Do estado dos arquivos eclesiásticos do reino e do direito do Governo em
relação aos documentos ainda neles existentes
(Projeto de consulta submetido à segunda classe da academia real das ciências)
(Projeto de consulta submetido à segunda classe da academia real das ciências)
Senhor:
— Manda Vossa
Majestade que a Classe de ciências morais, políticas e belas-letras da Academia
Real das Ciências de Lisboa consulte sobre as representações dirigidas a Vossa
Majestade por diversas corporações eclesiásticas, que recusara obedecer à
portaria de 11 de setembro de 1857 pela qual se ordenou a entrega de certos
documentos antigos pertencentes aos cartórios dessas e doutras corporações,
para serem depositados no Arquivo Nacional da Torre de Tombo, onde tem de ser
examinados, a fim de se transcreverem aqueles que se reputarem dignos de entrar
na coleção dos Monumentos Históricos de Portugal, que esta Classe está
publicando, e que se tornou pela última lei do orçamento uma obra
verdadeiramente nacional, visto que a sua existência se estriba hoje numa
providência legislativa.
Examinando a portaria de 11
de setembro e as representações que ela suscitou, a Classe não pode deixar de
deplorar que um ato do poder executivo em que só transluz o amor das letras e o
patriotismo ilustrado e circunspecto do Governo de Sua Majestade encontrasse
resistências, às quais se buscaram pretextos, que nem sequer tem o mérito de plausíveis,
e que ao mesmo tempo envolvem afirmativas errôneas de doutrina e de fato, que
esta Classe, pertencendo a um dos primeiros corpos científicos do país, não
deve deixar sem corretivo, até porque foi ela, não só quem solicitou a
transferência daqueles documentos, mas também quem aconselhou a sua conservação
no Arquivo geral do reino, circunstância esta que, diante de inexplicáveis
resistências, a forçam, bem contra sua vontade, a dar as razões que a moveram a
sugerir esse último arbítrio ao Governo de Vossa Majestade.
Dos papéis transmitidos à
Classe por soberana resolução de Vossa Majestade, comparados com as
comunicações dos comissários encarregados da recepção dos antigos pergaminhos
indicados pela Classe, resulta que nenhum prelado diocesano recusou entregar os
documentos que foram pedidos dos arquivos das respectivas mitras, ou de outros
imediatamente dependentes dos mesmos prelados. Provaram assim que compreendiam,
como o Governo e o Parlamento o haviam compreendido, a magnitude e o valor do
trabalho que a Academia empreendera, provando igualmente que o episcopado
português não degenerou, e que o báculo pastoral dos Caetanos Brandões, dos Cenáculos,
dos Avelares, dos Lemos, dos São Luís não caiu em mãos indignas dele. A Classe
compraz-se em poder dar um testemunho de agradecimento em nome das letras a
quem tão nobremente sabe conciliar a dignidade do caráter episcopal com o
reconhecimento do direito do Governo, e com o sentimento da glória literária
que resulta para o país da publicação dos seus monumentos históricos, empresa
que já é devidamente apreciada, não só entre nós, mas também pelos homens
competentes de outras nações da Europa.
Do mesmo modo resulta dos
documentos oficiais remetidos pelo Governo à Academia e das comunicações dos agentes
desta, que umas corporações se mostraram prontas a obedecer ao Governo, que
outras desobedeceram, limitando-se a declarar oficialmente aos agentes da
Academia o motivo do seu proceder, e que outras desobedeceram e representaram a
Vossa Majestade. Vê-se daqui que entre elas há desacordo sobre a extensão dos
respectivos direitos, e que algumas entendem, e bem, como os prelados maiores,
que o Governo não ultrapassou os limites das suas atribuições.
Para poder apreciar
devidamente os fundamentos da resolução tomada por algumas das corporações de
mão-morta, de que resultaria tornar-se impossível a continuação de um trabalho
que hoje a lei força o Governo e a Academia a realizar, cumpre expor o estado
da questão e reunir as objeções ao cumprimento da portaria de 11 de setembro,
oferecidas nas diversas representações recebidas pelo Governo e comunicadas à
Academia, e nas respostas que foram dirigidas oficialmente ao agente desta nas
províncias do norte. Não podendo qualificar-se o ato das corporações que recusaram
fazer a entrega sem recorrer a Vossa Majestade, senão de pura e simples
desobediência, a Classe abstém-se de indicar qual deva ser em tal caso o
procedimento do executivo, encarregado de cumprir as resoluções do poder
legislativo. O Governo de Vossa Majestade sabe perfeitamente qual é neste caso,
não só o seu direito, mas também o seu dever. Todavia a Classe não pode deixar
de se fazer cargo dos motivos de recusa que diretamente lhe foram dados, e
conjuntamente daqueles sobre que é mandada consultar.
A Academia pela Classe de
ciências morais, políticas e belas letras solicitou a vinda a Lisboa dos
documentos anteriores ao ano de 1280 que existiam, não só nos cartórios dos
extintos mosteiros, mas também nos das corporações de mão-morta não abolidas,
pedindo ao mesmo tempo, para maior segurança desses documentos, e para evitar
uma responsabilidade que lhe era inútil tomar, que fossem depositados no Arquivo
geral do reino, aonde os acadêmicos encarregados da publicação dos Monumentos Históricos
podiam, sem incômodo grave, ir fazer a escolha e os mais trabalhos necessários
acerca dos que se achasse que deviam entrar naquela coleção. A Classe possuía
já a este tempo um inventário sucinto de todos os documentos anteriores a essa
data, que ainda existem nos arquivos dos distritos centrais e setentrionais do
reino, e que montam a alguns milhares. Este inventário fora feito por um
comissário da Academia com autorização do Governo, nos anos de 1853 e 1854.
