7/03/2019

A supressão das conferências do Cassino (Ensaio), por Alexandre Herculano


A supressão das conferências do Cassino
(A J. F.)
Teve vossa senhoria a bondade de me remeter o discurso que o Sr. Antero de Quental proferiu ou devia proferir no Cassino (da sua carta não infiro claramente se o fato chegou a verificar-se) o que, com os discursos dos oradores que o precederam, deu aso a serem tolhidas pelo governo aquelas conferências. Pede-me vossa senhoria que leia o discurso e lhe dê a minha opinião sobre o seu conteúdo e sobre o procedimento da autoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco é o tempo que me sobeja para a leitura, nem, a falar verdade, o espírito se inclina muito para esse lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assuntos graves, e até abstrusos, que, porventura, não cabem na capacidade da minha inteligência. Acresce que geram em mim tristeza as nossas questões públicas, e com o egoísmo de velho fujo de pensar nelas. Apesar, porém, de tudo isso, forcejarei por fazer uma exceção a favor deste discurso, por certa simpatia que sinto pelo autor, não obstante a profunda divergência que há entre as nossas opiniões. É, talvez, porque no seu caráter me parece descobrir uma destas índoles nobremente austeras que cada vez se vão tornando mais raras. Revela o trabalho que me remete as precipitações e os ímpetos próprios da idade de quem o delineou. Só os anos nos curam desse defeito. Quisera eu que o Sr. Antero de Quental conhecesse melhor a doutrina e a tradição verdadeiramente católicas, porque havia de ser menos injusto com o catolicismo, embora não fosse menos severo, ou talvez o fosse ainda mais, com os padres.
Quanto à proibição das conferências, que quer que lhe diga? É pior que uma ilegalidade, porque é um despropósito; e na arte de governar, os despropósitos são às vezes piores que os atentados. O que seria escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes será agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se tomou por pretexto da supressão das conferências o desagravo da religião ofendida. Erro deplorável. Ideia perseguida, ideia propagada: lei perpétua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por certo, o governo tem obrigação de manter a religião do Estado, como tem obrigação de manter todas as instituições do país. Mas o respeito pela inviolabilidade do pensamento entra também no número das suas obrigações. E quando a religião do Estado e a liberdade do pensamento colidem, é aos tribunais judiciais que cumpre dirimir a contenda. O discurso oral é manifestação da ideia, como o é o discurso escrito. Não se pode suprimir o orador, como se não pode suprimir o escritor. Para um, como para outro, há a responsabilidade e a punição.
Depois, creio pouco que o Sr. Antero de Quental, apesar da sua clara inteligência, e da autoridade moral que lhe dá a integridade do seu caráter, seja assaz poderoso para derribar o catolicismo, a religião de São Paulo e de Santo Agostinho, de São Bernardo e de Santo Tomás, de Bossuet e de Pascal. O perigo, não absoluto, mas relativo, está noutra parte. Agredido pela frente, o catolicismo pode aplicar a si, melhor que o protestantismo, o verso do belo hinário de Lutero.
Ein feste Burg ist unser Gott.
Não se toma a fortaleza divina; mas pode ser minada e aluída por uma guarnição desleal. É este atualmente o grande perigo que a ameaça: não são os discursos do Cassino. A situação da igreja assemelha-se hoje àquela em que se achava no IV século, quando o arianismo, no dizer de São Jerônimo, triunfava por toda a parte, e até o papa Libério aderia à fórmula ariana do conciliábulo de Sírmio e aceitava como ortodoxa a heresia. Esta situação tristíssima da igreja é coisa um pouco mais grave para a religião do Estado do que todas as hostilidades imagináveis dos seus adversários leais.
Que me seja lícito fazer uma pergunta, que vai maravilhá-lo. Existe ainda entre nós o catolicismo proclamado instituição social pela Carta? A resposta que eu próprio darei a esta pergunta ainda, porventura, o maravilhará mais. Existe apenas na fé perseverante, mas silenciosa e triste, de alguns fiéis, que deploram os destinos preparados à igreja por um clero geralmente facioso e sem convicções. Hoje a igreja, se pudesse perecer, correria grande risco de não completar o vigésimo século da sua existência. Dar-lhe-ei nesta carta a razão do meu dito, embora isso a torne, talvez, demasiado longa; mais longa, por certo do que eu desejaria.
Caráter fundamental do catolicismo verdadeiro, do catolicismo que nos inculcaram na infância, era a imutabilidade, a perpetuidade e a universalidade dos seus dogmas e das suas doutrinas na sucessão dos tempos, caráter precisamente descrito no célebre Comonitorium de Vicente de Lerins. Nessa crença, tão incompreensível seria a supressão de um dogma antigo, como a adição de um dogma novo, ou (para me servir de frase de um teólogo eminente do século XV) nessa crença não se tinha por menor heresia afirmar ser de fé o que não o era, do que negar que o fosse o que era [4]. Nisto consistia praticamente a imensa vantagem do catolicismo sobre as seitas dissidentes, indefinidamente variáveis, flutuantes, subdivididas de dia para dia, gerando as mais desvairadas aberrações religiosas. Além disso, a igreja tinha leis que a regiam desde os séculos primitivos e que só os parlamentos cristãos, os concílios, podiam alterar, quando essas alterações não fossem de encontro às tradições apostólicas, e a que todos os membros da sociedade católica, desde o papa até o mais obscuro entre os fiéis, eram obrigados a obedecer. Depois, na economia da sua administração interna, nos ritos, e em outras manifestações acidentais do culto, cada igreja nacional, e até cada província eclesiástica, tinha os seus usos e liberdades especiais, que a igreja universal consentia, porque o que constitui verdadeiramente a unidade é a unidade da fé. Governo parlamentar, máximas fundamentais dominando através dos séculos a legislação canônica, direito comum conciliando-se com o respeito às autonomias, ninguém superior à lei, a fraternidade humana, a tolerância material ao lado da intolerância doutrinal; em suma, uma grande parte das conquistas da civilização moderna são apenas velhas conquistas do cristianismo transferidas para a sociedade temporal. Cuidando aportarem a praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem plantado padrões de descobrimento em regiões onde, embora ocultos pelos musgos e sarças, os padrões da cruz estão plantados há mais de mil e oitocentos anos.
