Hão de crer? Encontrei esta manhã o Dr. Bermudes, aquele velho boêmio incorrigível, com o seu legendário casacão ruço, as botas cambadas, o colarinho sujo, e o seu ar de fome, olhando pasmado para uma vitrine de bonecos!
Quem não sabe da crônica do Dr. Bermudes? Conhece-a o Rio de Janeiro em peso, desde os lentes da academia, de quem ele fora condiscípulo, até aos caixeiros dos botequins que o levam para o relento das calçadas, a horas mortas da noite, quando as estrelas brilham no céu sobre os telhados mudos da casaria adormecida.
O Bermudes está velho, tem perto de cinquenta anos, e a ventania da desgraça pôs-lhe na pele tons de cobre sujo, e manchas de neve naquelas barbas, que mais parecem ervas hirsutas de uma brenha. Credo!
Quem dirá que aquilo já foi moço, galante, garboso, rico, correndo às aventuras arriscadas, sempre bem vestido e bem falante, enamorando as mulheres com a doçura dos seus olhos, e o espírito dos homens com a faísca das suas palavras ardentes e bombásticas?
A sua passagem deixou rastro na academia; citam-se ainda frases suas e feitos de arreganho em que entrou sempre uma alevantada ideia de justiça. Trazia capa e espada na alma, já que os tempos burgueses não lhas permitiam no corpo. O Bermudes era um D. Quixote, mas novo, bonito, com uma voz que arrastava a gente e cada gesto, cada ideia, de quem tudo domina e nada teme.
Eu conheci-o ainda nos bons tempos da D. Jacinta, a tia velha, que lhe dava dinheiro e o mantinha naquelas doidices da mocidade, com o brilho que a sua imaginação requeria.
E ele aproveitava. Só fumava do bom, comia como um príncipe, e das suas mãos finas as esmolas caíam, como chuvas de verão, no regaço dos pobres. Sujeita, como tudo, às leis da natureza, a D. Jacinta foi muito quietinha para o cemitério, numa formosa tarde de inverno, dessas de nuvens de ouro e de roseiras em flor.
Pela escadaria de pedra do jardim, quantas abas negras de sobre-casacas flutuaram, a caminho das reverências ao Dr. Bermudes, o belo Bermudes, único herdeiro daquela velha milionária? E ele lá estava, na capela ardente, pálido, com a face compungida e as lágrimas luzindo-lhe nas pupilas. Era só então: “Sr. Dr. Bermudes!” – “Sr. Dr. Bermudes!”
Muito respeito, muita piedade e grandes condolências... Lá de um cantinho, o tabelião Taveira, com a papada de porco untando de suor o colarinho e o peitilho da camisa, sorria por dentro, no mistério do seu ofício, daqueles dizeres de tantíssimas bocas. Ele lera ao Bermudes, horas antes, o testamento da tia. A idiota não deixara nem um vintém ao sobrinho; ia toda a fortuna para a sua irmandade de São Francisco. E o Bermudes nem estremecera. Era como se fosse tudo muito natural.
Acabada a leitura, ele ergueu- se e dirigiu-se para o catafalco. O tabelião e as testemunhas pularam, julgando que no rostinho mirrado do cadáver caísse vingativa e irrespeitosamente a mão do Bermudes. Não; ele fora sacudir as moscas, que faziam por entrar na boca de onde só orações tinham saído havia longos anos.
E ninguém mais falou em tal. A velha, que o acostumara aos regalos de uma vida de luxo e dissipação, deixou-o sozinho na miséria. E só o seu confessor sabia as razões disso...
Bermudes ficou sem ter onde dormir, nem onde comer, girando por essas ruas, alegre com uns, condoído de outros, sem rancores, aceitando o jantar do um amigo, o leito de outro, coisas de empréstimo, que foram rareando pouco a pouco, até que se acabaram de todo...
Ele deixou assim de ser o homem de sala para ser o tipo da rua. Afez-se às más companhias e ao mau vinho. E quando bebia sonhava que a tia Jacinta voltara da viagem e que tinha outra vez o seu grande leito de dossel com sanefas de púrpura, e o seu chocolate quente com pão de ló, trazido pelo criado, o mulato Candinho, antes do banho, nas suas manhãs preguiçosas. Quando o Bermudes acordava da bebedeira, via que o colchão não era o seu antigo, de paina de seda, desfiada pelas crioulas da casa, mas sim o lajedo da rua imunda. A decepção abria-lhe vontade de beber outra vez, e ele bebia para sonhar com os regalos fornecidos pela defunta velhota.
Ainda há senhoras por aí que bem se lembram de ter valsado com ele, o que era um prazer delicado. De uma sei eu que, quando o vê, volta o rosto e sente estragado todo o prazer do seu passeio. Embora a filha lhe pergunte: – Mamãe, por que ficou triste? – Ela não lhe responde e vai andando... Vai andando com a ideia presa à lembrança de outros tempos, quando o Bermudes, moço, rico, estimado, ia vê-la todas as tardes, chamando-a – minha noiva, mesmo nas bochechas do papai e da mamãe... E daquela voz do Bermudes nunca ela se esquecera, nem depois, quando outro homem lhe deu o mesmo título, na mesma casa, ao lado das mesmas pessoas! Ela também já tem os cabelos brancos, mas, porque é rica, como cheiram bem os seus vestidos de seda e os seus manteletes à moda! O marido nunca lhe soube dizer que a amava, como o Bermudes, que lhe plantara na alma um canteirinho de flores odorantes; mas que luxo lhe dava, santo Deus!
O Bermudes é que a não conhece; esqueceu-a, perdoando-lhe assim generosamente... e por aí anda com o seu casacão roto, e os seus passos trôpegos, em que entra já o tremor do alcoolismo...
Um dos seus divertimentos, ora vejam! é ir postar-se em frente às vitrines de bonecos, com uma atenção que nada abala. Sorri para as pastorinhas de avental e chapéu de palha, para os clowns , para os velhos do Natal, para os bebês das caixas armadas a rendas e cetins, para os velhos sapateiros batedores de sola e para as carrocinhas tiradas por um burrinho gordo.
A gente da loja já o quis enxotar, dizendo que ele afugentava a freguesia. Entretanto, Bermudes sorri com as crianças que passam, porque, como as crianças, ele sempre amou a ficção. E há de amá-la, até que um dia... Vão ver que a tarde em que o levarem para a sua última cama não há de ser tão bonita como aquela em que levaram a velha tia Jacinta!
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