bondosamente avisar-me de que a senhora já estava acordada. Muitas vezes, ao chegar à casa paterna, sofria correção merecida pela desobediência e pelo desapego à Artinha; mas não era pelo castigo que eu me recolhia triste e cabisbaixo ao quarto de dormir: era porque no silêncio do aposento, apenas cortado pelo rangido das cordas da rede nas escápulas de madeira, parecia-me ter diante dos olhos o grupo encantador do velho e da menina, e ouvir a voz de Júlia, lendo as proclamações incendiárias dos rebeldes pernambucanos!

Paulo e a filha viviam pobremente, concentrados e tranquilos naquela casinha pitoresca, cujos arredores floridos e desertos inspiravam uma doce melancolia.

Eram muito pobres para ter escravos, ou não os queriam, e criados livres não encontrariam numa terra onde só o nome do velho do outro mundo causava horror e medo. Mas Júlia era excelente dona de casa. Era admirável de previdência, de asseio e de economia, e as únicas pessoas que tinham ingresso na humilde habitação, o Padre Vigário e eu, reconheciam essas virtudes caseiras, tão raras entre as mulheres do povo.

Por uma singularidade, o Vigário era entusiasta do pernambucano. Apesar dos conselhos e advertências dos amigos e dos murmúrios das velhas rabugentas, Padre João, João da Costa do Amaral se chamava ele, frequentava a casa de Paulo da Rocha, passava largas horas a conversar com ele, e levara mesmo a despreocupação da feitiçaria ao ponto de fazê-lo sacristão e sineiro da matriz, com grande escândalo das almas piedosas e reboliço do beatério.

O hábito e a vara não lograram para padre João da Costa a desculpa de tão estranha predileção, e os mais benévolos avançavam que se deixara enfeitiçar pelo danado pernambucano, e falavam em representar ao Sr. Bispo contra a situação anômala da paróquia.

Mas, sem embargo dos falatórios, continuava Paulo da Rocha a ser o sineiro da matriz, e a desempenhar os deveres do cargo com exatidão e escrúpulo, não dando ocasião às fáceis censuras dos desafetos.

Ao amanhecer do dia quando se abriam as portas uma a uma, e só se viam na rua raros tapuios sonolentos, caminhando pesadamente para o serviço, Paulo saía de casa, e atravessava a vila em direção à igreja.

Era ele que dava o sinal da missa matutina e preparava o templo. Enfiava depois a velha opa, pingada de cera amarela, e punha-se à espera do Vigário que não tardava em chegar, saudando os transeuntes com um sorriso afável.

Pouco a pouco se foram rarefazendo os devotos da missa da manhã, graças à presença do velho rebelde, mas Padre João não parecia dar o cavaco e continuava a oficiar regularmente, tendo muitas vezes o sacristão por único ouvinte.

Água mole em pedra dura tanto dá até que fura, dizia Padre João com o seu sorriso amável e teimoso, mostrando os belos dentes de brilhante esmalte. Afinal foi-se o povo de Vila Bela acostumando à presença de Paulo da Rocha, suportado como uma calamidade inevitável. Padre João da Costa era o beijinho dos vigários, alto, gordo, alentado, de cores sadias e de sorriso afável, de cabelos da cor da noite e de tez da cor do leite, de caráter bondoso e modos francos. O seu único defeito, diziam as beatas, era a inexplicável afeição que dedicava ao mulato excomungado.

Alguma coisa se lhe havia de desculpar, enfim. Não que se resolvessem a assistir à missa da madrugada, mas, com o auxílio do tempo, o grande regularizador das situações embrulhadas, Paulo da Rocha foi-se sentindo mais à larga naquela sociedade ferrenha, estúpida e despótica... a sociedade de 1832.

O que mais contribuiu para um tal melhoramento na situação do velho do outro mundo foi a diversão feita no espírito público à primeira notícia da aproximação da cabanagem, que assolava o Pará, e que ameaçava a comarca da Barra do Rio Negro, hoje província do Alto Amazonas, de que fazia parte a paróquia de Vila Bela.


CAPÍTULO 3

Muitos boatos contraditórios circulavam. O pânico era enorme. Ora dizia-se que os cabanos vinham tomar de assalto a vila e queimar vivos os habitantes, ora que haviam sido completamente batidos pelas tropas legais, antes de descerem a Santarém.

Não se falava senão na cabanagem, e o pobre velho rebelde de 1817 era esquecido pelos rebeldes do tempo. Todos os dias tapuios desertavam do serviço dos patrões, e fugiam nalguma canoa furtada, descendo o rio para se irem encontrar com os brasileiros.

A vila ia ficando deserta, à medida que os terríveis inimigos dos portugueses e dos maçons se aproximavam de Óbidos.

Os cacaualistas retiravam-se para os sítios. Aqueles que tinham alfaias ou dinheiro tratavam de escondê-los, enterrando-os. A desconfiança era geral, o pai não se fiava no filho, o irmão não confiava os segredos ao irmão.

Terrível efeito da guerra fratricida!

Só na casinha de Paulo da Rocha, entre as laranjeiras em flor, a vida era serena e inalterável como dantes. Parecia que não sabiam de coisa alguma, que a atmosfera não lhes dava sinal de tormenta. O Rocha continuava a fazer o serviço na deserta matriz, e Júlia a cuidar dos arranjos da casa, com aquela doce melancolia que tanto me oprimia o coração.

Uma tarde, em que eu lograra escapar mais uma vez à vigilância de minha mãe, corri à casa do pernambucano a dar-lhe conta da resolução que tomara meu pai de enviar-me, de companhia com dois macacos e algumas libras de guaraná, ao reitor do seminário de Belém para que me aperfeiçoasse na língua de Virgílio e me comesse as unhas com bolos, sem que, era dogma, ninguém chegava a ser gente na nossa terra.

O sol já se começava a esconder por trás dos matos da outra banda. Os últimos raios enfiando pela porta aberta até a sala de jantar da modesta casinha do sineiro punham em relevo o grupo costumeiro do velho e da menina, sentados lado a lado, calados e pensativos.

Mal começara eu a contar a desgraça que em breve me ia arrancar à bela vida da aldeia e à amizade de seres tão queridos, quando um vulto elevado, esbatido pela claridade do sol morrente, enquadrou-se na porta da entrada. Era Padre João da Costa, tendo no semblante uma preocupação que lhe não era habitual.

Padre João foi entrando sem saudar a ninguém, e abeirando-se do pernambucano disse em voz breve:

— Os rebeldes acabam de entrar em Óbidos.

Paulo da Rocha não se mexeu. No seu rosto cor de cobre não passou sequer a sombra de uma emoção. Disse, depois de uma pausa, esboçando um sorriso:

— E então?

— E então? — tornou o Vigário descrevendo com a ponta da bengala uns arabescos no chão — E então? É que os habitantes de Óbidos fiaram-se nas promessas que os cabanos lhes fizeram, e caíram na tolice de lhes abrir as portas. De que lhes serviu terem cercado toda a cidade de estacas embarreadas? Entregaram-se como carneiros ao morticínio. É o que conta o José Cavalheiro que acaba de chegar. Toda a vila está assustada. Não para ninguém em casa; está toda a gente reunida na matriz, apesar de que a arraia-miúda ainda desconhece a gravidade das circunstâncias. Que se há de fazer? Se em Óbidos, onde todos estavam prevenidos, não se pôde resistir, que faremos nós aqui?

— Descansar em Deus Nosso Senhor — murmurou Paulo da Rocha em voz grave.

— Sem dúvida, retorquiu Padre João, com ligeira impaciência — Mas Deus disse: ajuda-te que te ajudarei. Não podemos ficar de braços cruzados, à mercê da Providência. Receio mais por Vila Bela do que por outra qualquer povoação do Pará. A resistência aqui é impossível. E por desgraça ou castigo deste povo deu-lhe Deus um pároco cuja condição lhe pode agravar os males. Sabem os cabanos que sou português, posto houvesse adotado de coração a nova pátria, mas não o compreendem os caboclos, e por isso, se aqui entram, está tudo perdido. De que me vale ser ministro do altar? Para esses fanáticos sanguinários, a minha antiga nacionalidade é crime que tudo faz esquecer!

— Oh! — continuou ele, depois de uma pausa, e como receando que fossem mal interpretadas as suas palavras — Deus me é testemunha de que não temo por mim, mas por estes povos infelizes, que serão vítima da minha involuntária culpa.

E Padre João da Costa, deixando escapar um suspiro, abaixou tristemente a cabeça, profundamente absorvido. Uma ruga vertical dava-lhe à fisionomia uma aparência severa, que desmentia a sua bonomia habitual.

Paulo da Rocha não dizia palavra. Júlia parecia distraída, seguindo com os olhos o voo de uma grande mosca azul. Quanto a mim, vagamente temeroso, ouvia, com os dois ouvidos, sentindo a gravidade da cena.

Depois de longa pausa, Padre João ergueu vivamente a cabeça e disse:
— Mestre Paulo, só você nos pode salvar.

O velho franziu os sobrolhos, muito admirado.

— Eu, Sr. Vigário? E como?

— Não o sei, meu amigo, mas sou homem de pressentimentos. Cá dentro diz-me uma coisa que você nos pode salvar.

Refletiu mais algum tempo, e acrescentou:

— Tenho uma ideia. Você, pelos seus antecedentes, é em toda esta povoação o único homem capaz de inspirar confiança aos cabanos...

— E quem me assegura a confiança dos brancos? — interrompeu bruscamente o pernambucano, como se lhe tivessem tocado com a mão numa ferida oculta. E a sua voz tinha uma indizível amargura.

Padre João coçou a cabeça, levantando de leve o solidéu. Depois injungiu com convicção:

— Você há de fazer jus à confiança de todos estes povos, como já tem a minha. No fim de contas, esta gente é boa e há de reformar o conceito em que o tem, principalmente quando o vir, já velho e cansado, pôr-se à nossa frente para bater os cabanos...

— Bater os cabanos! — irrompeu Paulo da Rocha com uma violência que me aterrou. E erguendo-se de um jato, cravou a vista brilhante nos olhos do Padre, dizendo:

— E quem assegura a vossa reverendíssima que eu não sou cabano?

Padre João deixou cair a bengala, num insofrido movimento de horror. Júlia olhou admirada para o pai, como se o estivesse estranhando. Eu mal me pude ter de pé, tanto me tremiam as pernas ouvindo aquela pergunta que me parecia uma revelação terrível. Uma angústia apoderou-se de mim. Tive ímpetos de fugir àquela casa que abrigava um tão monstruoso celerado, mas o terror me tolhia os movimentos. Cabano, Paulo da Rocha, cabano o velho do outro mundo! O meu amigo pernambucano pertencia àquela corja de bandidos que jurara a morte de meu pai e de todos os portugueses do Pará!