A correspondência deste
comissário, no desempenho das funções que lhe tinham sido cometidas, e em
conformidade das instruções que lhe haviam sido dadas, fez conhecer à Classe
qual era o deplorável estado da maior parte dos cartórios, não só das
corporações extintas, mas também das existentes. A perda de antigos documentos,
quanto ao passado, era já imensa, e podia prever-se qual seria quanto ao
futuro, conservando-se as coisas no estado em que se acham. Convencida de que
fazia um bom serviço ao país aconselhando o Governo a que conservasse no Arquivo
geral do reino os documentos chamados a Lisboa, depois de examinados e utilizados
literariamente, a Academia não hesitou em fazê-lo; absteve-se porém de
fundamentar com os fatos de que adquirira conhecimento um conselho, na verdade
não pedido, mas que o seu caráter de corpo literário oficial lhe impunha o
dever de dar em matéria de sua competência. Procurava assim evitar às
corporações existentes o desgosto que a narrativa de certos fatos, que podiam
vir a ser públicos, devia causar-lhes, e ao mesmo tempo precaver a continuação
de perdas irreparáveis. Entretanto, como o fim que então se propunha, e que
hoje se propõe, era o estudo e escolha desses documentos para continuar o
trabalho que encetara, deixou ao prudente arbítrio do Governo ponderar se
conviria mais restituir os documentos enviados à Torre do Tombo, se
conservá-los ali, propondo a Vossa Majestade a resolução mais conveniente.
A portaria de 11 de
setembro de 1857 não é outra coisa senão a reprodução deste pensamento da
Academia, abraçado pelo Governo de Vossa Majestade Expondo sumariamente as
razões que há para se conservarem de futuro na Torre do Tombo os documentos
pedidos, o ministro dos negócios eclesiásticos e de justiça limitou-se contudo
a ordenar em nome de Vossa Majestade a entrega deles, reservando para tempo
oportuno resolver se devem ser ali conservados ou restituídos aos cartórios das
corporações. Vê-se, pois, que nessa parte as representações eram licitas, e é
até possível que as ponderações a favor da restituição fossem de ordem tal que
movessem o ânimo de Vossa Majestade a ordená-la. Isto, porém, não dispensava as
corporações de obedecerem quanto à entrega e ao depósito temporário no Arquivo
nacional, que era por então o que preceptivamente se estatuía. Quanto a este
ponto, nenhuma oposição plausível se poderia fazer, e as recusas dirigidas
oficialmente ao comissário da Academia constituem nessa parte, como já se
notou, uma desobediência formal.
E esta desobediência é
tanto mais grave quanto é certo que se o Governo de Vossa Majestade não
procurasse reprimi-la, dela resultaria, não só a impossibilidade de se
cumprirem as resoluções do Parlamento, mas também grande descrédito para
qualquer ministro que tolerasse semelhantes obstáculos à continuação de uma
empresa que, por nos servirmos da frase de um de dos maiores sábios da França,
constituirá um dos títulos mais gloriosos do reinado de Vossa Majestade.
A Classe lamenta que tais
resistências venham de corporações parte das quais são compostas de indivíduos
em quem se deve supor maior ou menor educação literária, e que, em relação à
sociedade civil, são verdadeiros funcionários públicos. Não era por certo de
esperar que, tanto nas representações dirigidas a Vossa Majestade, como nas
respostas dadas ao agente da Academia, se encontrasse tão singular esquecimento
do direito público antigo e moderno do país, transtorno tão completo das boas
doutrinas, tão inexata exposição de fatos, e até acusações tão ofensivas contra
a Academia, que Vossa Majestade relevará por certo que esta Classe,
repelindo-as, seja talvez sobradamente severa.
As ponderações feitas e os
fatos alegados, tanto nas representações dirigidas a Vossa Majestade, como nas
respostas oficialmente dadas ao comissário da Academia, resumem-se no seguinte:
Diz uma das corporações que
não pode convir na alheação dos antigos documentos do seu cartório, porque na
máxima parte são comprovativos de contratos onerosos, e quando o não sejam,
ilustram esses contratos, e que a portaria de 11 de setembro alheia a favor do Arquivo
da Torre do Tombo documentos que são propriedade da mesma corporação.
Diz outra: que a portaria
encerra uma determinação inteiramente nova e contraria à prática até hoje
seguida.
Declara ao mesmo tempo, num
ofício ao comissário da Academia, que para o exame de qualquer documento no seu
arquivo é indispensável licença regia e uma ordem do prelado ordinário; mas que
para se tirarem documentos seriam necessárias ou uma lei que dispensasse as
formalidades do esbulho da propriedade, ou sentença do poder judicial.
Outras duas corporações
limitam-se a dizer em ofícios ao dito comissário que a portaria de 11 de
setembro ofende o direito de propriedade, e que recusam a entrega por terem
representado sobre esse assunto ao Governo de Vossa Majestade, representações
que esta Classe não pode apreciar porque não lhe foram comunicadas.
Duas corporações monásticas
do sexo feminino declaram, enfim, não poderem entregar os ditos documentos por
causa dos inventários dos seus bens a que se está procedendo por ordem do
Governo, em virtude de resolução de Cortes.
As outras corporações
mostram-se todas prontas a obedecer às ordens de Vossa Majestade.
Senhor, os membros da
Classe de ciências morais, políticas e belas letras não podem deixar de dizer a
Vossa Majestade com o respeito devido ao chefe do estado, mas com a liberdade
de homens de letras, que é impossível acumular mais desvarios do que os que se
leem nos documentos acima substanciados. Eles provam peremptoriamente a
necessidade de uma profunda reforma no sistema da educação do clero, e de vigilância
da parte do Governo sobre o modo como são providos os benefícios eclesiásticos.
Predomina, em geral, nos
documentos que temos presentes uma certa soma de ideias, não sabemos se
astutas, mas sem dúvida falsas. É uma delas a confusão dos bens administrados
pelas corporações com os títulos primitivos dos mesmos bens, confundindo-se
igualmente esses títulos primitivos com os atuais; os que podem ter uma
utilidade prática na administração ou no foro com os que só em casos raríssimos
servirão para fortificar ou esclarecer o testemunho dest’outros. Posses imemoriais,
tombos incomparavelmente mais modernos do que os pergaminhos anteriores ao
século XIV, contratos de épocas posteriores, mais ou menos recentes, eis os
verdadeiros documentos de uso prático, que se conservam nos cartórios das
corporações. E se esses pergaminhos antigos têm a utilidade material que se
lhes atribui, as corporações devem possuir índices regulares que apontem em
substância o objeto, a índole deles e os lugares onde se acham nos respectivos
cartórios: depois, devem abundar os exemplos de casos nos quais elas os hajam utilizado
nos últimos vinte ou trinta anos. Exija o Governo de Vossa Majestade aqueles
índices; peça a enumeração especificada destes casos, que por certo não ficará
edificado da verdade das alegações nesta parte.
