1/05/2023

A Fome de Camões (Poesia), de Gomes Leal

 


A FOME DE CAMÕES
(POEMA EM 4 CANTOS)



CANTO PRIMEIRO: TRAGÉDIA DA RUA

Quando no mundo o Gênio abandonado
expira à fome e ao frio, indignamente,
um lívido remorso ensanguentado
sacode o mundo tenebrosamente.
Como o arrepio dum terror sagrado,
alguma coisa grita intimamente:
como uma voz terrível que suspira
nas cordas vingativas duma Lira.

E essa Lira é só feita de ameaças.
Essa Lira é só feita de vinganças.
Essa Lira só fala de desgraças,
de antigos crimes, de cruéis lembranças.
Essa Lira espedaça e quebra as taças,
cala os festins, e faz parar as danças,
e essa Lira ai! da trágica inocência
é a Lira terrível da Consciência.

E a Lira diz: O que fizeste, ó mundo!
das grandes almas únicas, sagradas,
das grandes frontes dum sonhar profundo
que eram as frontes as mais bem amadas?
O que fizeste desse abismo fundo
de vontades mais rijas do que espadas,
desses simples e santos corações
que faziam chorar as multidões?

O que fizeste dessas línguas de ouro
que sabiam pregar como os profetas?
Como enxugaste o seu comprido choro?
Como arrancaste as pontiagudas setas?
O que fizeste, ó mundo! do tesouro
que vós homens mortais chamais poetas:
mas cujo nome de harmonias belas
só o sabem as Coisas e as Estrelas?

Deitaste ao lodo, à rua, e aviltamento
esses que adora a Natureza inteira,
esmagaste entre as pedras o talento,
os seus crânios quebraste, na cegueira!
As suas cinzas espalhaste ao vento!
Profanaste os seus louros na poeira!
E repousam sem lástimas nem lousas
os que viam as lágrimas das Coisas!...

Por isso me ouvirás em toda a parte
como um soluço e um grito vingador,
numa alta torre, atrás dum baluarte,
entre os festins, nas convulsões do amor.
Na paz, ou levantando o estandarte
da guerra, escutarás a minha Dor.
Porque eu, ó mundo! guarda-o na lembrança,
— Eu sou a Lira, e a minha voz Vingança!

E o mundo escuta, indefinidamente,
a voz da Lira a protestar terrível.
Ouve-a na sombra, ou pelo sol poente,
se o vento dobra o canavial flexível,
ouve-a nos sonhos, ouve-a intimamente,
numa continua música inflexível,
até que enfim vencido nesta liça
o mundo clama: — Faça-se a Justiça! —

Era uma noite lívida e chuvosa,
ermas as ruas, ermas as calçadas.
Nada cortava a solidão brumosa,
nem ais de amor, nem gritos de facadas.
Das nuvens colossais acasteladas
somente a meia lua silenciosa,
boiava em morto céu ermo d'estrelas,
como um navio que perdeu as velas.

Quem é que cruza à chuva e à ventania,
à meia noite, as ruas solitárias?
És tu santa Miséria, que de dia
foges da luz do Sol, o pai dos párias?
Ou és tu Fome ou Vício, que sem guia,
vais nas noites sem lua, mortuárias,
provocar o Deboche e os estrangeiros
à baça luz dos tristes candeeiros?

Ó Destino! ó Destino! — eu sei a história
de muitas das tragédias soluçantes,
de muito nome que esqueceu a Glória,
de muitos prantos que caíram dantes!
Sei que riscam teus dedos flamejantes,
como uma sina má, muita memória,
e que nada há maior e mais escuro
do que o brilhante e o bronze do teu muro!

Mas não quero contar o drama agora
do Brilhante, do Leque, e do Farrapo,
da meretriz que no bordel descora,
do amor do Charco, do histrião, do sapo;
nem a farsa de sangue a toda a hora,
do Ouro e do Veludo — o rico trapo,
nem a sina imoral sinistra e crua
da história diabólica da Rua.