O mulato não pareceu dar pela impressão que me causaram as suas afrontosas palavras. Ereto, apoiando-se com um punho fechado sobre a mesa, e com o corpo meio voltado para o sacerdote, continuou com a voz presa na garganta:

— Bater os cabanos! Uns pobres diabos que a miséria levou à rebelião! Uns pobres homens cansados de viver sob o despotismo duro e cruel duma raça desapiedada! Uns desgraçados que não sabem ler, e que não têm pão.... E cuja culpa é só terem sido despojados de todos os bens e de todos os direitos. E quem disse ao senhor Padre João que eu, Paulo da Rocha, o desprezado de todos em Vila Bela, seria capaz de pegar em armas contra os cabanos? Sr. Vigário, eu só lavei as mãos em sangue dos inimigos da minha pátria, dos algozes da minha raça, vilipendiada e opressa. Eles eram fortes e poderosos. Nós, os rebeldes de 1817, tínhamos só do nosso lado a justiça da grande causa que defendíamos, causa da humanidade, causa do futuro!

Parou, de súbito, no meio dum grande silêncio. Continuou depois em voz impregnada de comoção íntima, evocando recordações que lhe faziam suceder no rosto mil sentimentos diversos:

— Foi no mês de maio, exatamente como agora. Nós saíamos do Recife com Domingos Martins ao encontro do general português, e feriu-se então o combate que decidiu da sorte da generosa rebelião. Talvez triunfasse esta, se se não tivessem voltado contra nós os nossos próprios irmãos, aqueles por quem combatíamos. Os homens de 1817, que proclamavam a igualdade das raças, e queriam a liberdade do negro e a reabilitação do caboclo, foram batidos pelos pardos do Penedo e pelos índios da Atalaia, as vítimas da pretensa desigualdade! O nosso chefe foi preso, para mais tarde espiar ante as baionetas ao serviço del-Rei o crime de ser homem e de ser brasileiro. Eu fugi. Depois que me mataram a mulher, a minha pobre Margarida, que nenhuma culpa tinha do que eu fizera... Mas que valia a vida da mulher dum mulato, mulata também? Mataram-na de susto, de fome e de maus tratos. Fugi. Não por medo da morte, que o meu desejo era acabar na forca, como o valente Domingos Teotônio Jorge, ou varado por uma bala como tantos companheiros. Mas tive medo de ser surrado às grades da cadeia, como se fazia aos homens de cor, embora livres. Demais tinha nos braços uma inocentinha, e foi também por amor dela que fugi.

— Desde então — concluiu mudando de tom, e erguendo levemente a voz — sou pelos fracos contra os fortes, pelos oprimidos contra os opressores. A causa dos infelizes é a minha causa, Padre João da Costa.

Os raios do sol cadente, penetrando na humilde habitação, vinham ferir em cheio o crânio seminu do pernambucano, que, alto, ereto, agigantado e estranho, parecia outro homem, sem rugas no rosto, sem cansaço na voz, sem a habitual tristeza na fisionomia.

Depois duma pausa, no meio do glacial silêncio que nos tolhia a todos, o mulato tornou pausado, grave, dando a cada uma das suas palavras uma força de verdade que se impõe:

— Não sou nenhum fazendeiro rico ou regatão afreguesado para me arrecear dos cabanos. Sou pobre como eles e desprezado como eles foram, quando tinham a atitude humilde dos que obedecem. Por que então hei de tomar a defesa dos outros contra eles? Não terá porventura o governo forças bastantes para combatê-los, e precisará ainda que o auxiliem pardos do Penedo ou índios da Atalaia? Onde estão a soberba e a superioridade dos brancos?

Paulo, relanceando o olhar pela sala como para pedir resposta à sua intimativa, e vendo-nos mudos, atônitos e receosos, acalmou-se subitamente, como se a exaltação momentânea o tivesse prostrado, e o arrependimento o pungisse; deixou-se cair sobre o banco de que se levantara, proferindo em voz alquebrada:

— Sr. Padre João, estou longe de aprovar os morticínios que têm feito os brasileiros por toda a parte. Fazem mal, são muito culpados perante Deus e a pátria. Mas estou velho, cansado, tenho uma filha solteira, e não posso... nem quero merecer a confiança dos brancos de Vila Bela.


CAPÍTULO 4

Desde então as minhas relações com o velho do outro mundo sofreram uma modificação considerável. Comecei por minha vez a ter-lhe medo.

Não podia compreender a sinceridade com que aquele mulato falava em igualdade de raças, em tirania e crueldade dos brancos, coisas que naquele tempo me pareciam de um absurdo inconcebível.

Apesar da simpatia que sentia pelo velho, as suas ideias, os seus sentimentos contrariavam por tal forma os preconceitos da minha educação, que eu me sentia indignado pela amizade que, apesar de tudo, lhe dedicava. Envergonhava-me a admiração respeitosa que lhe votava.

Hesitava em atribuir às suas palavras o atrevimento de negro forro. Parecia-me antes devidas ao influxo diabólico ou à caducidade da razão. Como se poderia admitir que falasse um homem de cor aquela linguagem ousada e independente?

Os sofrimentos que aturara não justificariam o desrespeito às classes ricas e às instituições do país, pois não passavam de um castigo severo, mas merecido, da sua rebelião.

Naquele tempo nada causava mais horror à gente branca do que a cabanagem que começava a lançar as garras sangrentas sobre as duas margens do Amazonas. Inimigos encarniçados dos portugueses e dos maçons, os cabanos levavam a todas as povoações o morticínio e o roubo, não respeitando velhos, crianças nem mulheres.

Os viajantes que passavam por Vila Bela narravam a meia voz as façanhas desses fanáticos caboclos, vítimas duma dupla alucinação religiosa e patriótica, e o faziam com tal exagero que infundia terror aos mais destemidos. Diziam de homens queimados vivos, de mulheres violadas e esfoladas e do terrível correio, suplício que inventara a feroz imaginação de um chefe. Consistia em amarrar solidamente os pés e as mãos da vítima e embarcá-la assim em uma canoa que, entregue à correnteza do rio, abria água com poucos minutos de viagem. Era o suplício preferido pelos brandos, pelos que não queriam derramar sangue, e mais usado com os que militavam por qualquer forma em favor da legalidade.

Eu acreditava, como os demais, naquelas histórias medonhas, e a ideia de que Paulo da Rocha podia bem ser um cabano oculto arraigou-se-me no espírito, e aumentou a desconfiança que os seus sentimentos de igualdade humana haviam despertado. Além disso, toda a gente da terra sabia do juramento feito pelos cabanos em Vila Franca, de queimar a casa de Guilherme da Silveira, o marinheiro, como chamavam a meu pai. Ele era português de nascimento, e exercera o cargo de Juiz de Paz em Óbidos e em Santarém, onde desenvolvera grande atividade contra os movimentos populares, no que nada mais fazia do que cumprir o seu dever, porque era homem de rija têmpera, severo executor da lei, e tendo em muita conta o princípio de autoridade. Apesar de se haver recolhido à vida privada, mudando de residência, meu pai continuava a ser objeto dum rancor imperecível, principalmente da parte de um tal Matias Paxiúba, tapuio viciado e feroz, que lhe não perdoava alguns meses de cadeia que sofrera por ordem do Juiz de Paz. É verdade que Matias o acusava de lhe ter mandado infligir umas chicotadas às grades da cadeia, mas tal fato nunca se provou, e por minha parte o digo que se meu pai se deixou levar a tal extremo, certamente o Paxiúba o mereceu.

O certo é que o branco e o caboclo se haviam jurado um ódio eterno. Naqueles tempos de fortes paixões, em que todos os sentimentos tinham uma possança e uma pureza extremas, ódios arraigados e entranháveis eram comuns.

Matias Paxiúba, o brasileiro, e Guilherme da Silveira, o marinheiro, tinham-se sempre encontrado inimigos — desde a primeira vez que se viram parecia que todo o ódio das duas raças, a conquistadora e a indígena, se tinha personificado naqueles dois homens, cujos nomes eram o grito de guerra de cada um dos partidos adversos.

Meu pai representava a civilização, a ordem, a luz, a abastança. Matias Paxiúba era a ignorância, a superstição, o fanatismo, a rebelião do pobre contra o rico, o longo sofrimento da plebe sempre esmagada e sempre insubmissa. Era como um protesto ambulante contra a civilização egoística e interesseira dos brancos, a miséria popular com todo o seu cortejo de vícios hediondos e de crimes heroicos.

Sabendo que meu pai e toda a família estavam indigitados para primeiras vítimas da cabanagem, logo que ela chegasse a Vila Bela, eu, bem a meu pesar, receava fosse o pernambucano quem denunciasse aos rebeldes o nosso asilo.

Paulo modificara as suas maneiras na minha presença, já me não tratava com a bondade a que me costumara. Olhava-me com desconfiança, parecendo arrependido da rude franqueza que tivera com Padre João da Costa à face do filho do Juiz de Paz. Também com a filha o pernambucano já não era o mesmo. Mostrava-lhe uma severidade desusada, ao que pude perceber uma manhã, em que, não me atrevendo a entrar, espiara pela cerca do quintal o interior do pobre habitáculo do velho do outro mundo.

Vila Bela, então ainda Vila Nova da Rainha, estava muito longe de ser naqueles calamitosos tempos o que foi depois e é hoje. Duas ou três dúzias de casas de palha e três ou quatro de telha, pequenas, feias e negras, firmavam toda a povoação. Não tendo meios de defesa, nem recurso algum de armas e munições, não poderia resistir ainda que pouco tempo a uma invasão mesmo de inimigos fracos.

Pode-se pois facilmente imaginar o pânico da minguada população ao receber a notícia da entrada dos cabanos em Óbidos. As pessoas mais gradas da vila, o tenente-coronel, o juiz de paz, o presidente da Câmara Municipal e meu pai reuniram-se em casa do vigário, e com a fronte banhada em suor frio e os lábios secos forcejavam por se entenderem sobre meios de salvação.

Algumas mulheres, sentadas à soleira da porta, com os filhinhos ao colo, pareciam resignadas à sorte que lhes coubesse na partilha de males, e tinham um ar sombrio e triste. Todas as casas estavam fechadas, a vila toda em silêncio.

