10/26/2018

O Tesouro (Conto), de H. G. Wells


 O Tesouro

O barco aproximava-se da terra. A baía ia-se alargando e um recorte de espuma branca, que banhava os rochedos da margem, marcava o ponto em que o pequeno rio se lançava no mar. Uma linha de verde mais escuro indicava seu curso sinuoso, desde a encosta assaz distante.

A floresta chegava até a beira da praia. No horizonte, em vago contorno semelhante ao das nuvens, erguiam-se montanhas que, assim de longe, tinham o aspecto de ondas congeladas.

O mar era calmo: um marulho apenas perceptível. No céu estrelas rutilavam.

O barco parou. Um dos remadores disse, estendendo um braço:

— Deve ser por aqui perto.

O outro homem, sentado à proa, examinava atentamente a margem. Tinha sobre os joelhos uma folha de papel amarelecido pelo tempo.

— Venha ver isto, Evans respondeu ele afinal.

Falavam em voz baixa. O que se chamava Evans atravessou, cambaleando, o barco e por cima do ombro do seu companheiro olhou.

Sobre o papel estava grosseiramente traçada uma espécie de mapa com dizeres, que mal se podiam ler, e um desenho em que podia-se distinguir vagamente, a traço de lápis quase apagado, o desenho da baía.

Pousando um dedo sobre esse papel, Evans disse:

— Aqui, são os recifes de coral; além, a baía.

— É isso mesmo. E esta linha caprichosa é o rio. Se eu agora pudesse beber um pouco d'água seria capaz de um arranco... O lugar deve ser este aqui, marcado por uma cruz.

— Sim. E veja esta linha ponteada: vai da embocadura do rio direito a um bosque de palmeiras. A cruz está justamente no ponto em que a linha corta a corrente. Teremos de assinalar o local quando entrarmos no estuário.

— Mas— perguntou ainda Evans após um silêncio — que significam estes riscos? Dir-se-ia a planta de uma casa, de uma edificação qualquer. Também não compreendo o que podem significar estes tracinhos aqui dirigidos num e outro sentido. E estes rabiscos...

— Isso é escrita chinesa.

— Naturalmente, visto que ele era chinês.

— Eram todos.

Os dois homens ficaram imóveis durante alguns minutos, examinando com atenção a terra. O barco derivava lentamente.

— Bem; agora cabe a você remar — disse Evans.

Hooker dobrou o mapa, sem se apressar, meteu-o na algibeira, passou com precaução para o lugar de Evans e tomou os remos. Seus movimentos eram lânguidos, como os de um homem que está a cabo de forças. 

O outro, sentado, fitava com os olhos semicerrados a espuma do recife de coral, que parecia aproximar-se. Embora estivessem quase a alcançar o tesouro não se sentia exaltado. A tensão nervosa necessária à luta em que se tinham apoderado do mapa e depois aquela longa viagem à noite, sem víveres, sem água... tudo isso tinha-o fatigado a tal ponto que ele se sentia agora incapaz de uma sensação nova. Tentou recobrar a energia concentrando sua imaginação sobre as luzentes barras de ouro de que os chineses haviam falado. Mas seu espírito recusava-se a reconstruir a visão, que o havia deslumbrado no primeiro momento, e o ruído monótono do mar dava-lhe uma sonolência irresistível.

E naquela semi-inconsciência reviu mais uma vez a noite em que Hooker surpreendera o segredo dos chineses.

Fora em uma clareira do pequeno bosque, uma clareira que a lua iluminava fortemente. Os três celestes estavam agachados em torno de uma pequena fogueira de modo que suas silhuetas apareciam vermelhas de um lado pelo fulgor das brasas e prateadas do outro pelo luar.

Hooker, que estivera por muito tempo em Shangai e compreendia melhor o chinês, fora o primeiro a perceber o sentido geral da palestra e fizera-lhe sinal para prestar ouvidos.