Um dia eu contarei a estranha lenda
ó Destino! dos teus encantamentos,
seguirei, passo a passo, a tua senda
ó Miséria! e direi os teus tormentos.
Para que a alma da Ralé aprenda,
contarei os cruéis temperamentos,
Direi o Incesto a amamentar os filhos,
e o Parricida a esvaziar quartilhos.

Um dia acenderei a selva escura
das almas que sufocam à nascença,
das noites só riscadas de amargura,
como um fósforo risca a treva densa.
E com a ponta dum brilhante duro
marcar-te-ei ó trágica Doença
que vais, limpando as lágrimas internas,
fazer um toast à Morte nas tabernas.

Um dia evocarei os teus mistérios,
ó tragédia da Rua e os teus segredos,
mais funestos que os tristes cemitérios,
mais profundos que os bastos arvoredos:
direi sonhos, desejos quase etéreos,
desejos que têm asas nos degredos,
duma alma que ama o Azul, o Azul almeja,
como a agulha da torre duma igreja.

Um dia esfiarei todo o rosário
da Inocência e da Fome aventureira,
do Luxo, do Egoísmo solitário,
do Gênio soluçante na trapeira,
da Virtude embrulhada em seu sudário,
pedindo esmola à sua irmã rameira,
e o Crime dando bailes de aparato,
em quanto o Justo expira no grabato.

Descobrirei as contas da Avareza
junto ao esquife duma virgem bela,
o Tédio bocejando à lauta mesa,
a Fome da mansarda na janela,
a Inveja ululando contra a preza,
como uiva à lua a lúgubre cadela,
e o Suicídio, nas manhãs geladas,
espedaçando o crânio nas calçadas.

Um dia cantarei a ladainha
da Desgraça e da Forma triunfante,
da Espada que tilinta na bainha,
da Máscara que ri e passa avante,
da Fome que ergue as mãos e se definha,
do Leque, da Batina, e do Brilhante
das lágrimas mortais do eterno Entrudo,
das misérias do Cancro e do Veludo.

Porque tem muito que cantar o império
e o inferno da Carne e dos desejos,
porque é eterno e lívido o mistério
da Morte. São eternos os almejos.
Porque há lágrimas do berço ao cemitério,
ha lágrimas no Amor e até nos beijos,
prantos comuns e de grotescos traços
nas misérias dos reis e dos palhaços.

Porque tem muito que cantar as cenas
ó Rua! das estranhas odisseias
das tuas festas, procissões serenas,
do negro sangue que te agita as veias.
Porque há remorsos, lágrimas e penas
entre os motins e os frenesins das ceias.
Porque nesta funesta e eterna farsa.
ai! tanto chora o ator como o comparsa.

Porque há bastantes corações vencidos,
altos desejos que não mais voaram,
sinistros ais e íntimos gemidos
lágrimas mudas que se não choraram.
Sim, há soluços que não são ouvidos,
lágrimas mortas que se congelaram,
numa miséria, um abandono nobre
como um enterro numa rua pobre!

Porque ninguém conhece onde termina
o trejeito que ri, soluça, engana,
porque a eterna Máscara domina,
e é uma esfinge cada face humana.
Porque a Morte em nós ceifa uma ruína,
quando nos rouba na asa desumana,
e esta mulher que ri com tanta graça,
é talvez uma lágrima que passa!

Mas agora eu só conto o Irrevogável,
mais monstruoso do que um sonho ardente,
conto a história funesta, inexorável,
do Gênio morto à fome, indignamente.
Quero narrar o que é o inarrável!
fazer sentir o que jamais se sente,
fazer chorar o choro masculino
Do Gênio contra a noite do Destino!

O Gênio é um arcanjo refulgente
que enrista a lança contra a escura Sorte,
tem no seu gesto uma expressão potente,
que diz: eu quero! e empalidece a Morte.
Para o Vulgo porém vil inclemente,
e o Destino esse cego antigo e forte,
é um guerreiro trágico e proscrito,
e a fronte tem como um luar maldito.

