A Choca
(Ao Senhor Emídio Navarro)
Aquela tarde, a Choca recolhera ao
poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de
ouro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e
lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no
velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam,
debaixo da asa materna.
Eles mesmos tinham estranhado
recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das
outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo,
metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três
dias a essa operação que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam
muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas,
fora o mesmo que nada, – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia,
essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer,
afligia-a como se fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro,
gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.
Ai, eram bem felizes, essas! Pelo
buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do
recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil,
alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia
entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já não sabia o
que era comer; – e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água
que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de
saciado, cair do biquinho como uma pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que
era muita a gosma, e não podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante
para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais
para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua
fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas
rivais, ralhos, intrigas, combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos
bebedouros, ela mesma se namorara da sua figura
esbelta, muitas vezes; – e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos
que a tinham amado, e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam
o seu amor dos poleiros à roda, – adivinhara-o na inveja das outras, esse
prestígio mágico da sua beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já
velho, – e, como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o
enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e
trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não
tardara a recolher-se também. Sutil, passara, sumira-se ao fundo na sombra
densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites,
numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também,
– quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver
recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez,
como a agonia do seu velho amor?!
Pelo que respeitava às companheiras,
as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da
mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e,
sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa
companheira; e tirante algum fogacho de gênio por amor dos filhos, se tinha de
os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro;
– e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os
frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado!
Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem
paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem
talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se
aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e
embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus
pequeninos, – e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando…
***
À boca da noite, as galinhas todas
haviam-se já recolhido; e alguém, de fora, tapara com uma pedra o buraco do
poleiro. Esse alguém fora ainda vê-la um instante enquanto as outras comiam,
mas retirara-se muito triste; e agora, na quase escuridão do poleiro, pouco a
pouco se estabelecera o silêncio, e por fim já se não via nada.
Decorria o tempo, mas dormir não
podia, a Choca; e, opressa da
gosmeira tenaz, afligia-a, mais do que a doença, ora a imobilidade a que se
votava por amor dos seus pequeninos, ora esses abalos irreprimíveis de todo o
corpo, quando algum acesso mais forte a sacudia.
Estava então muito doente, a Choca, e ia talvez morrer! E todavia ela
fora toda a sua vida muito prestante, para merecer à sorte um sofrimento
daqueles: – e esse mesmo nome de Choca, muito parecido, afinal, com uma
alcunha, vinha-lhe das muitas ninhadas que havia chocado, cada uma das quais –
e não tinham conta! – lhe havia custado uma doença. Febre que era mesmo lume,
nessas três semanas de choco, tantas vezes repetidas; e depois, nas
convalescenças esses mil cuidados com os seus pequeninos, para os alimentar,
para os guardar, para os ensinar...
Episódios, alguns tinha a sua
biografia, e certos deles muito heroicos; e aflições então não tinham conta!
Certo ovo de pata que ela chocara, deitara um monstro cá para fora; e aquela
vez que o viu entrar numa ribeira, – tremendo por ele como por um filho, posto
que lhe segredasse a natureza que o não era, a aflição ia-a matando, com a
ideia de que se lhe afogava! Depois, quando o viu boiar, que alegria!
Outro se lhe afogara, de outra vez,
mas esse era bem seu filho. Descuido, fora-se a beber pia e lá ficara; e ela,
entretida com os mais, quando deu pela falta e o procurou, e quando o procurou
e o achou morto, ia endoidecendo com a aflição!
Querelas com as vizinhas eram a toda
a hora, se concorriam ao que esgravatava, para ela e para os seus; – e agora,
prestes talvez a expirar, pesava-lhe na memória uma grande culpa: essa bicada
feroz com que matara um pintainho estranho, de uma vez que o pobrezinho, que
tinha a mãe também doente, viera, humilde, debicar-lhe no peito à cata de um
grão, ali guardado, como num celeiro, para os que eram dela! Disso pediria ela
perdão a Deus; e isso mesmo, em verdade, não fora por querer, e remira-o, pela
vida adiante, com muita obra de caridade.
De resto, cumprira na sua vida todos
os seus deveres, e muitas vezes, muitas, deixara de comer, inclusivamente, para
que os seus não tivessem fome. Se se lhe extraviavam, procurava-os, – e aquele
que uma vez não apareceu, mais a enfrenesiara, para toda a vida, no ódio aos
gatos, que tratara sempre, desde esse dia, como inimigos, – e disso não se
arrependia.
Chuvadas que no campo havia
apanhado, dir-se-ia até que lhe sabiam bem, com os seus filhinhos abrigados
debaixo das asas; – e se eriçava as penas e arrastava as asas, à vista de
certos cães, viera-lhe isso do que ouvira de alguns, que eram traiçoeiros e
comilões, – mas vivera em paz com a maioria.
Em suma, para defender os seus
filhinhos, nunca fugira, nem mesmo do homem, e a alguns se atirara com bico e
unhas; – e pelo que tocava às raposas, muitas a haviam conhecido, mas de longe...
***
Mas o que não melhorava, coitada,
era a sua gosma! Cansada já de sofrer, ainda por cima sentia-se pior, com o
frio da noite! Não tardariam os galos a cantar, – e sentia que o rom-rom da
gosma, e os acessos que tinha às vezes, e que pareciam tosse, não tinham
deixado pregar olho, lá cima, ao companheiro... Má noite, também, para os seus
pequeninos; mas os inocentes, cansados e mal comidos, ainda bem que iludiam a
fome com o sono que era fadiga...
Entretanto, pela noite velha, entrou
com ela um tremor de frio. A gosma sufocava--a; – e ela já sentia, um daqui,
outro dali, mexerem-se inquietos os seus pequeninos. Ainda não luzia o buraco;
mas lá fora, disseminados, ouviam-se já cantar os galos. – “Que é da sua força?
que é da sua alegria, que já para ela não tinha encantos, essa alvorada?...” –
Coitada, o frio apertava com ela; e uns debaixo de uma asa, e outros doutra,
alguns já desabrigados, sentia os filhinhos tremerem com frio, muito inquietos,
na escuridão ainda cerrada...
– Ah, se ao menos o dia nascesse!
Mas eis que certas intermitências
dos sentidos sobrevinham à pobre da Choca! Não dormia, decerto, aquilo não era
sono; mas a memória já se lhe apagava, esvaía-se-lhe a luz do instinto; e daí a
pouco já não sentia nada. – Inerte instantes depois; e por fim (cantou agora o
galo no seu poleiro!) veio-lhe um espasmo e caiu na morte...
A esse tempo aclarara a manhã; – e
sobre o corpo tépido da mãe, que na própria morte ficara dócil, enovelavam-se
agora, piando, os pobres dos pintainhos!
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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