Então haviam compreendido que se tratava de um tesouro: um galeão espanhol vindo das Filipinas naufragara ali e sua tripulação enterrara no litoral o carregamento de ouro que trazia, com a esperança de vir buscá-lo mais tarde. Mas depois, buscando terra habitada em barcos pequenos, tinham morrido todos no mar, ou perdidos nas ilhotas áridas dos arredores. O tesouro ali ficara ignorado, durante dezenas de anos, até que um dos três chineses, Chan-Li, descobrira-o por acaso.

E era Chang-Li quem agora revelava o segredo a dois compatriotas para que juntos fossem buscá-lo em benefício de uma misteriosa empresa revolucionaria, insistindo em afirmar que o ouro estava em absoluta segurança porque seria impossível encontrá-lo sem o roteiro ou mapa, que traçara e ali tinha em seu poder: sem esse roteiro e sem sua presença.

Imaginem a impressão que poderia causar semelhante conversa, caindo em ouvido de dois ingleses sem recursos, que tinham deixado todos os escrúpulos em aventuras de todo o gênero pelo vasto mundo...


O sonho de Evans precipitou-se e ele viu-se no momento em que agarrara Chang-Li pelo rabicho. O chinês tentara resistir; depois vendo-se perdido, começara a vociferar ameaças terríveis, afirmando e jurando que mesmo depois de o terem massacrado de terem deitado mão ao itinerário não haviam de alcançar o ouro, pois morreriam antes disso!

Tolices! O idiota queria impressioná-los.

Um choque brusco despertou Evans. Tinham chegado à entrada do estuário e Hooker explicava:

— Ali estão as três palmeiras. O lugar dever ser na direção daquele arvoredo. É seguir em linha reta das palmeiras ao arvoredo e encontraremos o ouro no ponto em que essa linha corta o rio.

Porém, Evans mal ouvia. O tormento da sede tornara-se alucinante. Curvou-se sobre a borda da embarcação e apanhou a água, que cuspiu com fúria. Ainda era salgada.

— Vamos seguindo — rosnou ele em tom de súplica exasperada. — Enquanto não alcançarmos o rio, não conte comigo para coisa alguma. Estou morrendo de sede.

Hooker começou a remar, mas seus movimentos pareciam-lhe de uma morosidade intolerável. Tomou-lhe os remos e bracejou com fúria. Agora era Hooker quem se curvara à proa e, de instante a instante, provava a água, sacudindo a cabeça com desespero.

Quando, afinal, a água tonou-se boa, Hooker não teve tempo para pronunciar uma palavra. Apenas avisou ao amigo com um gesto e começou a beber com ânsia.

Depois, renovados de ânimo, procuraram um lugar onde desembarcassem mais próximos do grupo de palmeiras a fim de alcançar a linha ideal, que devia conduzi-los ao tesouro.

Saltaram. Levavam, para abrir caminho no mato, apenas um remo — largo e pesado — e um machado nativo, em forma de L, com uma pedra polida na extremidade.

Começaram a rasgar uma vereda através de um emaranhado de cipós e bambus. Os primeiros passos foram penosos, mas em pouco entraram numa região de árvores mais espaçadas e maiores. Tiveram sombra, encontraram frutas...

Mas, de súbito, tiveram uma surpresa alarmante, encontrando-se diante de outro caminho aberto no mato, certamente um atalho, que evidentemente era obra humana e não tinha muito tempo.

Seguiram por ela com precauções, de olhos abertos e mãos crispadas sobre as improvisadas armas.

Mais alguns passos e viram entre os troncos um largo filete d’água brilhante ao Sol nascente. Era o rio.

— Devemos estar perto — disse Hooker com voz fraca.

E o coração batia-lhe no peito com força. De um lado, havia um charco imenso e traiçoeiro, em que Evans chegou a enterrar-se até os joelhos, contendo as pragas pela preocupação de que podia ser ouvido; do outro, a vegetação muito espessa desafiava os esforços de dois homens. Diante deles, abria-se misterioso e sombrio o atalho, que não podia ser o caminho de Chang-Li, porque ele estivara ali cinco anos antes. A uberdade prodigiosa daquele solo não deixaria aberto um caminho há tanto tempo no meio da floresta. Alguém passara por ali meses antes. Dias antes, talvez.