Sem dúvida, durante a Idade Média, grande número de abusos se tinham introduzido na disciplina, no mecanismo da sociedade católica. Houve sempre homens grandes e virtuosos que lutassem contra esses abusos, mas nem sempre alcançavam moderá-los e mormente vencê-los. Na época dos concílios de Constança e de Basileia, os dois últimos concílios sinceros e livres que a história eclesiástica memora, sorriu para a igreja uma esperança de reforma; mas essa esperança desvaneceu-se em breve. Os abusos adquiriram novo vigor quando o renascimento veio substituir as tendências cristãs pelas tendências pagãs, e se tornaram possíveis papas como Alexandre VI e Leão X, mais devotos da trindade de Momo, Vênus e Baco do que da trindade evangélica. Então, em lugar da reforma, veio a revolução: veio Lutero. O catolicismo, mutilado, tornou-se fragmento, embora grandioso fragmento. A resistência à revolução gerou, porém, a assembleia de Trento. Trento exprime um fato notável. A igreja servira, séculos antes, como de tipo à sociedade temporal: a sociedade temporal, onde as liberdades da Idade Média tinham cedido já o campo ao absolutismo vitorioso, refletiu na reorganização da igreja. Como o absolutismo trouxera vantagens na vida civil, trouxe-as também na vida espiritual; mas, tanto aqui como ali, essas vantagens foram bem modestas comparadas com os males que derivavam da nova contextura da sociedade religiosa e da sociedade temporal; tanto aqui como ali, um abuso derribado era o prenuncio de muitos que iam pulular. Esses abusos, quer antigos quer modernos, ingeridos na sociedade cristã, invadiam sempre mais ou menos as igrejas nacionais. Mas, no meio da decadência exterior, a essência do catolicismo — o dogma — mantinha-se intacta. O símbolo salvo pelo concílio de Niceia e pelos esforços de Santo Atanásio continuou até nós imutável. Na própria disciplina, o poder temporal, quando nisso interessava, reprimia as tendências abusivas de Roma, e até, não raramente, o episcopado, momentaneamente desperto, recordava-se da sua instituição divina. Novo Encelado, revolvia-se debaixo da enorme pressão do papado e, batendo com as algemas nos degraus do trono pontifício, fazia-o estremecer. Travavam-se às vezes lutas sérias entre os dois absolutismos. Ambos tinham por aliado o céu. Tu es Petrus, alegava o papa: Per me reges regnant, redarguia o rei. Pasce oves meas: acudia o papado. Onis potestas a Deo: repunha o absolutismo. Roma, por via de regra, não levava a melhor, sobretudo quando os bispos, ou por conveniência ou por convicção, se associavam ao poder temporal, o que era frequente.
Ao promulgar-se a Carta, Portugal achava-se nesta situação religiosa. A Carta, convertendo o catolicismo em instituição política, adotava-o como ele existia no país — essência e forma; dogma e disciplina. Disse o legislador que a religião católica apostólica romana continuaria a ser a religião do reino: não disse que essa instituição seria uma coisa nova, flutuante, mudável, conforme aprouvesse aos jesuítas ir suprimindo ou anexando dogmas à doutrina católica, mediante o assenso ou inconsciente ou incrédulo do papa e do episcopado. O que continua não é o que vem de novo; é o que existe no ato de continuar. Ora os fatos estão desmentindo esta doutrina irrefragável. Desde a promulgação da Carta tem-se realizado gradualmente uma revolução na igreja católica. Com assombro da gente ilustrada e sincera, vimos transformar em dogma uma superstição dos séculos de trevas, rendoso mealheiro de franciscanos, tintura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviar receitas na botica de Santo Inácio, a imaculada conceição de Maria, dogma que forçadamente conduz ou à ruína do cristianismo pela base, tornando inconcebível a Redenção, ou à deificação da mulher, à mulher deus, à mulher redentora, recurso tremendo nas mãos do jesuitismo, que, lisonjeando a paixão mais enérgica do sexo frágil, a vaidade, o converte em instrumento seu para dilacerar e corromper a família, e pela família a sociedade. Depois, ludibrio desses homens de trevas, vemos o papa, celebrando uma espécie de concílio disperso, mandar perguntar pelas portas dos bispos que tal acham aquele apendiculo à fé católica. Os bispos, pela maior parte, encolhem os ombros ou riem-se, dizem-lhe que está vistoso, e vão jantar. Depois, os que falam em nome do pontífice, tendo tornado virtualmente absurdo, por inútil, o sacrifício do Gólgota para a redenção da humanidade, ou dando ao Cristo um adjunto na sua obra divina, divertem-se em negar no Silabus os dogmas, um pouco mais verdadeiros, da civilização moderna, e tendo elevado o erro, apenas tolerado, e ainda mal que tolerado, nos domínios do opinativo, a dogma indisputável, e santificado assim uma opinião pior que ridícula, convidam a sociedade temporal à guerra civil. É a Companhia de Jesus na sua manifestação mais característica. Os princípios da Carta, como os de todas as constituições análogas, são condenados, anatematizados, exterminados in peto. É a comuna de Paris, prefigurada em Roma, a arrasar e queimar, em vez de edifícios, todas as conquistas do progresso social, todas as verdades fundamentais da filosofia política. Ao concílio vagabundo segue-se então o concílio parado. É que falta ao Silabus a sanção divina. Dar-lha-á a infalibilidade endossada pelo episcopado ao papa ou à sua ordem. Ajuntam-se não sei quantos bispos, muitos bispos; uns reais, outros pintados: agremiam-se; e o papa pergunta ao grêmio, em vez de o perguntar a si mesmo, se é infalível. Os bispos tornam a encolher os ombros ou a rir-se, dizem-lhe que sim, e vão cear. O papa infalível, que não sabia se era falível, fica enfim descansado, e os bispos ceados, dormidos e desapressados do visum est Spiritui Santo et nobis do concílio apostólico de Jerusalém, transferido definitivamente para a Casa-professa, voltam a anunciar aos respectivos rebanhos essa nova correção das errôneas doutrinas da primitiva igreja.
