6/05/2019

A primeira tempestade (Conto), de Ramalho Ortigão


A primeira tempestade
(Confidências de um anônimo)

 Havia um ano que eu estava casado. Essas doze luas de mel tínhamo-las passado no campo em uma casa encantadora, propriedade de minha mulher, situada ao pé de um lago, rodeada de uma daquelas florestas de abetos, que são a mais bela árvore das montanhas. O andar térreo abria em vidraças sobre os jardins cercados de uma granja. Proporcionavam-se-nos excelentes caçadas ao cabrito e partidas de pesca no lago. A nossa carruagem era puxada pelos mais sólidos trotadores de Meclemburgo. Minha mulher tinha um burrinho lazão com alforjes de lã encarnada aos listões pretos, no qual ela percorria a aldeia levando pequenos enxovais às crianças pobres. A nossa paisagem era cheia dos doces murmúrios da água, do canto das aves nas sombras e do mugir dos bois, ao fim da tarde, à porta dos currais de esguios tetos de colmo cobertos de pombos. Nos apartamentos da casa ondulavam em grossas pregas moles os estofos confortáveis. Tínhamos quadros originais de Wilmens, de Meissonier e de Knauss, e ótimos livros na nossa biblioteca de antigo carvalho esculpido.

Não obstante ao fim do ano eu sentia-me ligeiramente aborrecido. Achava-me no período pletórico da felicidade. Experimentava como a vaga urgência de sangrar a minha pacificação doméstica. A permanência e a imobilidade do bem-estar engrossavam-me o paladar e davam-me tonturas.

Os meus amigos, que eu recebera como amáveis impertinências nos primeiros tempos do meu noivado, tinham deixado inteiramente de me visitar e até de me escrever. Na minha isolação, frente a frente com os encantos de minha mulher, os interesses do amor, que ninguém me contestava e que ninguém me desdizia, principiavam-me a parecer-se com as partidas de bilhar, que eu de quando em quando jogava comigo mesmo. Entravam a comer-me curiosidades burguesas de lojista retirado. Tinha enchido a casa de barômetros, de termômetros e de pluviômetros; sabia sempre de que lado estava o vento; mandara pôr no jardim uma meridiana com um pequeno obus, e todos os dias depois de almoço, entre o meu segundo e o meu terceiro charuto, ia acertar pelo sol o meu relógio e todas as pêndulas da casa; conseguira levar até mais de meio a leitura seguida da História Universal de Cantu, e — sintoma pavoroso — assinava os jornais — e lia-os!

Num dia em que o meu envilecimento, exacerbado pelas leituras que fazia de todos os anúncios, tinha chegado ao ponto de ter mandado comprar a revalescière Du Barry, minha mulher pôs-se a chorar à mesa do almoço. Ao rebentar-lhe o pranto, com os olhos em mim, tinha uma visagem tão linda e tão menineira, a sua pequena boca tinha feito um bico tão encantadoramente contristado, que eu ajoelhei-me aos seus pés, como quem tacitamente aceitava culpabilidade daquelas lágrimas, e perguntei-lhe o que sofria, beijando-lhe as pontas molhadas dos dedos.

Ela disse-me então que eu deixara de amá-la; que ela o certificava com a lógica terrível dos meus atos; que o amor verdadeiro, como o primeiro que lhe votara, tinha preocupações próprias, absolutas e indivisíveis; que eu começara por atraiçoá-la com os barômetros e os pluviômetros, em seguida com os cataventos e os para-raios, depois com umas cabras do Tibete, que tinham feito por alguns dias o encanto da minha existência; por fim — ó supremo vilipêndio! — com a revalescière Da Barry...

Parece que eu, em sonhos, ousara proferir com êxtase o nome impudico da infame revalescière! E já não acendia o meu segundo charuto para ir acertar o relógio à meridiana, sem ter comido meio prato daquela astuta farinha!

Desculpei-me, pus a mão no coração, fiz juras! Mandei encravar o obus da meridiana, cujo tiro obrigava brutalmente minha mulher a anunciar todos os meios-dias com um grito de susto, e distribuí a revalescière aos perus — com o que, posso atestar, nada aproveitaram aquelas aves, pois que tive o cuidado de as mandar pesar todos os dias enquanto as sujeitei a esse regime nutriente!