Ainda admitindo todas as
inexações de direito e de fato apinhadas nas representações e ofícios sobre
este assunto, há uma circunstância que torna a denegação absoluta e completa
das corporações ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, não só um ato de
vandalismo literário e de desprezo pela glória da nação, mas também uma
verdadeira espoliação feita ao país. Na época a que pertencem os documentos
exigidos, não existia arquivo especial do rei ou do estado, o qual só começou
no tempo de D. Fernando I. Os diplomas de alta importância, cuja existência se
desejava conservar para a posteridade, mandavam-se depositar nos cartórios dos
cabidos e dos principais mosteiros, chegando-se aponto de se ordenar esse
depósito no próprio corpo do diploma. É um fato este que as corporações
desobedientes tinham obrigação de não ignorar. Depois, os prelados, os cabidos,
as ordens eclesiásticas e militares exerciam, como donatários da coroa, atos
que importavam manifestações de soberania, e contratos em que rigorosamente
esses corpos não figuravam senão como representantes do poder público: tais
eram os forais instituindo municípios e compreendendo provisões de direito
público local; tais eram os contratos por que se transformavam os terrenos
reguengos em jugadeiros, as quotas de frutos em rendas certas, etc. Os
documentos desta ordem não respeitam às corporações; respeitam ao país, como
aqueles que os antigos monarcas confiaram à guarda do clero. Supondo que elas
tivessem direito a negar a entrega dos que exclusivamente lhes dizem respeito,
poder-se-ia tolerar que também sequestrassem impunemente os documentos da nação
por um capricho inexplicável, ou antes explicável demais?
Há, pouco, Senhor, que
examinando-se por ordem desta Classe os restos que escaparam do rico arquivo do
mosteiro de Aguiar, conservados no Tesouro-público, aí se foram encontrar no
original muitos documentos Políticos e econômicos da mais alta importância
relativos aos séculos XIII e XIV. Se ainda existissem corporações religiosas do
sexo masculino, como existem do feminino, é natural que, como algumas destas,
os monges de Aguiar recusassem obedecer à portaria de 11 de setembro.
Toleraria, porém, o Governo que esses documentos importantes para a história, e
talvez para questões atuais ou futuras com a Espanha acerca de limites,
ficassem sepultados e inúteis nas tristes solidões do Cima-Coa? E tolerá-lo-ia
só porque alguns frades suspicazes e ignorantes receassem que o conhecimento
dos velhos pergaminhos do seu cartório pudesse servir para lhes contrariar
interesses materiais de cuja legitimidade a consciência os fizesse duvidar?
As dificuldades, Senhor,
que se opõem agora à realização do empenho da Academia e ao cumprimento da lei
já em parte surgiram quando se ordenou que os cartórios das corporações fossem franqueados
ao simples exame de um comissário da mesma Academia. Houve recusas formais;
houve subterfúgios dilatórios. Indagou-se o motivo disto, e soube-se que se receava
fosse utilizado o exame a que se procedia em benefício dos colonos ou
proprietários com quem as corporações têm litígios sobre direitos dominicais;
porque a algumas delas, ou a todas, custava a compreender que se gastasse tempo
em decifrar esses pulverulentos e afumados diplomas sem algum interesse
material. Note-se agora a infeliz coincidência entre a resolução administrativa
que chama a Lisboa os documentos de antigos tempos, e a que ordena um
inventário dos bens de certas corporações de mão-morta, e achar-se-á
facilmente, em suspeitas não menos insensatas que as primeiras, a explicação
mais plausível das resistências que aparecem por esta parte.
Os cartórios dos corpos de
mão-morta tem sido sempre considerados como coisa pública. Uma das corporações
reconhece-o formalmente no ofício que dirige ao comissário da Academia,
afirmando a necessidade de licença regia, e determinação do prelado, para
qualquer estranho examinar os documentos do seu arquivo. Decerto um particular
não precisaria de licença regia para facultar a qualquer o uso do seu cartório
ou para deixar sair dele quaisquer títulos. Tanto se consideravam esses arquivos
como dependentes do Estado, que os seus documentos mereceram sempre uma espécie
de fé pública. Em muitos deles, até, existiam e existem cartulários, geral e
impropriamente denominados Tombos, e feitos em diversas épocas, desde o reinado
del-rei D. João II até o del-rei D. João V, em que se contém traslados dos
documentos antigos, precedendo provisões regias, pelas quais se dá a estas
cópias o mesmo valor dos originais, para delas se passarem certidões. Esses
atos do poder supremo não provam só a consciência que o Governo tinha da
incapacidade ordinária dos membros das corporações, e dos tabeliães desses
lugares para lerem os antigos diplomas: provam também o caráter público de tais
arquivos; porque não nos consta que provisões de semelhante natureza se
passassem nunca a favor de cartórios particulares. Embora o poder civil desse a
sua sanção às disposições canônicas relativas à conservação dos documentos dos
corpos de mão-morta; embora proibisse, como mais de uma vez proibiu, a saída
deles do respectivo arquivo, essa proibição está justamente demonstrando que
ele poderia ordenar o contrário, se entendesse que convinha mais guardá-los
noutra parte. Foi por isto que no reinado de D. João V se proveu a favor da
Academia de História, para que se lhe facultasse o conhecimento e cópia de
todos os documentos das corporações de mão-morta, que foram obrigadas a
transmitir inventários de todos eles à mesma Academia. Foi por esse fundamento jurídico,
que nos estatutos da universidade (L. 2, tit. 6, cap. 3) se determinou que os
cartórios dos mosteiros e das catedrais estivessem patentes aos professores de
direito pátrio, para lerem, estudarem, extratarem, copiarem, ou fazerem
extratar e copiar todos os documentos que entendessem serem úteis ao ensino das
leis Pátrias e da sua história, disposições que não se estenderam, nem podiam
estender, ainda debaixo do absolutismo ferrenho daquela época, aos cartórios
particulares. É, finalmente, à vista de tal jurisprudência e de tais exemplos,
que na portaria de 11 de setembro o Governo ordena se facilite à Academia o uso
desses diplomas, reservando para si o direito, que indubitavelmente lhe
pertence, de resolver sobre o modo mais conveniente da sua futura conservação.