Observando atentamente o rio, os dois aventureiros notaram que, à esquerda, uma pequena cachoeira assinalava a curva, a curva junto à qual deveria estar o tesouro.

— Quer-me parecer que nos desviamos um pouco da linha reta.

— Não — afirmou Evans.

Mas não teve coragem de acrescentar que se julgava no bom caminho, porque aquele era o caminho que o outro seguira, o outro antes deles.

Caminharam mais um pouco. O atalho terminava em uma clareira. O rio estava a dois passos.

Devia ser ali. Olharam em torno. O terreno estendia-se pantanoso e acidentado.

— Onde estará? — perguntou Hooker, volteando devagar.

Chang-Li falara em pequenos montes de pedras.

Fitaram-se profundamente, com olhar cheio de recordações sangrentas, e voltaram a observar o solo.

— O que será aquilo? — Evans exclamou, de súbito, estendendo o braço.

Hooker olhou naquela direção e viu alguma coisa azul.

Subiram a um montículo a fim de observar melhor e distinguiram um braço, que saía do solo, com a mão crispada... Adiantaram-se rapidamente. A manga que cobria esse braço era de lã azul. O morto era um chinês: estava hirto, horrivelmente contorcido, meio enterrado em uma escavação apenas começada.

Os dois aventureiros curvaram-se em silêncio, observando aquele cadáver de mau agouro, que tinha ao lado uma enxada de formato chinês e várias pedras espalhadas.

— Maldição! — resmungou Hooker. — Então não era apenas Chang-Li quem conhecia o segredo.

Evans empalideceu e começou a desfiar todo o medonho repertório de pragas que aprendera na África e na Austrália.

Seu companheiro, mais calmo, ajoelhou-se atento e notou que o morto tinha o pescoço, os pulsos e os tornozelos muito inflamados. Depois, examinando a escavação, deu um grito de alegria.

— Eh, Evans! Não foi nada. Tudo vai bem. O ouro ainda está aqui. Esse idiota não chegou a levar coisa alguma.

Evans curvou-se também e, na meia-luz da clareira, distinguiu umas barras amarelas, que apareciam ainda envoltas em terra.

Então, atirou-se numa ânsia febril, afastando a terra com as mãos. Um espinho feriu-o no dedo. Ele o arrancou com as unhas e continuou extraindo barras de metal do chão.

À primeira que que conseguiu levantar, exclamou com expressão triunfante:

— Apenas o ouro e o chumbo podem pesar assim!

Entretanto, Hooker parecia intrigado com o aspecto do chinês morto e murmurava:

— Este canalha veio apenas com um dia de avanço sobre nós. Não há decerto nem vinte e quatro horas que está morto. Mas de que teria ele morrido? Quer me parecer que foi picado por alguma serpente excepcionalmente venenosa. Em todo caso, resta saber como diabos ele conhecia o lugar do tesouro.

Porém, Evans nem o ouvia. Que importa um chinês morto, quando se tem à mão uma barra de ouro?

— Mas que trabalheira! — exclamou ele, com um riso nervoso e irresistível. — Se cada uma das barras pesa tanto como esta, vamos ter que carregá-las uma a uma. E mesmo não poderemos conduzir todas numa só viagem com uma canoa tão pequena.

Tirou casaco, abriu-o no chão e depôs dentro dele a primeira barra de ouro. Quando ia apanhar a segunda, um novo espinho feriu-o na mão. Não se importou com isso e atirou uma terceira barra de ouro dentro da roupa.

— Pronto! — exclamou. Isto é o máximo que podemos carregar numa viagem. Toca a andar.

E, vendo que Hooker continuava imóvel diante do chinês morto, teve um movimento de mau-humor.

— Ó, homem! Você está magnetizando esse defunto? Vamos com isso!

Hooker voltou-se tão pálido que também parecia morto.

—É muito esquisito — disse ele. — Muito esquisito. De que teria morrido esse homem, santo Deus?

— Ora, adeus! Morreu e acabou-se — disse Evans brutalmente. — Também nós haveremos de morrer um dia.