Tais são os deploráveis e incríveis sucessos que temos presenciado. O jesuitismo converte o infeliz Pio IX num Libério ou num Honório, induzindo-o a subscrever heresias, e a grande maioria dos bispos, criando na igreja uma situação análoga à dos tempos em que o arianismo dominava por toda a parte, e abandonando a máxima sacrossanta da imutabilidade da fé, tornam-se em arautos e pregoeiros dos desvarios de Roma. As novidades religiosas vem perturbar as consciências, e o marianismo e o infalibilíssimo quase levam o cristianismo de vencida na igreja católica. Ninguém vê isto; ninguém sabe disto. É que, em Portugal, os que ainda creem em Deus e na divina missão de Jesus, sem crerem na conceição imaculada nem na infalibilidade do sumo pontífice, pelo seu diminuto número e pela tibieza que é geral em todas as crenças, não tem nem força, nem resolução para arrostar com as iras do beatério neocatólico. O governo, esse vê só o Cassino, ouve só os discursos do Cassino. Aquilo é que ameaça subverter a religião, a monarquia e a liberdade. Dedit abissus vocem suam. A voz do abismo são aqueles quatro ou cinco mancebos que vão falar de cinco ou seis questões desconexas a cem ouvintes, metade dos quais provavelmente não entendem a maior parte do que eles dizem, o que também é muito possível me sucedesse a mim.
Isto é simplesmente, maciçamente, indisputavelmente ridículo.
O que é grave em si, e como tendência, e como sintoma, é a intervenção da polícia preventiva nessa questão: é a polícia violando um direito anterior à lei positiva, o direito da livre manifestação das ideias, direito exercido por indivíduos que se apresentam franca e lealmente adversários do catolicismo e aceitam sem tergiversar a responsabilidade e a penalidade que possam corresponder ao seu ato. O governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos está acima e além das prevenções da polícia. Dizer-se que se respeita a liberdade do pensamento, sob a condição de não se manifestar, é pueril. Na manifestação é que reside a liberdade, porque só os atos externos são objeto do direito, e a liberdade de pensar em voz alta é um direito originário, contra o abuso do qual não pode haver prevenção, mas unicamente castigo. Menos essencial é o direito eleitoral ou a garantia do júri. Traz aquele não raro violências, corrupções, tumultos: traz esta pela indulgência, às vezes pela venalidade, frequentemente pelo temor, audácia nos maus, frequência nos crimes. A própria religião dá pretextos ao fanatismo, e o fanatismo tem escrito a sua história com lágrimas e sangue na face dos séculos. Pois bem: suprimi o eleitor; suprimi o jurado; suprimi a religião; suprimi tudo, pelos perigos que de tudo podem advir. Fique só a prevenção e a polícia.
O seu amigo Antero de Quental podia fazer dez, vinte, cem conferências contra o catolicismo, contanto que não perturbasse a paz pública, e o governo podia querelar dele dez, vinte, cem vezes. Di-lo o artigo 363º do código civil. Não assim a respeito das novidades que tem alterado a índole da igreja católica. Aqui não se trata do modo como um cidadão exerce um direito inauferível: trata-se do modo como funcionários públicos, segundo a jurisprudência recebida, exercem as suas funções. Visto que assim se entende a Carta, os prelados diocesanos e o seu clero são funcionários, não só porque o poder temporal lhes dá uma intervenção maior ou menor em assuntos de competência civil: são funcionários públicos no próprio ministério sacerdotal; porque, convertida a religião em instituição política, os ministros dela são agentes e executores da lei constitucional, justamente na esfera espiritual; absurdo, na verdade, grande, mas corolário inelutável de outro absurdo maior, a interpretação que os reacionários e ainda alguns liberais dão ao artigo 6.° da Carta.
Eram acaso dogmas em 1826 o imaculatismo e o infalibilismo? Quem ousaria afirmá-lo? Era em 1826 um dos caracteres essenciais do catolicismo a perpetuidade da fé e a sua identidade através dos séculos? Ninguém se atreveria a negá-lo. Os próprios restauradores de velhos erros, agora convertidos em dogmas, fazem esforços desesperados para os filiarem nas tradições da igreja. São esplendores do céu que andavam nublados. Aceitavam-se, porventura, antes dessa época as máximas do Silabus contraditórias com as leis do reino, com o seu direito público? Já notei que nem o próprio absolutismo aceitava aquelas que o contrariavam quando, dispersas, não se pensava ainda em compaginar essa espécie de mapa estratégico da campanha contra a civilização. O absolutismo tinha o placet régio para repelir as invasões de Roma e os próprios erros de doutrina em que Roma, ou antes os sucessores de Pedro, podiam, como ele, não perpetuamente, mas temporariamente, cair; e o absolutismo usava amplamente desse recurso. Era uma praxe santificada pelo simples senso comum, pelo direito que tem todo o dono de casa de examinar as doutrinas que os vizinhos lhe inculcam à Família. Daí derivou a legitimidade da convocação dos primeiros concílios ecumênicos pelos imperadores romanos.
A história do placet ou exequatur é por toda a parte rica de peripécias. Nos últimos séculos, o rei e o papa eram dons duelistas de supremo cavalheirismo e esmerada educação. Das mutuas delicadezas, dos ápices de benevolência não omitiam um só ao encetarem qualquer luta. Quase que sentiam um pelo outro mutua ternura. O rei beijava, cá de longe, o pé do papa: lá de longe, o papa estendia para o seu filho predileto a bênção apostólica. A questão, que se iniciava pela recusa do placet, terminava, de ordinário, por ser intimado o núncio para sair da corte em vinte e quatro horas, e por ser o país posto em interdito. Chamava-se então a isto, na frase dos homens de estado e dos jurisconsultos, concórdia do sacerdócio e do império.