Mas, diz uma das
corporações desobedientes, que foi no próprio arquivo dela que Brito e Brandão
tomaram notas dos documentos aí existentes; que o guarda-mor Lousada copiou os
mais curiosos e mandou as cópias para a Torre do Tombo; que ali se tiraram
traslados dos mais importantes para o Arquivo de História Portuguesa; que a
corporação possui no seu seio um paleografo capaz de trasladar tudo, embora não
seja tão hábil como os da capital; que não convém que os documentos andem de
mão em mão; enfim, que a Academia não restituiu integralmente os documentos
recebidos por ela, uma única vez que lhe foram confiados.
A Classe desejava, Senhor,
nesta consulta não empregar uma única frase que não fosse moderada; mas, vendo
acusados, se não os membros atuais da Academia, ao menos os que os precederam,
de falta de probidade, e sabendo que essa acusação vai diretamente cair sobre
homens tão eminentes por ciência e virtudes como D. Francisco de São Luís, Trigoso
e outros varões, cujos nomes são veneráveis para o país e para as letras, teme
não saber reprimir sempre os ímpetos de indignação diante das calúnias vertidas
sobre as cinzas de indivíduos que não se podem defender, mas que os acadêmicos
de hoje, posto valham menos do que eles, não devem, nem querem deixar sem pleno
desagravo.
A corporação que,
desobedecendo ao Governo, mostra desconhecer o antigo e o moderno direito
público destes reinos, não foi feliz querendo dar lições à Academia sobre
matérias de sua competência, e increpá-la de menos probidade. Se esta virtude
tivesse faltado aos seus antigos membros acerca de documentos públicos, não
seria o melhor meio de preservar os atuais de semelhantes delitos pôr-lhes
diante os nomes de Brito e Lousada, que passaram a vida, não tanto a distraí-los,
como a forjá-los e a falsificá-los. Curiosas devem ser as memórias por onde
consta à corporação desobediente que o escrivão Lousada (despachado por ela
guarda-mor da Torre do Tombo) mandou para ali cópias dos documentos mais
curiosos do seu cartório, do que aliás nenhuns vestígios restam no Arquivo
geral do reino. Dos que se remeteram para o Arquivo de História Portuguesa nada
tem que dizer a Classe, porque não lhe consta que tal arquivo exista ou
existisse nunca no mundo. Pode ser excelente o paleografo que essa corporação
inculca à Academia; mas a Classe empreendeu um trabalho demasiado sério, para
exigir dos membros encarregados da publicação dos Monumentos Históricos a
conferência pessoal das copias destinadas à publicação com os respectivos
originais, depois de terem apreciado quais merecem ver a luz pública. Estes
trabalhos preliminares, assaz tediosos e longos, não podem os sócios efetivos ir
fazê-los a 50 ou 60 léguas da capital, porque tem aqui outros deveres que
cumprir, e por isso não aproveitam o oferecimento. Se o sincero, honesto e
judicioso Brandão teve a simplicidade de se fiar em cópias subministradas pelas
corporações e nos paleógrafos hábeis delas, pagou bem caro a sua imprudência,
não havendo, talvez, senão um ou dois documentos, dos publicados por íntegra na
3ª e 4ª partes da Monarquia Lusitana,
que esteja devidamente correto. Quando, finalmente, esta Classe pede, não que
venham para a sua secretaria os documentos que pretende examinar e transcrever,
mas que se depositem na Torre do Tombo, para onde os remete diretamente a
pessoa encarregada de os receber, e onde não há perigo de se extraviarem, nem
de serem presa de algum incêndio; quando esta Classe prefere à própria
comodidade ir ali preparar e dirigir os trabalhos de que está incumbida,
temendo os riscos que de outro modo poderiam correr esses restos dos abundantes
monumentos históricos que outrora possuímos; quando, depois, aconselha ao
Governo que os conserve cuidadosamente naquele arquivo, o ponderar-se que não
convém que os antigos documentos andem correndo de mão em mão é uma verdadeira inépcia.
Desde o começo desta
consulta e no prosseguimento dela, a Classe forcejou e forcejará sempre por não
designar nomeadamente nenhuma das corporações a que se refere. Move-a a isso um
sentimento de generosidade. É todavia forçada a fazer uma exceção quando se
trata da honra do instituto de que forma parte, e da boa fama dos que
precederam os signatários deste papel nas cadeiras que hoje ocupam. Na sua
representação dirigida ao digno prelado metropolitano, para ser presente ao
Governo, o cabido da sé de Braga acusa a Academia de não ter integralmente restituído
vários documentos que, por ordem do mesmo Governo, lhe haviam sido confiados.
Dos registros da Academia consta, com efeito, que para uso da comissão de
Cortes foram chamados a Lisboa, em 1836, vários monumentos do cartório daquele
cabido; mas dos atos oficiais, juntos por cópia à presente consulta, se vê, 1º,
que a Academia pediu um códice e cinco documentos avulsos do mesmo cartório,
indicando o lugar onde estes se achavam, e um volume manuscrito do arquivo da
mitra; 2º, que foram remetidos pelo cabido o códice e três dos cinco documentos
pedidos, declarando o presidente da corporação que não fora possível encontrar
os outros dois, nem na gaveta onde deviam estar, nem nas diversas gavetas que
diligentemente se examinaram; 3º, que em 1840 foram devolvidos à secretaria do
reino para voltarem a Braga o manuscrito da mitra, e bem assim o códice e os
três pergaminhos avulsos que tinham vindo do cabido. A restituição foi,
portanto, integral. Esses atos oficiais, que a Classe leva à presença de Vossa
Majestade, não são, porém, só importantes para desfazer uma calúnia: são-no
igualmente para provar com quanta razão a Classe aconselhou que os antiquíssimos
documentos chamados agora a Lisboa fossem conservados no Arquivo geral do
reino. De cinco pedidos pela Academia, indicando ela o lugar onde se achavam,
apenas três existiam naquela conjuntura, porque nem ali, nem nas outras
gavetas, se acharam. Di-lo o chefe da corporação; e das suas explicações se
deduz que também não havia índice do cartório, nem registro por onde constasse
como haviam sido distraídos. Se da história, porém, dos cinco diplomas, pedidos
casualmente, houvéssemos de tirar ilações para o resto do arquivo capitular,
inferiríamos que dois quintos dos seus pergaminhos têm sido desencaminhados,
apesar das constituições sinodais e das excomunhões fulminadas contra os
dissipadores dos títulos da catedral, excomunhões que poderiam gerar nos ânimos
sérias apreensões sobre o destino além da campa dos cônegos até então
falecidos, mas que teriam sido impotentes para salvar da rapina ou do desleixo
os primitivos e veneráveis monumentos da antiga metrópole da Galiza.