Este vulto, portanto, que caminha
altas horas, ao frio das nortadas,
é Camões que de fome se definha
nas ruas de Lisboa abandonadas.
É Camões a que a Sorte vil mesquinha
faz em noites de fome torturadas,
ele o velho cantor de heróis guerreiros!...
vagar errante como os vis rafeiros.

Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo,
o seu amparo e seu bordão no mundo,
morreu-lhe o humilde companheiro antigo,
no seu peito deixando um vácuo fundo.
Hoje pois triste, velho, sem abrigo,
faminto, abandonado e vagabundo,
tenta esmolar também pelas esquinas.
Ó lágrimas!... Ó glórias!... Ó ruínas!...

Mas não estende o valoroso braço,
que outrora trabalhou entre os guerreiros,
a mão recusa-se a suster o passo
dos transeuntes raros, sobranceiros.
A Fome rói-o, curva-o o cansaço.
Cospem-lhe a neve, a chuva, os aguaceiros.
Ó calçadas fatais! nas enxurradas
vai muito fel de lágrimas choradas.

Ó Capitães! Ó Capitães egoístas!
duras velhas mais duras que o granito!
ha caso mais sublime às vossas vistas
que mais vos deva merecer um grito,
mais negro, mais cruel para os artistas,
mais sagrado, dramático, infinito,
que mais abale os nobres peitos francos
que um Gênio pobre e de cabelos brancos!?...

O Gênio continua à ventania
a errar pelas ruas silenciosas,
como um espectro que dissipa o dia,
como as grandes estátuas dolorosas.
Assim a noite vaga, na agonia
dos mártires das noites trabalhosas,
até que o sol jorrou pelas vielas,
e ensanguentou os olhos das janelas.

Começam-se a ouvir esses rumores
das capitais egoístas acordadas,
a música dos carros chiadores
que chegam das aldeias retiradas.
Recomeçam as pombas seus amores
sobre as brancas igrejas penduradas,
e nas torres dos astros companheiras,
a palpitar, nas glórias, as bandeiras.

Começam-se a ouvir as matutinas
músicas da cidade, e as alegrias
dos galos com as notas cristalinas
dos sinos com estranhas sinfonias.
O sol lava de glórias as colinas
as torres, os beirais, as gelosias,
e como a moça que um amante beija
avermelham-se os vidros duma igreja.

Dos pássaros retinem os gorjeios
nas árvores, nas pontas dos eirados,
os vis riachos, os lodosos veios,
correm ralhando, ao sol, precipitados,
os cavalos remordem os seus freios,
vão passando aldeões para os mercados,
e atrás dos lentos carros os boieiros
veem sombrios, graves, e trigueiros.

Somente ao Gênio uma tristeza enorme
entenebrece todos os ruídos,
como um sombrio coração que dorme,
que já não tem nem sonhos, nem gemidos!
Só sente uma saudade estranha, informe,
como aroma dos tempos revolvidos,
das grandes selvas, sombras e palmeiras
quando o sol desce as íngremes ladeiras.

Os aldeões tisnados dos trabalhos,
recomeçando as horas das fadigas,
recordam-lhes os épicos carvalhos
a sombra, os bois, as sestas tão amigas!
Fazem lembrar-lhe as curvas dos atalhos,
a ermida, a fonte, os fenos, e as cantigas,
que ele escutara, pelas luas claras,
às louras raparigas nas cearas!

Lembram-lhe a Índia, os templos monstruosos,
com seus deuses terríveis, singulares,
as árvores de frutos venenosos,
as bastas selvas, os gentis palmares!
Lembram-lhe os tigres ruivos, sequiosos,
que vão beber a rios como a mares,
e pelas noites imortais, eternas!
o luar nas figueiras das cisternas

E ele quisera achar-se em alto monte,
em cima tendo os astros por juízes,
dizendo adeus ao sol no horizonte,
acabar os seus dias infelizes:
na boa terra Mãe deitar a fronte
e entre as vegetações, entre as raízes,
misturar sua vida e acerbas dores
com as almas das plantas e das flores!

