A supressão das conferências do Cassino
(A J. F.)
(A J. F.)
Teve vossa senhoria a
bondade de me remeter o discurso que o Sr. Antero de Quental proferiu ou devia
proferir no Cassino (da sua carta não infiro claramente se o fato chegou a
verificar-se) o que, com os discursos dos oradores que o precederam, deu aso a
serem tolhidas pelo governo aquelas conferências. Pede-me vossa senhoria que leia o
discurso e lhe dê a minha opinião sobre o seu conteúdo e sobre o procedimento
da autoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco é o tempo que me sobeja
para a leitura, nem, a falar verdade, o espírito se inclina muito para esse
lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assuntos graves, e até abstrusos,
que, porventura, não cabem na capacidade da minha inteligência. Acresce que
geram em mim tristeza as nossas questões públicas, e com o egoísmo de velho
fujo de pensar nelas. Apesar, porém, de tudo isso, forcejarei por fazer uma
exceção a favor deste discurso, por certa simpatia que sinto pelo autor, não
obstante a profunda divergência que há entre as nossas opiniões. É, talvez,
porque no seu caráter me parece descobrir uma destas índoles nobremente
austeras que cada vez se vão tornando mais raras. Revela o trabalho que me
remete as precipitações e os ímpetos próprios da idade de quem o delineou. Só
os anos nos curam desse defeito. Quisera eu que o Sr. Antero de Quental
conhecesse melhor a doutrina e a tradição verdadeiramente católicas, porque
havia de ser menos injusto com o catolicismo, embora não fosse menos severo, ou
talvez o fosse ainda mais, com os padres.
Quanto à proibição das
conferências, que quer que lhe diga? É pior que uma ilegalidade, porque é um
despropósito; e na arte de governar, os despropósitos são às vezes piores que
os atentados. O que seria escutado e em grande parte esquecido por cem ou
duzentos ouvintes será agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores.
Diz-me que se tomou por pretexto da supressão das conferências o desagravo da
religião ofendida. Erro deplorável. Ideia perseguida, ideia propagada: lei
perpétua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por certo, o
governo tem obrigação de manter a religião do Estado, como tem obrigação de
manter todas as instituições do país. Mas o respeito pela inviolabilidade do
pensamento entra também no número das suas obrigações. E quando a religião do
Estado e a liberdade do pensamento colidem, é aos tribunais judiciais que
cumpre dirimir a contenda. O discurso oral é manifestação da ideia, como o é o
discurso escrito. Não se pode suprimir o orador, como se não pode suprimir o
escritor. Para um, como para outro, há a responsabilidade e a punição.
Depois, creio pouco que o
Sr. Antero de Quental, apesar da sua clara inteligência, e da autoridade moral
que lhe dá a integridade do seu caráter, seja assaz poderoso para derribar o
catolicismo, a religião de São Paulo e de Santo Agostinho, de São Bernardo e de Santo Tomás, de Bossuet e de Pascal. O perigo, não absoluto, mas relativo, está
noutra parte. Agredido pela frente, o catolicismo pode aplicar a si, melhor que
o protestantismo, o verso do belo hinário de Lutero.
Ein feste Burg ist unser Gott.
Não se toma a fortaleza
divina; mas pode ser minada e aluída por uma guarnição desleal. É este
atualmente o grande perigo que a ameaça: não são os discursos do Cassino. A
situação da igreja assemelha-se hoje àquela em que se achava no IV século, quando
o arianismo, no dizer de São Jerônimo, triunfava por toda a parte, e até o papa
Libério aderia à fórmula ariana do conciliábulo de Sírmio e aceitava como
ortodoxa a heresia. Esta situação tristíssima da igreja é coisa um pouco mais
grave para a religião do Estado do que todas as hostilidades imagináveis dos
seus adversários leais.
Que me seja lícito fazer
uma pergunta, que vai maravilhá-lo. Existe ainda entre nós o catolicismo
proclamado instituição social pela Carta? A resposta que eu próprio darei a
esta pergunta ainda, porventura, o maravilhará mais. Existe apenas na fé
perseverante, mas silenciosa e triste, de alguns fiéis, que deploram os
destinos preparados à igreja por um clero geralmente facioso e sem convicções.
Hoje a igreja, se pudesse perecer, correria grande risco de não completar o vigésimo
século da sua existência. Dar-lhe-ei nesta carta a razão do meu dito, embora
isso a torne, talvez, demasiado longa; mais longa, por certo do que eu desejaria.
Caráter fundamental do
catolicismo verdadeiro, do catolicismo que nos inculcaram na infância, era a
imutabilidade, a perpetuidade e a universalidade dos seus dogmas e das suas
doutrinas na sucessão dos tempos, caráter precisamente descrito no célebre Comonitorium de Vicente de Lerins.
Nessa crença, tão incompreensível seria a supressão de um dogma antigo, como a
adição de um dogma novo, ou (para me servir de frase de um teólogo eminente do
século XV) nessa crença não se tinha por menor heresia afirmar ser de fé o que
não o era, do que negar que o fosse o que era [4]. Nisto consistia praticamente
a imensa vantagem do catolicismo sobre as seitas dissidentes, indefinidamente variáveis,
flutuantes, subdivididas de dia para dia, gerando as mais desvairadas
aberrações religiosas. Além disso, a igreja tinha leis que a regiam desde os
séculos primitivos e que só os parlamentos cristãos, os concílios, podiam
alterar, quando essas alterações não fossem de encontro às tradições apostólicas,
e a que todos os membros da sociedade católica, desde o papa até o mais obscuro
entre os fiéis, eram obrigados a obedecer. Depois, na economia da sua
administração interna, nos ritos, e em outras manifestações acidentais do
culto, cada igreja nacional, e até cada província eclesiástica, tinha os seus
usos e liberdades especiais, que a igreja universal consentia, porque o que
constitui verdadeiramente a unidade é a unidade da fé. Governo parlamentar,
máximas fundamentais dominando através dos séculos a legislação canônica, direito
comum conciliando-se com o respeito às autonomias, ninguém superior à lei, a
fraternidade humana, a tolerância material ao lado da intolerância doutrinal;
em suma, uma grande parte das conquistas da civilização moderna são apenas
velhas conquistas do cristianismo transferidas para a sociedade temporal.
