
O Romantismo e a primeira geração romântica
Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Tivesse o príncipe regente de
Portugal, logo depois rei D. João VI, o propósito de preparar o Brasil para a
independência, não haveria porventura procedido tão atilada e eficazmente. Por
uma série de medidas econômicas e políticas, mal chegado ao Brasil havia ele
começado a reforma completa do velho regime colonial, naquilo justamente que
mais devia concorrer para despertar nos brasileiros o sentimento da sua
personalidade e importância e lhes acoroçoar veleidades porventura latentes de
autonomia e emancipação. A autonomia nos dera de fato a transplantação da
realeza para cá, a elevação do Brasil a reino e a ereção do Rio de Janeiro em
capital da monarquia portuguesa. A emancipação surgiria do conflito dessa
autonomia com a insensata contrariedade que lhe criou a reação recolonizadora
portuguesa.
Da geração que testemunhou,
acompanhou e até fomentou ou promoveu os sucessos da nossa independência
política, surgiu um seleto grupo de homens de estudo e letras que lhe
completaram o feito insigne, dando à recente nação o abono indispensável da sua
capacidade de cultura. É esse grupo que, sob o aspecto literário, chamo a
primeira geração romântica, quero dizer os escritores que, influenciados pelo
Romantismo europeu e seguindo-lhe aqui os ditames, apareceram de 1836 em diante
e cuja atividade se dilatou por um quarto de século.
Além de Monte Alverne
(1784-1858), que foi de algum modo um precursor do movimento como o mais
escutado preceptor filosófico dos seus principais fautores, e de Magalhães, o
seu iniciador, mormente constituem essa geração intelectual, Porto Alegre
(1806-1879), amigo e êmulo de Magalhães; Teixeira e Sousa (1812-1861); Pereira
da Silva (1817-1898); Varnhagen (1819-1882); Norberto da Silva (1820-1891) e, o
maior deles, Gonçalves Dias (1823-1864). Outros nomes podiam alongar esta
lista, nenhum, porém, com a significação e importância de quaisquer destes.
Distingue-se esta geração pela
versatilidade dos talentos, variedade da obra e propósito patriótico da sua
atividade mental. Quase todos eles, senão todos, são poetas, dramaturgos,
novelistas, eruditos, críticos, publicistas, e Porto Alegre será demais pintor
e arquiteto. No seu ardor pelos créditos intelectuais de sua pátria, parecia
quererem completa a sua literatura; que se não limitasse, como até então, quase
exclusivamente à poesia.
Quando todos eles se faziam
homens, o cônego Januário da Cunha Barbosa, que com grandes créditos de
literato e orador sagrado vinha da geração anterior, zeloso dos interesses
mentais da novel pátria, fundou com outros letrados e homens de boa vontade o
Instituto histórico, geográfico e etnográfico brasileiro. Com a publicação do Parnaso Brasileiro (1829), foi este o
melhor serviço prestado por Januário Barbosa, não só às nossas letras, mas à
nossa cultura. Teve o Instituto histórico, em verdade, o papel de uma Academia
que, sem restrições de especialidades, se abrisse a todos as capacidades
nacionais e a todos as lucubrações por pouco que interessassem ao Brasil. E
assim, de propósito ou não, deu ao movimento espiritual que se aqui operava uma
base racional no estudo da história, da geografia e da etnografia do país,
compreendidas todas largamente. Os principais românticos foram todos seus
sócios conspícuos e colaboradores da Revista
que desde 1839 começou o Instituto histórico a publicar trimensalmente. A todos
os literatos brasileiros do tempo serviu esta instituição de traço de união e
confraternidade literária e de estímulo.

Ao contrário do que até então se
passava, a educação literária da maioria dos escritores dessa geração se fizera
aqui mesmo. Por desgosto da metrópole, entraram a abandonar-lhe a escola, até
aí assídua e submissamente frequentada. Falavam, pois, a língua que aqui se
falava, e naturalmente a escreviam como a falavam, sem mais arremedo do
casticismo reinol. A que escreveram, e não é por ventura este um dos seus
somenos méritos do ponto de vista da nossa evolução geral, mérito que avultará
quando de todo nos emanciparmos literariamente de Portugal, não é mais a que
aqui antes deles se escrevia. É outro o boleio da frase, a construção mais
direta, a inversão menos frequente. Usam mais comumente dos tempos compostos
dos verbos, à francesa ou à italiana. Refogem ao hábito clássico português de
nas suas orações de gerúndio começá-las por ele. Colocam os pronomes oblíquos
segundo lhes pede o falar do país e não conforme a prosódia portuguesa, que
entra então a ser aqui motivo de chufa e troça. Usam de extrema e até abusiva
liberdade no colocá-los. Dão maior extensão a certas preposições. A forma do
modo finito seguido de um infinitivo com preposição à maneira portuguesa,
preferem a do infinito seguido de gerúndio. E propositadamente, ou
propositalmente, como escrevem segundo aqui soa, empregam vocábulos de origem
americana ou africana, já perfilhados pelo povo. Aceitam as deturpações ou
modificações de sentido das formas castiças aqui popularmente operadas, e
começam a dar foros de literários a todos esses vocábulos ou dizeres, de fato
lidimamente brasileiros e para nós vernáculos, por serem de cunho do povo que
aqui se constituía em nação distinta e independente. São, entretanto, parcos de
estrangeirismos, quer de vocabulário, quer de sintaxe. O fundo da língua
conserva-se neles mais puro, embora sem afetação de casticismo. Sua linguagem e
estilo são por via de regra nativos, infelizmente até sem as qualidades essenciais
à boa composição literária. Sempre crescendo e avultando segue esta maneira,
que começou com eles, até depois da segunda geração romântica. Só na segunda
fase do que chamamos modernismo, com a introdução dos estudos filológicos
segundo o seu novo conceito, e da sua reação sobre o da língua nacional,
consoante os mesmos programas do ensino oficial entraram a chamar à nossa,
inicia-se aqui um movimento em contrário àquela indiferença pelo apuro desta.