No fim de contas a verdade é que minha mulher tinha fundamentalmente razão. O delicado instinto do seu sexo tinha-lhe feito perceber na crítica do meu sentimento finuras de gradação, de cuja frivolidade os homens farão mal em rir.

Eu começava efetivamente a sentir, de tempos em tempos, às vezes de um modo confuso, especializadamente de outras vezes, a nostalgia do celibato. Comprazia-me na recordação das minhas aventuras, e sentia quase o desejo de as fazer entrar como outro qualquer assunto nas minhas conversações conjugais. Lembrava-me — não ouso dizer com saudade — mas sem repulsão, o interior litográfico dos meus pequenos quartos de hotel, a alegria de antigas ceias, os ruídos grosseiros da multidão, a saída dos teatros, o baile, a valsa, a intriga de amor, o jogo, o duelo, todo o cortejo da vida livre. E era em verdade pensando vagamente nestas coisas que eu principiava às vezes a dormir as pesadas horas que consagrava ao sono em cada noite.

Entretanto minha mulher entristecia. Eu engordava, o que me não impedia de começar a padecer do estômago. O meu médico aconselhou-me as águas de Homburgo, a mim, e a mudança de ar para qualquer parte a minha mulher.

A viagem agradava-nos. Tínhamos um pretexto para abandonar o lar doméstico, sem necessidade de confessarmos a nós mesmos que ele principiava levemente a enfadar-nos.

Homburgo sorria-me. No mês de Agosto, em que estávamos, Homburgo era um dos prazos dados à multidão elegante e alegre que eu sentia desejos de tornar a ver. Decidimo-nos por Homburgo e, em dois dias, partimos.

Passamos por Paris, onde os teatros estavam desertos e os salões fechados, e onde no Bois, em volta do lago, alguns estrangeiros, em carruagens particulares alugadas defronte do café Riche, se davam uns aos outros em espetáculo de um Paris excessivamente convencional.

No contato porém da gente com quem me ia achando em passagem fiz, a meu pesar, esta ridícula observação: que as mulheres principiavam a não dar por mim.


Ora eu não estava certamente na triste alucinação de querer fazer a corte a ninguém, e muito menos, à maneira de um commis en nouveautés, às senhoras com quem me encontrasse nas carruagens do caminho de ferro, nos passeios das ruas ou às janelas das casas! Estava também assaz longe de exigir que as meninas desmaiassem sob a fatalidade súbita da paixão, à medida da minha gravitação pelo orbe. Mas pelo menos — diabo! — que me vissem! — Porque, enfim, — seja-me lícito dizê-lo sob a modéstia do anônimo — em solteiro as mulheres viam-me, quando eu passava.

E queria-me parecer que depois de casado eu me não estava fazendo transportar pelo mundo tendo na testa o dístico de uma mercadoria tão frágil que nem se lhe pudesse embarrar — com os olhos! Supunha que nem eu nem minha mulher levávamos adiante de nós um cartaz em que se lesse em grandes letras com uma lanterna do outro lado: "Aqui vai neste par, segregada de toda a comunicação das gentes, a conjugação mística do verbo amar, pela activa e pela passiva, pronominal e recíproco!"

Não obstante não suceder literalmente isto, nem em Paris, nem em viagem até Homburgo, mulher alguma encontrou os seus olhos com os meus. E afirmo isto com tanta mais segurança quanto é certo que para me não escapar alguma exceção, reparei com grande cuidado em todas as criaturas!

Demônio! — pensava eu — como o casamento, e um ano de reclusão no fundo de uma quinta, nos transfiguram tão radicalmente! Quem sabe se eu não terei o ar apocalíptico de quem traz as tábuas da lei conjugal debaixo do braço? Quem sabe se, ao contrário daquele sábio que supunha ter encavalado no nariz um jesuíta que a outra gente não via, não terei eu no meu nariz uma verruga que só eu não vejo? E achava-me do mau humor mais abjecto e mais difícil de explicar.

Minha mulher, pelo contrário, ia expansiva e contente. Tinha-se esquecido do meu afeto clandestino à revalescière, e deixara mesmo de falar na salsa parrilha de Bristol, — último objeto dos desvarios do meu ócio no tabernáculo conjugal.

Chegamos finalmente a Homburgo e alojamo-nos num elegante hotel, em cujo terraço se via muitas vezes o rei da Baviera, tomando a sua chope entre a mais pitoresca e turbulenta concorrência de toda a espécie de estrangeiros.