Ainda, em relação àquela
remessa de documentos, faz o reverendo cabido bracarense uma severa increpação
à Academia, de que esta Classe não sabe, Senhor, defendê-la, mas para esquivar
a responsabilidade da qual se oferece em holocausto. O códice e os três
pergaminhos voltaram a Braga à custa do cabido! É um sucesso que talvez
perturbasse gravemente a economia da fazenda capitular. Liquide-se aquela
dívida, e a Classe restituirá integralmente o frete dos dois códices e dos três
pergaminhos, como fica provado que se restituíram essas preciosidades.
Se nas suas representações
ao Governo, por intervenção do prelado, o reverendo cabido de Braga caluniou a
Academia, no ofício ao agente desta caluniou todos os poderes públicos. Diz aí
o reverendo cabido que, para se lhe tirarem os documentos de que se trata,
precisa-se de lei precedente que dispense as formalidades do esbulho da sua propriedade,
ou sentença do poder judicial que o convença de que a deve largar. Estas poucas
frases, senão são filhas da alucinação ou de incrível ignorância, são um grave
insulto a todos os corpos do Estado. O cabido ofende o Governo, porque lhe
atribui um ato de espoliação, quando a portaria de 11 de setembro não é senão
uma providência administrativa ordinária, e que honra por mais de um modo o
mesmo Governo. Ofende o poder legislativo, porque o supõe capaz de fazer leis
inconstitucionais e absurdas. O legislador nem mantem, nem dispensa
formalidades no esbulho, porque nunca pode determinar o esbulho. Quando estatui
a expropriação por utilidade pública, estatui sempre a compensação. Ofende o
poder judicial, porque pressupõe que ele pode ordenar a alguém por sentença que
largue a propriedade que é sua. Quando o magistrado julga que o indivíduo deve
perder o que possui, é justamente pelo motivo contrário; é porque se convence
de que o indivíduo retém o que não é seu; e nesse caso, não tira, mas defende a
propriedade.
Somos chegados, Senhor, a
um ponto, acerca do qual a Classe de ciências morais, políticas e belas letras
tem, por mais de um modo, o dever de lançar neste papel algumas considerações;
porque se trata de um assunto que é da sua competência, como corpo oficial
científico. O pensamento de qualificar a portaria de 11 de setembro como um ato
exorbitante do Governo contra a propriedade não se manifesta só nas frases
acima citadas: revela-se também, mais ou menos expressamente, na linguagem de
outras corporações desobedientes. Na opinião delas, os antigos pergaminhos dos
respectivos cartórios são uma coisa em que o Governo não pode tocar, sem quebra
do direito constitucional que garante a propriedade dos cidadãos; porque esses
pergaminhos são os títulos dos bens que possuem, os quais as ditas corporações
de mão-morta supõe gratuitamente que são uma propriedade sua, análoga à de
qualquer indivíduo ou associação civil.
A Classe disse já e mostrou
como muitos dos documentos de que se trata, pela sua natureza, pelo sua origem,
e por fatos históricos sabidos e certos, pertencem pura e simplesmente ao
Estado; disse e mostrou já como os cartórios das corporações de mão-morta se
consideraram sempre arquivos públicos; disse e mostrou como os pergaminhos
anteriores a 1280 não são nunca, ou quase nunca, documentos de uso prático nos
litígios ou nas dúvidas administrativas que podem suscitar-se acerca de alguns
desses bens; e quando o fossem, nem a portaria de 11 de setembro ordena
definitivamente a sua retenção na Torre de Tombo, nem o Governo, suposto que de
futuro assim o ordenasse, deixaria de prover do modo que estabelece naquela
portaria. As corporações obteriam gratuitamente, quando necessários, transuntos
autênticos, forma única em que eles costumam figurar na tela judicial. Uma ou
outra corporação pode achar no seu seio ou na localidade onde reside um
paleografo legalmente habilitado para autenticar os traslados de antigos
documentos; mas, na maior parte dos casos, dada a necessidade de tais cópias,
eles teriam de vir a Lisboa para serem decifrados e reduzidos os seus transuntos
a forma autêntica. Qual seria, porém, mais seguro para os velhos pergaminhos, e
até mais barato para as corporações; isto, ou as providências a que se refere a
portaria de 11 de setembro?
As corporações falam da
propriedade dos pergaminhos, confundindo-a com a de quaisquer outros bens
móveis ou de raiz. Os antigos documentos são ou foram títulos de propriedade, o
que é diverso. Para qualquer coisa ser matéria de propriedade precisa de ter um
valor de utilidade; servir aos fins e necessidades do homem. Não sendo como
prova de domínio, eles de nada servem às corporações; e a não ser como
monumentos literários ou históricos, não tem nenhum valor real. Por este lado
as corporações estão bem longe de poderem utilizá-los. Como prova do domínio,
nem o Governo quer destruí-los, nem guardados no Arquivo nacional ficam menos
seguros do que no seio das corporações, antes incomparavelmente mais. Depois,
não é o Estado padroeiro de todas essas catedrais, colegiadas e mosteiros
desobedientes? Não teve ele sempre o direito de suprema inspeção sobre o
cumprimento dos deveres que resultam para esses corpos das condições da sua
fundação e instituição? Não lhe incumbiu sempre vigiar sobre a conservação e uso
dos bens unidos aos mesmos corpos? Não deriva imediatamente desse direito o de providenciar
do modo mais conveniente sobre a fiscalização daqueles bens, e de chamar a si
os títulos deles quando entender, e sobretudo quando se provar, que esses
títulos são tratados com desleixo, ou que podem ser conservados em melhor ordem
ou com maior segurança, ou finalmente quando precisar deles para verificar se
se tem dado abusos que o mesmo Governo possa e deva corrigir? Se as corporações
creem que os documentos que lhes pedem ainda têm o valor de títulos, em virtude
de que direito recusam obedecer à portaria de 11 de setembro?