Cuidando aportarem a praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem
plantado padrões de descobrimento em regiões onde, embora ocultos pelos musgos
e sarças, os padrões da cruz estão plantados há mais de mil e oitocentos anos.
Sem dúvida, durante a Idade
Média, grande número de abusos se tinham introduzido na disciplina, no mecanismo
da sociedade católica. Houve sempre homens grandes e virtuosos que lutassem
contra esses abusos, mas nem sempre alcançavam moderá-los e mormente vencê-los.
Na época dos concílios de Constança e de Basileia, os dois últimos concílios
sinceros e livres que a história eclesiástica memora, sorriu para a igreja uma
esperança de reforma; mas essa esperança desvaneceu-se em breve. Os abusos
adquiriram novo vigor quando o renascimento veio substituir as tendências
cristãs pelas tendências pagãs, e se tornaram possíveis papas como Alexandre VI
e Leão X, mais devotos da trindade de Momo, Vênus e Baco do que da trindade evangélica.
Então, em lugar da reforma, veio a revolução: veio Lutero. O catolicismo,
mutilado, tornou-se fragmento, embora grandioso fragmento. A resistência à
revolução gerou, porém, a assembleia de Trento. Trento exprime um fato notável.
A igreja servira, séculos antes, como de tipo à sociedade temporal: a sociedade
temporal, onde as liberdades da Idade Média tinham cedido já o campo ao
absolutismo vitorioso, refletiu na reorganização da igreja. Como o absolutismo
trouxera vantagens na vida civil, trouxe-as também na vida espiritual; mas,
tanto aqui como ali, essas vantagens foram bem modestas comparadas com os males
que derivavam da nova contextura da sociedade religiosa e da sociedade
temporal; tanto aqui como ali, um abuso derribado era o prenuncio de muitos que
iam pulular. Esses abusos, quer antigos quer modernos, ingeridos na sociedade
cristã, invadiam sempre mais ou menos as igrejas nacionais. Mas, no meio da
decadência exterior, a essência do catolicismo — o dogma — mantinha-se intacta.
O símbolo salvo pelo concílio de Niceia e pelos esforços de Santo Atanásio
continuou até nós imutável. Na própria disciplina, o poder temporal, quando
nisso interessava, reprimia as tendências abusivas de Roma, e até, não
raramente, o episcopado, momentaneamente desperto, recordava-se da sua
instituição divina. Novo Encelado, revolvia-se debaixo da enorme pressão do
papado e, batendo com as algemas nos degraus do trono pontifício, fazia-o
estremecer. Travavam-se às vezes lutas sérias entre os dois absolutismos. Ambos
tinham por aliado o céu. Tu es
Petrus, alegava o papa: Per me
reges regnant, redarguia o rei. Pasce
oves meas: acudia o papado. Onis
potestas a Deo: repunha o absolutismo. Roma, por via de regra, não levava a
melhor, sobretudo quando os bispos, ou por conveniência ou por convicção, se
associavam ao poder temporal, o que era frequente.
Ao promulgar-se a Carta,
Portugal achava-se nesta situação religiosa. A Carta, convertendo o catolicismo
em instituição política, adotava-o como ele existia no país — essência e forma;
dogma e disciplina. Disse o legislador que a religião católica apostólica
romana continuaria a ser a
religião do reino: não disse que essa instituição seria uma coisa nova,
flutuante, mudável, conforme aprouvesse aos jesuítas ir suprimindo ou anexando
dogmas à doutrina católica, mediante o assenso ou inconsciente ou incrédulo do
papa e do episcopado. O que continua não é o que vem de novo; é o que existe no
ato de continuar. Ora os fatos estão desmentindo esta doutrina irrefragável.
Desde a promulgação da Carta tem-se realizado gradualmente uma revolução na
igreja católica. Com assombro da gente ilustrada e sincera, vimos transformar
em dogma uma superstição dos séculos de trevas, rendoso mealheiro de
franciscanos, tintura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviar receitas na
botica de Santo Inácio, a imaculada conceição de Maria, dogma que forçadamente
conduz ou à ruína do cristianismo pela base, tornando inconcebível a Redenção,
ou à deificação da mulher, à mulher deus, à mulher redentora, recurso tremendo
nas mãos do jesuitismo, que, lisonjeando a paixão mais enérgica do sexo frágil,
a vaidade, o converte em instrumento seu para dilacerar e corromper a família,
e pela família a sociedade. Depois, ludibrio desses homens de trevas, vemos o
papa, celebrando uma espécie de concílio disperso, mandar perguntar pelas
portas dos bispos que tal acham aquele apendiculo à fé católica. Os bispos,
pela maior parte, encolhem os ombros ou riem-se, dizem-lhe que está vistoso, e
vão jantar. Depois, os que falam em nome do pontífice, tendo tornado
virtualmente absurdo, por inútil, o sacrifício do Gólgota para a redenção da
humanidade, ou dando ao Cristo um adjunto na sua obra divina, divertem-se em
negar no Silabus os dogmas, um
pouco mais verdadeiros, da civilização moderna, e tendo elevado o erro, apenas
tolerado, e ainda mal que tolerado, nos domínios do opinativo, a dogma indisputável,
e santificado assim uma opinião pior que ridícula, convidam a sociedade
temporal à guerra civil. É a Companhia de Jesus na sua manifestação mais
característica. Os princípios da Carta, como os de todas as constituições
análogas, são condenados, anatematizados, exterminados in peto. É a comuna de Paris,
prefigurada em Roma, a arrasar e queimar, em vez de edifícios, todas as
conquistas do progresso social, todas as verdades fundamentais da filosofia
política. Ao concílio vagabundo segue-se então o concílio parado. É que falta
ao Silabus a sanção divina.
Dar-lha-á a infalibilidade endossada pelo episcopado ao papa ou à sua ordem.
Ajuntam-se não sei quantos bispos, muitos bispos; uns reais, outros pintados:
agremiam-se; e o papa pergunta ao grêmio, em vez de o perguntar a si mesmo, se
é infalível. Os bispos tornam a encolher os ombros ou a rir-se, dizem-lhe que
sim, e vão cear. O papa infalível, que não sabia se era falível, fica enfim descansado,
e os bispos ceados, dormidos e desapressados do visum est Spiritui Santo et nobis do concílio apostólico de
Jerusalém, transferido definitivamente para a Casa-professa, voltam a anunciar
aos respectivos rebanhos essa nova correção das errôneas doutrinas da primitiva
igreja.