Para o velho cantor eram fugidos
ai! como luz que para sempre expira,
os belos tempos jovens e luzidos,
as mulheres ideais que o Amor inspira!
Rotos, à chuva, os trágicos vestidos,
posta de parte, empoeirada a lira,
achava-se hoje numa rua, ó mundo,
velho, faminto, pobre, e moribundo!

Sem ousar mendigar, como um vadio,
vaga nas ruas da Cidade egoísta.
A tarde chega, o belo sol fugiu.
A noite vem, que o coração contrista.
Irrompe a lua sobre a verde crista
dum monte ao longe, e no lajedo, ao frio,
o Gênio cai enfim, hirto e sem fala,
como um cadáver que se deita à vala.

Neste momento uma mulher gigante,
que pareceu sair dum pesadelo,
pálida e triste, qual saudade errante,
deixando ao vento as ondas do cabelo,
tão magra como a Sombra, o seu semblante
toldado dum desgosto imenso e belo,
chegou-se ao Gênio hirto e abandonado,
como a visão dum sonho torturado.

E disse-lhe: Bem perto desta rua
dar-te-ão, ó mendigo, uma guarida,
não dormirás à lividez da lua
e terás leito onde acabar a vida.
Se a Sorte te esmagou, a Sorte crua,
ergue a cabeça pálida e abatida,
e ri contente, ó triste, para a eça,
que em breve vai findar a tua peça!

A mulher ajudou a levantá-lo.
Cingiu o braço ao Gênio moribundo.
A Morte que passava em seu cavalo
deu-lhe um sorriso lívido e profundo.
— O teu semblante, ó velho, dá-me abalo,
disse a mulher. Não é vulgar no mundo!
Dize-me pois que coisas tenebrosas
te hão cavado essas rugas dolorosas!

“Eu fui — o Gênio disse — um malfadado
cantor de heróis e feitos dos antigos!
Amei tudo que é grande e desejado,
e terrível lutei contra inimigos!
Sentei-me no castelo derrocado,
no deserto solar, cruzei os perigos!
E com saudade enfim destas colinas,
quis expirar-lhe, um dia, entre as ruínas!

Ninhos fizeram no meu peito amores,
como andorinhas sobre as catedrais!
Conheço o aroma das malditas flores!
Sei os soluços dos compridos ais!
Sobre o deserto pálido das Dores,
ninguém como eu peregrinou jamais!
E pelas noites regeladas, cruas,
chorei com fome, errando, pelas ruas!

Porém que porta negra agora abriste?
Que aspecto é este morto e desolado?
Acaso o inferno depois disto existe?
Acaso é pesadelo desmanchado?”
— Cala-te! disse a Sombra magra e triste,
Cala-te, ó Gênio imenso, desgraçado!
E com sorriso de expressão fatal
a Sombra concluiu: — É o hospital!

 

CANTO SEGUNDO: NO GRABATO DO HOSPITAL

É alta a noite. A lâmpada vacila,
como um pranto, na vasta enfermaria.
Um marmóreo suor frio cintila
sobre a fronte do Gênio, na agonia.
O Gênio vai morrer; sobre a pupila
treme-lhe um pranto à luz baça e sombria,
mais triste do que o luto duma sina,
e um soluço através duma ruína.

Junto do leito uma mulher estranha,
com grandes olhos tristes e parados,
contempla-lhe o suor frio que o banha,
e abraça-o com seus braços descarnados.
Como um sol que se põe numa montanha,
são frios os seus olhos encovados,
hirta, severa, trágica a postura,
como imagem de antiga sepultura.