E preciso, Senhor, dizer
por uma vez a verdade inteira. As corporações recalcitrantes, por um capricho
insensato, talvez por insinuações pérfidas, e provavelmente por apreensões
infundadas de que o conhecimento dos diplomas e cartulários que se lhes pedem
possa ser nocivo aos seus interesses como administradoras de rendas e direitos
dominicais, aparentam por esses velhos pergaminhos, ininteligíveis e
indiferentes para elas, um zelo, um afeto que realmente não sentem. Foi isto
que as arrastou a invocarem o direito de propriedade, a falarem de tal direito
em relação aos bens que desfrutam. Pode o Governo tolerar, toleram os bons
princípios que as corporações se digam proprietárias dos bens que usufruem? Até
aqui a Classe provou por diversos modos o desarrazoado e ilegal das
resistências que suscitaram esta consulta, ainda dada a situação de proprietárias,
em que as corporações pretendem colocar-se. No caso presente, o antigo direito
público derivado dos antigos princípios, das prerrogativas do poder supremo
como então se concebia, e até o direito canônico relativo ao padroado,
bastariam para legitimar o ato praticado pelo Governo e justificar as intenções
manifestadas na portaria de 11 de setembro. Mas esta Classe tem de ir mais
longe. Desde que se querem estender as atuais garantias políticas dos cidadãos
a corporações de mão-morta, por um sofisma grosseiro; desde que se proclamam
doutrinas subversivas que mutilam a ação do poder público, a Classe tem, pela
sua índole, pelos fins da sua instituição, o dever restrito de protestar contra
erro tão perigoso. São as corporações que a forçam ao cumprimento de uma
obrigação desagradável.
A propriedade, Senhor, é um
direito preexistente às sociedades, visto derivar da necessidade que tem o
indivíduo de satisfazer aos fins racionais para que foi criado. O direito de
propriedade estriba-se na lei natural, porque é inerente à natureza do homem.
Desde que este direito se não colocar acima das leis positivas, quer
constitucionais quer civis, e anteriormente a elas, a sociedade aceitará um
elemento de dissolução e de morte. Se é o legislador que cria esse direito; se
este não o precedeu no mundo, ele pode também criar o direito contrário.
Reduz-se tudo a uma questão de conveniências morais e materiais e de
oportunidade, e tanto é possível existir só a propriedade comum, como existir a
individual, ou, para exprimir a mesma ideia com diversa fórmula, tanto é
possível a não propriedade, como a propriedade. Daqui nasce que esta é
primordial e principalmente individual. A ideia de propriedade coletiva, como
regra, como princípio, depois de andar por séculos ao serviço de um despotismo
espoliador; depois de atribuir ao chefe do Estado o domínio iminente e aos
súditos uma posse e um domínio incompletos, quando o sentimento da liberdade e
a razão esclarecida por tal sentimento colocaram os direitos dos cidadãos à sua
verdadeira luz, veio, apesar de velha e gasta, pôr-se à mercê das escolas
socialistas e comunistas. Como em mecânica dizia Arquimedes, deem a estas esse
ponto nas regiões do direito, e elas revolveram o mundo.
A propriedade comum nas
associações civis voluntárias não é senão uma forma especial de manifestação da
propriedade individual, que lhe muda os acidentes sem lhe alterar a essência.
Dissolvida a associação, a propriedade toma imediatamente os caracteres da
individualidade. Não assim nas corporações de mão-morta, cuja existência
depende do poder público. Há, por certo, propriedades coletivas; tais são os
bens nacionais de uso comum dos cidadãos; mas esta espécie de propriedade,
estribando-se puramente na lei, suprime-se, desaparece, transforma-se,
acumula-se, também à mercê da lei, e é por isso que se denomina propriedade
legal. As instituições garantem a propriedade individual, a do cidadão, aquela
que se funda num direito acima das leis e anterior a elas. Não podem ir além
sem serem antinômicas consigo mesmas; sem darem ao legislador a função de criar
e não a de extinguir; sem confundirem o absoluto com o condicional.
Os membros das corporações
de mão-morta não gozam menos que outros quaisquer cidadãos da garantia
constitucional pelo que respeita à sua propriedade particular. Não lhes é aplicável,
porém, a mesma garantia quanto à propriedade coletiva que desfrutam, porque
essa propriedade é apenas legal. São proprietários, como membros duma
associação? Nesse caso, porque não podem alienar; porque não podem testar;
porque não se resolverá em propriedade individual esse cúmulo de bens, na
hipótese de deixar de existir a corporação? É que a sua existência não deriva
da natureza; deriva do direito positivo. Assim, era com sobrada razão que um
publicista dizia: "Do mesmo modo que a supressão de uma corporação não é
um homicídio, a revogação da faculdade que lhe foi concedida de possuir bens de
raiz não é uma espoliação". Pessoas factícias, a lei pode destruí-las,
como as criou; e se a sua existência é precária, como é que possuem por um
direito absoluto? Compreende-se que o clero hierárquico desfrute uma porção de
bens que o Estado não revocou a si. Como classe de funcionários, de ministros
de uma religião dominante, e por consequência oficial, podem ser retribuídos,
no todo ou em parte, por este modo: é um sistema bom ou mau; mas é um sistema
que pressupõe a doutrina de que os bens que administram não são propriedade sua
e de que nem sequer usufrutuários são por direito próprio. Porque recebem
corporações e indivíduos pertencentes à jerarquia da igreja, e cujas côngruas estão
fixadas, apenas complementos dessas côngruas pelo Tesouro, quando os réditos dos chamados bens eclesiásticos subministram parte delas? Tratando-se de
matérias temporais, se a propriedade eclesiástica é o mesmo que a propriedade
individual, donde provêm a desigualdade que resulta de uma retribuição
desigual, que o clero aceita sem murmurar? Se é por se atender só a que tenham
a côngrua sustentação, porque
não será esta calculada também em relação aos bens patrimoniais do sacerdote
funcionário? Aqueles que hoje invocam o seu direito de propriedade como sendo
análogo aos dos cidadãos têm já reconhecido, pelo fato próprio, que entre as
duas coisas não existe paridade.
Mas se nos lembrarmos,
Senhor, da origem e história dos bens eclesiásticos em Portugal, quanto mais
deploráveis e imprudentes não acharemos as doutrinas invocadas pelas
corporações desobedientes, em dano da glória e das letras Pátrias!