Tais são os deploráveis e incríveis
sucessos que temos presenciado. O jesuitismo converte o infeliz Pio IX num Libério
ou num Honório, induzindo-o a subscrever heresias, e a grande maioria dos
bispos, criando na igreja uma situação análoga à dos tempos em que o arianismo
dominava por toda a parte, e abandonando a máxima sacrossanta da imutabilidade
da fé, tornam-se em arautos e pregoeiros dos desvarios de Roma. As novidades
religiosas vem perturbar as consciências, e o marianismo e o infalibilíssimo
quase levam o cristianismo de vencida na igreja católica. Ninguém vê isto;
ninguém sabe disto. É que, em Portugal, os que ainda creem em Deus e na divina
missão de Jesus, sem crerem na conceição imaculada nem na infalibilidade do
sumo pontífice, pelo seu diminuto número e pela tibieza que é geral em todas as
crenças, não tem nem força, nem resolução para arrostar com as iras do beatério
neocatólico. O governo, esse vê só o Cassino, ouve só os discursos do Cassino.
Aquilo é que ameaça subverter a religião, a monarquia e a liberdade. Dedit abissus vocem suam. A voz do
abismo são aqueles quatro ou cinco mancebos que vão falar de cinco ou seis
questões desconexas a cem ouvintes, metade dos quais provavelmente não entendem
a maior parte do que eles dizem, o que também é muito possível me sucedesse a
mim.
Isto é simplesmente,
maciçamente, indisputavelmente ridículo.
O que é grave em si, e como
tendência, e como sintoma, é a intervenção da polícia preventiva nessa questão:
é a polícia violando um direito anterior à lei positiva, o direito da livre
manifestação das ideias, direito exercido por indivíduos que se apresentam
franca e lealmente adversários do catolicismo e aceitam sem tergiversar a
responsabilidade e a penalidade que possam corresponder ao seu ato. O governo
parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos está acima e além
das prevenções da polícia. Dizer-se que se respeita a liberdade do pensamento,
sob a condição de não se manifestar, é pueril. Na manifestação é que reside a
liberdade, porque só os atos externos são objeto do direito, e a liberdade de
pensar em voz alta é um direito originário, contra o abuso do qual não pode
haver prevenção, mas unicamente castigo. Menos essencial é o direito eleitoral
ou a garantia do júri. Traz aquele não raro violências, corrupções, tumultos:
traz esta pela indulgência, às vezes pela venalidade, frequentemente pelo
temor, audácia nos maus, frequência nos crimes. A própria religião dá pretextos
ao fanatismo, e o fanatismo tem escrito a sua história com lágrimas e sangue na
face dos séculos. Pois bem: suprimi o eleitor; suprimi o jurado; suprimi a
religião; suprimi tudo, pelos perigos que de tudo podem advir. Fique só a
prevenção e a polícia.
O seu amigo Antero de
Quental podia fazer dez, vinte, cem conferências contra o catolicismo, contanto
que não perturbasse a paz pública, e o governo podia querelar dele dez, vinte,
cem vezes. Di-lo o artigo 363º do código civil. Não assim a respeito das
novidades que tem alterado a índole da igreja católica. Aqui não se trata do
modo como um cidadão exerce um direito inauferível: trata-se do modo como
funcionários públicos, segundo a jurisprudência recebida, exercem as suas
funções. Visto que assim se entende a Carta, os prelados diocesanos e o seu
clero são funcionários, não só porque o poder temporal lhes dá uma intervenção
maior ou menor em assuntos de competência civil: são funcionários públicos no
próprio ministério sacerdotal; porque, convertida a religião em instituição
política, os ministros dela são agentes e executores da lei constitucional,
justamente na esfera espiritual; absurdo, na verdade, grande, mas corolário inelutável
de outro absurdo maior, a interpretação que os reacionários e ainda alguns
liberais dão ao artigo 6.° da Carta.
Eram acaso dogmas em 1826 o
imaculatismo e o infalibilismo? Quem ousaria afirmá-lo? Era em 1826 um dos
caracteres essenciais do catolicismo a perpetuidade da fé e a sua identidade
através dos séculos? Ninguém se atreveria a negá-lo. Os próprios restauradores
de velhos erros, agora convertidos em dogmas, fazem esforços desesperados para
os filiarem nas tradições da igreja. São esplendores do céu que andavam
nublados. Aceitavam-se, porventura, antes dessa época as máximas do Silabus contraditórias com as leis
do reino, com o seu direito público? Já notei que nem o próprio absolutismo
aceitava aquelas que o contrariavam quando, dispersas, não se pensava ainda em compaginar
essa espécie de mapa estratégico da campanha contra a civilização. O
absolutismo tinha o placet régio
para repelir as invasões de Roma e os próprios erros de doutrina em que Roma,
ou antes os sucessores de Pedro, podiam, como ele, não perpetuamente, mas temporariamente,
cair; e o absolutismo usava amplamente desse recurso. Era uma praxe santificada
pelo simples senso comum, pelo direito que tem todo o dono de casa de examinar
as doutrinas que os vizinhos lhe inculcam à Família. Daí derivou a legitimidade
da convocação dos primeiros concílios ecumênicos pelos imperadores romanos.
A história do placet ou exequatur é por toda a parte rica de peripécias. Nos últimos
séculos, o rei e o papa eram dons duelistas de supremo cavalheirismo e esmerada
educação. Das mutuas delicadezas, dos ápices de benevolência não omitiam um só
ao encetarem qualquer luta. Quase que sentiam um pelo outro mutua ternura. O
rei beijava, cá de longe, o pé do papa: lá de longe, o papa estendia para o seu
filho predileto a bênção apostólica. A questão, que se iniciava pela recusa
do placet, terminava, de ordinário,
por ser intimado o núncio para sair da corte em vinte e quatro horas, e por ser
o país posto em interdito. Chamava-se então a isto, na frase dos homens de
estado e dos jurisconsultos, concórdia do sacerdócio e do império.
A Carta, transformando a
religião em instituição política, manteve felizmente o beneplácito a que
estavam sujeitas sem exceção todas as letras apostólicas de caráter genérico.