No porto muitas pessoas preparavam canoas, e reunindo tudo que podiam levar consigo, cuidavam de seguir viagem em busca de um asilo seguro. Uns queriam subir o rio em direção determinada, outros pretendiam internar-se por igarapés e furos, tentando achar no desconhecido do sertão um refúgio contra os caboclos da cabanagem.

Ao anoitecer nenhuma luz se via na povoação, que parecia morta. Os cães, como se compreendessem a gravidade das circunstâncias calavam-se tristonhos.

Na casa do vigário, todos os pareceres eram pela fuga imediata. Só Padre João da Costa parecia hesitar. O juiz de paz propusera uma retirada em massa para a freguesia do Andirá, onde se poderiam fortificar, esperando socorros do Pará. O tenente-coronel achou que isso era uma asneira, que o Andirá não oferecia melhores meios de resistência do que Vila Nova, e quanto a socorros do Pará, melhor era esperar pelo Rei Velho, pois que os cabanos já se haviam precavido e não deixariam passar as forças legais. A opinião de meu pai era que fugisse cada qual para seu lado, a fim de distrair a atenção dos brasileiros. Não se chegava a um acordo, ninguém se entendia. Todos estavam com o ouvido à escuta, como se já se fizesse ouvir o rumor dos remos dos cabanos. A ansiedade era enorme.

Eram dez horas quando se separaram, e tomou cada qual o caminho de sua casa, com o passo incerto e o coração agitado, no meio da escuridão da noite. Ao despedi-los, dissera-lhes padre João, sorrindo para mostrar coragem:

— Estejam descansados que ainda não há de ser para esta noite. Os cabanos muito têm que fazer em Óbidos, não nos visitarão senão para a semana.

— Permita Nossa Senhora do Carmo, nossa padroeira, que Vossa Reverendíssima tenha razão, murmurou o juiz de paz.

E um sorriso vagueou nos lábios daqueles homens, iluminando-lhes a fisionomia com um raio de esperança. Esperança falaz que devia ser desmentida naquela noite inolvidável!

Ao entrarmos em casa meu pai e eu, vimos um homem sentado à nossa porta. Era Paulo da Rocha que se ergueu à nossa chegada, saudou-nos e retirou-se a passos lentos. Meu pai entrou com o coração apertado, anunciando-lhe uma desgraça. Para ele a saudação do velho do outro mundo era um presságio funesto. Nunca o pernambucano lhe fizera um comprimento, e meu pai costumava desviar os olhos, quando o via, murmurando:

— Maldito!

Aquela saudação não habitual, e o fato de encontrar o velho sentado à porta, fê-lo cismar tristemente. Ouvi que dizia à minha mãe:

— Mariquinhas, mande acender as velas do oratório. Achei a desgraça à minha porta.


CAPÍTULO 5

Eram mais de onze horas quando nos recolhemos aos quartos. Cansado das emoções do dia, adormeci em breve, deixando meus pais ainda prostrados ante uma Nossa Senhora das Dores, a joia do nosso oratório.

Já me achava imerso nesse feliz sono da meninice que não tem temores nem remorsos, quando me despertou um grande barulho de vozes e de passos, de portas abertas e fechadas com violência, ouvi uns gritos de socorro que me puseram a tremer, frio, sem movimento.

O meu quarto estava às escuras contra o costume. Pálido, com os olhos abertos e com os cabelos em pé, pus o ouvido à escuta, mas nada percebi de estranho. De repente, porém, dentro de casa e quase à porta do meu quarto ouvi um brado horrível de desespero e ânsia de morte, que me penetrou até o fundo da alma, e no qual reconheci a voz de minha mãe, deixando-me estúpido de medo:

— Os cabanos!

E logo, da rua, a voz de Guilherme da Silveira, cheio de pavor:

— Aqui del-Rei! Os cabanos!

Depois latidos de cães, ruídos de armas, de vozes e de passos; depois um silêncio, interrompido por longínquos gritos de morte. Impelido pelo medo do isolamento em que me achava, saltei da rede, atirei-me ao corredor escuro, e pus-me a correr pela casa toda, num desespero. A nossa habitação parecia deserta, e era iluminada apenas pela claridade de uma límpida madrugada, que penetrava pelas portas e janelas escancaradas. Ao que pude perceber reinava grande desordem nos móveis. Triste e sombria era aquela casa, assim aberta e abandonada, em que tudo parecia atestar irremediável desgraça!

Fui sentar-me em um banco da varanda, e, não sabendo que fizesse, desatei a chorar.

Que pranto amargo! O primeiro pranto que uma dor sincera e a consciência da desgraça me fizeram verter! Via-me só, abandonado, esquecido por meus pais, fugidos provavelmente à sanha dos rebeldes. Que fazer? Para onde fugir também? O horroroso isolamento esmagava-me, tirava-me a luz do espírito. Meu pai, no apuro da própria salvação, nem sequer pensara no filho que incauto dormia. Minha mãe, porém, como pudera cuidar da vida, sem se lembrar de mim? Que triste situação, e que futuro me aguardava? O de ser queimado vivo pelos brutos cabanos, ou, na melhor hipótese, de servir de criado às suas horrendas mulheres, ébrias de independência e de cachaça! Eu, o filho único de Guilherme da Silveira, não poderia lisonjear-me de melhor destino, principalmente se viessem os invasores de Vila Bela comandados pelo terrível Matias Paxiúba, o brasileiro, o inimigo pessoal de meu pai, o caboclo de sangrenta memória.

Estive por muito tempo abatido sob o peso da infelicidade que caía sobre mim. Tirou-me da prostração a rude voz do sineiro da matriz. Paulo da Rocha acendeu um fósforo, e aproximando-se de mim perguntou:

— Quem é que chora aí?

Tentei fugir à vista odiosa do pernambucano, mas ele, percebendo o meu movimento, abeirou-se de mim, e tocando-me no ombro interrogou:

— É você, Luís? Então, tem medo de mim?

No meio da escuridão em que de novo caíramos pela extinção da luz do fósforo, respondi cheio de medo, banhado em pranto:

— Sim, você matou meu pai.

O velho esteve calado algum tempo, como se lhe doesse a injúria, e depois retorquiu com voz pausada e grave:

— Deus há de permitir, pobre menino, que ele se livre são e salvo das mãos dos brasileiros que o procuram por toda a parte. Entraram aqui na esperança de o encontrar mas o Sr. Silveira havia saído ao primeiro rebate para entender-se com os amigos. Na ocasião em que os brasileiros se aproximavam do teu quarto, vieram dizer-lhes que o Sr. Silveira se achava prestes a embarcar no porto de cima. Correram-lhe logo ao encalce, cegos pelo furor, porque cada um quer antes dos outros ferir o marinheiro, como eles dizem. Tua mãe pôde então salvar-se pela janela. Lá estava eu, na rua, carreguei-a nestes braços e fui deixá-la em lugar seguro. Voltei a buscar-te, certo de que ainda aqui estarias. Quanto ao Sr. Silveira, espero em Deus que terá tido tempo de atravessar o rio.

A meu pesar, o antigo ascendente que sobre mim exercia o pernambucano foi-se apoderando de novo do meu espírito. Comecei a ter confiança. Com voz segura e tranquila narrei o que ouvira e disse o que pensava: a busca dos cabanos em toda a casa, com exceção do meu pequeno quarto, que milagrosamente escapara às suas pesquisas; a luta com os escravos fiéis, e a retirada dos cabanos crentes de que meu pai fugira com toda a família.

Paulo nada contestou, mas pôs-se a afagar-me docemente com a mão grande e calosa, e a murmurar umas vozes repassadas de ternura.

Nisto ouvimos ruídos de passos na sapata da rua, e logo fechou-se com estrondo a porta exterior da casa. Em seguida um homem, muito agitado, aproximou-se do banco em que nos havíamos sentado. Paulo riscou um fósforo, e acedendo um rolo de cera, levou-o ao rosto do noturno visitante.

À luz do morrão vimos o rosto horrivelmente pálido de meu pai, as suas roupas em desalinho e na cara, no pescoço e nas mãos, pequenas escoriações que brilhavam como rubis. Ao reconhecer o pernambucano, meu pai recuou espavorido e alçou um terçado que trazia. Dos seus lábios contraídos pela raiva uma exclamação injuriosa pulou de chofre.

O mulato, porém, depôs tranquilamente o rolo de cera sobre a mesa de jantar e caminhou para meu pai sorrindo:

— Sr. Silveira — disse ele — é tempo de fugir.

E como se o velho mulato adivinhasse, ouvimos grandes pancadas na porta da rua, e um confuso esvozear de gente.

— Sr. Silveira — tornou Paulo da Rocha — D. Mariquinhas está em segurança; eu me encarrego do pequeno. Não se admire de ouvir-me falar assim, mais tarde poderá julgar-me, o que urge é fugir com presteza. Não ouve como estão enfurecidos os cabanos?

Redobravam as pancadas na porta. Ouvimos distintamente o grito de guerra da cabanagem:

— Mata marinheiro, mata, mata!

Meu pai deixou cair o terçado, e, sentando-se no banco, meteu o rosto entre as mãos, e soltou um doloroso suspiro.

Fora recrudescia a grita, e as folhas da porta estremeciam nos gonzos.

— Mata marinheiro, mata, mata!

Como esclarecido subitamente por uma ideia, Paulo correu à sala de visitas, e com uma agilidade de que o julgava incapaz, fechou as janelas. Depois voltou sereno e tranquilo para junto de nós.

— Sr. Guilherme da Silveira, o tempo urge. Venha comigo, eu o salvarei.
Mas meu pai não o ouvia, parecia alheio ao que se passava. A porta da rua agitava-se sacudida por forças possantes e o rumor das vozes aumentava num crescendo de raiva. Era uma algazarra infernal, um misto de gritos de animais e de vozes humanas que causava horror. Dominando esse tumulto, ressoou uma voz alta e rude, que me penetrou até a medula, quando lhe ouvi estas cruéis palavras:

— Vamos, rapazes, é preciso dar cabo desta raça de pés de chumbo. Cerquem a casa, não deixem escapar pessoa alguma desta família de cobras. Ele está aqui, não pôde embarcar na montaria e voltou para a cova. Peguem, agarrem, enforquem o Juiz de Paz!

Ao ouvir essa voz, meu pai ergueu-se bruscamente, como impelido por oculta mola. Seu rosto transfigurado tinha a perfeita expressão da raiva. As suas feições, contraídas por um furor indescritível, tomaram a ferocidade da onça que defende a cria. Com as mãos crispadas nervosamente, com os dentes cerrados e os olhos em fogo a despejarem o ódio intenso que lhe inundava a alma, meu pai exclamou num tom estranho, inenarrável:

— O brasileiro! O brasileiro!

