A afilhada do noivo
Um ano há que
minhas pesquisas botânicas levaram-me aos arredores duma pequena aldeia que não
dista muito de Loudun. Uma mulher de cerca de quarenta anos encontrou-me na montanha
e julgou que eu colhia ervas medicinais. Observei que ela tinha vontade de falar-me,
e sem adivinhar o que podia inspirar-lhe esse desejo, fui o primeiro a travar
conversação. Disse-me então que era muito infeliz, tendo uma filha moça, sua
única consolação, que estimava mais do que a si própria, e estava a ponto de
perder, pois havia os médicos desenganado. Depois, pediu-me chorando que a
visitasse e não recusasse-lhe socorros. Inútil teria sido escusar-me; e demais,
para que roubar-lhe o encanto desse momento de esperança, indenização estéril,
mas tão suave, de muitos meses de incerteza e lagrimas?
Caminhei após
ela pelas floridas giestas e montas de tojos, até que chegamos á aldeia. Enfim,
mostrou-me o limiar da cabana e eu entrei no quarto onde a filha repousava numa
cama de lona já usada, entre duas cortinas verdes.
Estava esta
apoiada num braço, com os olhos espantados, as faces rubras e ardentes, a boca
arquejante e pálida. Parecia ter quando muito dezesseis a dezessete anos; não aram
porém amenas as suas feições; nelas apenas notava-se certa expressão comovente
e apaixonada que tem o poder de tudo embelezar.
- Suzana, lhe
disse a mãe, eis uma pessoa de muito saber, que seguramente há de curar teu
mal.
Sorrindo
docemente, ela voltou-se para a parede.
- Suzana,
continuei tomando-lhe a mão; não vos entregueis a uma injusta desconfiança;
para tudo há remédio.
Levantou a
cabeça e olhou-me fixamente.
- Examinando
algum tempo os sintomas de vossa doença, acharei sem dúvida meios de
aliviar-vos.
Sorriu-se de novo e retirou das minhas as suas mãos, com ligeiro esforço.
A mãe saiu.
Não sei que
inquietação se apoderara de mim. Comecei a passear a longos passos pela cabana,
e a imaginação só apresentava-me ideias desordenadas e sem harmonia.
Interessava-me
esta moça.
Voltei para
junto dela e assentei-me. Ouvi um suspiro.
Tomei a mão
que há pouco me retirara. A minha estava ardente: ela apertou-a.
- Suzana,
disse-lhe apoiando-a sobre o seu coração, teu sofrimento está aqui.
Abaixaram-se
as suas pálpebras com melancólica tranquilidade: estavam inchadas e dilatadas.
As pestanas reunidas em porções brilhavam ainda pela umidade das lágrimas.
- Amas, acrescentei
em voz baixa. – Intumescia-se-lhe o peito.
Passou os
dedos por um anel dos cabelos negros, colocando-o no rosto.
Segurava-a com
um braço. Aproximei-a do meu seio com casto interesse. Meu habito tocava-lhe os
lábios.
Falou; mal a
ouvi. – Não é ele, dizia:
- Não,
respondi, não é; porém não há de vir? Suzana moveu a mão ao redor da cabeça.
- Talvez
amanhã o vejas.
Não respondeu.
Receando agravar
a sua dor, conservei-me silencioso. Olhou-me ainda uma vez; eu estava a chorar!
Tinha uma lágrima
nas faces; ela enxugou-ma com as costas da mão.
Outra caíra-lhe
na mão; recolheu-a com a boca.
- És bem
feliz, me disse; creio que choraste.
E depois,
observando-me mais, acrescentou: - Amar-te-ei porque tens uma alma angélica.
Dize-me entretanto se és nobre.
Eu hesitava em
confessá-lo. É difícil dizê-lo diante da virtude prostrada no leito da miséria.
- Oh! prosseguiu;
nobre e homem; há nisso equivoco. Mas és muito moço ainda... Estou contente de
te ver corar.
- Explica-me...
Eu não pronunciei tais palavras; que necessidade tinha eu dum esclarecimento
doloroso para dar-lhe minha piedade? Nos entendíamos bem assim.
Um pouco mais
tarde, tornei a ver a mãe, que aguardava as minhas palavras como oráculo
salvador. – Ela amou? Perguntei-lhe.
- Ah! Nunca.
Ricos partidos têm-se apresentado; e apesar de nossa indigência, muito e
ardentemente solicitado foi o amor da minha Suzana, porém debalde. Ela desejara
houvesse claustros onde sepultar a sua mocidade, porque lhe era o mundo
importuno e a vida parecia-lhe longa e difícil. Creio que nenhum homem obteve
um só osculo de Suzana, a não ser o padrinho. Ele têm doze anos mais do que ela,
e é filho do antigo senhor da aldeia. Quando ele estava ausente ao serviço do
rei, ela dizia: - Sei que meu Padrinho voltará, porque Deus mo prometeu; e logo
que volte, o meu Frederico, dar-lhe-ei um cordeiro todo branco, ornado de fitas
azuis e cor de rosa e de grinaldas de flores, conforme a estação. – Ela foi com
efeito ao seu encontro, e quando ele a viu, desceu do cavalo para beijar-lhe a
fronte.
– Vede, disse,
como Suzana é linda! Não quero que conduza mais rebanhos ao longo das sebes,
nem creste a sua tez ardores do sol, pois eu amava-a como irmã.
No dia
seguinte voltei ao romper da aurora. Encontrei-a pior.
- Ouve, disse
ela abraçando-me, deves ser bom como és bonito e quero pedir-te uma coisa
melhor que a vida. Faze com que minha mãe me dê o meu vestido branco, minha
touca de cassa, e minha cruzinha de cristal. Colhe-me uma escovinha no jardim e
um lírio perto do regato. É hoje o aniversario do meu nascimento.
Fiz o que me
pedira e sua mãe vestiu-a. Mas ao descer do leito, caiu ela em desfalecimento.
Defronte
vibrava o sino, pois estávamos em frente da igreja. Disse-lhe a mãe: - Vês, é o
casamento de Frederico; se não estivesse doente, dançarias como as moças nas
grandes salas do castelo. Porque não te animas?
Não ouvia mais
Suzana, a pobre Suzana! Afirmou-nos que estava melhor.
Aproximamo-nos
da porta, a mãe e eu, para vermos passar os noivos. Com tímida atenção escolhia
a mulher o lugar onde devia pôr os pés, para não amarrotar as bordaduras do seu
calçado. Todo os seus movimentos aram difíceis e afetados; todos os seus gestos
soberbos e desdenhosos. No andar, no olhar, no arranjo dos cabelos, nas pregas
dos vestidos, tudo era simetria. Oh! quanto lhe inspiravam desgosto os cuidados
duma simples festa e duma cerimônia comum.
Depois vinha
Frederico, com os olhos baixos, sem alinho, andar lento e inquieto.
Ao passar pela
casa, lançou-lhe os olhos com ar sombrio e descontente; recuou quase um passo
mordendo os lábios; desfolhou um ramalhete que tinha nas mãos; e depois
continuou seu caminho, e a igreja abriu-se.
Eu ficara só refletindo
nisto; de súbito ouvi um grito. Corri. A mãe estava de joelhos e a filha
deitada.
- Estás
certa?...
- Olha, me
disse a mãe...
Suzana estava
morta, inteiriçada, sem cor, já de todo examine. Toquei-a, estava fria.
Auscultei-a ainda, e tive certeza de que não mais respirava.
Eis o que vi
no povoado vizinho de Loudun.
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Atualização ortográfica: Iba Mendes, 2023.
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