Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ele aí está, que o diga o Oliveira, aquele rapagão de bigode louro e olhar
azul, que viajou como caixeiro de cobranças, "cometa", e hoje é
repórter. Por sinal que foi a última viagem de cobrança que fez, e de tão
horrorizado mudou de vida e profissão. Foi ele mesmo quem me referiu o caso.
Aqui o dou pelo custo, sem nada meu.
***
Ao cair
de uma tarde chuvosa de março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a uma
vendola à beira da estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que vai
de Alfenas ao Machado, no sul de Minas.
Junto à
venda havia a casa de morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal português,
que ali se fixara e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas suas
terrinhas, e os furtos trazidos à noite pelos escravos da vizinhança.
Pousada,
não era costume dar-se ali; Alfenas ficava a uma légua, e os donos da casa
diziam despachadamente que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o
caso era especial: trazia já as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de
carrapato, e depois, com tanta carga d’água, não havia meio de continuar
viagem. Pediu pousada e ceia, pagando eu — acrescentou.
— Ceia,
arranja-se-lhe — disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a cama é que está
mais difícil, que não recebemos hóspedes para dormir.
E com o
olhar consultava a mulher, a mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada para
dentro do balcão.
— Não,
por isso não seja — opinou ela; dá-se-lhe o quarto do Jequim...
— Bem
lembrado — concordou o vendeiro; — temos ali assim um quarto agora desocupado,
que é o de nosso rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Claro; tem
cama e colchão, que é o preciso para dormir... Se lhe serve...
— Serve,
serve — aceitou logo o Oliveira. — E deem-me alguma coisa que se coma; estou
morto de fome!
Enquanto
se punha a janta, desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe destinaram,
contíguo à saleta da frente e com janela para a estrada; levou o animal ao
pasto, um pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si.
Antes,
porém, de sentar-se à mesa, onde já fumegava o feijão com couves e a
canjiquinha, pediu que lhe trouxessem uma peneira.
— Uma
peneira! ora essa!
— É cá
para uma precisão!
Trouxeram-lha,
e ele então sacou do bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma bolada
de notas úmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as
cédulas grandes, de duzentos, de cem, de cinquenta mil-réis, uma boa meia dúzia
de contos. Passou a peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e
entrou a servir-se da ceia no prato de louça azul, com a colher de ferro.
Ao levar
à boca uma colherada, surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que lhe
comiam o estendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido, que
entrava com uma garrafa de vinho.
Tão
cobiçoso era o olhar de ambos, que coou na alma do rapaz um frio de medo e um
clarão de pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido
da imprudência de ter mostrado tanto dinheiro.
Acabando
de cear, declarou que muito cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por
isso deixava paga a hospedagem; deram-lhe a boa-noite e recolheu, com uma vela
de sebo, ao quarto do Joaquim.
Mal se
viu só, tratou de ajuntar as notas que espalhara na peneira, tornou a enfiá-las
no bolso, e apenas a casa sossegou em silêncio, ali por volta da meia-noite,
saltou pela janela com os arreios e a mala à cabeça, foi ao pastinho fechado,
selou a besta e tocou para a cidade, ao belo clarão da lua que despontava.
***
Nem bem
se perdera ao longe o estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo
tropel de animal soou no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do
lombilho abaixo e em três tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão
nos beiços apinhados tocou-o para o campo.
— Diacho!
minha janela aberta! — murmurou consigo. — Melhor! entro sem precisar bater e acordar
os velhos a esta hora.
E,
agarrando-se com o braço direito ao peitoril da janela, saltou para dentro,
levando na outra o lombilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a
janela, que o frio não era graça.
***
À alta
madrugada, quando começava a amiudar o canto dos galos, dois vultos,
cautelosos, sorrateiros, surdiram do interior da saleta da frente; um deles, o
mais alto impeliu de manso a porta, apenas cerrada, e penetrou no quarto.
Da cama,
ao fundo, ouvia-se a respiração compassada e forte de um bom sono ferrado.
Aproximou-se o vulto, guiado pelo resfolegar do que dormia e pela tênue
claridade que vinha da saleta, onde o outro vulto, agachado e trêmulo,
sustentava e velava com a mão encarquilhada um candeeiro de azeite.
Súbito,
no silêncio da habitação, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma,
duas, três, muitas, regulares a princípio depois desatinadas.
— Anda!
traze a luz! — estertorou uma voz estrangulada.
Entrou no
quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa.
Apenas a
luz bateu na cama, numa horrível massa de roupas e carnes ensanguentadas, dois
gritos sufocados misturaram o seu horror:
— O
Jequim!!!
— O
filho!! O meu rapaz!!
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