Meu pai, armado do terçado, encaminhou-se para a porta, disposto a vender cara a vida. Ao chegar porém ao corredor lembrou-se de mim, e o furor diminuiu-lhe, como por encanto.

Abaixou a cabeça comovido, e duas lágrimas, as primeiras e últimas que lhe vi, brilharam-lhe nos olhos apagados. Dirigiu-se a Paulo da Rocha em voz sumida.

— Mestre Paulo, fui injusto, perdoe-me, perdoe a um homem que vai morrer.

Depois com um esforço:

— Salve-me o Luís, salve-o, pelos mártires de Pernambuco!

— Sr. Guilherme da Silveira, respondeu solenemente o mulato, estendendo o braço sobre a minha cabeça — A vida de seu filho está segura, juro-o pela vida de minha filha!

Depois, mudando de tom, acrescentou:

— Mas ainda é tempo; fuja, Sr. Guilherme.

— Não, mestre Paulo, não faria senão arriscar a vida de meu filho. A minha companhia o deitaria a perder. Os cabanos querem o meu sangue. A Deus Nosso Senhor encomendo a minha alma...

Nesse momento a porta da rua voou em mil pedaços, e muitas pessoas penetraram em tropel no corredor. Meu pai fechou a porta que dava do corredor para a varanda e encostando-se a ela, voltou-se para nós, dizendo-nos, com um gesto, que nos fôssemos embora.

Ah, se a porta da rua chapeada de ferro e com sólidas trancas não resistira muito tempo, como resistiria essa segunda porta?

Paulo da Rocha pareceu hesitar algum tempo, mas um novo gesto de meu pai, cheio de uma desesperada energia, o decidiu. Carregando-me ao ombro com um vigor incrível, pôs-se a correr para o quintal, donde em breve saímos pelo portão, apesar das minhas súplicas e dos esforços que fazia para que me deixasse.

Bem compreendia eu que era a última vez que via a meu velho pai, e doía-me abandoná-lo naquele supremo momento.

Durante algum tempo andou Paulo da Rocha dando voltas pela vila, até que chegamos ao porto. Na extremidade da vila, em uma enseada, estava uma canoa, e nessa canoa se achavam três pessoas: Padre João da Costa, minha mãe e Júlia.

Caí nos braços de minha mãe que me recebeu soluçando. Depois da primeira efusão, minha mãe perguntou:

— E teu pai?

Lágrimas foram a única resposta que dei. Para fazer diversão a esta cena, o pernambucano empurrou a canoa, saltando dentro dela, e armando-se do mará exclamou em voz que procurou tornar alegre.

— Agora, fujamos!

E então, tirando de sobre a coberta três pequenos remos redondos, injungiu com a autoridade que as circunstâncias lhe davam:

— O Padre Mestre, o Luís e eu remamos. Júlia esgotará a água da canoa. E sentando-se à popa deu uma remada vigorosa, impelindo a embarcação para o largo.

Padre João e eu tomamos os nossos remos e procuramos ajudar ao mulato. De repente, porém, o vigário parou de remar. Ergueu-se dando um grito, e lívido, lento, estendeu o braço para a vila, murmurando:

— Ali, ali!

No centro da vila uma grande chama escarlate erguia-se do telhado duma casa, e o fumo subia em espirais para o céu. Todo o povoado estava iluminado por aquele enorme clarão. Sombras estranhas moviam-se no meio do fogo. Outras dançavam em roda da casa, à claridade do incêndio. Ouvia-se o crepitar do fogo, e de vez em quando o ruído que fazia uma trave desabando. Em torno corria serena e silenciosa a madrugada. Nos sítios vizinhos cantavam saudosamente os solitários galos.

Nós estávamos de pé ao fundo da canoa, boiando num mar de fogo reverberado pelo clarão do incêndio na superfície plácida do rio.

Minha mãe foi quem primeiro percebeu que o fogo era na nossa casa. A pobre mulher deixou-se cair ao fundo da canoa, soltando um gemido de angústia.

Matias Paxiúba, o brasileiro, cumpria parte de sua promessa, incendiando a casa do Juiz de Paz e queimando-lhe o corpo, crivado de facadas, no enorme brasido. Restava a exterminação da família do seu velho inimigo, e ia ser eu de ora avante o objeto principal do seu ódio e de sua perseguição incansável.


CAPÍTULO 6

No dia seguinte à tardinha chegamos a um pequeno cacaual, num dos igarapés do Andirá. Pertencia o sítio a uma pobre mulher, comadre do Vigário, e por estar colocado em lugar quase desconhecido e desabitado, Paulo o escolhera para nosso refúgio.

Os acontecimentos infaustos da minha infância ficaram-me de tal sorte gravados na memória, que tenho ainda bem presentes os mais insignificantes pormenores, bem como nas suas minudências o local que foi teatro das cenas mais importantes dessa desgraçada quadra da minha vida.

Compunha-se o sítio da velha Andresa duma casinha de palha, com dois quartos apenas, e dum pequeno terreno com cerca de dois mil pés de cacaueiros.

À esquerda da casa ficava o velho e grosseiro tendal, e à direita uma pequena horta de tabaco, pimenta e algumas couves. O terreiro era largo, bem plantado de laranjeiras e de mangueiras, e bastante limpo. Visto do rio, era o sítio de aspecto pitoresco, e a pobreza que em tudo denotava tinha alguma coisa de distinto e elevado, que inspirava imediata simpatia pelos moradores. A Andresa viuvara ainda moça dum negociante de Vila Bela, e retirara-se para aquele sítio que com duas mulatas e um preto velho era tudo quanto lhe haviam deixado os credores do Pará. Ali morava já havia anos esquecida do mundo, e toda entregue à vida contemplativa dos povos da beira do rio.

Ali a fomos encontrar, sentada à porta da casinha, com o cachimbo na boca e o olhar perdido na imensidade do céu azul.

Aquela morada tão solitária e tão esquecida, onde parecia habitar a mais profunda paz, contrastava vivamente com os nossos corações agitados pelos tremendos acontecimentos da véspera, e um tal contraste agravava os nossos sofrimentos.

Minha mãe, coitada! Entrecortava de suspiros e ais o pranto que lhe corria dos olhos. Padre João da Costa ia cabisbaixo e como envergonhado da fuga. Júlia e eu estávamos muito comovidos. Somente Paulo da Rocha parecia indiferente a tudo e fazia os gastos duma conversação, sustentada somente para disfarce das dores.

Andresa recebeu-nos com a lhana hospitalidade da gente da nossa terra. Inteirada do motivo que nos levava, mostrou compartilhar da nossa desgraça, e suspirou tristemente ouvindo-nos a história de meu pai, que considerávamos vítima do furor dos cabanos. Nem outra coisa se poderia admitir, infelizmente!

A velha Andresa acomodou-nos na sua casinha o melhor que pôde e ela, minha mãe, Júlia e as duas escravas tomaram conta de um dos quartos. Padre João da Costa, Paulo da Rocha e eu aboletamo-nos no outro.

Tive então ocasião de apreciar melhor o estranho caráter do sineiro da matriz. Ao passo que Padre João, sadio e rosado apesar de tudo, passava as noites em barulhentas lamentações, maldizendo a sua covardia e infelicidade, o velho do outro mundo guardava uma serenidade admirável, e sempre de sorriso nos lábios: parecia, na majestade de sua sublime alma, velar tutelarmente por nós.

Bem se notava que de vez em quando surpreendia-o uma perturbação profunda, mas que passava rápida e fugitiva para dar lugar àquela tranquilidade de espírito, inexplicável para nós.

Ente incompreensível!

Quando se falava da cabanagem, Paulo da Rocha nos enchia de espanto com a expressão de simpatia por uma causa que nos parecia insustentável. Ao mesmo tempo a sua conduta, toda em oposição às suas palavras, fazia-nos cismar, vaga e absurdamente receosos.

Franqueza, franqueza, não confiávamos muito no velho do outro mundo, apesar do que tinha feito por nós. Não posso explicar uma tal desconfiança, mas minha mãe, principalmente, não se soubera despir dos antigos preconceitos, nem podia olhar com segurança para o mulato.

Era mesmo tão grande a nossa injustiça que uma vez (ainda bem me lembra o caso) estávamos sentados todos no terreiro, admirando o cair da tarde que à beira do rio e de uma sublimidade única, e como a preocupação exclusiva de todos era a cabanagem, não tardamos em desinteressar-nos do magnífico espetáculo equatorial para começarmos a falar dos lutuosos acontecimentos da época.

Paulo da Rocha dissertou longamente sobre as causas da cabanagem, a miséria originária das populações inferiores, a escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os inqualificáveis abusos com que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes. Disse da sujeição em que jaziam os brasileiros, apesar da proclamação da independência do país, que fora um ato puramente político, precisando de seu complemento social. Mostrou que os portugueses continuavam a ser senhores do Pará, dispunham do dinheiro, dos cargos públicos, da maçonaria, de todas as fontes de influência; nem na política, nem no comércio o brasileiro nato podia concorrer com eles. Que enquanto durasse o predomínio despótico do estrangeiro, o negro no sul e o tapuio no norte continuariam vítimas de todas as prepotências, pois que eram brasileiros, e como tais condenados a sustentar com o suor do rosto a raça dos conquistadores. Que o tapuio boçal, ignorante, era instrumento movido por um sentimento nobre, habilmente manejado, o sentimento religioso e nacional, mas que quem tinha a culpa disso era a raça dominante, pois queria conservar o caboclo na mais completa ignorância, que o enchia de superstições para dominá-lo, e depois não queria que fosse subjugado por essas mesmas superstições, que os patriotas do Pará, inteligentemente inspirados, punham em jogo para o arrancar a uma apatia secular.

Ele, Paulo da Rocha, não compreendia como o Governo do Rio de Janeiro, nascido de uma manifestação nacional, perseguia os caboclos do Pará, pois, afinal de contas, a cabanagem não era mais do que um prolongamento sangrento e brutal, é verdade, mas lógico, da revolução de 7 de abril.

À medida que o velho falava com o entusiasmo concentrado que eu já uma vez lhe vira, uma viva surpresa, em breve transformada em profunda contrariedade e finalmente acentuada em acerba repugnância foi-se gradativamente manifestando no rosto de minha mãe, e na atitude de Padre João da Costa, que a custo se continha para não explodir em contestação violenta.