A Carta, transformando a religião em instituição política, manteve felizmente o beneplácito a que estavam sujeitas sem exceção todas as letras apostólicas de caráter genérico. Digo, felizmente, porque, em vez de se dar ao artigo 6º da Carta uma interpretação racional, e que não esteja em antinomia com as garantias dos cidadãos e com as máximas mais indubitáveis das sociedades livres, dá-se-lhe, com aceitação comum, um valor monstruoso e iliberal. Racionalmente, a instituição de uma religião do Estado num país livre não pode significar senão uma homenagem à crença da grande maioria dos cidadãos, homenagem representada pela manutenção do sacerdócio e do culto a expensas do Estado, pelo singular privilégio de ser este culto o único público, e pelas demonstrações de respeito para com a religião da sociedade que se exigem de todos os cidadãos. Ao lado disto, num país livre, não pode deixar de ser escrupulosamente mantida a plena liberdade da consciência, e removida completamente a mistura dos atos e fórmulas religiosas com as fases e com os atos da vida civil em que tal mistura produza anulação de direitos ou da igualdade de direitos. Com semelhante garantia, e nesta situação transitória entre o antigo predomínio de uma crença exclusiva e tirânica e a distinção precisa entre o estado e a igreja, que tem de vir a formular-se definitivamente nas sociedades futuras, as prevenções do § 14º do artigo 75º da Carta seriam excessivas, e até, porventura, desnecessárias. Mas, quando se quer que a existência de uma religião do Estado importe para a universalidade dos cidadãos o dever de se conformarem com os preceitos dela em todos aqueles atos da vida exterior que tais preceitos possam abranger, e se dá a uma crença religiosa, isto é, a certa norma das relações entre o homem e Deus, os caracteres e a natureza de uma norma das relações entre o homem e a sociedade, é óbvio que se atribui à religião uma índole mundana, temporal, derivando unicamente a sua autoridade e a sua força coactiva de ser instituição política, e essa força e autoridade hão de manter-se, interpretar-se, aplicar-se, circunscrever-se, pelos mesmos meios e pelo mesmo modo por que se mantem, interpretam, aplicam e circunscrevem as das outras instituições análogas.
Suposta a teoria da coação religiosa, suprimir na constituição a doutrina do beneplácito seria absurdo, porque seria impossível sem ela impor aos ministros a responsabilidade por tolerarem qualquer infração do artigo 6º da Carta, quando a infração procedesse de abusos da cúria romana, de excessos do poder espiritual, do mesmo modo que seria impossível impor-lha recusando-lhes a inspeção dos atos do clero oficial, ainda relativos às suas funções puramente sacerdotais. É certo que o direito de beneplácito é um dos erros feios anatematizados no Silabus; mas também é certo que no Silabus está anatematizado um bom terço dos artigos constitucionais da Carta.
Tendo, pois, os ministros por dever a manutenção da crença oficial na sua integridade, nem mais nem menos, e possuindo os meios que lhes faculta a constituição para desempenharem esse dever, como é que os governos desta terra têm defendido, em relação às agressões do poder espiritual, a instituição política da religião do Estado? De um modo, que, se a responsabilidade ministerial fosse entre nós coisa séria, e não uma frase inventada para os ambiciosos em disponibilidade darem vaias aos ambiciosos em exercício, receio muito que a maioria dos nossos ministros, há vinte e cinco ou trinta anos a esta parte, tivessem corrido grande risco de severo castigo. Essas loucuras praticadas no centro da unidade católica, a que já me referi, reproduzem-se entre nós. A história da igreja portuguesa nos últimos anos é uma contradição permanente com a Carta. Altera-se o dogma e busca-se alterar a disciplina. Nas pastorais, nos púlpitos, na imprensa infalibilista inculcam-se novidades no regímen da igreja e novidades de crença. Os missionários e uma parte do clero curado repetem ao povo quantas sensaborias se espreguiçam por essas vastas charnecas das alocuções que os jesuítas assinam com o pseudônimo de Pio Nono. Os princípios que são hoje condições essenciais da existência política da nação portuguesa apontam-se ao povo ignorante como invenções do diabo. Missões dos agentes do jesuitismo, umas ineptas, outras astutas, instilam por toda a parte o veneno do ultramontanismo extremo, e corrompem o elemento social, a família, sobretudo pela fraqueza mulheril. Vemos bispos que protegem esses agentes, e que os aplaudem; párocos que os aceitam para que eles façam o que, em diverso sentido, fora dever seu fazer. É uma conspiração permanente, implacável contra a sociedade. As resistências nascidas no seio do próprio clero são dificílimas, senão impossíveis. O que tentasse levantá-las seria esmagado. Os antigos institutos monásticos, que pela emulação, e pela seriedade e profundeza dos seus estudos, se contrapunham ao jesuitismo e à sua ciência faciosa e dolosa, desapareceram, e se hoje se restaurassem entre nós, sucederia o que sucede quase por toda a parte: ir-se-lhes-ia encontrar a roupeta de Santo Inácio debaixo da cogula beneditina ou agostiniana. O presbiterado, que é como a burguesia da igreja, e no seio do qual se encontram já muitos sacerdotes moços, ao mesmo tempo crentes e ilustrados, não tem força para readquirir nos negócios da sociedade cristã o quinhão de influência que a disciplina primitiva lhe dava. E, todavia, só uma espécie de presbiterianismo ortodoxo e simplesmente disciplinar tornaria agora possível dar-se algum remédio à ruína da igreja; porque talvez esses homens novos quisessem e soubessem congraçá-la com a sociedade moderna. Infelizmente, porém, à abdicação dos bispos nas mãos do papa, começada há séculos e consumada no nosso tempo, tem correspondido a servidão cada vez mais profunda dos presbíteros. Ao procedimento do episcopado pode aplicar-se a frase de Tácito onia serviliter pro dominatione. Tudo o que tende a dar a menor sombra de independência ao clero inferior irrita o ciúme dos prelados. Sirva em Portugal de exemplo a pertinaz resistência que se tem feito às transferências de párocos sem a intervenção episcopal. Decerto as tradições disciplinares do velho catolicismo não favorecem essas mudanças; não é, porém, a quebra dos cânones que incômoda os prelados; e, senão, digam se viram já algum deles indignado de o transferirem para sé mais importante ou mais pingue sem a intervenção do concílio provincial, embora o consórcio entre o bispo e a sua igreja não seja menos sério do que o é entre o presbítero e a sua paróquia. O que os mágoa é que o simples clérigo possa obter a mínima vantagem sem que propriamente lha deva; que não dependa deles sempre e em tudo. As aspirações desta sucursal da Casa-professa a que ainda hoje se chama igreja docente resumem-se numa fórmula breve: perfeito absolutismo na jerarquia sacerdotal, tendo por cúspide um sumo sacerdote, como Deus infalível. Roma homologou, substituindo-o à constituição da igreja, o instituto da Companhia, porque assim são mais precisos e pontuais os movimentos estratégicos do exército ultramontano sob o comando do geral dos jesuítas, e o pensamento da assembleia celebrada em Trento há trezentos anos tende sempre, com mais ou menos fortuna, à sua completa realização. O absolutismo na igreja é como o pródromo do absolutismo na sociedade civil, santificado pelo Silabus com os anátemas à liberdade. Depois, fundindo-se ambos numa última evolução, a sua síntese definitiva seria o poder ilimitado e onímodo do papa, do pontífice deus, sobre a existência interior e exterior, espiritual e temporal dos povos; seria a monarquia universal, o despotismo teocrático sonhado pela ambição de Gregório VII.