Entre as pessoas do meu antigo conhecimento achava-se ali, hospedado como nós, Eduardo de B..., meu companheiro de colégio e antigo amigo dedicado, poeta, pintor, um grande artista e um excelente rapaz. Entre as mulheres encontrávamo-nos todos os dias com a célebre marquesinha C..., frequentadora encartada de todas as terras de águas, que ela percorria sozinha pelos verões, deixando admirar, à beira da água ou junto das fontes termais, onde se não esquecia nunca de fazer petrificar um ramo de camélias, as suas graciosas toilettes dos mais belos e frescos linhos da Irlanda, os seus fantásticos penteados, os seus chapelinhos tão invejados e a famosa coleção dos seus sticks.

Ora direi: a marquesa foi a primeira mulher do mundo que, depois da clausura do meu noivado, pareceu demonstrar que tinha uma tal ou qual ideia de que eu ainda existisse entre os viventes!

Por mais de uma vez mo deixou adivinhar até que eu evidentemente reconheci no seu sorriso, entre o esmalte úmido dos seus pequeninos dentes, o raminho de oliveira anunciador de que não estava inteiramente coberta para mim pelas águas do dilúvio a superfície da terra, na qual eu sobrenadava com minha mulher dentro da arca santa do casamento. Isto porém podia ser o resultado de uma alucinação passageira dos meus sentidos. A minha vaidade empenhada neste jogo precisava de um convencimento positivo.

Uma coisa confesso para tranquilidade das esposas que me lerem. Há um talento que nós, os maridos, perdemos ao cabo do primeiro mês do nosso ofício: é o talento de dirigirmos a uma mulher as primeiras palavras da corte que pretendemos fazer-lhe. Não sei verdadeiramente a razão porque isto sucede. Cuido que é a pressão de um certo ridículo sempre iminente e indefensável, o que em tais ocasiões nos suprime fatalmente a palavra. Porque enfim — não o escondamos — nesses casos felizmente excepcionalíssimos e anormais, a nossa posição é extremamente melindrosa. Uma só palavra, fina, delicada, bem afiada por um engenhozinho feminil, bate-nos em brecha do modo mais radicalmente desastroso. Suponhamos por exemplo — este é o caso mais simples, mais trivial, menos filho da astúcia do que do próprio acaso — suponhamos que nos lançam o nome de nossa mulher. Se todos os Mefistófeles que existem nos infernos não surgem nesse momento das profundezas da terra, como de um alçapão de teatro, a cruzarem os seus floretes satânicos em guarda ao nosso peito, estamos desde logo feridos de morte. Porque — das duas, uma — ou havemos de confessar ou havemos de desdizer a estima da nossa esposa. Se a confessamos, então, a lógica é que compremos meia dúzia de brioches em casa de Baltresqui, e que vamos para casa tomar chá com aquela que Deus nos deu para legítima companheira da nossa existência e do nosso chá. Se a desdizemos, se asseguramos que essa estima não existe, de quem é a culpa, de nós ou dela? Se a culpa é nossa, ficamos suspeitos de uma brutalidade repulsiva. Se a culpa é dela, confessamo-nos um marido atribulado — talvez batido! — o que é então de um ridículo lacrimoso.

Será talvez por eu não ter cultivado bastante este gênero de estudos, mas — declaro — ainda não achei meio retórico de resistir a semelhante contingência.

Sucedeu que uma vez, de repente, inesperadamente, me achei frente a frente com a marquesa, num ponto solitário da floresta, debaixo dos lilases. Cumprimentamo-nos, sentei-me ao seu lado num banco de cortiça. Era ao fim da tarde, ouvia-se o zumbir amoroso dos insetos no ar tranquilo, alguns rouxinóis cantavam nos castanheiros em flor. Nós, em voz baixa, no tom das meigas confidências, falamos das nossas dispepsias e da virtude das águas de Homburgo. Oh! meu Deus! como nós falamos daquelas bentas águas! Eu tossi... Sim! para que ocultá-lo? (Pondera, ó leitor, nesta passagem o que são os recursos de um marido que seduz!) Eu tossi... tossi duas vezes! e até — ó eterno pejo! — fiz confusamente com a ponteira da minha bengala alguns riscos na areia!