Digo, felizmente, porque, em vez de se dar ao artigo 6º da Carta uma
interpretação racional, e que não esteja em antinomia com as garantias dos
cidadãos e com as máximas mais indubitáveis das sociedades livres, dá-se-lhe,
com aceitação comum, um valor monstruoso e iliberal. Racionalmente, a
instituição de uma religião do Estado num país livre não pode significar senão
uma homenagem à crença da grande maioria dos cidadãos, homenagem representada
pela manutenção do sacerdócio e do culto a expensas do Estado, pelo singular
privilégio de ser este culto o único público, e pelas demonstrações de respeito
para com a religião da sociedade que se exigem de todos os cidadãos. Ao lado
disto, num país livre, não pode deixar de ser escrupulosamente mantida a plena
liberdade da consciência, e removida completamente a mistura dos atos e
fórmulas religiosas com as fases e com os atos da vida civil em que tal mistura
produza anulação de direitos ou da igualdade de direitos. Com semelhante
garantia, e nesta situação transitória entre o antigo predomínio de uma crença
exclusiva e tirânica e a distinção precisa entre o estado e a igreja, que tem
de vir a formular-se definitivamente nas sociedades futuras, as prevenções do §
14º do artigo 75º da Carta seriam excessivas, e até, porventura,
desnecessárias. Mas, quando se quer que a existência de uma religião do Estado
importe para a universalidade dos cidadãos o dever de se conformarem com os
preceitos dela em todos aqueles atos da vida exterior que tais preceitos possam
abranger, e se dá a uma crença religiosa, isto é, a certa norma das relações
entre o homem e Deus, os caracteres e a natureza de uma norma das relações entre
o homem e a sociedade, é óbvio que se atribui à religião uma índole mundana,
temporal, derivando unicamente a sua autoridade e a sua força coactiva de ser
instituição política, e essa força e autoridade hão de manter-se,
interpretar-se, aplicar-se, circunscrever-se, pelos mesmos meios e pelo mesmo
modo por que se mantem, interpretam, aplicam e circunscrevem as das outras
instituições análogas.
Suposta a teoria da coação
religiosa, suprimir na constituição a doutrina do beneplácito seria absurdo,
porque seria impossível sem ela impor aos ministros a responsabilidade por
tolerarem qualquer infração do artigo 6º da Carta, quando a infração procedesse
de abusos da cúria romana, de excessos do poder espiritual, do mesmo modo que
seria impossível impor-lha recusando-lhes a inspeção dos atos do clero oficial,
ainda relativos às suas funções puramente sacerdotais. É certo que o direito de
beneplácito é um dos erros feios anatematizados no Silabus; mas também é certo que no Silabus está anatematizado um bom terço dos artigos
constitucionais da Carta.
Tendo, pois, os ministros
por dever a manutenção da crença oficial na sua integridade, nem mais nem
menos, e possuindo os meios que lhes faculta a constituição para desempenharem
esse dever, como é que os governos desta terra têm defendido, em relação às
agressões do poder espiritual, a instituição política da religião do Estado? De
um modo, que, se a responsabilidade ministerial fosse entre nós coisa séria, e
não uma frase inventada para os ambiciosos em disponibilidade darem vaias aos
ambiciosos em exercício, receio muito que a maioria dos nossos ministros, há
vinte e cinco ou trinta anos a esta parte, tivessem corrido grande risco de
severo castigo. Essas loucuras praticadas no centro da unidade católica, a que
já me referi, reproduzem-se entre nós. A história da igreja portuguesa nos
últimos anos é uma contradição permanente com a Carta. Altera-se o dogma e
busca-se alterar a disciplina. Nas pastorais, nos púlpitos, na imprensa
infalibilista inculcam-se novidades no regímen da igreja e novidades de crença.
Os missionários e uma parte do clero curado repetem ao povo quantas sensaborias
se espreguiçam por essas vastas charnecas das alocuções que os jesuítas assinam
com o pseudônimo de Pio Nono. Os
princípios que são hoje condições essenciais da existência política da nação
portuguesa apontam-se ao povo ignorante como invenções do diabo. Missões dos
agentes do jesuitismo, umas ineptas, outras astutas, instilam por toda a parte
o veneno do ultramontanismo extremo, e corrompem o elemento social, a família,
sobretudo pela fraqueza mulheril. Vemos bispos que protegem esses agentes, e
que os aplaudem; párocos que os aceitam para que eles façam o que, em diverso
sentido, fora dever seu fazer. É uma conspiração permanente, implacável contra
a sociedade. As resistências nascidas no seio do próprio clero são dificílimas,
senão impossíveis. O que tentasse levantá-las seria esmagado. Os antigos
institutos monásticos, que pela emulação, e pela seriedade e profundeza dos
seus estudos, se contrapunham ao jesuitismo e à sua ciência faciosa e dolosa,
desapareceram, e se hoje se restaurassem entre nós, sucederia o que sucede
quase por toda a parte: ir-se-lhes-ia encontrar a roupeta de Santo Inácio
debaixo da cogula beneditina ou agostiniana. O presbiterado, que é como a
burguesia da igreja, e no seio do qual se encontram já muitos sacerdotes moços,
ao mesmo tempo crentes e ilustrados, não tem força para readquirir nos negócios
da sociedade cristã o quinhão de influência que a disciplina primitiva lhe
dava. E, todavia, só uma espécie de presbiterianismo ortodoxo e simplesmente
disciplinar tornaria agora possível dar-se algum remédio à ruína da igreja;
porque talvez esses homens novos quisessem e soubessem congraçá-la com a
sociedade moderna. Infelizmente, porém, à abdicação dos bispos nas mãos do
papa, começada há séculos e consumada no nosso tempo, tem correspondido a
servidão cada vez mais profunda dos presbíteros. Ao procedimento do episcopado
pode aplicar-se a frase de Tácito onia
serviliter pro dominatione. Tudo o que tende a dar a menor sombra de
independência ao clero inferior irrita o ciúme dos prelados. Sirva em Portugal
de exemplo a pertinaz resistência que se tem feito às transferências de párocos
sem a intervenção episcopal. Decerto as tradições disciplinares do velho
catolicismo não favorecem essas mudanças; não é, porém, a quebra dos cânones
que incômoda os prelados; e, senão, digam se viram já algum deles indignado de
o transferirem para sé mais importante ou mais pingue sem a intervenção do
concílio provincial, embora o consórcio entre o bispo e a sua igreja não seja
menos sério do que o é entre o presbítero e a sua paróquia. O que os mágoa é
que o simples clérigo possa obter a mínima vantagem sem que propriamente lha
deva; que não dependa deles sempre e em tudo. As aspirações desta sucursal da
Casa-professa a que ainda hoje se chama igreja docente resumem-se numa fórmula
breve: perfeito absolutismo na jerarquia sacerdotal, tendo por cúspide um sumo
sacerdote, como Deus infalível. Roma homologou, substituindo-o à constituição
da igreja, o instituto da Companhia, porque assim são mais precisos e pontuais
os movimentos estratégicos do exército ultramontano sob o comando do geral dos jesuítas,
e o pensamento da assembleia celebrada em Trento há trezentos anos tende
sempre, com mais ou menos fortuna, à sua completa realização. O absolutismo na
igreja é como o pródromo do absolutismo na sociedade civil, santificado
pelo Silabus com os anátemas
à liberdade. Depois, fundindo-se ambos numa última evolução, a sua síntese
definitiva seria o poder ilimitado e onímodo do papa, do pontífice deus, sobre
a existência interior e exterior, espiritual e temporal dos povos; seria a
monarquia universal, o despotismo teocrático sonhado pela ambição de Gregório
VII.