Fora necessário estar inteiramente obcecado para não ver que a revolução que de há muito se ia preparando no seio do catolicismo, que hoje se realiza, e cujo termo tem necessariamente de ser fatal para a igreja ou para a liberdade, se espraia já, onda após onda, entre nós, sem encontrar resistência da parte dos poderes públicos, e nem sequer a resistência coletiva do partido liberal, que faz travesseiro para dormir do destino das gerações futuras. Na Alemanha, no país da força e da vida moral, da ciência e da consciência, as audácias de Roma perturbam e concitam os ânimos, e o velho catolicismo arma-se para o combate. Nós não pensamos nessas insignificâncias: nós elegemos e somos eleitos. Que importa o resto? Loco libertatis esse coepit quod eligi possumus, dizia Tácito dos romanos corrompidos. Os povos, como os indivíduos, assentam-se indiferentes e serenos no átrio da morte quando lhes chega a quadra fatal do idiotismo senil.
E todavia, a questão é ao mesmo tempo simples e grave.
Tem o governo negado o exequatur aos documentos emanados, a bem dizer, diariamente da chancelaria apostólica, donde resultam alterações no dogma e na disciplina da religião oficial, ou em que são agredidos os princípios do atual direito público português? Tem o governo imposto aos prelados a obrigação de lhe submeterem as suas pastorais antes de serem publicadas, de modo que quaisquer novidades religiosas ou políticas não sejam propagadas pela autoridade do alto clero? Tem o governo advertido este de que os púlpitos dos templos fundados pela nação, em eras mais ou menos remotas, protegidos pelas leis, e mantidos à custa do Estado, não podem servir de instrumento para a ruína do mesmo Estado? Se tem feito isto e não tem sido obedecido, o governo é responsável por não haver coagido os seus funcionários eclesiásticos a respeitarem as instituições e as leis do país. Se não o tem feito, é réu de traição contra a Carta. Nenhum parlamento impôs essa responsabilidade, é certo; nenhum, provavelmente, a imporá. Sei isso, e sei porquê. Não é, todavia, menos verdade que há vinte e cinco ou trinta anos o clero está infringindo a Carta, se o artigo 6º dela significa o que o mesmo clero e tanta outra gente pretende que signifique. O bispo, o pároco, o missionário, que propalam doutrinas tendentes a alterar a religião do país, ou que ofendam o pato social, tumultuam. Esses homens estão em manifesta rebelião, rebelião, não porque condenem as instituições em linguagem mais ou menos violenta, o que, se fossem simples cidadãos, constituiria apenas um delito comum sujeito à apreciação dos tribunais, mas porque aproveitam a força moral que lhes dá o seu caráter sagrado e a sua condição de funcionários do Estado para, ao mesmo tempo, inficionarem com estranhos erros a religião de nossos pais, que, imutável, deve continuar a ser a religião oficial, e para aluírem pelos fundamentos a monarquia representativa.
É racionalmente possível semelhante situação? Há de sofrer-se a anarquia, porque se agita, não nas ruas e campos, mas sob os dóceis episcopais, no púlpito e no confessionário? Fizeram-se os governos para proverem nos grandes perigos sociais como este, ou para estarem espreitando às fisgas das portas se algum mancebo mais ou menos imprudente, mas sem pensamento reservado, sem compromissos ocultos com conspiradores estrangeiros, expõem as suas opiniões, embora erradas, a uma assembleia pacífica, pouco numerosa, e pouco atenta, provavelmente, à substância do discurso, mas curiosa da beleza da forma? Pois a consciência timorata da polícia a escrupulizar de ouvir impiedades e a pôr, para as coibir, o bengalão do quadrilheiro no lugar das fórmulas judiciais é coisa que se tolere? Quando tais enormidades fossem licitas, não se deveria dar às exuberâncias sinceras da mocidade mais importância do que tem realmente. Há verduras da inteligência, como há verduras de coração. Nas índoles enérgicas, nos cérebros vastos é que elas são maiores. Há a esperar nessas inteligências os efeitos do tempo e das cogitações. Da inépcia ou da hipocrisia é que nada há a esperar. Quando as tempestades morais, as longas e acres tristezas da existência e os profundos desenganos do mundo tiverem devastado aquelas almas, não será raro que se vá encontrar o ímpio dos vinte cinco anos, lá pela tarde da vida, assentado ao pé da cruz, a cismar no futuro e em Deus. Não quer dizer isto que os devotos fervorosos de vinte anos sejam provadamente hipócritas. A convicção religiosa pode ser mais precoce e mais viva neste ou naquele espírito. Todavia, sempre será bom verem se lhes descobrem debaixo da burjaca piedosamente mal talhada o cabeção de jesuíta.