Por fim a marquesa tirou o relógio de entre dois botões do vestido, verificou que eram seis horas e meia e fomos jantar à table d'hôte do nosso hotel, onde minha mulher nos esperava...

Mal sabia ela, pobre inocente!...

Que — verdadeiramente — o que ela ignorava não era em absoluto uma coisa que, descoberta, houvesse de a tornar desgraçada para o resto dos seus dias...

Ainda assim eu, dominado por um orgulho feroz, tive remorsos!

E de olhos baixos, contrito, quase arrependido, esgotei taciturno, até à última colher, a sopa de tapioca que me tinham posto no prato.

No entanto a marquesa, a outro lado da mesa, descuidada, intemerata, comendo camarões e bebendo leite, palreava alegremente com os hóspedes que tinha junto de si, e falava do encontro que tivera comigo sob os lilases. Os seus companheiros riam, riam, riam! E diziam-lhe coisas que eu não podia ouvir. Senti-me vexado, porque evidentemente essas coisas eram muito mais interessantes do que o que nós ambos tínhamos dito em plena floresta no nosso banco rústico.

Ah! é um desafio isto?! Riem-se acaso de mim?!... Pois bem! Eu não falo... confesso-o... para que me hei de gabar do que não posso fazer?... Não é o meu gênero esse! — Mas escrevo. Eu também sei escrever. Percebeis, meus parvos?... Por isso mesmo vou escrever! Hei de escrever amanhã... E depois veremos quem é que ri!

Pois quê, minha linda marquesinha?! Eu sou então assim uma coisa, uma espécie de guarda campestre ou uma aia de meninos, de cujo encontro numa floresta a gente venha rir para a mesa redonda de um hotel, comendo-lhe camarões pelo meio e bebendo-lhe leite em cima ?!... Ora talvez que se engane.

Combinou-se nessa noite uma partida de prazer, nos campos, para o dia seguinte. Partiríamos a cavalo do nosso hotel, às dez horas da manhã. Deveríamos almoçar na relva e fazer depois uma ascensão a pé a uma montanha, onde havia as ruínas de um castelo roqueiro, com heras, legendas da idade-média e cegonhas. Todos os que estavam à mesa subscreveram a esta excursão. Minha mulher estava radiante de prazer.

No dia seguinte levantei-me cedo e vim passear para o terraço, sozinho, com as mãos atrás das costas e o meu binóculo ao tiracolo. Os meus pensamentos eram terríveis. Não sei se por adivinhar na minha fisionomia o que se passava no meu cérebro, um criado perguntou-me se queria tomar alguma coisa. Pedi-lhe papel e tinta. As janelas do quarto de minha mulher davam para outro lado da casa. Sentei-me a uma mesa de ferro e escrevi uma carta à marquesa.

Esta carta, se não tivessem de me ler senão mulheres e homens casados, transcrevia-a aqui. Não teria medo que ma copiassem. Mas, como podem também ler-me os solteiros, os que namoram, os que seduzem, não! Não há de ser com cera dada por mim que eles hão de fabricar as suas velas. Quereis cartas ternas, eloquentes, originais, decisivas, que fiquem, que se decorem? Escrevei-as, que eu não estou aqui para secretário de amantes, nem para pedicuro de erros de ortografia! A carta — francamente — ficou boa. Eu nem toda a minha vida passei a ler César Cantu e os anúncios da Revalenta: frequentei as minhas humanidades, vivi também um pouco por esse mundo, e descubro ainda quando quero, como qualquer outro, o segredo das palavras que umedecem de ternura os olhos dos que as leem.

Estava bem boa a carta! Tenho realmente pena de a não citar, porque no fim há um fecho, principalmente, que honra os meus recursos: fui-me a uma linha inteira e passei-lhe um traço de pena por cima, depois na entrelinha pus uma palavra só. Isto caía num ponto em que se despertava a maior curiosidade de decifrar o que existiria na linha cortada. Era bastante completo de estratégia e de astúcia. Dobrei a carta e guardei-a.

Às dez horas estavam todos os nossos companheiros, homens e senhoras, no terraço do hotel. Pouco depois chegavam os cavalos, os phaetons e os dog-carts, e as pessoas da nossa caravana principiaram a subir às carruagens ou a montar a cavalo. Os últimos que ficaram na sala contígua ao terraço foram a marquesa, minha mulher e Eduardo de B..., o meu amigo. Eduardo, que estava junto do parapeito do terraço, perguntou para a rua de quem era um lenço de renda que ali ficara caído.