Fora necessário estar
inteiramente obcecado para não ver que a revolução que de há muito se ia
preparando no seio do catolicismo, que hoje se realiza, e cujo termo tem
necessariamente de ser fatal para a igreja ou para a liberdade, se espraia já,
onda após onda, entre nós, sem encontrar resistência da parte dos poderes
públicos, e nem sequer a resistência coletiva do partido liberal, que faz
travesseiro para dormir do destino das gerações futuras. Na Alemanha, no país
da força e da vida moral, da ciência e da consciência, as audácias de Roma
perturbam e concitam os ânimos, e o velho catolicismo arma-se para o combate.
Nós não pensamos nessas insignificâncias: nós elegemos e somos eleitos. Que
importa o resto? Loco libertatis
esse coepit quod eligi possumus, dizia Tácito dos romanos corrompidos. Os
povos, como os indivíduos, assentam-se indiferentes e serenos no átrio da morte
quando lhes chega a quadra fatal do idiotismo senil.
E todavia, a questão é ao
mesmo tempo simples e grave.
Tem o governo negado
o exequatur aos documentos
emanados, a bem dizer, diariamente da chancelaria apostólica, donde resultam
alterações no dogma e na disciplina da religião oficial, ou em que são
agredidos os princípios do atual direito público português? Tem o governo
imposto aos prelados a obrigação de lhe submeterem as suas pastorais antes de
serem publicadas, de modo que quaisquer novidades religiosas ou políticas não
sejam propagadas pela autoridade do alto clero? Tem o governo advertido este de
que os púlpitos dos templos fundados pela nação, em eras mais ou menos remotas,
protegidos pelas leis, e mantidos à custa do Estado, não podem servir de
instrumento para a ruína do mesmo Estado? Se tem feito isto e não tem sido
obedecido, o governo é responsável por não haver coagido os seus funcionários eclesiásticos
a respeitarem as instituições e as leis do país. Se não o tem feito, é réu de
traição contra a Carta. Nenhum parlamento impôs essa responsabilidade, é certo;
nenhum, provavelmente, a imporá. Sei isso, e sei porquê. Não é, todavia, menos
verdade que há vinte e cinco ou trinta anos o clero está infringindo a Carta,
se o artigo 6º dela significa o que o mesmo clero e tanta outra gente pretende
que signifique. O bispo, o pároco, o missionário, que propalam doutrinas
tendentes a alterar a religião do país, ou que ofendam o pato social,
tumultuam. Esses homens estão em manifesta rebelião, rebelião, não porque
condenem as instituições em linguagem mais ou menos violenta, o que, se fossem
simples cidadãos, constituiria apenas um delito comum sujeito à apreciação dos
tribunais, mas porque aproveitam a força moral que lhes dá o seu caráter
sagrado e a sua condição de funcionários do Estado para, ao mesmo tempo,
inficionarem com estranhos erros a religião de nossos pais, que, imutável,
deve continuar a ser a
religião oficial, e para aluírem pelos fundamentos a monarquia representativa.
É racionalmente possível
semelhante situação? Há de sofrer-se a anarquia, porque se agita, não nas ruas
e campos, mas sob os dóceis episcopais, no púlpito e no confessionário?
Fizeram-se os governos para proverem nos grandes perigos sociais como este, ou
para estarem espreitando às fisgas das portas se algum mancebo mais ou menos
imprudente, mas sem pensamento reservado, sem compromissos ocultos com
conspiradores estrangeiros, expõem as suas opiniões, embora erradas, a uma assembleia
pacífica, pouco numerosa, e pouco atenta, provavelmente, à substância do
discurso, mas curiosa da beleza da forma? Pois a consciência timorata da
polícia a escrupulizar de ouvir impiedades e a pôr, para as coibir, o bengalão
do quadrilheiro no lugar das fórmulas judiciais é coisa que se tolere? Quando
tais enormidades fossem licitas, não se deveria dar às exuberâncias sinceras da
mocidade mais importância do que tem realmente. Há verduras da inteligência,
como há verduras de coração. Nas índoles enérgicas, nos cérebros vastos é que
elas são maiores. Há a esperar nessas inteligências os efeitos do tempo e das
cogitações. Da inépcia ou da hipocrisia é que nada há a esperar. Quando as
tempestades morais, as longas e acres tristezas da existência e os profundos
desenganos do mundo tiverem devastado aquelas almas, não será raro que se vá
encontrar o ímpio dos vinte cinco anos, lá pela tarde da vida, assentado ao pé
da cruz, a cismar no futuro e em Deus. Não quer dizer isto que os devotos
fervorosos de vinte anos sejam provadamente hipócritas. A convicção religiosa
pode ser mais precoce e mais viva neste ou naquele espírito. Todavia, sempre
será bom verem se lhes descobrem debaixo da burjaca piedosamente mal talhada o
cabeção de jesuíta.