Minha mãe, porém, interrompeu o mulato, lançando-lhe face a face estas cruéis palavras:

— Isso dizem os cabanos para esconder os seus torpes motivos. O que eles querem é matar e roubar. Quem sabe se não somos vítimas de uma traição bem arranjada?

E o seu olhar completava a horrível insinuação. No seu pálido rosto, sulcado por ininterruptas lágrimas, um rubor de indignação e de cólera dizia mais do que os seus lábios poderiam exprimir. O velho abaixou lentamente a cabeça e calou-se. Um sorriso de resignação serena logo lhe veio iluminar o semblante.

Padre João e eu caímos envergonhados e arrependidos, pois tivéramos ambos a mesma desconfiança que minha mãe manifestara, mas o sorriso do velho nos subjugava o coração, desmentia as suas insensatas palavras. E logo nos separamos para evitar o cruel acanhamento que se seguiu a essa cena.

Desde esse dia, porém, fugiu a franqueza das nossas relações. Pouco falávamos, andávamos mais tristes do que nunca, e o próprio Paulo da Rocha já não provocava a conversação, limitando-se às poucas palavras exigidas pela cortesia. Um mal-estar indefinível apoderou-se de nós. Eu tinha sonhos horrorosos, em que o pernambucano fazia o papel de algoz. Outras vezes era Padre João da Costa que me prendia na qualidade de brasileiro nato, e me açoitava cruelmente, depois de me reduzir à escravidão. Júlia já não era tão minha amiga como o foi dantes.

Vivemos assim três semanas aquela vida monótona e desassossegada, tristes, alheios a tudo que se passava a poucas léguas do nosso modesto habitáculo. Durante esse tempo nenhuma canoa passou pelo porto do sítio. Parecia que nos achávamos em terra completamente deserta.

Um dia, ao sair do quarto pela manhã vi um tapuio a conversar em voz baixa com Paulo da Rocha sob as laranjeiras do terreiro. Espreitei-os, e vi o desconhecido dirigir-se, passado algum tempo, para o porto, embarcar numa montaria, e seguir viagem na direção de Vila Bela.

Corri a levar a minha mãe a nova assustadora. A pobre mulher quase enlouqueceu de susto. Muito custou a Padre João da Costa o dissuadi-la do projeto de fuga, a que se aferrou na ideia fixa da traição do mulato.

Não deixavam de ter fundamento as razões do Padre:

— De que nos serve fugir? Estamos à mercê do sineiro. Por água não escaparemos, por não sabermos para onde dirigir a canoa e não conhecermos estes lugares ermos. Por terra? Iremos morrer de fome e de miséria por esses matos ou matar a fome a algum casal de onças pintadas.

O melhor é esperar a pé firme o perigo, que não será assim tão bárbaro este homem que nos sacrifique depois de nos ter arrancado ao poder dos brasileiros. Porque, enfim, vamos e venhamos. Se ele nos queria entregar aos cabanos, para que nos tirou de Vila Nova?

E terminou, depois duma pausa, com o argumento decisivo:

— Entreguemo-nos à Divina Providência, o melhor amparo dos que padecem.


CAPÍTULO 7

Eram duas horas da tarde, e eu me banhava nas águas tépidas do rio, quando julguei ouvir barulho de remos e sons de vozes estranhas. Posto já houvesse esquecido o incidente da conferência entre o mulato e o tapuio, que se dera alguns dias antes, uma viva desconfiança me assaltou. Pus-me atento e conheci que alguma canoa se aproximava do porto. Não tardou muito que não visse, tomado de espanto, dobrarem a ponta duma ilha vizinha algumas canoas; eram três ou quatro compridas montarias, cheias de gente, mas duma gente esquisita, desconhecida, alguma coisa de fantástica e estranha que me excitou sobremaneira a imaginação. A primeira ideia que me assaltou a mente, logo que pude refletir, foi que aquela gente pertencia ao partido dos brasileiros.

— Os cabanos, os cabanos! — gritei eu, correndo para a casa, louco de terror, sem me dar ao trabalho de vestir a roupa que sobraçava.

Minha mãe, o Padre Vigário, a Andresa e Júlia conversavam na varanda. Ergueram-se automaticamente e puseram-se a olhar para o rio, com o olhar desvairado e ansioso:

— Os cabanos! — repeti eu, agarrando-me à batina de Padre João, e procurando esconder a nudez, sem chegar a vestir-me.

— Estás doido, menino? — disse-me o Vigário rudemente — Andas aqui a meter medo à gente! Onde viste os cabanos, travesso duma figa?

— Ali! — respondi apontando para a ilha que no meio do rio o separava em duas partes quase iguais: — Ali, atrás da ilha!

Padre João ainda quis replicar, mas nesse momento as canoas apareceram de novo, e desta vez ninguém pôde deixar de vê-las.

Vinham cheias de gente, como a princípio me pareceram. Cada uma delas trazia à popa uma espécie de pequeno mastro, em cujo tope tremulava uma bandeirinha encarnada.

— São eles! — murmurou Padre João da Costa em voz sumida.

— Deus Nosso Senhor Jesus Cristo — soluçou minha mãe, deixando-se cair de joelhos, e cobrindo o rosto com as mãos.

A velha Andresa parecia estúpida diante daquele espetáculo. Eu tremia, agarrado ao padre e à roupa, mas procurava mentalmente contar o número de embarcações e de cabanos. Só Júlia parecia menos comovida.

— Que será de nós? — balbuciou o Vigário de Vila Bela, arrancando um pequeno crucifixo do seio, e beijando-o repetidas vezes.

Nesse momento Paulo da Rocha apareceu. Vinha do cacual, da parte próxima ao rio, donde provavelmente vira a chegada dos cabanos. Estava pálido, mas sereno. Somente o movimento das narinas denotava a grande agitação que lhe ia na alma.

Quando o vimos aparecer, quase sem ser pressentido, recuamos instintivamente minha mãe, o padre e eu. Ele, porém, como se não tivesse reparado naquele nosso injurioso, mas involuntário movimento, disse-nos com voz forte e firme, num tom de franqueza rude, que produzia sempre no nosso coração o desejado efeito:

— Não tenham medo. Vamos, entrem e fechem-se dentro do quarto. Nada temam. Padre Mestre, não se acovarde... Vossa reverendíssima está dando mau exemplo a esta gente. Veja se lhes reanima a coragem.

E, juntando o gesto à voz, o velho do outro mundo fez-nos entrar num quarto. Depois adiantou-se sozinho para o terreiro.

As escravas que andavam pelo cacual chegaram nesse momento, gritando:

— Os cabanos! Os cabanos!

Minha mãe ajoelhada perto da porta rezava com fervor. Júlia parecia mais curiosa do que amedrontada. Padre João e a velha Andresa, sentados em redes, estavam mais mortos do que vivos. As mulatas choravam ruidosamente.

Pela fresta da porta entreaberta percebi que as canoas chegavam ao porto do sítio e abeiravam a ponte. No quarto, além do ligeiro rangido das cordas das redes nas escápulas de pau, ouvia-se o soluçar medroso das escravas, arrodilhadas no chão, aos pés da senhora, com a cabeça oculta nas saias. Lá fora a vozeria dos tapuios.

Não pude escapar ao influxo das ideias romanescas que me enchiam o cérebro e me exaltavam a imaginação. Naquela hora tremenda, em que ia talvez decidir-se da minha vida e da sorte de minha mãe, senti-me transportado para um mundo ideal, de pura fantasia, mas que se me afigurava presente e tangível, e superexcitando-me os nervos colocava-me acima de qualquer receio e indiferente a tudo que não fosse saciar os olhos e a imaginação naquele espetáculo extraordinário.

Uma curiosidade irresistível apoderou-se de mim; queria a todo o custo ver o que se ia passar. Um fogo intestino devorava-me. Acabei de enfiar a roupa e, abrindo sorrateiramente a porta, deitei a correr para o terreiro, sem que dessem por mim. E o que vi era realmente digno de ver-se.

Quando cheguei a alguns passos de distância de Paulo, sem ser percebido, vali-me da agilidade de curumim do Amazonas para trepar a uma mangueira do terreiro.

Uma centena de pessoas, homens, mulheres e crianças, caboclos na maior parte, negros e mulatos muito poucos, desembarcavam desordenada e ruidosamente. Os homens vestiam calças e camisa de algodão tinto em murixi vermelho, cobriam-se com grande chapéu de palha, com topes de duas cores, vermelha e preta, em forma de cruz. No peito da camisa tinham distintivo igual, e à cintura traziam um horroroso troféu de orelhas humanas, enfiadas em uma embira, em ostentação de perversidade e valentia.

As mulheres trajavam saias e camisa da mesma fazenda de algodão, sendo somente as saias tintas em murixi, e sobre os amplos peitos morenos destacava-se a cruz de duas cores que distinguia os cabanos, inimigos dos maçons e dos portugueses.

As crianças estavam quase todas nuas. Homens e mulheres, ao que me pareceu do alto da mangueira, tinham fisionomia bestial e feroz e vinham armados de espingardas, terçados, chuços e espadas. Toda aquela gente, num tumulto de desenfreada licença, ria e gritava, praguejava e rezava ladainhas, entrecortadas de soluços aguardentados e de gestos de ameaça e de ódio que me causava calafrios.

Sem disciplina nem ordem de espécie alguma desembarcaram os cabanos, num esvozear desbragado, em passos precipitados e atitude hostil, tomaram o caminho da habitação da velha Andresa. Saiu-lhes ao encontro o velho do outro inundo.

— Então, canalha! — bradou o mulato, numa voz retumbante e áspera — Então, canalha! É assim que se invade a casa do cidadão brasileiro?!

Cuidei de vir abaixo da árvore num desmaio de surpresa e de susto, ao ouvir aquelas audazes, ou melhor, insensatas palavras de provocação e insulto, que Paulo da Rocha proferia numa alucinação de raivosa impotência. Pareceu-me que os cabanos iam cair sobre o velho desarmado e só, e massacrá-lo como a um verme.

Fechei os olhos para não ver o horrendo assassinato, mas a curiosidade me estimulou a abri-los, e com o maior espanto que jamais senti em minha vida, vi, com estes olhos, a multidão estacar tímida e muda.

Paulo da Rocha continuou no mesmo tom de voz:

— Se vindes como patrícios e amigos, terei muito gosto em vos receber a todos. Eu sou brasileiro, entendeis, tapuios bêbados? E se algum há entre vós que não seja meu patrício, que o declare se for capaz!