— É meu, disse a marquesa.

Eu, que estava a meio caminho entre Eduardo e ela, tomei o lenço, e sem esperar momento mais oportuno, numa volta em que só ela podia ver-me, enrolei no lenço o meu bilhete e entreguei-lho. A marquesa corou ligeiramente e ia guardar o lenço e sair, quando — pelo diabo — o meu bilhete caiu no chão. A marquesa não dava por isso. Foi minha mulher — que terror! — minha mulher, pessoalmente, que o levantou, dizendo:

Marquesa, este papel... — Ah! obrigado, exclamou ela; é um convite que recebi hoje. E saiu dizendo-nos adeus com as pontas dos dedos.

Minha mulher, que tinha acabado de calçar as luvas, pegou, com o ar aparentemente mais indiferente do mundo, no seu chicote que estava sobre uma das mesas, e saiu também, passando-me, de cima abaixo, um olhar muito mais terrível do que o risco com que eu cortara a última linha da minha carta. Imaginem como eu fiquei!

Eduardo, acode-me! — foi o meu único grito, ao ver minha mulher fora da sala.

Que é? queres água com açúcar? queres flor de laranja? queres que chame os outros?

Qual, que os chames! o que eu quero é que metas os Pireneus ou os Alpes entre mim e eles!

No entanto da rua gritavam pelos nossos nomes. Eduardo chegou à grade do eirado e disse-lhes:

Vão indo, vão indo! não nos esperem: nós os alcançaremos galopando, em dois minutos. Depois de sentir rodar a última carruagem lancei-me nos braços do meu amigo.

E esta!? exclamei eu.

Que foi? saltou-te o botão da camisa? queres espirrar? tens câimbras?

Trata-se bem disso agora! É um precipício, é um abismo, é uma voragem terrível! Meu amigo, meu único amigo, meu companheiro de infância, meu irmão... Deixa-me dar-te o nome de irmão... Não somos nós como irmãos? Pois bem! esta manhã, num momento de febre e de delírio, escrevi uma carta de amor à marquesa de C... Essa carta entreguei-lha agora. A marquesa deixou-a cair, minha mulher levantou-a, minha mulher viu-a, minha mulher sabe tudo!

Então, se ela sabe tudo, melhor, que escusam de lhe escrever cartas anônimas a contar--lho. Vem daí!

Mas, Eduardo, meu filho! pensa bem nisto: trata-se da minha felicidade doméstica, do meu amor, do meu futuro, da minha vida inteira, perdida, envenenada para sempre! ah! eu conheço bem minha mulher: tem uma enorme força de vontade, um extraordinário domínio sobre si mesma. Esconderá o seu infortúnio com a dignidade de um homem, mas morrerá como uma mártir. Se soubesses!... Isto são coisas íntimas, coisas de família, que se não podem contar senão a homens como tu... Olha: aquela excelente criatura, aquele anjo de bondade, ainda há pouco tempo chorou lágrimas de sangue por imaginar que eu lhe preferia... quem? A revalesdère Du Barry! Imagina o que sucederá sabendo que a sua rival já não é uma inocente, posto que ineficaz farinha, mas sim uma marquesa à moda, uma celebridade ruidosa, uma Benoiton, um horror de mulher?! Diz-me, meu velho amigo, aconselha-me, anima-me... Que hei de eu fazer?

Ora! faz qualquer coisa, inventa uma desculpa, acha uma explicação seja qual for...

Faz o que fazem os outros. Não há marido nenhum a quem não tenham sucedido coisas dessas vinte vezes na vida...

Oh! felizes homens! felizes homens aqueles a quem isto tem sucedido vinte vezes! Sabem ao menos o que têm que fazer na vigésima primeira. Mas é que a mim — juro-te pela minha honra — é a primeira que tal me acontece! Que tens tu feito, tu, nos teus casos?

Eu nada, porque eu sou solteiro.

E no meu caso o que farias? Vamos! dize-me alguma coisa! dize-me alguma coisa pelo divino amor de Jesus!

Eu te digo... no caso de uma tribulação assim, profunda...

Profundíssima!

Lançava-me talvez nos confortos da religião... talvez que me fizesse padre.