Começa-se então a fazer timbre de escrever bem segundo os ditames gramaticais e
os modelos chamados clássicos. A mesma crítica, que até aí descarava este
relevante aspecto da obra literária, principia a prestar-lhe atenção e a
notá-lo, ainda quando ela própria o desatende. Não sei quem ao cabo tem razão.
Foi mais firme já o meu parecer da necessidade de conservarmos o português
castiço estreme quanto possível nas modificações que o seu novo habitáculo
americano lhe impõe. Começo a convencer-me da impossibilidade de tal propósito.
Não o poderíamos realizar senão artificialmente como uma reação erudita, sem
apoio nas razões íntimas da mentalidade nacional e com sacrifício da nossa
espontaneidade e originalidade. Nem teria tal reação probabilidade de
definitivamente vingar numa população que será amanhã de muitos milhões,
originariamente de várias e diversas línguas. Não se pode admitir que a gente
brasileira se submeta a uma disciplina linguística de todo oposta aos instintos
profundos das suas necessidades de expressão determinadas pela variedade de
seus falares ancestrais e pelas exigências imediatas da sua situação social e
moral.
Apenas a literatura não deve
esquecer que ela é, sobre o aspecto da expressão, uma força conservadora. Sem
oferecer resistência caprichosa e desarrazoada à natural evolução da língua que
lhe serve de instrumento, cumpre-lhe não se lhe submeter enquanto os seus
resultados não tiverem a generalidade de fatos linguísticos indisputáveis. A
intromissão inoportuna da literatura nessa evolução, sobretudo para lhe aceitar
indiscretamente todas as novidades inventadas com pretexto dela, não pode senão
prejudicá-la naquilo que justamente é importante da sua existência, a sua
faculdade de expressão. Se ela, porém, por outro lado, se ativesse
rigorosamente ao casticismo português, no genuíno sentido deste vocábulo, o
brasileiro acabaria por ficar alheio aos seus escritores e estes aos seus
patrícios, por motivo da descorrelação entre a língua falada por uns e a
escrita por outros.

Também o segredo da popularidade
persistente dos poetas da segunda geração romântica não está somente em que
eles foram os de mais rico e sincero sentimento que jamais tivemos, mas em que
o exprimiram numa língua e forma poética ao alcance de todos, sem artifício de
métrica nem arrebiques de estilo. O mesmo acontece com os principais
romancistas dessa fase. Macedo e Alencar, como o documentam os registros da
Biblioteca Nacional e vos informarão os livreiros e mais que tudo o provam as
suas constantes reimpressões, continuam a ter mais leitores do que os
romancistas de hoje, apesar de não terem por si os reclamos do noticiário
camaradeiro e das parcerias de elogio mútuo.
Os nossos escritores da primeira
geração romântica, se não menos artistas, são também em suma menos artificiosos
que os do mesmo período em
Portugal. A sua arte literária, quando a têm, é ingênua e
canhestra, o que lhes dá ao estilo algo, não de todo desagradável, dos primitivos.
Com exceção do pomposo Porto Alegre e de certos poetas menores, como Norberto
em algumas das sua infelizes tentativas épicas e dramáticas, os melhores deles
escrevem se não singelamente, o que parece incompatível com o nosso gênio
literário, todavia em estilo menos torcido e enfático que o geral da
ex-metrópole, e do qual não escaparam no mesmo período os melhores dali,
porventura com a única exceção relevante de Garrett. Esta relativa simplicidade
é uma das virtudes mais estimáveis dos bons poetas da segunda geração
romântica. Pecam, entretanto, os de ambas estas gerações pelo excesso de
sentimentalismo e de romanesco que, principalmente na ficção em prosa, roça
neles pela pieguice e pelo amaneirado do pensamento e da expressão. Não tem
ainda as preocupações de forma que chamamos de artísticas. E não eram desses
artistas natos da palavra escrita que, sem intenção nem rebusca, acham a forma
excelente. Apenas Gonçalves Dias na maior parte da sua obra, e Porto Alegre no
seu tão mal julgado quanto desconhecido Colombo,
e alguma vez na sua prosa característica, a encontraram. Porto Alegre, cujo bom
gosto era menos apurado que o de Gonçalves Dias, prejudicou-se no entanto pela
sua inclinação bárbara, mas muito da índole literária nacional, ao pomposo e
reluzente do estilo e ao rebuscado do pensamento e da forma.
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