Mas que há de fazer o governo? Cumprir o seu dever. Compelir o clero oficial a respeitar as doutrinas da Carta, recusar o beneplácito a tudo que venha de fora alterar a religião do país, a religião como ela era em 1826, e obstar a que os prelados aceitem e promulguem como dogmas erros de fé, como direito a quebra dos cânones, como doutrina católica as blasfêmias contra as máximas fundamentais da sociedade civil. O governo tem arbítrio para conceder ou negar o exequatur às decisões conciliares ou às letras apostólicas quando não colidirem com a constituição do reino. As que forem hostis a esta, é óbvio que há de rejeitá-las, combatê-las, anulá-las. Podem em Roma inventar o que quiserem, proclamar o que lhes convier, anatematizar o que lhes parecer. Em Portugal é que nada disso pode ser admitido, se repugnar às instituições políticas de que forma parte a religião do Estado. Nas próprias resoluções sinodais ou pontifícias que não se contraponham à Carta, mas de aplicação geral, e que, portanto, hão de obrigar a generalidade dos cidadãos nas suas relações religiosas, a simples aceitação do governo não basta: é necessária, para terem vigor e obrigarem, a aceitação do parlamento.
Mas, dir-se-á, os ministros não são teólogos nem canonistas para aquilatar os atos e doutrinas recentes da igreja ou do seu chefe, aferindo-os pelas tradições religiosas do país. Oh santa simplicidade! Os ministros são tudo o que é preciso que sejam para serem ministros. Ninguém os recruta para isso. Mas ainda ao mais insciente ministro, dado que as facções não possam dispensá-los de serem profundamente ignorantes nestas matérias, uma experiência fácil ensinará se o neocatolicismo é ou não o mesmo que o catolicismo de nossos pais. Se não é, cumpre extirpá-lo das regiões oficiais, porque a manutenção do pato social o exige. Os reacionários que, em nome da Carta, não admitem a mínima tolerância para as divergências religiosas que por qualquer modo se manifestem, devem, por maioria de razão, ser os primeiros a aplaudir a severidade do governo.
E a experiência é simples. Em encíclicas, em livros, em publicações periódicas, em parêneses de missionários são apodadas de erros, de blasfêmias e de heresias grande parte das doutrinas contidas na Carta. Diante destas agressões contra os princípios liberais, os ministros podem talvez esquecer que há tribunais e juízes. Se faltam ao que, em rigor, é dever seu, eu, pelo menos no foro íntimo, estou quase tentado a perdoar-lhes. A laxidão neste caso confunde-se um tanto com a tolerância, e a tolerância nunca se me afigura demasiada. Bom fora que ela desse também uma volta pelo Cassino. O que me parece demais é que o governo abandone a defesa moral, aliás tão fácil, dos princípios que são hoje o fundamento da sociedade civil. O clero oficial não pode recusar, sem previamente resignar as suas funções, o ser instrumento do governo nessa modesta e legítima defesa. É óbvio que a antiga religião que, pela Carta, continuou a ser a religião do reino era e é perfeitamente acorde com aqueles princípios. Sem isso, a Carta não seria só absurda; seria praticamente impossível. Ou o artigo 6º, como na praxe se interpreta, matava o resto, ou o resto matava o artigo 6º. As liberdades Pátrias, os direitos e garantias dos cidadãos, o mecanismo do governo representativo conciliam-se, portanto, com a nossa crença. O pato social é a consagração de todo esse conjunto de instituições. A sua coexistência, a sua harmonia são indispensáveis sob o regímen da Carta.
Quando pois, neste país, a malevolência reacionária declara a religião inimiga da sociedade moderna, não se refere à religião de Portugal, e se o seu intuito é referir-se a ela, calunia e insulta a crença nacional. Nesse caso, cumpre que os bispos, os párocos, em suma, todos os funcionários eclesiásticos desagravem a fé ofendida e esclareçam o povo para que o erro não possa transviá-lo. É para servirem a religião que a sociedade lhes confere honras, proventos, isenções, autoridade; e a única religião que eles têm de ensinar, servir e defender é a que coexiste e se harmoniza há perto de meio século com as instituições da Carta. É o direito e é o dever do governo compeli-los a que o façam. É necessário exigir deles manifestações positivas, e que os bispos, párocos e professores públicos de teologia declarem falsas e subversivas todas as doutrinas, sejam de quem forem, venham donde vierem, que tenderem a tornar contraditória a religião do reino com as condições impreteríveis da sociedade atual estatuídas na Carta.
Que o governo exija isto, e espere o resultado.
Outra experiência.
Em 1826 a teologia, a história eclesiástica, os ritos, os cânones ensinavam-se na universidade, nos seminários, nos cursos de estudos das congregações e das ordens monásticas. As dioceses tinham os seus catecismos, pelos quais os párocos e mestres educavam a infância na doutrina católica. Os prelados de então aceitavam esses compêndios, expositores e catecismos; ordenavam-nos, até. O ensino, portanto, das ciências eclesiásticas e a doutrinação dos fiéis eram necessariamente conformes com a religião católica seguida pelo país. Atenhamo-nos, pois, aos catecismos, aos compêndios, aos expositores, aos livros, em suma, por onde se ensinaram as ciência eclesiásticas e se educou o clero e o povo desde o princípio deste século até a promulgação da Carta. Declare-se que todas as doutrinas, ou desconhecidas nesses livros, ou contrarias às que eles encerram, ou a que se dê uma interpretação ou um valor diferentes dos que se lhes davam então, ou são heterodoxas ou errôneas, quer se refiram ao dogma, quer à moral religiosa, quer à disciplina. Teremos assim a certeza: primeiro, de que continua a ser religião do reino a que dantes era; em segundo lugar, de que essa é a crença católica apostólica romana de que fala a Carta. Os bispos eram então, como o foram sempre, os principais juízes da fé, e os papas os chefes visíveis da igreja pela sua primazia. Pio VI ou Pio VII valiam bem Pio IX. Nunca, porém, nessa época Roma lançou sobre nós sequer uma suspeição de heterodoxia, e fossem quais fossem as divergências entre a cúria romana e a igreja portuguesa ou o governo português em assuntos disciplinares, nunca se proferiu contra nós a acusação de cisma. Estávamos, pois, pelas nossas tradições e doutrinas perfeitamente no seio da igreja. Mantendo exclusivamente o dogma católico, nem mais, nem menos, como a igreja no-lo ensinou a nós os velhos, e conservando-nos, em relação à disciplina, onde estávamos, estamos indubitavelmente no grêmio dessa igreja; porque a religião é imutável, a religião não se aperfeiçoa. O critério supremo do catolicismo está resumido na célebre máxima: Quod ubique, quod semper, quod ab onibus creditum est.