Bonito!... Padre! como se isso me livrasse de responder logo à noite a minha mulher quando ela me interrogar! como, se quando ela chegar e me disser: "Que escrevias tu à marquesa?" se eu pudesse desfazer-me dela, dizendo-lhe: "A propósito de marquesa: adeus que vou dizer missa!"

Pusemo-nos então a meditar, e ocorreu-me uma ideia, uma ideia que ao repente me pareceu luminosa e que me fora inspirada pela táctica do grande Napoleão, que consistia, como se sabe, em nunca esperar o ataque, tomando a ofensiva.

Eduardo! — exclamei eu — tu é que podes salvar-me. És meu amigo? És-me dedicado? Estás pronto a fazer um sacrifício por mim?

Dize lá!

Faze a corte a minha mulher... Oh! não inventes subterfúgios! Não te ponhas com hesitações e com desculpas! Para que servem os amigos íntimos e verdadeiros senão para isto?...

Faze a corte a minha mulher... peço-to, imploro-to, suplico-to! Que diabo te custa isso? É por um dia somente, hoje, até à noite...

Mas que proveito tiras tu daí? Que podes tu lucrar em que eu me sacrifique por ti até ao ponto de me apaixonar por tua mulher?...

Pois não compreendes? Não atinges todo o êxito do meu plano?! Fazendo-lhe tu a corte (como eu espero, Eduardo, como eu espero da tua velha estima, da tua boa amizade) segue-la, já se vê, acompanha-la, passas todo este dia de hoje ao seu lado, não lhe dás um momento para que ela possa aproximar-se de mim... dizes-lhe que a amas, que a adoras... E hás— de pôr outra gravata, que ela disse-me ontem que esse laço encarnado te dava o ar de um cabeleireiro. Se ela te repelir, mete-lhe medo, que ela é muito medrosa! Dize-lhe que te matas... Não te esqueças também de lhe dizer que morres por mim: ela adora os que me amam. Eu no entanto espreito-vos, vigio-vos, o meu olhar pairará sempre sobre vós ameaçador e terrível como um abutre. Compreendes agora o desfecho... À noite, antes de ela ter tempo de me perguntar que tinha eu que escrever ocultamente à marquesa, eu abotoo a sobrecasaca até o pescoço, cruzo os braços no peito, deito os cabelos para trás, concentro-me, e brado: "Minha senhora, que lhe disse Eduardo?"

"Eduardo..." — "Nada de hesitações, minha senhora! o tempo urge; amanhã, ao romper do sol, ao primeiro grito da toutinegra, numa das encruzilhadas da floresta, um de nós, ou esse homem ou seu marido, cairá morto com uma bala na fronte!"

Mas se apesar de tudo isso, ela tiver o espírito de te observar: "Sigamos a ordem cronológica dos sucessos: vejamos primeiro: senhor! o que dizia o seu bilhete matinal à marquesa?"

Oh! nesse caso, eu teria também o espírito preciso para jogar as últimas, e dizer-lhe: "Silêncio, senhora! mais respeito pela morte! Eu vou bater-me!" E ela então — ah! disso estou bem certo! ela então dará um grito, e cairá desmaiada. Eu terei as algibeiras cheias de sais e de anti-histéricos: acudir-lhe-ei, e quando ela recobrar os sentidos estarei aos seus pés, beijar-lhe-ei as mãos e pedir-lhe-ei que me perdoe. E no entanto a grossa nuvem terá passado.

Eduardo pôs resistências, fez objeções, discutimos, acabei por convencê-lo. Pus-lhe eu mesmo uma gravata azul, que era minha, e partimos.

O que foi esse dia mal posso ainda hoje contá-lo sem se me enegrecer o sangue! Eduardo rodeou minha mulher de solicitudes, que ao princípio me encantaram e me penhoraram muito. Depois minha mulher começou a rir, a conversar longamente, a estar inteiramente bem com ele. Na ascensão à montanha ele dava-lhe o braço, estendia-lhe a mão, ajudava-a a subir. Eduardo desenhou num álbum um dos aspectos da ruína: algumas senhoras cercaram-no, seguiam o traço do seu lápis; minha mulher, para ver o desenho de mais perto, ousou então pousar-lhe uma mão no ombro! Eu começava a sentir vertigens, tinha febre, e de uma vez — a única que olhei para a ruína! — pareceu-me da cor do sangue uma cegonha que estava no alto da torre sobre as ameias com uma perna no ar. A verdade era que eu tinha autorizado o meu amigo a fazer a corte a minha mulher, mas não tinha autorizado minha mulher a receber a corte do meu amigo. O procedimento dela era pois de uma legalidade que ninguém ousaria garantir. Eduardo pela sua parte começava também a adiantar-se demais: tinha-lhe oferecido o desenho da ruína, o que era perpetuar com o seu lápis, que me atrevo a qualificar de impuro, as impressões daquele dia, — o que estava fora das minhas autorizações. Eu sentia febre, rangia os dentes, tinha a boca cheia de bílis. Experimentava vagamente a necessidade de morder em alguém.

