10/27/2022

Perfil de preta (Conto), de Júlia Lopes de Almeida


 
PERFIL DE PRETA
(GILDA) 

Suruí: sol de rachar. Às onze horas, pela estrada quente, mal sombreada por uma ou outra gameleira, vinha a negra Gilda da situação Fonseca, com a cesta de taquara carregadinha de beijus, agasalhados na toalha recortada à mão por sua senhora, D. Ricarda Maria. 

A pele preta não desgosta do sol; mas era tão ardente esse de dezembro, que a Gilda, suando em bica, meteu-se pelo primeiro atalho para o mato até a margem do rio. O caminho seria mais longo, paciência. 

Logo que entrou na selva regalou-se roçando as solas dos pés, queimados pela areia da estrada descoberta, nas trapoeirabas macias, onde florinhas roxas desabrochavam à sombra de caneleiras cheirosas e de cada árvore, que Deus nos acuda! Tinha o seu medo de andar por ali; sempre era mais arriscado o encontro de uma cobra que pela estrada. Mas o frescor do mato e o marulhar do rio tentavam-na, foi andando. E tinha que andar, porque a freguesia de São Nicolau ainda era dali a um bom quarto de légua, e depois de ter oferecido os beijus em nome da ama, à sua irmã D. Luísa, teria de voltar à situação antes do pôr do sol. 

Com aquele calor... 

O cheiro agreste dos cambarás punha tontas as borboletas cor de palha. Das altas copas dos paus-de-arco caía um chuvisco de ouro, em pétalas pequeninas. Perfume e silêncio. De repente a água do rio repuxou alto; Gilda parou; nada! Cantou um jacu mas calou-se logo, pressentindo gente. A água voltara à plácida correnteza, não encontrando estorvos no caminho. 

Gilda retardava os passos, e já não deixava de sondar, com o olhar afeito, as águas moles. Súbito, numa clareira pequena, onde havia sol, divisou junto à margem um grande peixe dorminhoco e sossegado. A pele mosqueada do animal luzia dentro da água colorida de roxo pela copa florida de um pé de Quaresma, como uma espada enferrujada nos copos. A água trêmula coloria-o de lapidações de ametistas e ele dormia a sesta, de olhos abertos, ventre roçando na areia. 

Gilda pousou a balaio no chão, entalou a saia entre as pernas roliças, e, pé ante pé, muito devagarinho, entrou no rio, agachou-se e zás! agarrou com ambas as mãos o peixe gordo, que se debateu sobressaltado, violentamente, num reboliço gorgolhador, salpicando-a toda. Sentindo-o escorregar por entre os dedos, Gilda atirou-o para uma aberta da clareira, sobre um pouco de mato carrasquento de roça abandonada. O peixe arqueou-se todo em saltos, unindo o rabo à  cabeça numa ondulação violenta, com ânsia de mergulhar de novo, no esforço de buscar a vida que lhe roubavam. O sol secava-lhe a pele lisa, que brilhava à luz em reflexos de ardósia e prata; os olhos exorbitavam-se-lhe, redondos como dois globos foscos que o furor encandecia, e o corpo torcia-se-lhe ora no ar, ora no chão, descrevendo curvas, num movimento incessante, batendo na terra quente para, de um salto flexível, de acrobata doido, atirar-se de encontro a um tronco espinhento de paineira, sem se dar por vencido, no heroísmo de quem ama a vida e quer gozá-la mais. 

Gilda deixava-o debater-se, deliciada com aquela agonia longa, nervosa, que observava com atenção alegre, no triunfo da sua força animal. 

A tortura do peixe prolongava-se; ele era valente, resistia ao ar seco, ao sol ardente, à dureza do chão, aos embates nos espinhos que o feriam, aos atritos dos seixos escaldantes e dos tronquinhos secos do ervaçal. Pouco a pouco o cansaço ia-o amolecendo, um fio de sangue escuro corria-lhe do ventre, um arrepio enrugava-lhe o dorso e ficou por fim todo estendido, batendo só com o rabo, convulsivamente, no chão áspero. Depois nem um tremor mais; quedou-se imóvel. Gilda cuidou-o morto e acocorou-se para o ver de perto, quando, em um arranco supremo, o peixe lhe saltou por sobre a cabeça, relanceando um fulgor de aço no ar abafado e indo cair em um baque nas trapoeirabas, quase à beira do rio.

Ouviu ele ainda o som mole das águas correndo sobre areias frias, sentiu na pele queimada o frescor das ervinhas brandas, mais um impulso e mergulharia na corrente salvadora... não pôde: a carne mole não lhe obedecia à convulsão da vontade. 

Gilda cortou uma taquara, lascou-a com força e, aproximando-se, varou o peixe de guelra a guelra. Ele estrebuchou languidamente e a negra riu empunhando o bambu, como uma lança de guerra sobre um corpo inimigo. 