O velho sineiro da Matriz tinha a altiva beleza dos heróis das antigas lendas. A sua fronte erguia-se com a majestade augusta da fronte dos reis. O crânio despido de cabelos brilhava aos raios do sol da tarde com reflexos metálicos. O olhar de gavião real dominava a multidão semisselvagem de tapuios ferozes que a sede de assassínio e de roubo ali trouxera.

Ele insistiu com dobrada arrogância:

— Ninguém se atreve a declarar? Como é pois que brasileiros entram em casa de brasileiros por semelhante forma? Que quereis, corja sem vergonha?

O que se passou então foi coisa tão estupenda que narrando-a, após o decurso de tantos anos, receio não ser acreditado. Eu vi aquela multidão de bandidos humilhar-se ante um homem desarmado. Vi os cabanos, os fanáticos caboclos que nada respeitavam, tremerem diante daquele velho alquebrado pelos anos e murmurarem desculpas.

— Patrício — balbuciou um que parecia o chefe da expedição, nós chegamos como amigos na casa do seu amigo.

— Sede bem vindos — respondeu o mulato, abrandando a rudeza da voz. Entrai e recebei a hospitalidade do pobre.

E Paulo da Rocha encaminhou-se para a casa, seguido pela multidão dos cabanos que, parecendo ter subitamente recuperado a sua liberdade de ação, gesticulavam, gritavam e entoavam canções cheias de ameaças de morte e de graçolas ridículas. Estupefato, fora de mim, desci da árvore e segui o bando. Quando chegamos à casa parecia deserta.

Paulo voltou-se para os importunos hóspedes e disse-lhes num tom de amigável superioridade:

— Patrícios, à vontade; mas ninguém estrague o que lhe não pertence.

Imediatamente a multidão, como se só esperasse aquela ordem, dispersou-se pelo sítio. Uns correram para o cacaual, outros para a horta e alguns para o tendal, e o sítio, de ordinário, silencioso e melancólico, ofereceu um aspecto curioso de animação e desordem. Aqui uma velha desdentada e nojenta fazia vinho de cacau em tipitis e alguidares; ali um bando de crianças quebrava galhos de laranjeiras para mais à vontade colher os frutos grandes e avermelhados que lhes excitavam a gula. No terreiro mulheres improvisavam um fogão com três pedras e assavam o peixe furtado ao paiol da velha Andresa.

Na cozinha um grande círculo discutia e berrava, dançando o sairé e bebendo aguardente que o mulato lhe pusera à disposição. Por toda a parte algazarra e desordem.

Três ou quatro dos principais cabanos ficaram na varanda, onde Paulo lhes servira aguardente, peixe, farinha e tabaco.

Paulo da Rocha falava-lhes com sobranceria, e a cada uma de suas palavras, eu cuidava que se iam levantar os cabanos e matá-lo. Mas o sineiro possuía algum condão maravilhoso. Longe de se zangarem, os tapuios pareciam moderar-se e submeter-se à medida que a voz do velho crescia em veemência. Era na realidade extraordinário o que se passava. Parecia-me estar sonhando.

Paulo da Rocha interpelava-os sobre os seus projetos, e lançava-lhes em rosto as mortes e roubos que praticavam por toda a parte.

— Nós batalhamos por ordem de Deus — disse um tapuio velho que mostrava ser o mais autorizado: — Queremos dar cabo dos marinheiros todos porque são maçons, inimigos dos santos e nos roubam o suor do nosso rosto.

— E que significa essa cruz que trazes no peito e no chapéu? — perguntou o mulato.

— Isto é um sinal bento — explicou o tapuio. — Todos os brasileiros hão de trazer a cruz para se livrarem das tentações do Inimigo. É a religião que nos manda usar a cruz. É o sinal da nossa redenção.

— E o sinal da redenção é coisa que se pregue no chapéu que anda por toda a parte e rola pelo chão? — disse Paulo da Rocha, arrancando o chapéu da cabeça do tapuio e atirando-o fora. É assim que se teme a Deus, quando se brinca com a cruz em que morreu Nosso Senhor?

O tapuio levantou tranquilamente o chapéu, e sorriu alvarmente olhando para os companheiros.

Um destes murmurou com uma risadinha sarcástica:

— Entretanto diz que você já foi rebelde noutro tempo, mestre Paulo...

Os cabanos encararam o sineiro como se lhe pedissem uma explicação.

— Fui rebelde — exclamou Paulo da Rocha, erguendo altivamente a cabeça — mas a minha causa era grande e nobre. Nós em Pernambuco nos rebelamos por uma ideia grandiosa, ideia que ficou afogada em sangue, mas não morreu, há de surgir mais tarde ou mais cedo. A igualdade das raças há de ser proclamada, assim como o foi a independência da nossa pátria, pela qual morreram em 1817 os meus valentes chefes. Dos dois fins que a rebelião de Pernambuco tinha em mira, um já se conseguiu, ainda que incompletamente. O outro... Não há de tardar o dia da redenção dos cativos. Mas os cabanos matam e roubam pelo simples prazer do crime, ou antes, porque invejam a prosperidade dos brancos.

— Não, mestre Paulo! — contestou o segundo tapuio. — Branco mata e rouba o tapuio aos bocadinhos. Tapuio mata o branco duma vez, porque o branco é maçom e furta o que o tapuio ganha.

— Nós — tornou Paulo da Rocha, possuído pelo entusiasmo que dele se apoderava sempre que se referia à revolução de 17, nem parecendo ouvir a contestação do cabano — nós não matávamos os velhos e as crianças, nem roubávamos os bens alheios. Se derramamos sangue foi em combate, expondo a nossa vida sempre em número inferior ao das tropas legais. E os cabanos que fazem, que querem? Dizem que são brasileiros mas roubam e matam os brasileiros. Dizem que são religiosos e tementes a Deus, mas matam padres, mulheres e crianças. E querem comparar-se conosco? Então a onça traiçoeira pode comparar-se ao cachorro que ataca de frente? Que vieram vocês buscar aqui? Não sou tão bom brasileiro como o melhor cabano? E que valentia é essa vir assim tanta gente atacar o sítio de uma pobre velha, viúva de um brasileiro que os marinheiros do Pará mataram de desgostos?

— Mestre Paulo, você está enganado, acudiu o mais velho dos tapuios. Nós não vimos atacar o sítio. Nós cá estamos para visitar o velho mestre Paulo, pedir-lhe um pouco de pólvora e de chumbo, e dizer-lhe que Matias Paxiúba lhe quer falar.

— Ah, vocês pertencem ao bando do Paxiúba?

— Sim. Matias Paxiúba governa desde Óbidos até ao rio do Ramos. Pra baixo quem manda é o Pau-Ferro e no mar é Jacob Patacho. Então Matias Paxiúba soube que mestre Paulo estava aqui pras bandas do Andirá. E ouviu dizer que mestre Paulo era valente e foi rebelde no outro tempo. Então Matias Paxiúba quer falar com você.

— Onde está ele?

— Está agora no Lago da Francesa. Lá é o campo grande, porque os legais dominam a Barra do Rio Negro.

— Pois dize-lhe que lá irei ter ao Lago da Francesa o mais depressa que puder.

— Ele mandou dizer que não faltasse, para provar que é bom brasileiro. Se você não for, ele diz que você é a favor dos marinheiros.

— Hei de provar a Matias Paxiúba que sou tão bom brasileiro como ele mesmo.

— Nós não duvidamos, disse o tapuio que recordara a Paulo a sua qualidade de antigo rebelde. Mas é que já outro dia o camarada que veio chamar a você, voltou dizendo que você ia e você não foi. Então Matias Paxiúba disse: remem pra lá!

— Não pude ir tão cedo como queria, mas isso não é motivo para se duvidar de mim.

— Agora então vai?

— Sem falta. Vou acabar de fazer um serviço urgente e sigo logo. Podem ir descansados.

— Viva mestre Paulo! — gritou o tapuio erguendo-se e sacudindo o chapéu.

— Viva! — repetiram os outros.

Nesse momento um dos rebeldes viu-me, e batendo-me no ombro perguntou ao mulato:

— Quem é este curumim?

— É um brasileirinho certo. É afilhado meu.

Valeu-me a cor morena do rosto, requeimado do sol na viagem e nos banhos ao meio-dia em pleno rio. Se eu fosse claro estaria perdido. Para maior facilidade do engano, depois que nos achávamos no sítio da velha Andresa, atribulados e tristes, eu gozava da mais completa liberdade. Andava vestido de calças de riscado e camisa de algodão como qualquer tapuiozinho, descalço e esgadelhado. Quem me visse tomar-me-ia facilmente por um caboclo, como o acreditaram os cabanos. Um deles sorriu-se para mim, dizendo:

— Pois é tempo de meter o curumim na camisa de murixi. Os patrícios devem todos vestir do mesmo modo.

Tive ímpetos de repelir com indignação o conselho, mas o medo foi mais forte do que o orgulho do filho de Guilherme da Silveira. Calei a raiva e escondi a perturbação atrás de um esteio da varanda.

Os cabanos demoraram-se ainda algumas horas no sítio. Depois de terem carregado as canoas de cacau, fumo, aguardente e tudo quanto puderam haver às mãos, despediram-se calorosamente de Paulo da Rocha, recomendando-lhe muito que não deixasse de ir ao Lago da Francesa, onde estava o chefe.

Paulo seguiu-os com a vista até que as canoas dobraram a ponta da ilha e morreu o rumor das vozes aguardentadas e dos remos indolentes. Depois, puxando-me amigavelmente a orelha, foi abrir a porta do quarto às mulheres e ao padre, semimortos de medo.


CAPÍTULO 8

— Meus amigos, disse-nos nessa mesma noite o sineiro da Matriz — tudo até aqui tem ido muito bem, depois que cá chegamos, mas falta atravessar a crise principal, o encontro com o Paxiúba. Como há de ser? Matias é feroz, sanguinário e altivo, não se deixará levar pelo nariz. Se lhe não for eu falar ao Lago da Francesa, é muito capaz de vir cá em pessoa, e então não pode deixar de descobrir a viúva e o filho do juiz de paz. Estaremos perdidos. Indo eu ao Lago, não será prudente deixá-los aqui. Andam estas paragens infestadas já pelos cabanos, e um dia podem, agora que conhecem o sítio, vir incomodá-los de novo. Padre Mestre, que diz Vossa Reverendíssima?