Ao almoço havia pequenas bouchées de foie gras; Eduardo tomou um espeto de prata onde havia três destas bouchées e ofereceu-o a minha mulher com os ares pretensiosos e ridículos de um trovador, fazendo ao mesmo tempo um pequeno speech. Escapou-me então um gesto e um grito de raiva. Olharam todos para mim: eu, pálido, com a voz trêmula, intimei minha mulher para que, em respeito à sua saúde, se abstivesse de foie gras, e tomasse de preferência uma sandwich de mayonnaise.

Ora essa! — exclamou vivamente Eduardo — pois achas que a mayonnaise seja menos nociva a uma saúde delicada do que o foie gras?

Acho, sim! clamei eu, E serás tu, Eduardo, tu, meu amigo, meu companheiro, meu segundo irmão, tu que te atrevas a sustentar na minha presença a superioridade estólida do foie gras sobre a mayonnaise?! Dize! responde! intimo-te a que me respondas!

Não, não, menino, eu cedo. Minha senhora, tenho a honra de oferecer-lhe mayonaise.

Dá-se uma coisa: se Eduardo não tivesse recuado tão cobardemente como o fez, eu ter— — lhe ia atirado com um copo.

Ao descermos da ruína, ao pôr do sol, a marquesinha tomou o meu braço. Eu tive um estremeção de horror como se tivesse tocado num bicho asqueroso.

— Li o seu bilhete... — melodiou ela.

Eu estava inteiramente perdido, envenenado, cego. Minha mulher e o meu amigo tinham-me posto numa exacerbação de ciúme estúpido que me enlouquecia. Que imaginam que lhe respondi?...

Ah! leu o meu bilhete? Bem. Pode ter então o incômodo de mo restituir. Sinto-me corar até o branco dos olhos quando me lembro que disse isto, eu!

Restituir-lho não, meu querido amigo — replicou a marquesa agitando alegremente o seu leque. Oh! o seu bilhete pertence à minha coleção de curiosidades...

Deve ser preciosa — pelo número ao menos — a sua coleção!

É grande, é! Que quer, meu amigo? os homens de espírito são tantos ... Eu tenho-os num quadro, atravessados por alfinetes, sobre um fundo verde, como os meus insetos.

Tem sido muito visitado... por senhoras... o seu bonito museu?

O braço da condessa tremeu ligeiramente como se lho tivessem picado. Mas, imediatamente, sorrindo, respondeu:

Não... As minhas amigas cultivam vivos a espécie de animais que eu não posso suportar senão mortos, imóveis, mudos e varados pelos alfinetes de Fanny, a minha criada de quarto. Ora isto faria chorar talvez as minhas amigas, o que obrigaria os seus conhecidos a distraí-las — dando-lhes bonitinhos desenhados por eles...

Eu senti-me apoplético, e precisei de alargar o coleirinho e de abrir a boca, para respirar.

Então! — acrescenta ela, voltando-se para os outros e metendo os dedos na crina do seu cavalo do qual nos tínhamos aproximado — Não querem ver o meu cavaleiro que me não ajuda a montar?!

Eu peguei nela e pousei-a no selim com o mesmo sorriso com que a teria lançado ao mar com uma pedra ao pescoço. 

Obrigado!... disse-me ela lentamente e estendendo os beiços com o mesmo gesto de quem me enviasse um beijo.

E, dando-me os dedos calçados numa estreita luva de camurça, acrescentou:

— Permito-lhe que me beije a mão. Eu dava mordeduras em mim.

Finalmente, ao cair da noite, achei-me a sós, no hotel, com o meu prezadíssimo amigo.