Verdadeiramente, entre nós, aos bens desses grêmios só quadraria uma
qualificação repugnante consigo mesma, a de propriedade anti-legal. Começaram cedo neste país, nos princípios
do século XIII, as leis de amortização, e já antes el-rei D. Sancho I,
escrevendo a Inocêncio III, afirmava o seu direito de privar o clero dos bens
que possuía para lhes dar uma aplicação em seu entender mais útil. Renovadas
sucessivamente as leis de amortização, foram tantas vezes vilipendiadas e
infringidas pela prepotência do clero quantas de novo promulgadas. As
corporações julgavam-se então tanto acima do legislador quanto parece julgarem-se
hoje acima do Governo. Sem recorrer a outros monumentos das várias fases dessa
permanente revolta de um dos corpos do Estado contra o direito público do
reino, basta abrir sucessivamente os três códigos que, um após outro, regeram
este país desde o século XV até os nossos tempos, para vermos que os
verdadeiros títulos dos bens usufruídos pelas corporações não são tanto os
antigos pergaminhos que elas recusam largar da mão para utilidade comum, como o
desprezo insolente de leis que os nossos monarcas nunca tiveram força para
tornar efetivas. As Ordenações afonsinas, as manuelinas e as filipinas
reproduzem sempre o direito antigo, que proibia às corporações de mão-morta
possuir bens de raiz, mas a clausula pela qual se perdoava a desobediência passada
perdia tudo; porque provava a impotência da lei, e abria campo a novos abusos,
que se tornavam a perdoar para se tornarem a repetir. O melhor título de
propriedade que as corporações podem invocar acerca dos bens que desfrutam é
este. Vossa Majestade apreciará a sua legitimidade.
Resta unicamente, Senhor, à
Classe de ciências morais, políticas, e belas letras desempenhar um dever que
desde o princípio desta consulta reconheceu incumbir-lhe. É o de dar a razão
por que aconselhou ao Governo que conservasse no Arquivo da Torre do Tombo os
documentos mais antigos e preciosos das corporações tanto extintas como
existentes, depois de utilizados pela Academia. Não foi, Senhor, um conselho
dado de leve: foi a triste convicção de que, sem isso, os vestígios e as memórias
autênticas das gerações que passaram irão gradualmente desaparecendo, como até
aqui tem desaparecido. Nos lugares onde se acham, os antigos pergaminhos e
cartulários não são entendidos nem apreciados, nem resguardados de um modo
conveniente contra os acidentes que possam sobrevir-lhes: não há ordem racional
na sua arrumação, nos raros casos em que estão nalguma ordem: não há índices
aos quais se possa recorrer quando é necessário consultá-los. Por quase todos
os arquivos se encontram pergaminhos nas costas dos quais se escreveu a palavra
fatal inútil. Inútil quer dizer
que não serve a algum interesse material da corporação. Em regra, é no meio
destas inutilidades que se vão achar os documentos históricos mais importantes.
Quais tem sido, porém, os efeitos daquela qualificação, quais continuarão a
ser, fácil é adivinhá-lo. Em alguns cartórios a frase é latim, também escrita nas costas do diploma, soa igualmente como
sentença de condenação. Acham-se frequentemente pergaminhos (e destes muitos
num cartório onde tal barbaridade não era de esperar), cuja leitura quis fazer
algum curioso inábil, cobertos de aguadas de galha, que avivaram momentaneamente
as letras sumidas, mas que depois formaram uma só mancha negra, onde não
tornará a ser possível decifrar uma única palavra. Grande parte dos cartórios
dão, ao simples aspecto dos seus documentos, as provas de que durante anos
estiveram, e de que estão ainda expostos à chuva, ao passo que não há um só que
se possa dizer ao abrigo dos incêndios. As abóbadas arejadas e enxutas, debaixo
das quais se guardam a parte antiga e ainda uma grande porção das adições
modernas do Arquivo Nacional, uso adotado também por alguns mosteiros da
congregação beneditina, que sabia tratar objetos destes, porque sabia
entendê-los e apreciá-los, não existem em nenhuma parte. É esse um dos fatos
que mais instantemente exigem a conservação na Torre do Tombo dos já tão rareados
documentos dos primeiros dois séculos da monarquia e dos que a precederam. A
imprevidência de colocar cartórios em lugares não convenientemente isolados fez
com que numa noite perecessem inteiros os quatro arquivos mais ricos de
monumentos da Beira Alta, os de Salzedas, Tarouca, São Pedro das Águias e S.
Cristóvão de Lafões, bem como o incêndio da Casa-pia, do Porto deu aso a
perderem-se (dado que perecessem nas chamas, o que é controvertido) quase todos
os cartórios monásticos do Minho, que constituíam a parte mais importante das
riquezas do país neste gênero. O célebre incêndio do Tesouro, que também foi
fatal a esta espécie de documentos, é outro grande exemplo da imprudência que
há em não conservar arquivos cuja perda é irreparável em edifícios isolados ou
pelo menos abobadados.
Expostos aos lentos efeitos
da umidade e a serem devorados pelas chamas, os antigos documentos das
corporações nas províncias estão, além disso, sujeitos às devastações das
guerras civis e estrangeiras. Explicam estas em grande parte o não se acharem
em quase nenhumas câmaras do reino documentos originais anteriores ao reinado
de D. Diniz. Nas três províncias do norte, esta Classe apenas pode descobrir a
existência de um no cartório da câmara de Bragança. Sabemos, todavia, que ainda
certo número deles existia nos fins do século passado. Não teria sido mais útil
para o país, e até para as próprias municipalidades, que o Governo tivesse
feito recolher esses antiquíssimos pergaminhos no Arquivo geral do reino?
Quando el-rei D. Manuel mandou expedir os forais novos, recolheram-se ali as
cartas constitutivas e os privilégios anexos a elas, respectivos aos concelhos
a quem se concediam aqueles forais novos. É por isso que, em parte, os seus
primitivos títulos de liberdade ainda hoje existem. E que é feito de tudo o
mais que lá ficou? Desapareceu completamente.
