10/27/2022

Esperando... (Conto), de Júlia Lopes de Almeida

 


ESPERANDO...

– Fecha aquela janela que deita para a rua... assim; abaixa o store16... agora abre as duas do jardim.

– Está bem?

– Está bem. Vai arranjar-te; põe o avental branco bordado, que eu te fiz, e vê lá se levantas esse cabelo da testa; gosto das testas nuas!

A criada saiu. A dona da casa, moça, gentil, alegre, começou a dar uns retoques na mesa, cantarolando, na sua meia voz de soprano, um romance novo. Agora punha ao lado da mesa o canário favorito sobre uma corbeille de flores naturais, daí a pouco temperava a salada, escolhendo com as pontas dos dedos, muito delicadamente, as folhinhas mais tenras; revistava as garrafas de cristal, os talheres, os pratos, escondia dentro do guardanapo do marido uma hastezinha mimosa de avenca, onde espetara um cartão com esta palavra: “– Adoro-te!” Modificava, sob o musgo fresco da fruteira, a posição das uvas e dos pêssegos vermelhos, mudava para outro lado o galheteiro; alisava as coberturas das cadeiras, descia ainda mais o store de cretone branco, e, debruçando-se das janelas do jardim, puxava para dentro os galhos floridos das trepadeiras. Depois, relanceou por toda a sala os seus olhos vivos de burguesinha feliz. Notou que um quadro estava ligeiramente inclinado para a esquerda e deu pela ausência da geleira sobre a étagère.

Correu a reparar as duas faltas e saiu. Foi à cozinha.

– Então, André, a sopa está boa?... e o peixe... deixa-me ver o peixe...

E, avançando o narizinho arrebitado, ela cheirava as panelas, fazendo os seus comentários:

– Olha, ó André, o roast-beef não me parece bom...

O cozinheiro franziu a testa, indignado; ela continuava:

– Ora! as ervilhas estão com bispo; logo as ervilhas, de que Luís gosta tanto!

– Perdão, minha senhora, as ervilhas não estão queimadas!

– Não estão queimadas! e que cheiro é este?

– É mesmo o cheiro das ervilhas.

– Onde viu você ervilhas com cheiro a fumo?

– Prove-as, minha ama. Para convencer-se ela provou as ervilhas; achando-as deliciosas, murmurou disfarçadamente: está bom, está bom... e os bolinhos, fez?

– Esqueci-me: também há tanta coisa!...

Foram novos ralhos; mas, afinal, certa de que o jantar agradaria ao marido, ao seu amado Luís, com quem se casara havia apenas um ano, ela voltou para dentro.

Foi pedir conselhos ao seu psyché. Estava pálida. “Isto há de ser, pensou, por causa das fitas verdes.”

Trocou-as por fitas azuis... estudou-se: continuava feia... “Bem! agora, fitas cor-de-rosa... hão de me ir melhor...” Mas as fitas cor-de-rosa desagradaram-lhe tanto como as azuis e as verdes. Lembrou-se do colar de coral. Os colares de coral passaram de moda... mas que importa! são bonitos! Atou sobre o pescoço alvo e roliço um fio de coral, abriu um pouco mais o vestido, e afogou entre as rendas do peito a flor cor de sangue de uma orquídea nova.

“São quase seis horas! Luís não tarda! vou esperá-lo ao piano!” Tocou várias peças, ora um idílio, ora uma sonatina; mas, impaciente, descaiu a dedilhar polcas e valsas.

De vez em quando levantava-se, ia à janela. Viu passar um vizinho, o Ramos, carregado de embrulhos, e calculou:

“A mulher do Ramos é mais feliz do que eu... ele tem mais pressa de a ver do que Luís de me ver a mim!...”

Após o Ramos, passou um velho gordo, que vinha habitualmente depois do marido, logo no bonde imediato; viam-no quase sempre passar através das grades do jardim, onde ela descia para receber Luís.

O relógio marcava já seis e um quarto! Ela não voltou para o piano: instalou-se na janela. Começou a sentir fome; a impaciência cresceu.