Mas que há de fazer o
governo? Cumprir o seu dever. Compelir o clero oficial a respeitar as doutrinas
da Carta, recusar o beneplácito a tudo que venha de fora alterar a religião do
país, a religião como ela era em 1826, e obstar a que os prelados aceitem e promulguem
como dogmas erros de fé, como direito a quebra dos cânones, como doutrina
católica as blasfêmias contra as máximas fundamentais da sociedade civil. O
governo tem arbítrio para conceder ou negar o exequatur às decisões conciliares ou às letras apostólicas quando
não colidirem com a constituição do reino. As que forem hostis a esta, é óbvio
que há de rejeitá-las, combatê-las, anulá-las. Podem em Roma inventar o que
quiserem, proclamar o que lhes convier, anatematizar o que lhes parecer. Em
Portugal é que nada disso pode ser admitido, se repugnar às instituições
políticas de que forma parte a religião do Estado. Nas próprias resoluções sinodais
ou pontifícias que não se contraponham à Carta, mas de aplicação geral, e que,
portanto, hão de obrigar a generalidade dos cidadãos nas suas relações
religiosas, a simples aceitação do governo não basta: é necessária, para terem
vigor e obrigarem, a aceitação do parlamento.
Mas, dir-se-á, os ministros
não são teólogos nem canonistas para aquilatar os atos e doutrinas recentes da
igreja ou do seu chefe, aferindo-os pelas tradições religiosas do país. Oh
santa simplicidade! Os ministros são tudo o que é preciso que sejam para serem
ministros. Ninguém os recruta para isso. Mas ainda ao mais insciente ministro,
dado que as facções não possam dispensá-los de serem profundamente ignorantes
nestas matérias, uma experiência fácil ensinará se o neocatolicismo é ou não o
mesmo que o catolicismo de nossos pais. Se não é, cumpre extirpá-lo das regiões
oficiais, porque a manutenção do pato social o exige. Os reacionários que, em
nome da Carta, não admitem a mínima tolerância para as divergências religiosas
que por qualquer modo se manifestem, devem, por maioria de razão, ser os
primeiros a aplaudir a severidade do governo.
E a experiência é simples.
Em encíclicas, em livros, em publicações periódicas, em parêneses de missionários
são apodadas de erros, de blasfêmias e de heresias grande parte das doutrinas
contidas na Carta. Diante destas agressões contra os princípios liberais, os
ministros podem talvez esquecer que há tribunais e juízes. Se faltam ao que, em
rigor, é dever seu, eu, pelo menos no foro íntimo, estou quase tentado a
perdoar-lhes. A laxidão neste caso confunde-se um tanto com a tolerância, e a tolerância
nunca se me afigura demasiada. Bom fora que ela desse também uma volta pelo Cassino.
O que me parece demais é que o governo abandone a defesa moral, aliás tão fácil,
dos princípios que são hoje o fundamento da sociedade civil. O clero oficial
não pode recusar, sem previamente resignar as suas funções, o ser instrumento
do governo nessa modesta e legítima defesa. É óbvio que a antiga religião que,
pela Carta, continuou a ser
a religião do reino era e é perfeitamente acorde com aqueles princípios. Sem
isso, a Carta não seria só absurda; seria praticamente impossível. Ou o artigo
6º, como na praxe se interpreta, matava o resto, ou o resto matava o artigo 6º.
As liberdades Pátrias, os direitos e garantias dos cidadãos, o mecanismo do
governo representativo conciliam-se, portanto, com a nossa crença. O pato
social é a consagração de todo esse conjunto de instituições. A sua
coexistência, a sua harmonia são indispensáveis sob o regímen da Carta.
Quando pois, neste país, a
malevolência reacionária declara a religião inimiga da sociedade moderna, não
se refere à religião de Portugal, e se o seu intuito é referir-se a ela, calunia
e insulta a crença nacional. Nesse caso, cumpre que os bispos, os párocos, em
suma, todos os funcionários eclesiásticos desagravem a fé ofendida e esclareçam
o povo para que o erro não possa transviá-lo. É para servirem a religião que a
sociedade lhes confere honras, proventos, isenções, autoridade; e a única
religião que eles têm de ensinar, servir e defender é a que coexiste e se harmoniza
há perto de meio século com as instituições da Carta. É o direito e é o dever
do governo compeli-los a que o façam. É necessário exigir deles manifestações
positivas, e que os bispos, párocos e professores públicos de teologia declarem
falsas e subversivas todas as doutrinas, sejam de quem forem, venham donde
vierem, que tenderem a tornar contraditória a religião do reino com as
condições impreteríveis da sociedade atual estatuídas na Carta.
Que o governo exija isto, e
espere o resultado.
Outra experiência.
Em 1826 a teologia, a
história eclesiástica, os ritos, os cânones ensinavam-se na universidade, nos seminários,
nos cursos de estudos das congregações e das ordens monásticas. As dioceses
tinham os seus catecismos, pelos quais os párocos e mestres educavam a infância
na doutrina católica. Os prelados de então aceitavam esses compêndios,
expositores e catecismos; ordenavam-nos, até. O ensino, portanto, das ciências eclesiásticas
e a doutrinação dos fiéis eram necessariamente conformes com a religião
católica seguida pelo país. Atenhamo-nos, pois, aos catecismos, aos compêndios,
aos expositores, aos livros, em suma, por onde se ensinaram as ciência eclesiásticas
e se educou o clero e o povo desde o princípio deste século até a promulgação
da Carta. Declare-se que todas as doutrinas, ou desconhecidas nesses livros, ou
contrarias às que eles encerram, ou a que se dê uma interpretação ou um valor
diferentes dos que se lhes davam então, ou são heterodoxas ou errôneas, quer se
refiram ao dogma, quer à moral religiosa, quer à disciplina. Teremos assim a
certeza: primeiro, de que continua a
ser religião do reino a que dantes era; em segundo lugar, de que essa é a
crença católica apostólica romana de que fala a Carta. Os bispos eram então,
como o foram sempre, os principais juízes da fé, e os papas os chefes visíveis
da igreja pela sua primazia. Pio VI ou Pio VII valiam bem Pio IX. Nunca, porém,
nessa época Roma lançou sobre nós sequer uma suspeição de heterodoxia, e fossem
quais fossem as divergências entre a cúria romana e a igreja portuguesa ou o
governo português em assuntos disciplinares, nunca se proferiu contra nós a
acusação de cisma. Estávamos, pois, pelas nossas tradições e doutrinas
perfeitamente no seio da igreja. Mantendo exclusivamente o dogma católico, nem
mais, nem menos, como a igreja no-lo ensinou a nós os velhos, e
conservando-nos, em relação à disciplina, onde estávamos, estamos indubitavelmente
no grêmio dessa igreja; porque a religião é imutável, a religião não se
aperfeiçoa. O critério supremo do catolicismo está resumido na célebre
máxima: Quod ubique, quod semper,
quod ab onibus creditum est.