Diga o governo isto aos bispos, aos cabidos, às escolas de teologia e de cânones, aos párocos, aos comissários de estudos, aos mestres primários. Envolva-se no manto da sua ignorância. O seu critério é apenas o do senso-comum. Mantem a religião da Carta, porque lhe não é lícito manter outra sem crime, e cônscio da própria incompetência, recorre a um meio seguro de não errar. Imponha o ensino de há cinquenta ou sessenta anos em matéria religiosa, e vigie pelos seus agentes se alguém exorbita das doutrinas de então e se atraiçoa com o ensino oral o ensino escrito. O imperante fará nisto não só o papel de mantenedor da Carta, mas também o de bispo externo; fará o mesmo que nos séculos áureos do cristianismo faziam os imperadores romanos com aplauso dos Padres da primitiva igreja.
O tumulto que há de alevantar este procedimento, aliás tão simples e razoável, sei eu. Verá, meu amigo, o que vai. Verá a reação a inquietar na jazida com seus furiosos clamores as cinzas dos nossos mais veneráveis prelados dos fins do século XVIII e dos princípios deste século, dos magistrados mais íntegros, dos professores mais sábios, dos mais abalizados jurisconsultos e teólogos, e até a memória de algumas das congregações religiosas que desapareceram, para os acusar de jansenismo, de galicanismo, de filosofismo. Verá o que sucede ao clero regular que foi, aos beneditinos, aos agostinianos, aos oratorianos. Referindo-me à congregação do Oratório, não falo do pequeno herege ruivo, o terrível padre Pereira de Figueiredo. Esse tem de há muito recebido o seu quinhão de anátemas maranatas. Tudo pedreiros-livres. Os reacionários hão de provar até a evidência que o artigo 6.º da Carta não diz o que diz. Quidquid dixeris, argumentabo. Hão de provar que o verbo continuar significa em rigor ser substituído, substituído o catolicismo da bíblia e da tradição, o catolicismo de nossos maiores, pelo neocatolicismo, com os seus dogmas de nova fábrica e matéria velha, com as suas máximas antissociais, com as suas pretensões à restauração do papado como o concebiam Gregório VII ou Bonifácio VIII, e com a moral asquerosa dos casuístas do padre Lainez substituída à do evangelho de Jesus Cristo.
É uma luta, pois, que eu aconselho ao poder civil? Decerto. Os governos fizeram-se para lutar quando é necessário manter as instituições do país. O direito está da sua parte. Se o artigo 6º da Carta tem a significação e a latitude que se lhe dá, é indispensável que se dê igual valor e extensão ao § 14º do artigo 75º Cumpre que o clero oficial venha a uma situação definida e precisa. Ou o Silabus ou a Carta. A questão reduz-se a isto.
Mas a aceitação prestada pela maioria dos bispos às definições ex catedra do pontífice? Mas a adoção do Silabus pelos prelados como norma de doutrina? Mas as decisões do concílio ecumênico do Vaticano? Sem debater as condições que a tradição exige para terem valor as definições pontifícias, e se é ou não pueril a moderna distinção ex catedra e non ex catedra, inventada para salvar as contradições dos papas em matérias de fé e de costumes: sem indagar se a adesão dos bispos representa sempre a adesão das respectivas igrejas; sem finalmente individuar os caracteres que assinalam a ecumenicidade de um concílio, e até onde obrigam as suas resoluções, quando acerca destas não houve, ao menos, a unanimidade moral; evitando, em suma, questões abstrusas, origem de intermináveis debates, limite-se o governo a exigir o cumprimento rigoroso do respectivo artigo da Carta interpretado pela reação. Que mais querem? Os neocatólicos constituídos em dignidade, exercendo funções públicas, ficam na plena liberdade interior de crerem o que lhes aprouver: nos atos exteriores hão de ser católicos de 1826. Suponho que a teoria é esta. Colidem as infalibilidades papais? Deixá-las colidir. Admitamos que a boa, a de lei, é a de hoje. Os neocatólicos estão salvos. Vai para o inferno o Estado quando morrer. Manda-o para ali a Carta. Cumprir e fazer respeitar as instituições e as leis é a missão dos ministros; não o é a salvação das almas. Isso pertencia dantes à igreja, e pertence hoje, por transação particular, à Companhia de Jesus.
Que ninguém se assuste com a imensa e onipotente autoridade de um concílio ecumênico. A primeira condição da sua força é a certeza de sua ecumenicidade e da liberdade das suas decisões; aliás não passaria de um conciliábulo; de um latrocínio de Éfeso, conforme a frase dos Padres de Calcedônia. Ainda, porém, que se dê tal certeza, nem por isso o poder temporal fica inibido de negar o seu assenso às resoluções sinodais. Figurava de ecumênico o concílio de Trento, e todavia a França recusou constantemente aceitá-lo, sem distinção de dogma ou de disciplina. Havia, até, certa afetação nos atos oficiais em chamar assembleia de Trento ao concílio. Foi infrutuoso todo o empenho do clero francês em fazer admiti-lo, porque as barreiras que lhe opunham ora os reis, ora os tribunais, eram insuperáveis. E nunca a França foi por isso reputada cismática, nem os reis cristianíssimos deixaram de ser os filhos primogênitos da igreja. Era simples a explicação da repulsa. Muitas das resoluções disciplinares do concílio repugnavam aos princípios e às leis que a sociedade temporal reputava úteis ou necessárias à sua existência. Aceitando o concílio, a sociedade feria-se ou suicidava-se. Era contra o direito natural. À cautela, repelia tudo, porque nas deliberações do concílio nem sempre era fácil discriminar o doutrinal do disciplinar. Nenhum perigo havia naquela rejeição absoluta. Se o concílio não fizera senão confirmar a doutrina católica derivada das suas duas únicas fontes, a Escritura e a tradição constante e universal da igreja, a França lá seguia essa doutrina desde remotíssimos tempos. Se, porém, o concílio inventara novos dogmas, ou alterara em qualquer coisa a antiga crença, deixava de ser concílio, e rejeitando-o in totum, a França separava-se tanto da igreja universal, como se, por um ato solene, rejeitasse a Confissão de Augsburg.