Foi só depois de tudo consumado que a Gilda se lembrou de que tinha de entregar os beijus ainda quentinhos à irmã da sua senhora... 

Voltou-se; uma mosca varejeira zumbia sobre a toalhinha branca, em lampejos de metal azul. Um gesto da negra e ei-la que partiu. 

Deviam ser horas de se ir encaminhando para a freguesia de São Nicolau do Paço. Antes de prosseguir, amarrou com um cipó as taquaras em cruz, escondeu o peixe entre folhas de inhame e depois de ter marcado o sítio recomeçou a caminhada. Foi-se embora, apanharia o peixe no regresso... 

Que voltas teria dado a Gilda por aqueles morros e aquelas vargens, que só à tardinha entrou na freguesia, com a cesta de beijus, que deveria entregar quentinhos, já muito desfalcada? 

Foi talvez no mandiocal de seu Neves, quando parou ouvindo as cantigas e vendo arrancar mandioca bonita, de lua nova... 

Não, a maior demora deveria ter sido na casa do João Romão, deitada na esteira, no pomarzinho de tangerinas, daquelas pequeninas, que ela comia com casca e tudo. 

Nesse dia não o tinha encontrado, perdera umas duas horas a esperá-lo, de papo para o ar, vendo as nuvens dos mosquitos. 

Por onde andaria ele? 

João Romão era vadio, cantava à viola e trazia pelo beiço toda a crioulada da redondeza. Gilda mordia-se de ciúmes sempre que o via, lá no engenho de D. Ricarda Maria, mais voltado para a Paula ou para a Norberta do que para ela. Quando o censurava por isso, ele levantava os ombros e ia dizendo que gostava de contentar toda a gente... 

Pois era sol posto quando a Gilda divisou a igreja de São Nicolau, com o seu mato de limoeiros perto, e as suas paredes brancas alvejando em uma tristeza de abandono...

Nem um badalar de sino. Voavam pombas-rolas à procura dos ninhos e crianças sujas cantavam em rondas na primeira rua da povoação. Gilda apressou o passo até uma casa velha de janelas de peitoril. 

D. Luísa andava de visita a uma comadre; a preta deixou-lhe a cesta de beijus com a cozinheira Sofia e depois de ter engolido uma caneca de café girou sobre os calcanhares, pensando no terror da estrada pelo escuro. Bem faria se caminhasse sempre depressa, mas no canto da praça viu gente ajuntada na porta da venda e foi-se chegando curiosamente. 

Falava-se do milagre. São Nicolau, deposto do seu trono de honra no altar-mor, fora colocado irreverentemente no chão, embaixo do coro, para que ali lhe carminassem à vontade o rosto desbotado e lhe assinalassem os traços já sumidos. 

Deixaram-no para ali sozinho, sem lâmpada nem vigia por toda uma feia noite! Daí, que aconteceu? Na outra madrugada o sacristão viu com os seus olhos carnais, que a terra havia de comer, o bom São Nicolau do Paço, lá no alto do seu trono condigno! Ninguém o removera; o santo tinha subido àquela famosa altura, pelos seus próprios pés, que os não tinha de fato, visto que a túnica de madeira, com douraduras e vernizes, descia-lhe até ao chão... 

Gilda estremeceu, e antes de seguir seu caminho voltou o olhar esgazeado para o bosquezinho de limoeiros odorantes, perto da igreja. 

Nossa Senhora! Arrependia-se agora de não ter vindo direitinha dar o seu recado logo pela manhã. Não eram as fúrias de D. Ricarda Maria, tão impertinente, o que ela mais temia, mas as almas penadas que andassem soltas, gemendo pelo mato. Lá a sua senhora? que se ninasse! já não havia escravos. Agora os fantasmas, esses! São Nicolau que a acompanhasse. 

Benzeu-se e foi andando com o coração nas mãos, volvendo os olhos esbugalhados para as beiras do caminho. Luzia-lhe a esperança de pedir pousada ao João Romão: cortaria assim a pior parte do caminho e dormiria com ele. 

Por mal dos seus pecados, a noite estava negra e um ventozinho precursor de chuva agitava as ramagens, imitando vozes extravagantes. 

Passado o negrume do mandiocal do Neves, ao dobrar mesmo a estrada, no ângulo onde de dia tanto se enchera de araçás, Gilda estacou boquiaberta. Através do rendilhado negro das galharias folhudas, ela viu luzes, grandes luzes bailando vagarosamente, lá na beira do rio. 

São Nicolau me acuda! suspirou ela, com os joelhos bambos, o coração aos pulos, estarrecida. São Nicolau valeu-lhe, fazendo-a reconhecer nas luzes archotes de bagaço de cana seca, que alumiavam o João Romão, a Norberta e mais três parceiros, na pescaria do bagre amarelo em tocas de pedras frias. O que enfureceu a Gilda foi ver o mulato abraçar Norberta, mesmo ali, à vista dos outros... 