Diga o governo isto aos
bispos, aos cabidos, às escolas de teologia e de cânones, aos párocos, aos
comissários de estudos, aos mestres primários. Envolva-se no manto da sua
ignorância. O seu critério é apenas o do senso-comum. Mantem a religião da
Carta, porque lhe não é lícito manter outra sem crime, e cônscio da própria
incompetência, recorre a um meio seguro de não errar. Imponha o ensino de há cinquenta
ou sessenta anos em matéria religiosa, e vigie pelos seus agentes se alguém exorbita
das doutrinas de então e se atraiçoa com o ensino oral o ensino escrito. O
imperante fará nisto não só o papel de mantenedor da Carta, mas também o de
bispo externo; fará o mesmo que nos séculos áureos do cristianismo faziam os
imperadores romanos com aplauso dos Padres da primitiva igreja.
O tumulto que há de alevantar
este procedimento, aliás tão simples e razoável, sei eu. Verá, meu amigo, o que
vai. Verá a reação a inquietar na jazida com seus furiosos clamores as cinzas
dos nossos mais veneráveis prelados dos fins do século XVIII e dos princípios
deste século, dos magistrados mais íntegros, dos professores mais sábios, dos
mais abalizados jurisconsultos e teólogos, e até a memória de algumas das
congregações religiosas que desapareceram, para os acusar de jansenismo, de
galicanismo, de filosofismo. Verá o que sucede ao clero regular que foi, aos beneditinos,
aos agostinianos, aos oratorianos. Referindo-me à congregação do Oratório, não
falo do pequeno herege ruivo, o terrível padre Pereira de Figueiredo. Esse tem
de há muito recebido o seu quinhão de anátemas maranatas. Tudo
pedreiros-livres. Os reacionários hão de provar até a evidência que o artigo
6.º da Carta não diz o que diz. Quidquid
dixeris, argumentabo. Hão de provar que o verbo continuar significa em rigor ser substituído, substituído o catolicismo da bíblia e da tradição,
o catolicismo de nossos maiores, pelo neocatolicismo, com os seus dogmas de
nova fábrica e matéria velha, com as suas máximas antissociais, com as suas
pretensões à restauração do papado como o concebiam Gregório VII ou Bonifácio
VIII, e com a moral asquerosa dos casuístas do padre Lainez substituída à do
evangelho de Jesus Cristo.
É uma luta, pois, que eu
aconselho ao poder civil? Decerto. Os governos fizeram-se para lutar quando é
necessário manter as instituições do país. O direito está da sua parte. Se o
artigo 6º da Carta tem a significação e a latitude que se lhe dá, é indispensável
que se dê igual valor e extensão ao § 14º do artigo 75º Cumpre que o clero
oficial venha a uma situação definida e precisa. Ou o Silabus ou a Carta. A questão reduz-se a isto.
Mas a aceitação prestada
pela maioria dos bispos às definições ex
catedra do pontífice? Mas a adoção do Silabus pelos prelados como norma de doutrina? Mas as decisões
do concílio ecumênico do Vaticano? Sem debater as condições que a tradição
exige para terem valor as definições pontifícias, e se é ou não pueril a
moderna distinção ex catedra e non ex catedra, inventada para salvar as
contradições dos papas em matérias de fé e de costumes: sem indagar se a adesão
dos bispos representa sempre a adesão das respectivas igrejas; sem finalmente
individuar os caracteres que assinalam a ecumenicidade de um concílio, e até
onde obrigam as suas resoluções, quando acerca destas não houve, ao menos, a
unanimidade moral; evitando, em suma, questões abstrusas, origem de intermináveis
debates, limite-se o governo a exigir o cumprimento rigoroso do respectivo
artigo da Carta interpretado pela reação. Que mais querem? Os neocatólicos
constituídos em dignidade, exercendo funções públicas, ficam na plena liberdade
interior de crerem o que lhes aprouver: nos atos exteriores hão de ser
católicos de 1826. Suponho que a teoria é esta. Colidem as infalibilidades
papais? Deixá-las colidir. Admitamos que a boa, a de lei, é a de hoje. Os neocatólicos
estão salvos. Vai para o inferno o Estado quando morrer. Manda-o para ali a
Carta. Cumprir e fazer respeitar as instituições e as leis é a missão dos
ministros; não o é a salvação das almas. Isso pertencia dantes à igreja, e
pertence hoje, por transação particular, à Companhia de Jesus.
Que ninguém se assuste com
a imensa e onipotente autoridade de um concílio ecumênico. A primeira condição
da sua força é a certeza de sua ecumenicidade e da liberdade das suas decisões;
aliás não passaria de um conciliábulo; de um latrocínio de Éfeso, conforme a frase dos Padres de Calcedônia.
Ainda, porém, que se dê tal certeza, nem por isso o poder temporal fica inibido
de negar o seu assenso às resoluções sinodais. Figurava de ecumênico o concílio
de Trento, e todavia a França recusou constantemente aceitá-lo, sem distinção
de dogma ou de disciplina. Havia, até, certa afetação nos atos oficiais em
chamar assembleia de Trento ao
concílio. Foi infrutuoso todo o empenho do clero francês em fazer admiti-lo,
porque as barreiras que lhe opunham ora os reis, ora os tribunais, eram
insuperáveis. E nunca a França foi por isso reputada cismática, nem os
reis cristianíssimos deixaram
de ser os filhos primogênitos da
igreja. Era simples a explicação da repulsa. Muitas das resoluções disciplinares
do concílio repugnavam aos princípios e às leis que a sociedade temporal
reputava úteis ou necessárias à sua existência. Aceitando o concílio, a
sociedade feria-se ou suicidava-se. Era contra o direito natural. À cautela,
repelia tudo, porque nas deliberações do concílio nem sempre era fácil
discriminar o doutrinal do disciplinar. Nenhum perigo havia naquela rejeição
absoluta. Se o concílio não fizera senão confirmar a doutrina católica derivada
das suas duas únicas fontes, a Escritura e a tradição constante e universal da
igreja, a França lá seguia essa doutrina desde remotíssimos tempos. Se, porém,
o concílio inventara novos dogmas, ou alterara em qualquer coisa a antiga
crença, deixava de ser concílio, e rejeitando-o in totum, a França separava-se tanto da igreja universal, como se,
por um ato solene, rejeitasse a Confissão de Augsburg.