Mas — perguntar-me-á — pode razoavelmente esperar-se que haja um desses governos a que estamos habituados, com energia e vontade suficientes para empreender cometimento de tal ordem? Deve fazer-se neste ponto uma distinção essencial. Hoje, sem dúvida, do grêmio de qualquer das facções que disputam entre si a ponta da corda que vai arrastando para futuro incerto o corpo enfermo do Estado, não devemos esperar que saia um governo capaz de reduzir o debate entre o liberalismo e a reação a estes simples termos. Todas elas dependem, até certo ponto, do cura na questão eleitoral, questão suprema e talvez única das facções, instinto de vida que é desculpável. Ora o cura é o servus a mandatis do bispo, como o bispo é o servus a mandatis do papa, ou para falar com mais exação, do geral da Companhia. Depois, há aqui, ali, não se sabe bem onde, o jesuíta; o jesuíta, que se encontra e sente, sem se ver, em toda a parte, desde os paços até a taberna; o jesuíta, que veste gentilmente a farda bordada ou a farda lisa, a casaca ou o paletó, a beca, a loba, preta, roxa, encarnada, ou a grosseira jaqueta do operário; o jesuíta, que, se cumpre, é mais ímpio que Voltaire, ou mais fanático do que Pedro de Arbués e Torquemada; que é absolutista, democrata, socialista, comunista, se a ordem de Santo Inácio interessa com isso; que seria, até, liberal, daqueles célebres liberais do Silabus, se hipótese tão abominável fosse admissível. Ora o jesuíta pode vigiar a urna, morigerar a urna, penitenciar a urna. É pois necessário ao homem de Estado (talvez conheça o tipo nacional da espécie) manter-se em certa altura de tato Político para não adivinhar o jesuíta, para não crer na existência do jesuíta, dessa singular invenção de certos visionários. Precisa a Pátria de que a jerarquia eclesiástica e a congregação não venham, irritadas, opor o seu voto, a sua preponderância, às benevolências da urna.
Eis porque é impossível, por enquanto, travar seriamente a luta em chão firme. Deixe gritar contra a reação. Puro formulário. Bem como a responsabilidade ministerial, o epíteto de reacionário não significa nada, na linguagem dos homens de Estado. É um extrato do vocabulário Político, que a fação decaída mete impreterivelmente na algibeira, quando desce das regiões do poder, para apupar e injuriar cá da rua os de outra fação que para lá subiram. De resto, amor e respeito onímodo e universal à congregação. Se algum dia, porém, a ginastica das ambições deixar de ser o espetáculo mais divertido destes reinos e passar de moda, há uma reflexão gravíssima a que antes de tudo tem de atender-se. Num país, onde, por ignorância do clero inferior e má-fé ou desleixo dos prelados, as maiorias incultas creem nas bruxas, nos feitiços, nas mulheres de virtude, nas almas penadas, na permutação de milagres por ex-votos de cera, e onde, falando geralmente, as minorias inteligentes e instruídas buscam estontear-se, suprimir uma voz interior que fala de Deus, com a indiferença ou com o cepticismo, o clero, jesuíta ou não-jesuíta, há de forçosamente exercer certa influência, que, por mais que ele se desconsidere ou o desconsiderem, não será fácil destruir. Para combater essa influência, quando nociva, a incredulidade superciliosa não é a melhor das armas, porque a incredulidade é a negação de uma tendência natural do homem, a religiosidade; é o espírito violando-se a si próprio. As multidões não podem ser, não serão nunca incrédulas. Onde e quando lhes faltar a boa doutrina, seguirão a má. Nas almas incultas a precisão da crença há de sempre satisfazer-se. Por uma lei psicológica, o crer tenaz supre nelas o crer reflexivo das inteligências privilegiadas. Não tem arte, nem ciência para obliterar em si uma condição humana, o aspirar, com maior ou menor ardor, ao infinito, ao imortal. Se deixardes sair de todo pela porta o catolicismo cristão, entrar-vos-á pela janela o que ainda cá falta do moderno catolicismo do beatério, com os seus intuitos dissolventes, com as suas extravagâncias dogmáticas da imaculidade e da infalibilidade, e com as blasfêmias sociais do Silabus.
Mas, radicalmente, a questão não é nem com os governos de hoje, nem com os homens de hoje. Na escrituração da primeira entre as companhias comerciais do mundo, a Companhia de Jesus, nós os velhos, e ainda uma ou duas gerações dos que tem nascido depois de nós, fomos já levados, como perda redonda, como valores incobráveis, ao livro de conta de ganhos e perdas. Do que se trata seriamente nas especulações da Casa-professa é da infância; daqueles que hão de receber as primeiras impressões morais e religiosas de mães filiadas nas associações de diversos feitios e nomes, sob qualquer das epigrafes da mulher deus, da mulher redentora. Decorridos mais alguns anos, os sintomas do mal serão cada vez mais visíveis. Então a iminência do perigo há de coagir os homens novos a tratarem de por sérias barreiras a esse imenso lavor subterrâneo que tende a converter a Europa, sobretudo a Europa latina, numa como vasta cópia das Missões do Paraguai. Se, pois, esta carta sair das suas mãos, é aos homens de quinze até vinte e cinco anos, cuja educação o jesuitismo, aninhado entre os afagos maternos, não tenha já viciado, que as precedentes ideias puderam, porventura, aproveitar. Deixo por isso à apreciação de vossa senhoria a conveniência ou inconveniência absolutas de as tornar conhecidas, bem como a oportunidade ou inoportunidade delas. Nem ambiciono, nem temo que as minhas opiniões, neste como em qualquer outro assunto, sejam sabidas. Ao cabo da existência, os aplausos ou as censuras do mundo fazem medíocre impressão em quem está costumado a refletir. Ou a nossa memória se desvanece nos longes indecisos do progressivo esquecimento, ou são outros os juízes que hão de definitivamente sentenciar-nos; juízes suspeitos quando julgarem as questões de opinião ou de interesse da sua época, imparciais e incorruptíveis quando julgarem as coisas e os homens do nosso tempo.



---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1871, e publicado em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...