Até alta noite discutiu-se o problema, e só a custo chegou-se a um acordo satisfatório. Convencionou-se por fim que no dia seguinte partiríamos do sítio da Andresa e nos internaríamos pelo igarapé dentro em direção ao lago do Anuaçu, pequena lagoa de pesca descoberta pelo escravo de Andresa, e que se supunha inteiramente desconhecida e desabitada. O preto velho nos acompanharia até uma pequena cabana que ele próprio construíra em meio do mato para se abrigar das intempéries nas longas estações de salga que passava à beira da lagoa. Ali deveríamos ficar, enquanto o pernambucano iria apresentar-se ao capitão dos rebeldes, levando em sua companhia a filha, para que o cabano não desconfiasse de que ficara conosco e da proteção que o mulato nos dispensava.

Logo que Paulo da Rocha pudesse com a sua presença adormecer as suspeitas de Paxiúba, voltaria a reunir-se aos seus protegidos e então procuraríamos um meio de chegar à barra do Rio Negro, onde ficaríamos sob a proteção dos legais. Enquanto não voltasse o sineiro devíamos permanecer no lago Anuaçu.

Padre João, ao concluir-se esse plano, exclamou alegremente:

— Não há dúvida, meus filhos, eu me encarrego de dirigir a casa e de pescar para nós três, pois que o preto velho deve voltar logo; a Sra. Andresa precisa dele, e basta já de dar prejuízos a essa santa criatura. Com o auxílio da Divina Providência e do maroto do Luís tudo irá às mil maravilhas.

Como não havia tempo a perder tratou-se dos preparativos da viagem. As mulheres reuniram toda a nossa roupa que aliás era pouca e modesta, fizeram um balaio de algumas provisões escapas à rapacidade dos cabanos e que Andresa nos cedeu de boa vontade, dizendo que ela de nada precisava. O Faustino, o preto velho, pescaria para ela, e a tapuia e a mameluca, as duas escravas lhe arranjariam a farinha e o tabaco de que carecia. Padre João da Costa e eu examinamos os anzóis, preparamos as linhas de pesca, concertamos os arcos e frechas que nos vendeu o Faustino, e enchemos um grande pote de vinho de cacau, espumante e saboroso. Paulo visitou a canoa e os remos, e preparou às pressas uma tolda falsa de japá para abrigar os gêneros na viagem.

Essa noite não dormimos, e mal rompeu o dia embarcamos na canoa e despedimo-nos da velha Andresa que, debulhada em lágrimas, nada respondeu aos fervorosos agradecimentos que lhe dirigimos pela sua generosa hospitalidade.

— Deus abençoe esta casa, minha irmã — disse-lhe Padre João da Costa — e lhe dê em tresdobro o que a senhora perdeu por amor de nós. Adeus, boa velha, não me esquecerei de si nas minhas orações.

Minha mãe e Júlia abraçaram a dona do sítio com muita expansão. Em poucas horas chegamos à lagoa do Anuaçu, e logo depois abeiramos ao porto da cabana de Faustino. Era uma miserável palhoça que mal poderia acomodar a duas pessoas; um desses ranchos que os pescadores constroem à beira dos lagos de pesca no verão, para se abrigarem da chuva e agasalharem o peixe salgado. Aboletamo-nos ali como foi possível; e, porque a casa (se tal nome poderia ter) só constasse de duas peças, tratamos logo de fazer uma divisão com estacas e palha de pindoba, para que minha mãe tivesse o seu quarto de dormir. Armou-se também uma pequena coberta para cozinha, improvisando-se o fogão com três pedras e um moquém.

A novidade agradava-me, e nesse casebre eu me julgava tão bem como na nossa grande casa de Vila Bela. Padre João parecia satisfeito, e exclamava a todo o instante:

— Magnífico! Soberbo! Ora digam que o Senhor não provê às necessidades das suas criaturas.

No dia seguinte, Paulo e Júlia partiram para o Lago da Francesa, deixando-nos imersos em profunda inquietação. Senti muito a ausência de Júlia. Fui sentar-me à beira do Anuaçu que ela atravessara na frágil canoa, e chorei o dia inteiro.

Nada mais triste nem mais monótono do que a vida que levávamos no Anuaçu depois da partida do pernambucano. O bom humor afetado pelo vigário no dia da chegada desaparecera logo que se vira isolado naquele sertão bravio, entre uma viúva inconsolável e uma criança.

Minha mãe reunia à saudade do esposo assassinado a inquietação pela existência do filho e o receio da própria segurança. Eu mesmo, apesar da leviandade da meninice, sentia-me triste, saudoso, aborrecido à beira daquele lago deserto, sem uma criatura a que a proporcionalidade dos anos me ligasse. Dum lado minha mãe, com os olhos úmidos de pranto e o peito opresso de suspiros. Do outro o carão enfastiado de padre João da Costa e a sua elevada estatura a passear silenciosamente à porta da cabana, quando os afazeres da caça e da pesca não o prendiam longe da habitação.

Assim passamos cerca de quinze dias no isolamento e no abandono, receando pela vida de Paulo da Rocha e desesperando da situação, julgando-nos condenados a arrastar uma existência deplorável naquele sertão que as onças e as cobras frequentavam.

Uma manhã fomos acordados por Paulo da Rocha.

O sineiro vinha só, e estava muito triste.

Brilhava-lhe o olhar e tinha um sorriso de orgulho a iluminar-lhe a fisionomia.

— E Júlia? — perguntei eu.

Ficara no Lago da Francesa, com os cabanos, que a retinham como refém. Paulo da Rocha dissera que precisava ir a Serpa tratar de negócios urgentes, e para que voltasse a incorporar-se aos brasileiros, estes haviam exigido que deixasse a filha. Na verdade o que o mulato queria era levar-nos àquela vila, donde facilmente poderíamos ganhar a Barra, enquanto ele voltasse a buscar a filha.

Conquanto nos parecesse estranha a história, nada dissemos ao pernambucano que denotasse a nossa incredulidade, posto nadássemos num mar de conjecturas sobre a sorte de Júlia.

Só muito mais tarde chegou a verdade ao nosso conhecimento por informação de uma testemunha ocular.

O homem extraordinário, que foi para mim mais do que pai, queria ocultar os atos de inaudita generosidade que praticara, mas felizmente para a sua memória não pôde prevalecer a sublime mentira, eu e todos conhecemos a grandeza daquele coração.

Quando o pernambucano chegou com a filha à presença do feroz Paxiúba, este já sabia perfeitamente que nos salvara, a minha mãe e a mim, do furor dos cabanos, escondendo-nos num lugar só dele conhecido na vasta região Amazônica. O brasileiro recebeu-o pois cheio de ódio, e disposto a empregar as maiores violências para haver às mãos os marinheiros.

— O filho dessa gente maldita — disse o tapuio em tom resoluto — o filho de Guilherme da Silveira não pode viver. Tens que entregá-lo à vingança dos teus patrícios.

Paulo da Rocha foi inabalável diante da exigência do chefe. Ergueu a cabeça altiva, e, fitando os olhos de águia no rosto horrendo do cabano, disse em voz sonora e clara: — Paxiúba, um pernambucano põe acima de tudo as leis da honra. Eu jurei pela vida de minha filha salvar o filho do juiz de paz.

— Tu és um traidor! — bradou em voz de trovão o cabano, pondo-se de pé e ameaçando o mulato com os punhos. — És um traidor, negro vil, estás vendido aos marinheiros e aos maçons!

Aquele insulto fez empalidecer o mulato. Passou-lhe um relâmpago no olhar, mas não respondeu.

Os espectadores desta cena assistiam trêmulos à luta iminente entre o cruel e desapiedado cabano e o velho feiticeiro, o velho do outro mundo. Eram na totalidade caboclos e negros, cabanos todos, gente ignorante e rude, acostumada a temer a força e crueldade de um e o mistério sobrenatural de que se habituara a aureolar a fronte do outro. Matias Paxiúba continuou:
— Há muito tempo que eu desconfiava de ti. Mas toma cuidado! Ninguém se atreva a encarar face a face com Paxiúba, o brasileiro! Sou filho da onça, neto do tamanduá e mano do jacaré! O filho do marinheiro há de morrer, para que se extinga a fama daquela família maldita. É preciso vingar os nossos irmãos assassinados por ordem do Juiz de Paz. Negro, tu hás de entregar o marinheirinho, ou te arrependerás!

— Paxiúba — respondeu o mulato, contendo-se a custo — quando a gente chega à idade que tenho, não teme insultos nem ameaças, tratando-se de cumprir um dever. Ser brasileiro não é ser assassino, caboclo! Toma cuidado tu também, mano do jacaré. Jurei salvar a vida do pequeno, e hei de cumprir o meu juramento, custe o que custar.

Paxiúba quis lançar-se sobre o velho, com os dentes arreganhados e a face convulsa de furor. O mulato deu um passo atrás e esperou-o em atitude calma, serena e majestosa.

— Vamos, caboclo — exclamou Paulo da Rocha, e no movimento convulso das narinas e no estridente tom de voz denotava a inquebrantável energia com que se aparelhava para a luta. — Vamos, caboclo, mostra que és valente. Obriga-me a entregar-te o filho do Juiz de Paz!

O mulato levara a mão ao seio da camisa. Ou porque suspeitasse aquele movimento, que parecia denunciar a arma oculta, ou porque o prestígio do velho rebelde e o terror que inspirava o feiticeiro o dominasse, o cabano recuou e com ele recuaram todos os cabanos.

Mas, à distância, moderando a voz, com um furor concentrado, lentamente para que cada palavra fosse uma punhalada, Matias Paxiúba disse:

— Negro, tu vais buscar o marinheirinho, e hás de trazê-lo em companhia da mãe e do padre. Tua filha daqui não sai. E por Nossa Senhora te juro que a cunhantã pagará pelo filho do juiz de paz. Cada dia que perderes na viagem, será um dia de tormento para ela. Vai, e toma cuidado. Não queiras que se diga que o velho Paulo da Rocha sacrificou a carne de sua carne para salvar um inimigo dos seus patrícios: um dos tiranos do Brasil. Não queiras que se diga que o pernambucano não merecia ser pai, e que Deus errou quando lhe deu uma filha.

E voltando-se para os seus sequazes, o Paxiúba ordenou:

— Agasalhem a cunhantã!