Mas — perguntar-me-á — pode
razoavelmente esperar-se que haja um desses governos a que estamos habituados,
com energia e vontade suficientes para empreender cometimento de tal ordem?
Deve fazer-se neste ponto uma distinção essencial. Hoje, sem dúvida, do grêmio
de qualquer das facções que disputam entre si a ponta da corda que vai
arrastando para futuro incerto o corpo enfermo do Estado, não devemos esperar
que saia um governo capaz de reduzir o debate entre o liberalismo e a reação a
estes simples termos. Todas elas dependem, até certo ponto, do cura na questão
eleitoral, questão suprema e talvez única das facções, instinto de vida que é desculpável.
Ora o cura é o servus a mandatis do
bispo, como o bispo é o servus a
mandatis do papa, ou para falar com mais exação, do geral da
Companhia. Depois, há aqui, ali, não se sabe bem onde, o jesuíta; o jesuíta,
que se encontra e sente, sem se ver, em toda a parte, desde os paços até a
taberna; o jesuíta, que veste gentilmente a farda bordada ou a farda lisa, a
casaca ou o paletó, a beca, a loba, preta, roxa, encarnada, ou a grosseira
jaqueta do operário; o jesuíta, que, se cumpre, é mais ímpio que Voltaire, ou
mais fanático do que Pedro de Arbués e Torquemada; que é absolutista,
democrata, socialista, comunista, se a ordem de Santo Inácio interessa com
isso; que seria, até, liberal, daqueles célebres liberais do Silabus, se hipótese tão abominável
fosse admissível. Ora o jesuíta pode vigiar a urna, morigerar a urna,
penitenciar a urna. É pois necessário ao homem de Estado (talvez conheça o tipo
nacional da espécie) manter-se em certa altura de tato Político para não
adivinhar o jesuíta, para não crer na existência do jesuíta, dessa singular
invenção de certos visionários. Precisa a Pátria de que a jerarquia eclesiástica
e a congregação não venham, irritadas, opor o seu voto, a sua preponderância,
às benevolências da urna.
Eis porque é impossível,
por enquanto, travar seriamente a luta em chão firme. Deixe gritar contra a
reação. Puro formulário. Bem como a responsabilidade ministerial, o epíteto de reacionário
não significa nada, na linguagem dos homens de Estado. É um extrato do
vocabulário Político, que a fação decaída mete impreterivelmente na algibeira,
quando desce das regiões do poder, para apupar e injuriar cá da rua os de outra
fação que para lá subiram. De resto, amor e respeito onímodo e universal à
congregação. Se algum dia, porém, a ginastica das ambições deixar de ser o espetáculo
mais divertido destes reinos e passar de moda, há uma reflexão gravíssima a que
antes de tudo tem de atender-se. Num país, onde, por ignorância do clero
inferior e má-fé ou desleixo dos prelados, as maiorias incultas creem nas
bruxas, nos feitiços, nas mulheres de virtude, nas almas penadas, na permutação
de milagres por ex-votos de cera, e onde, falando geralmente, as minorias
inteligentes e instruídas buscam estontear-se, suprimir uma voz interior que
fala de Deus, com a indiferença ou com o cepticismo, o clero, jesuíta ou
não-jesuíta, há de forçosamente exercer certa influência, que, por mais que ele
se desconsidere ou o desconsiderem, não será fácil destruir. Para combater essa
influência, quando nociva, a incredulidade superciliosa não é a melhor das
armas, porque a incredulidade é a negação de uma tendência natural do homem, a
religiosidade; é o espírito violando-se a si próprio. As multidões não podem
ser, não serão nunca incrédulas. Onde e quando lhes faltar a boa doutrina,
seguirão a má. Nas almas incultas a precisão da crença há de sempre
satisfazer-se. Por uma lei psicológica, o crer tenaz supre nelas o crer
reflexivo das inteligências privilegiadas. Não tem arte, nem ciência para
obliterar em si uma condição humana, o aspirar, com maior ou menor ardor, ao
infinito, ao imortal. Se deixardes sair de todo pela porta o catolicismo
cristão, entrar-vos-á pela janela o que ainda cá falta do moderno catolicismo
do beatério, com os seus intuitos dissolventes, com as suas extravagâncias dogmáticas
da imaculidade e da infalibilidade, e com as blasfêmias sociais do Silabus.
Mas, radicalmente, a
questão não é nem com os governos de hoje, nem com os homens de hoje. Na
escrituração da primeira entre as companhias comerciais do mundo, a Companhia
de Jesus, nós os velhos, e ainda uma ou duas gerações dos que tem nascido
depois de nós, fomos já levados, como perda redonda, como valores incobráveis,
ao livro de conta de ganhos e perdas. Do que se trata seriamente nas
especulações da Casa-professa é da infância; daqueles que hão de receber as
primeiras impressões morais e religiosas de mães filiadas nas associações de
diversos feitios e nomes, sob qualquer das epigrafes da mulher deus, da mulher redentora.
Decorridos mais alguns anos, os sintomas do mal serão cada vez mais visíveis.
Então a iminência do perigo há de coagir os homens novos a tratarem de por
sérias barreiras a esse imenso lavor subterrâneo que tende a converter a
Europa, sobretudo a Europa latina, numa como vasta cópia das Missões do
Paraguai. Se, pois, esta carta sair das suas mãos, é aos homens de quinze até
vinte e cinco anos, cuja educação o jesuitismo, aninhado entre os afagos
maternos, não tenha já viciado, que as precedentes ideias puderam, porventura,
aproveitar. Deixo por isso à apreciação de vossa senhoria a conveniência ou
inconveniência absolutas de as tornar conhecidas, bem como a oportunidade ou
inoportunidade delas. Nem ambiciono, nem temo que as minhas opiniões, neste
como em qualquer outro assunto, sejam sabidas. Ao cabo da existência, os aplausos
ou as censuras do mundo fazem medíocre impressão em quem está costumado a
refletir. Ou a nossa memória se desvanece nos longes indecisos do progressivo
esquecimento, ou são outros os juízes que hão de definitivamente sentenciar-nos;
juízes suspeitos quando julgarem as questões de opinião ou de interesse da sua
época, imparciais e incorruptíveis quando julgarem as coisas e os homens do
nosso tempo.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1871, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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