— Mas eu acho esses sintomas esquisitos...

— Ora, não me aborreça! Deu agora para estudar medicina?

— Cale-se! — murmurou o outro. — Em tudo isto, há indícios que me assustam.

— Pois sim; porém nós viemos aqui para carregar ouro e estamos perdendo um tempo precioso. Vamos levar estas barras até o barco. Se andarmos ligeiro, podemos fazer quatro viagens antes da noite.

Hooker não se moveu. Parecia refletir e o seu olhar inquieto observava as árvores dos arredores. Voltou a olhar o rosto disforme do chinês morto e estremeceu violentamente.

Evans impacientava-se.

— Vens ou não vens?

Hooker agarrou duas pontas do casaco, Evans levantou as outras duas e puseram-se a caminho.

Mas, ao fim de alguns passos, Evans cambaleou e detendo-se, disse:

— Não sei o que é isto. Estou sentindo uma aflição!... Uma dor leve nos braços... uma espécie de cansaço torturante...

Hooker fitava-o com os olhos dilatados por um pavor intenso.

— O que é que você está sentindo? — perguntou ele com a voz estrangulada.

— Não sei — murmurou Evans.

Deixou cair o casaco e, encostando-se a um tronco de árvore, passou a mão pela testa, gemendo:

— Que aflição!

Tentou segurar-se ao tronco, mas suas mãos pareciam entorpecidas e ele resvalou, caiu e ficou estendido no solo com o corpo horrendamente estorcido, arquejando...

Então Hooker viu que o pescoço e os pulsos do companheiro começavam a ficar avermelhados.

Essa constatação causou-lhe tamanho choque que ele sentiu as pernas sumirem sob o corpo e caiu de joelhos, apoiando as mãos sobre as barras de ouro.

Mas logo ergueu-se num salto. Sentira um espinho, oculto na terra agarrada às barras de ouro, picar-lhe a ponta de um dedo. Com um rugido abafado e trêmulo, olhou para o ferimento e ficou gelado de horror.

— Deus!

Foi essa a única palavra. O espinho longo e muito fino ele bem conhecia. Era um daqueles que os nativos dakays usavam em suas sarabatanas e cujo veneno não perdoa.

O olhar de Hooker vagueou em torno. Evans continuava imóvel, contorcido, e sua boca muito aberta parecia sorver inutilmente o ar. A pequena distância a mancha azul assinalava a mão do chinês, que parecia chamá-lo.

Hooker compreendia agora por que razão Chang-Li insistia em afirmar que o tesouro estava em segurança, que só ele poderia buscá-lo sem perigo. Compreendia agora o ricto zombeteiro de sua boca quando Evans lhe esmagava a cabeça a pauladas.

— Evans!

Seu grito foi inútil. Agora, o companheiro manifestava vida apenas pelo pequenino tremor que lhe movia os pés.

Em torno, era silêncio completo.

Hooker levou o dedo à boca e começou a chupar o ferimento com a ânsia que lhe cavava o peito. Mas já sentia uma dormência em todo o braço e tinha dificuldade de dobrar os dedos.

Então compreendeu que a sucção era inútil e, num desânimo completo, deixou-se cair, sentado ali mesmo, entre Evans já semimorto e o ouro, que já não lhe merecia a atenção. Encostou os ombros ao tronco da mesma árvore a que o seu companheiro se agarrara e ajeitou-se bem para morrer assim.

A careta macabra e triunfante de Chang-Li não lhe saía da memória. A dor surda ia-se estendendo dos braços aos ombros e ao pescoço, tomava-lhe a garganta com a intensidade que aumentava a cada instante.

Felizmente, uma sonolência invencível também vinha pouco a pouco, e o desgraçado teve a esperança de ficar insensível antes de morrer.

Em cima, o vento começou a zunir com força, desfolhando grandes flores azuis, que ele não conhecia, e que caíam esvoaçando como flocos de neve.


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Notas:
Tradutor desconhecido.
Conto publicado originalmente na revista “Eu Sei Tudo - Magazine Mensal Illustrado”, edição nº 5, de outubro de 1917.

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