No dia seguinte ao da volta de Paulo da Rocha, seguimos todos para Serpa. Levamos muitos dias de viagem porque foi forçoso procurar os caminhos mais longos, dar voltas enormes, andar pelos furos mais estreitos, arrastando algumas vezes a canoa para escapar às vistas dos cabanos que infestavam aquelas paragens. Íamos todos sobressaltados, e Paulo da Rocha mergulhado em profunda tristeza. Afinal chegamos à ilha de Serpa, e aí nos deixou o sineiro para ir, como ele nos disse, em busca da filha, mas na realidade para somente aproximar-se dela, e tentar algum meio de salvação. Estávamos em segurança, e o heroico mulato podia partir descansado.

Passamos muitos dias em Serpa, em casa de um português, antigo amigo de meu pai. Lá tivemos a confirmação da morte desgraçada de Guilherme da Silveira, cujo corpo não pôde ser sepultado em lugar sagrado. Minha mãe, que ainda se apegava a uma solução milagrosa, ficou em estado de verdadeiro desespero.

De Serpa partimos para a Barra do Rio Negro, onde residia meu tio Lourenço. As impressões que os acontecimentos narrados me haviam deixado no espírito foram pouco a pouco se esvaindo, graças ao tempo e à despreocupação natural da infância.

De Paulo da Rocha e de Júlia não mais tivemos notícia. A dificuldade das comunicações, a agitação dos tempos e o cuidado da própria segurança haviam impedido uma pesquisa mais cuidadosa sobre o destino que levara o nosso salvador.

Meu tio Lourenço, que se incumbira de colher notícias, prometera empregar nisso toda a diligência. Faltou-lhe persistência ou o tempo lhe foi absorvido pelos negócios... não sei. Eu era ainda muito criança para interessar-me ativa e insistentemente por qualquer coisa. Minha mãe, imersa na sua dor, não cuidava senão em chorar e rezar. Quanto ao bom do Padre João da Costa, não sofrera impunemente a perseguição de Matias Paxiúba. Uma febre palustre, adquirida nos sertões do Andirá e do Anuaçu, apoderara-se do corpo, e tenaz, refratária a todos os cuidados da medicina, minara-lhe o organismo, matando-o por fim.

Quando ouvimos dizer que findara a cabanagem tive de deixar por uma vez os folguedos da meninice, e seguir para o seminário do Pará. Dali me mandaram para Olinda, a cursar a Academia de Direito.

Muitos anos se passaram sem que eu voltasse ao Pará.


CAPÍTULO 9

Um dia, era eu juiz municipal e delegado de polícia de Óbidos e visitava a fortaleza, transformada provisoriamente em cadeia de justiça, por falta de edifício apropriado. O comandante do forte, um tenente-coronel reformado, velho muito contador de histórias, gostando de dar a perceber os seus conhecimentos estratégicos, fez-me apreciar as vantagens topográficas da fortificação, gabou a solidez dos muros, a boa escolha do local e queixou-se do desamparo em que o Governo deixava tão importante meio de defesa, o único de que Óbidos dispunha.

— Olhe, Sr. Doutor — acrescentou o tenente-coronel Miranda — se o governo do meu país — ele dizia meu país, como se o Brasil todo lhe pertencesse —; se o governo do meu país fosse mais previdente, muitos males se teriam evitado no passado e muitos mais se evitariam para o futuro. Mas qual! Aquela gente do ministério da guerra não faz nada lá no Rio de Janeiro! Canso-me de reclamar, reclamar, reclamar!... Vossa senhoria já me respondeu alguma coisa? Não? Pois assim fazem eles. O presidente da província é a mesma coisa. Olhe, no tempo da cabanagem...

Esta palavra despertou a minha atenção cansada da verbiagem do velho, e procurando já distrair-se nos detalhes do edifício colonial. A cabanagem! Quantas ideias confusas, dolorosas, ardentes, romanescas não fazia tal palavra brotar no meu cérebro de moço! As recordações da infância, emaranhadas, obscuras, cheias de lacuna, andavam procurando um fio condutor que as guiasse e esclarecesse. Tudo quanto dizia respeito aos motins políticos do Pará interessava-me sobremaneira. Tinha a curiosidade dos menores detalhes, buscava informar-me de todas as circunstâncias de coisas e pessoas daquele sangrento episódio que atravessara a minha infância como um clarão de fogo, a chama do incêndio que devorara o corpo de meu pai.

— Vossa senhoria assistiu à cabanagem, Sr. Tenente-Coronel? — perguntei ao comandante.

O velho militar olhou para mim muito espantado, como se eu lhe perguntasse coisa que ninguém podia ignorar.

— Como, Sr. Doutor? Pergunta se eu assisti à cabanagem?! Mostrou-me uma fita na lapela da farda, e acrescentou:

— Pois não está vendo? Isto foi pelo feito do Lago da Francesa. Fui eu quem destruiu o bando de Matias Paxiúba...

— De Matias Paxiúba, o brasileiro? — perguntei sofregamente. E acudindo a reminiscência, aos pedaços, em desordem, continuei:

— De Matias Paxiúba, que invadia Óbidos, que saqueou Vila Bela, e incendiou nossa casa? Matias Paxiúba foi o assassino de meu pai, Sr. Tenente-coronel.

— Esse mesmo, um dos mais ferozes tapuios da cabanagem.

E vendo-me vivamente interessado, o tenente-coronel Miranda deu largas ao seu gosto pelas narrativas, principalmente quando se supunha o herói delas:

— Eu era capitão nesse tempo, e comandava a companhia encarregada de bater os matos de Vila Bela, onde o bando de Matias Paxiúba se ocultava. Os cabanos, apesar das suas fumaças de valentia, não ousavam encontrar-se com as forças legais, fugiam-lhes na frente, deixando os vestígios de sua crueldade em mortes, incêndios e desolação. Afinal, depois de muito trabalho consegui descobrir o acampamento da quadrilha principal, que era então à margem do Lago da Francesa. Cheguei à meia-noite à beira do lago, e pus cerco ao acampamento. A princípio Matias Paxiúba quis resistir. Houve um tiroteio vivo de mais de duas horas. Mas afinal, pela madrugada, os caboclos cobraram medo e começaram a abandonar o chefe. E como? Adivinhe o Sr. Doutor como aquela súcia fugia! Atirando-se à água. Muitos deles foram mortos a tiro, outros se afogaram, alguns foram comidos de jacarés. Quando descobri a fuga, mandei ativar o fogo. Ardeu uma das palhoças, e não tardou o fogo a pegar em todas...

— E os cabanos?

— Os que não se atiraram à água foram poucos. Mulheres e crianças morreram queimadas. Era natural. Nós não lhes pudemos acudir. O que é lamentável é que só se fizesse um prisioneiro, mas esse era de muita importância.

— Matias Paxiúba?

— Não. Um mulato, de Pernambuco, um sujeito perigoso, incorrigível, um dos subchefes do bando, talvez o mais importante de todos. Foi preso na ocasião em que saía de uma cabana, carregando aos ombros uma rapariga que disse ser sua filha.

Uma estranha emoção começou a apoderar-se de mim. Uma recordação viva acudiu-me à mente.

— E... Esse mulato — perguntei — era cabano? O comandante encolheu os ombros.

— Ora essa! Está claro que o negou a pés juntos. Ninguém mais legal do que ele! Mas as provas eram indiscutíveis! Que fazia ele àquela hora, naquele lugar, saindo com a filha de uma palhoça dos rebeldes? Naturalmente não fora como amador assistir à peleja, em companhia da família!

— E afinal? — tornei com a voz embargada pela emoção, temendo saber a verdade.

— Afinal — voltou, impassível, o tenente-coronel Miranda — afinal, o tal cabra era o único prisioneiro, por isso os legais lhe pouparam a vida. Foi processado e condenado a galés, apesar dos seus protestos de santinho de pau oco. Mas em Vila Nova toda a gente o conhecia por feiticeiro, mulato orgulhoso e altivo, inimigo dos brancos. Gabava-se de ter sido revolucionário de 1817. De forma que nenhuma voz se levantou em seu favor. Demais era o único prisioneiro. Era preciso dar um exemplo.

— E se não fosse ele — acrescentou, sorrindo, o comandante — esta não estaria cá. — E apontou, contente, para a fita que lhe ornava o peito.
— E a filha? — perguntei.

O tenente-coronel Miranda fez um gesto de desdenhosa indiferença, como se, da ignorância em que se estava do destino da rapariga, induzisse a natureza do seu fim.

Abaixei a cabeça procurando disfarçar a grande tristeza que me invadia o peito. Depois de algum tempo, perguntei de novo:

— O mulato foi para Fernando de Noronha?

— Quem, o cabano? — interrogou o comandante. Depois de um sinal afirmativo meu:

— O cabano está aqui. É o meu troféu!

— Aqui! — exclamei agitado por uma emoção violenta.

— Sim, aqui e o Sr. Dr. vai vê-lo.

Encaminhou-se para o lado em que ficavam as prisões. Segui-o vacilante. O carcereiro que nos precedia abriu uma porta e chamou um nome. Um vulto assomou ao limiar.

— Como te chamas? — perguntou rudemente o comandante.

O homem ergueu a cabeça completamente calva e fitou em nós um olhar sereno e claro, e disse o nome.

Não era preciso que o dissesse. O meu coração havia-o reconhecido.

Era Paulo da Rocha.

O pernambucano parecia ter mais de cem anos. Rugas profundas cortavam-lhe o bronzeado rosto em todos os sentidos. O corpo era de uma magreza extrema de vida que se esvai. Só lhe ficara o olhar, o olhar sereno e claro, e um sorriso de resignação e de bondade, o sorriso que teve Jesus de Nazaré no alto da Cruz.

— Paulo da Rocha! — exclamei, torturado pela dor — Paulo da Rocha, não me reconhece?

O mulato adiantou-se. Um lúgubre som de ferros acompanhou-lhe o andar.

Olhou muito tempo para mim. Não me reconheceu.

Mandei que lhe tirassem os ferros, que o mudassem para um cômodo arejado e providenciei para que lhe viesse o alimento da nossa casa. Depois dei-me a conhecer.

Paulo da Rocha chorou silenciosamente, abraçado ao meu pescoço. O tenente-coronel Miranda não se quis convencer da história que lhe contei. Aquele mulato não era cabano? Mas então como estava no

Lago da Francesa? Como foi condenado? Não era possível!

Depois de um ano de esforços inauditos consegui o perdão do velho do outro mundo. O Imperador, maior, estava disposto à clemência. O antigo sineiro, porém, não viveu muito tempo. Apenas pude tirá-lo da fortaleza, levei-o para minha casa, onde dois dias depois expirou nos meus braços. Voou aquela sublime alma para o céu sem murmurar contra os seus algozes.

A sua memória, porém, vive no meu coração.

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