A estes acidentes acresce a
deterioração permanente que o desleixo e a ignorância produzem. No cartório de
certa corporação, lançado pela janela fora durante a guerra peninsular por
alguns soldados franceses, e de que só uma pequena parte foi recolhida,
achou-se ainda em 1853 incrustado nos pergaminhos o lodo em que estiveram
mergulhados durante alguns dias; tal tinha sido o desvelo da corporação acerca
dos monumentos que salvara. Não sabemos se é das que bradam contra a ofensa
feita ao seu direito de propriedade. Em outro arquivo de um corpo de mão-morta,
os documentos antigos tinham sido lançados em monte na divisão inferior de um
armário úmido, cujo pavimento era de tijolo. Ali haviam apodrecido até a altura
de duas ou três polegadas, constituindo, quando se examinaram em 1853, uma
massa negra e compacta. Salvaram-se apenas os que tinham caído na parte
superior daquele acervo, aonde a podridão ainda não chegava. Outra corporação
pediu tempo ao comissário da Academia para lhe tornar acessível o cartório.
Estava este num aposento sem vidraças, e pelas roturas das janelas os pássaros
tinham estabelecido ali a sua residência habitual. Era preciso desimpedir
aquela nova espécie de estabulo de Augias. A maior parte das corporações, cujos
arquivos se examinaram nesse e no seguinte ano, não puseram obstáculo algum a
que os documentos de que se tomava nota fossem separados e emassados à parte,
como se fez. A razão era simples. Tanto importava aquela disposição como outra
qualquer, visto não existir aí ordem nem índices. Cartórios há, e dos mais notáveis,
onde se adotou a distribuição corográfica, mas esta distribuição era e é apenas
parcial, e necessariamente incompleta. Os documentos que por algum resumo ou
declaração externa, postos no verso do pergaminho, ou que por serem modernos
podiam facilmente classificar-se como relativos a tal ou tal propriedade,
colocaram-se nos maços respectivos. Todos aqueles, porém, cujo conteúdo se
ignorava, ou que refugiam a este sistema imperfeitíssimo, assinalados ou não
com o ferrete de inúteis, foram
amarrados em feixes e atirados para o fundo de armários, onde ficaram jazendo
por dezenas e dezenas de anos, cobertos de pó e condenados ao esquecimento e a
lenta ruína. Em um destes cartórios, depois de se ter concluído o seu exame,
achou-se uma gaveta, em lugar pouco aparente, na qual, debaixo de um monte de
caruncho, se encontraram 40 a 50 bulas originais expedidas pela maior parte do
decurso dos séculos XII e XIII. Talvez durante 50 ou 60 anos ninguém tivera
notícia da existência daqueles diplomas.
Certa corporação clerical
teve a singular ideia de encardernar os seus pergaminhos avulsos. Era um
arbítrio devido, segundo parece, à fecunda imaginação de uma comunidade
franciscana, cujos documentos primitivos se acham numa repartição de fazenda da
província cosidos num volume, podendo ler-se apenas parte de cada um deles. A
corporação, porém, encontrara uma dificuldade imprevista em aproveitar o
alvitre dos frades. Os selos pendentes eram um obstáculo a essa obra meritória.
Cortaram-nos, ensacaram-nos, e hoje mostram inocentemente aquele monumento de
sabedoria. Os selos, sobretudo os dos diplomas pontifícios, esperam pela
trombeta final do arcanjo para se unirem aos respectivos corpos, porque só a
trombeta final poderá operar tal maravilha.
Esta mesma corporação possuía
um cartulário dos mais conhecidos na nossa literatura histórica. Esse cartulário
tinha saído do arquivo, por ordem do prelado maior, havia quase vinte anos,
para se tirarem dele cópias de vários documentos, de que se carecia para objeto
literário. Quando em 1854 a Academia mandou examinar os cartórios provinciais,
o seu comissário perguntou pelo célebre códice. Fora ele que tirara aquelas
cópias quase vinte anos antes. Disseram-lhe que existia bem guardado. Pediu-o:
apresentaram-lhe uma cópia moderna. Observou que esse volume não passava de um
bom ou mau transunto do manuscrito de que se tratava. Não se conhecia outro! O
comissário da Academia recordou-se, porém, de uma circunstância: as cópias
tiradas por ele tinham sido feitas em certa livraria vizinha. Teria esquecido
ali o códice? Era um desleixo de vinte anos, absurdo, vergonhoso, incrível, mas
por isso mesmo, probabilíssimo. Propôs que se buscasse, ou antes, ofereceu-se
ele próprio a procurá-lo. Aceitou-se a oferta. Não se enganava. O precioso cartulário
vivera desterrado vinte anos, enquanto o seu pouco leal Sósia lhe usurpava as
homenagens daquela corporação erudita.
No fascículo já impresso
dos Monumenta pertencente à
série intitulada Scriptores foi
inserido um crônicon, cujo original existe no arquivo de uma das corporações eclesiásticas
que representam a Vossa Majestade contra a portaria de 11 de setembro. Havia
duas edições discordes entre si, e ambas inexatas, como depois se viu. Quando
se coligiam os monumentos destinados a entrar naquele fascículo, buscou-se
obter o códice original para restabelecer a verdadeira lição. Era impossível.
As excomunhões contra a extração dos documentos do cartório onde ele existia
obstavam a isso. O anjo percuciente velava à porta do cartório com a espada de
fogo na mão. À Academia, porém, repugnava manter num trabalho sério, e feito
com consciência, o texto incorreto. Favoreceu-a uma circunstância imprevista. A
vigilância do anjo percuciente fora entretanto iludida. pessoa particular
obtivera por esse tempo que o códice viesse a Lisboa. Empregaram-se então meios
indiretos para alcançar cópia exata do crônicon. Mas voltou o códice ao lugar
donde saíra? Esta Classe ignora qual foi o seu ulterior destino.
É tempo, Senhor, de colher
as velas ao discurso. Parece-nos que o Governo de Vossa Majestade fica
habilitado para despachar as súplicas das corporações conforme a justiça e as
conveniências públicas. A Classe tem a consciência de que, tanto nas suas
solicitações como nos seus conselhos, procurou sempre conciliar o zelo com a
circunspeção, e que não deu neste negócio um único passo que não signifique o
cumprimento de um dever. Resta ao Governo cumprir o seu. Se no assunto que se
debate há luta entre o amor das coisas Pátrias e um egoísmo pueril, entre a
ciência e a ignorância, entre a luz e as trevas, não julga esta Classe que o
reinado de Vossa Majestade seja a época mais propícia para a vitória da
barbaria contra a civilização.
Deus guarde a vida de Vossa
Majestade como o país e as letras hão mister.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1853, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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