– Que jundiá que vocês apanhem tenha veneno, diabos! rosnou ela com desejo de irromper pelo mato e ir bater naquela gente, ruim que nem cobra. Repeliu a ideia, estava sozinha, os outros eram muitos. 

Esquecendo-se de ir procurar o seu peixe gordo, sepultado entre folhas de inhame junto à cruz de taquara, e que mesmo a escuridão não permitiria encontrar, Gilda seguiu para diante, tecendo ideias de vingança. 

– João Romão me paga, deixa estar ele! Pensam que podem comigo... não vê! 

Um uivo lamentoso atravessou a floresta e houve uma bulha de animal de rastos. Gilda nem fez caso. A raiva tirara-lhe o medo. 

Às seis horas da manhã, D. Ricarda Maria apareceu no engenho, e, dando com a Gilda no trabalho, gritou-lhe, furiosa: 

– Então, sua cachorra, é assim que você cumpre ordens? 

Contra o costume a negra baixou a cabeça, humilhada e sonsa, relanceando a vista para a Norberta, que enchia um tipiti para a prensa, no meio de uma nuvem fina de farinha que o João Romão peneirava a seu lado. Norberta passava por ser a crioula mais bonita do Engenho. Era tafula, vestia-se de engomados. Pareceu à Gilda, através da névoa branca, que ela se ria na ocasião, e teve ímpetos de lhe atirar à cara a cuia com que levava mandioca do cocho para o forno, que a Paula remexia com a longa pá. 

Tia Teresa, a africana velha entendida em rezas e feitiços, cosia os sacos, agachada a um canto, e, enquanto uns negros entravam com cestos de mandioca para a raspagem, outros traziam-na do lavador para a cevadeira, já branquinha como ossos nus... 

D. Ricarda Maria chupou o grande buço grisalho que lhe ornava o rosto magro e ordenou ao João Romão que deixasse a peneiragem à  Rita, e fosse ele para a máquina. Depois voltando-se, inquiriu:

– O cocho está seco? Que é do Viriato? 

– Viriato tá cortando mandioca, sim senhora... respondeu o Joaquim velho, que entrava suando sob um fardo de aipins. 

D. Ricarda Maria postou-se ao lado da bolandeira e o mulato sentou-se, tanto se lhe dando fazer um serviço como o outro. A velha gritou então que abrissem a água, e a engenhoca roncou. 

– É agora, pensou Gilda consigo, voltando-se. Norberta olhava embevecida para o João Romão, aproveitando a distração da patroa. O mulato é que não podia desviar a vista do trabalho, sob pena de ficar sem dedos ou sem braços. A máquina descrevia os seus movimentos rápidos, impelida pela força da água, triturando, esfarelando as raízes brancas da mandioca, num mastigar incessante. 

Tia Teresa cantava num fio delgado de voz, estendendo os pés gretados pelo chão, onde tremia uma roseta de sol caída do teto, de telha vã. 

Gilda observou: estavam todos preocupados; então, avançando, disse num berro furioso: 

– João Romão! 

O mulato voltou-se assustado e a máquina segurou-o logo pela mão direita, e levar-lhe-ia o braço se D. Ricarda Maria não o tivesse puxado imediatamente para trás, com um movimento rápido e violento. 

O sangue espadanou, houve rumor, o mulato caiu. 

Gilda, vingada, num tremor de raiva e de espanto, dizia que só dera o grito ao perceber a catástrofe. Aquela mentira saía-lhe tão limpa como se fora uma verdade. Só a Norberta, fula, espumando irada, a desmentia, xingando-a, em avanços de animal danado: 

– Foi de propósito! prendam aquele diabo! foi de propósito! exclamava ela debatendo-se nas mãos das companheiras, que a continham a custo. 

– Como ele não quer mais saber dela! foi de propósito! Amaldiçoada!

Mas todas afirmavam que o caso deveria ter sido como a Gilda explicava, por que não? Fora tudo momentâneo, e a própria D. Ricarda Maria, ali de vigia, não se sentia habilitada nem para acusar, nem para defender... 

Eis aí por que o João Romão nunca mais seduziu as crioulas dedilhando na viola aquelas modinhas faceiras e sentimentais. 

Apesar de o ver maneta e de o saber preguiçoso, Norberta fez-se a sua companheira definitiva. Essa trabalha por dois, e, sempre que vê a Gilda passar pela sua porta, cantando escarninhamente com as mãos para as costas, ela cospe três vezes, dependura do umbral o ramo de arruda, faz no vazio o sinal da cruz e diz de modo a fazer-se ouvir da outra: 

– Te esconjuro, diabo!

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