Parecia que iria devorar todo o roast-beef! “Decididamente, Luís, supunha ela, teve algum negócio grave a prendê-lo até mais tarde... aposto em como vem naquele bonde...” Mas o bonde passou. “Vamos a ver! se o primeiro carro que passar for tilbury, é porque ele vem antes das seis e meia; se for coupé é porque só vem às sete.” O primeiro carro a passar foi uma caleça. Às sete horas Luís não tinha chegado. A copeira veio perguntar-lhe se podia tirar o jantar; a infeliz rapariga, em pouca harmonia com o cozinheiro, estorcia-se de fome. A ama repreendeu-a: quando for ocasião, eu saberei mandar servi-lo! disse. Ela já não tinha vontade de comer: passada a hora habitual, o estômago não sentia necessidade de alimento. Entretanto, continuava à janela. Eram já sete e meia! A casa do Ramos iluminava-se; apareciam vultos na sala de visitas; uma das filhas ia para o piano e ela adivinhava o Ramos, palitando os dentes, recostado no sofá, ao lado da esposa, que estava de casaco branco e saias engomadas. “São velhos, e são mais felizes do que eu”, suspirava. Deram oito horas. Voltava muita gente para a cidade, de onde os bondes vinham agora quase vazios. Por que será que Luís não veio? conjecturava a triste esposa. Saiu da janela, e, caindo em uma poltrona, começou a chorar.

Erguia-se no seu espírito uma suspeita: a infidelidade de Luís! “Ele ama outra, ama outra com certeza! a estas horas ri-se a seu lado... logo virá com uma desculpa qualquer!” Lembrou-se de fugir para a casa da mãe; sim, lá ao menos teria companhia, carinhos, alegria! e Luís, quando chegasse, compreenderia não ter por esposa uma mulher passiva, de quem pudesse zombar! Levantou-se, foi ao seu quarto, e, tendo vestido uma capa, ia colocar o chapéu, quando foi ferida por uma ideia horrorosa: Um desastre! “Meu Deus! exclamou a pobrezinha: Luís foi pisado por algum trem!...” Aterrorizada, hirta, no meio do quarto, ela assistia a toda a cena. O marido atravessava a rua, correto, distinto, elegante... súbito, esbarra-se nele um indivíduo, cai-lhe a luneta; Luís curva-se para erguê-la; nisto ouve gritos, é atropelado, cai, e uma enorme carroça, carregada de pedras, roda-lhe pesadamente por sobre o ventre! Apitos, agrupamento de povo, muito sangue na calçada, e o adorado Luís é tirado em braços, esfacelado, inerte, morto!

Correu de novo à janela, debruçou-se: ninguém! A rua estava silenciosa. Teve vontade de gritar: Luís, Luís! e as lágrimas rolavam-lhe grossas pelas faces pálidas. Era a primeira vez que tal lhe acontecia; evidentemente sucedera ao esposo um desastre qualquer! Lembrou-se de ter visto no escritório, uma vez que lá fora surpreendê-lo no trabalho, um revólver sobre a secretária. Aquilo fizera-lhe impressão, a ponto de rogar ao marido que se desfizesse dessa arma tão perigosa... Quem lhe diria que não fosse esse maldito revólver que, por qualquer acaso, matasse o esposo!? Ele era distraído e míope: puxando uns papéis, tateando a mesa, à procura de algum objeto, poderia bater no gatilho e a bala ter partido!

A cada carro que se aproximava ela estremecia: “É ele, vêm-no trazer desfigurado... moribundo... Ó meu Luís! meu Luís!!

Nisto uns passos conhecidos esmagam a areia do jardim, ela levanta-se e escuta... sobem a escada, tocam de uma maneira especial a campainha; e ela, reconhecendo o sinal, dá um grito de alegria e corre para a porta, indo abraçar o esposo, comovida e trêmula!

– Que é isso, Mimi? perguntou ele, atônito; como estás transtornada!

– Oh! Luís! por que tardaste tanto?! Que susto que eu tive! meu Deus! Deixa-me ver-te bem! Que te sucedeu?!

– Mas, filha! não me sucedeu nada de extraordinário! Tolinha! É preciso acostumares-te!

– Acostumar-me...

– Terás muitas vezes de jantar sozinha...

– Ah!

Enquanto ele lhe expunha o motivo da sua ausência, ela via, magoada, extinguir-se o inolvidável período da sua lua de mel!

Como badaladas fúnebres, soavam e ressoavam aos seus ouvidos as frases do marido:

– É preciso acostumares-te... Terás muitas vezes de jantar sozinha!

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