— Então! Que tal? interrogou ele. Eu não respondi. A primeira coisa que fiz foi arrancar-lhe do pescoço a minha gravata azul e atirar-lhe com a sua infame gravata cor de cereja, que guardara numa algibeira.

Ele tentou abraçar-me... — Para trás! — clamei eu — não macule com a impureza do seu contato as fibras castas de um homem de bem. Proíbo-lhe — entenda bem isto! — proíbo-lhe absolutamente que torne a levantar os olhos para minha mulher.

Mas vê lá, querido, que te não faça isso desarranjo! Eu não tenho pressa nenhuma, estou sempre pronto para te servir, e não tenho dúvida em continuar até amanhã ou depois...

Basta, senhor! Acabe-se de uma vez para sempre com este jogo infame. Restitua-me a minha gravata!... Ah! sim... agora me recordo que já lha arranquei... Mais tarde verei se hei de também arrancar-lhe a vida! Agora saia! Saia, e que nunca mais eu o torne a ver!

Apesar de quanto havia de cômico na minha situação eu estava profundamente indignado e triste. Creio que Eduardo compreendeu isto, porque o vi sair pesaroso e calado.

Eu não quis jantar. Fui passear sozinho pelas ruas mais desertas de Homburgo. Quando entrei no quarto de minha mulher eram dez horas da noite.

Muito bem aparecido! disse-me ela alegremente. Que tens tu hoje que ainda me não falaste? que estás de mau humor com toda a gente?

O ar de minha mulher e o tom da sua voz eram tão meigos, tão inocentes, de uma transparência tão casta, que eu resolvi retardar a minha explosão.

Senta-te um momento, continuou, e vê se me explicas umas coisas que sucedem e que eu não entendo...

Ela tinha ajeitado uma almofada do sofá ao seu lado. Sentei-me.

Em primeiro lugar, prosseguiu minha mulher, que quer dizer este bilhete? Vi então entre os seus dedos um papel como o da minha carta à marquesinha, dobrado da mesma forma, com a mesma marca do hotel, em tinta azul, a um canto...

Senti suores frios e cuidei que desmaiava. Minha mulher abriu o bilhete, e leu:

"Minha senhora. "Para desfazer um qui pro quo que poderia porventura influir no sossego do seu espírito, julgo do meu dever declarar a vossa excelência que era meu o bilhete que a senhora de C... deixou cair esta manhã aos pés de vossa excelência. É em desfecho desse pequeno romance que eu parto hoje para Paris, para onde recebo as ordens de vossa excelência.

"Tenho a honra de ser com o mais profundo respeito

De vossa excelência o menor criado
Eduardo de B..."

— Então? acrescentou minha mulher, que quer isto dizer?

Senti que de cima do meu coração se erguera um peso de trezentos quilos. Eu carregava em mim para o chão com receio que o meu repentino desafogo me erguesse como um balão no espaço.

Eu sei lá o que isso quer dizer? É que Eduardo receou talvez que tu supusesses que era de outra pessoa o bilhete de que se trata...

Ora essa! De quem havia de ser então? No terraço não estávamos senão nós, ele e tu. Quem havia de ser senão fosse ele? Eu mesmo te vi a ti tomares o lenço da mão de Eduardo e dá-lo à condessa com o bilhete envolvido...

Mas, permite-me esta observação... Pareceu-me notar que Eduardo te fez hoje, levemente, um sintomazinho de corte...

Pelo contrário: falando-se da condessa, disse-me que ela era a depositária dos seus pensamentos. Portanto este bilhete não tem explicação nenhuma senão que o teu amigo quis passar aos meus olhos por um conquistador feliz: concorda que não há nada mais grosseiro, mais enfatuado e mais tolo!

Que havia de eu responder? Pedi mentalmente ao meu adorado amigo que me perdoasse, e disse o mais baixinho que pude:

— Con-cor-do!

Houve uma pausa, durante a qual o meu espírito retomou posse da situação em que me achava.

E a marquesa?... arrisquei-me a perguntar.

A marquesa partiu com Eduardo.

Tive um pequeno movimento de despeito instantâneo, mas longo de definir, e talvez impossível de explicar...

Minha querida — acrescentei então com uma insistência cordial — tens razão: Eduardo é positivamente um parvo!

Depois do que beijei minha mulher com a mais sincera estima.

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