O ideal americano
Roosevelt é um
estilista medíocre. A frase adelgaça-se-lhe no distendido de uns períodos
oratórios cheios de incidentes intermináveis e rematados pela simulcadência
inaturável das mesmas ideias repisadas, volvidas e revolvidas sob todas as
faces, com o sacrifício absoluto da forma à clareza, ou à exposição desatada em
pormenores e minúcias exemplificadoras. Não escreve, leciona. Não doutrina,
demonstra. Não generaliza, não sintetiza e não se compraz com os aspectos
brilhantes de uma teoria: analisa, disseca, induz friamente, ensina.
Mas isto sem o
aprumo pretensioso de um lente que pontifica, senão com a modéstia fecunda de
um adjunto que rediz, experimenta e mostra.
E o grande
repetidor da filosofia contemporânea. Nada diz de novo.
Diz tudo de
útil.
O seu último
livro, o Ideal Americano, é uma sistematização de truísmos, para
adotarmos o anglicismo indispensável às coisas sabidíssimas e claras. E no
primeiro momento, deletreadas as primeiras páginas, imaginamo-nos às voltas com
um excêntrico rival de Marc Twain, abalançando-se a ressuscitar velharia e a demonstrar
axiomas.
No entanto, a
pouco e pouco ele nos domina e absorve. Há um encanto irresistível naquela
rudeza de rough rider e de quaker; e o paladino rejuvenescido de
coisas tão antigas — a energia, a ocupação aparente dos destinos de seu país,
vai, realmente, traçando todas as condições imprescindíveis à vida de todos os
países.
Para nós,
sobretudo, a sua leitura é imperiosa e urgente.
Copiamos, numa
quase agitação reflexa, com o cérebro inerte, a Constituição norte-americana,
arremetendo com as mais elementares noções do nosso tirocínio histórico e da
nossa formação, violando do mesmo passo as nossas tradições e a nossa índole; é
natural e obrigatório que lhe vejamos, a par da grandeza, os males, sobretudo
quando eles entendem especialmente com a nossa situação presente e o nosso
caráter nacional.
De fato,
Roosevelt, ao
delatar os "perigos excepcionais" que ameaçam a grande República,
antepõe-lhes por vezes de relance, mas insistentemente, feito uma contraprova
expressiva, o quadro da anarquia sul-americana; "rusguento grupo de
Estados, premidos pelas revoluções, onde um único senão destaca mesmo como
nação de segunda".
Deste modo,
enquanto recuamos espavoridos imaginando o espantalho do perigo yankee, o estrênuo professor de energia
põe, na frente da opinião yankee, o
espantalho do perigo sul-americano. Temos medo daquela força; e, no entanto,
ela é quem se assusta e foge apavorada da nossa fraqueza.
Ora,
infelizmente para nós, a covardia paradoxal do colosso é mais compreensível que
a infantilidade dos nossos receios.
Folheiem-se ao
acaso as primeiras folhas do Ideal Americano. Depara-se-nos para logo
uma novidade: o homem tão representativo do absorvente utilitarismo e do
triunfo industrial da América do Norte é um idealista, um sonhador, um poeta
incomparável de virtudes heroicas.
Para ele, as
garantias de sucesso da sua terra estão menos nos prodígios da atividade e no
assombro de uma riqueza material sem par, do que nas belíssimas tradições de
honra, e eficiência, traduzidas na ordem política pelos nomes que se inserem
entre os de Washington e Lincoln, e na ordem social pelo repontar ininterrupto
dessas emoções generosas, que propelem aos verdadeiros estadistas e sem as
quais as nações se transmudam "em trambolhos obstrutivos de alguns tratos
da superfície terrestre". Não lhe bastam as virtudes da economia e do
trabalho; superpõe-lhes a glorificação permanente da honra nacional, da coragem
e da persistência, do altruísmo, da lealdade e das grandes tradições provindas
das façanhas passadas, formando a capacidade crescente para as empresas maiores
do futuro...
Traçado este
rumo, é inflexível. Caem-lhe sob o passo de carga de uma lógica inteiriça,
confundidos, embolados e ruídos no mesmo esmagamento: — o político tortuoso e
solerte que, malignado pelo oblíquo incurável da visão moral, faz da política
um meio de existência e supre com a esperteza criminosa a superioridade de
pensar; o doutrinador estéril que não transforma a vida numa força ativa e
combatente; o indiferente que resmoneia, agressivo, contra a corrupção política
ou administrativa, e não intervém num protesto vigoroso e alto, definido por
atos decisivos; o jornalista que não exercita uma crítica intrépida dos homens
e dos partidos, ou se desfaz em lisonjarias indecorosas... e sobre todos eles,
os que formam a plateia louvaminheira, não só para lhes explorar as ações como
para lhas divinizar e aplaudir, garantindo-lhes no mesmo lance a impunidade dos
crimes e a recompensa das males perpetrados
Ao lermos
estas páginas impiedosas, pressentimos o dardo de uma alusão ferina. Ali está,
latente, um comentário interlinear, de onde ressalta o pior da nossa
desalentadora psicologia.
Mas
prossigamos. Há identidades mais empolgantes. O impávido moralista repisa logo
adiante uma outra novidade velha: firma de modo inflexível a necessidade de um
largo americanismo, um forte sentimento nacional contraposto a um localismo
deprimente e dispersivo. Combate às claras — numa lúcida compreensão, que não
possuímos, do verdadeiro regime federal — o maligno espírito de paróquia e esse
estreito patriotismo de campanário provincial ou estadual, que subordina a
nacionalidade ao bairrismo e retrata, em nosso tempo, o federalismo incoerente
da antiguidade grega, das Repúblicas medievais da Itália, e dos retrógrados
Estados da Alemanha antes de Bismarck.
Neste lance,
aponta ainda uma vez os fatos "abjetos e sangrentos" da América do
Sul. E tão desanimador se lhe afigura este vício do regime, que se apressa em
lhe denunciar a quase extinção na América do Norte, graças a uma evolução
inegável e positiva, porque significa, ali, a passagem de uma forma incoerente
e dispersiva a uma forma mais coerente e definida, consoante o preceito
elementar do maior pensador da sua raça.
Trata-se como
se vê, de um mal que lá está em plena decadência, próximo a extinguir-se, mas
que ainda atemoriza; ao passo que entre nós ele surge vigoroso, e se desenvolve
e irradia para toda a banda, delineando umas fronteiras ridículas, ou
ostentando irritantemente umas questões de limites inclassificáveis, e deixa-nos
impassíveis...
Completa-o um
outro.
Ao patriotismo
diferenciado alia-se, pior, o cosmopolitismo — essa espécie de regime colonial
do espírito que transforma o filho de um país num emigrado virtual vivendo,
estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo. Mas não há
explicar-se a insistência do escritor neste ponto. O americano do norte é um
absorvente e um dominador de civilizações. Suplanta-as, transfigura-as,
afeiçoa-as ao seu individualismo robusto e ao seu bom senso incomparável; americaniza-as.
Para nós, sim,
é que parecem feitas aquelas páginas severas riçadas de repentinos e vivos
golpes de ironia — porque entre nós é que se faz mister repetir longamente, e
monotonamente mesmo, que mais vale ser um original do que uma cópia, embora esta
valha mais do que aquele" e que o ser brasileiro de primeira mão,
simplesmente brasileiro, malgrado a modéstia do título, "vale cinquenta
vezes mais do que ser a cópia de 2ª classe, ou servil oleografia, de um francês
ou de um inglês".
Parafraseando,
diríamos: os nossos melhores estadistas, guerreiros, pensadores e dominadores
da terra, os que engenharam as melhores leis e as cumpriram, os homens de
energia ativa e de coração, que definiram com mais brilho a nossa robustez e o
nosso espírito — todos sentiram, pensaram e agiram principalmente como
brasileiros; destacam-se, como no passado, de todo destoantes da fisionomia
moral de uma época onde o mesmo esboço de um irrequieto e frágil nativismo foi
pedir à história do estrangeiro o próprio nome do batismo.
O Ideal
Americano não é um livro para os Estados Unidos, é um livro para o
Brasil.
Os nossos
homens públicos devem — com diurna e noturna mão — versá-lo e decorar-lhe as
linhas mais incisivas, como os arquitetos decoram as fórmulas empíricas da
resistência dos materiais.
E um compêndio
de virilidade social e de honra política incomparável. Traçou-o o homem que é o
melhor discípulo de Hobbes e de Gunplowicz — um fanático da força, um tenaz
propagandista do valor sobre todos os aspectos, que vai da simples coragem
física ao estoicismo mais complexo.
Daí a sua
utilidade, não nos iludamos. Na pressão atual da vida contemporânea, a expansão
irresistível das nacionalidades deriva-se, como a de todas as forças naturais,
segundo as linhas de menor resistência. A absorção de Marrocos ou do Egito, ou
de qualquer uma outra raça incompetente, é antes de tudo um fenômeno natural,
e, diante dele, conforme insinua a ironia aterradora de Mahan, o falar-se no
Direito é extravagância idêntica à quem procura discutir ou indagar sobre a
moralidade de um terremoto.
É o darwinismo
rudemente aplicado à vida das nações.
Roosevelt
compara de modo pinturesco essa concorrência formidável a um vasto e estupendo football
on the green: o jogo deve ser claro, franco, enérgico e decisivo; nada de
desvios, nada de tortuosidades, nada de receios, porque o triunfo é
obrigatoriamente do lutador que hits tle line hard!
Aprendamos,
enquanto é tempo, esta admirável lição de mestre.
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