“Já viste — diz-lhe o Gênio — ó mulher triste!
que me olhas com teus olhos impassíveis,
morrer no mundo alguém? Acaso viste
as lágrimas da morte irremissíveis!
Acaso, ao magro peito já cingiste
uns braços que enfim caem insensíveis,
alguns braços de irmão que te apertaram,
e que até às entranhas te gelaram?

Já conheceste as grandes despedidas
as despedidas sepulcrais, eternas?
Já sabes quanto doe irem-se as vidas,
formas, e almas que nos foram ternas?
Sabes o fel das lágrimas vertidas,
ou o sangue das lágrimas internas,
num rosto amado, uns olhos, um cabelo,
que a alma sabe que não torna a vê-lo?!”

Ai! sim — a Mulher diz — com voz gelada
que pareceu sair dentre saudades,
calcadas como lírios numa estrada,
terríveis como pálidas verdades.
“Eu cruzei já os reinos e as cidades
do luto, e da miséria desolada,
e vi magoas, e gentes falecer
que ninguém viu, nem tornará a ver!”

E continuou a olhá-lo fixamente
com o seu olhar trágico e marmóreo,
e um suspiro vibrou profundamente,
dolorido, no vasto dormitório.
Como através dum sonho incoerente,
neste sonho da vida transitório,
O Gênio leu, no seu olhar parado,
todo o luto e terror do seu Passado.

“Ah! já sei quem tu és, — o Gênio clama —
na rápida centelha dum delírio.
Tu és a Musa que apregoa a fama,
a Musa meu amor e meu martírio!
Foste tu que acendeste em mim a chama!
Nessas pálpebras roxas como um lírio,
na palidez, nos lábios desbotados,
vejo a Musa dos gênios desgraçados!

Tu és a Musa sim desses errantes
e tristes peregrinos do Ideal,
desses loucos e estranhos viajantes
que andam à busca duma flor fatal,
duma flor de tons ricos, cintilantes,
duma camélia azul e boreal:
até que morrem numa praia nua,
ou nos gelos, a um raio azul da lua!

Foste tu que inspiraste sempre os cantos
que eu dediquei à Glória e à Natureza!
Ah! foste tu que me enxugaste os prantos,
e ao luar me falaste de tristeza.
Desci contigo ao reino dos espantos!
Contigo à tarde fui pela devesa!
Contigo à noite fui, pelas florestas,
apanhar boas noites e giestas!

Contigo eu devassei esses segredos,
das raízes, das Coisas, das Origens,
do germinar dos lírios e arvoredos,
e fiz aos astros soluçar as virgens.
Contigo fui, nas pontas dos rochedos,
debruçar-me do abismo nas vertigens,
e andei errante pelo mundo à toa,
como folha que vai numa lagoa!

Mas hoje gela-me o suor na testa
e convulsa-me o corpo um calafrio.
Desejo, sonho, amor, nada me resta!
Nada sacode meu cadáver frio!
Contigo não irei pela floresta!
Não mais irei contigo pelo rio!
porque o sopro vital em mim expira,
como as cordas que estalam duma lira!

Não sou a Musa, — disse a Sombra, — não!
Mas tenho visto os prantos dos amantes,
e a desolada e lívida expressão
dos seus gestos, nos últimos instantes.
As cristalinas lágrimas brilhantes
tenho aparado nesta magra mão;
cerrado os olhos com meus frios dedos,
e escutado os seus últimos segredos!”

E, continuou a olhá-lo fixamente,
com o seu olhar trágico e marmóreo,
e um suspiro vibrou profundamente
dolorido, no vasto dormitório.
Como através dum sonho incoerente,
neste sonho da vida transitório,
o Gênio leu, no seu olhar parado,
todo o luto e terror do seu Passado.

“Ah! já sei quem tu és, — o Gênio brada —
Conheço-o agora em teu olhar funesto.
Leio-o na tua fronte amargurada,
e na expressão sinistra do teu gesto.
Tu és uma saudade aos pés calcada,
o lírio dum desgosto estranho e mesto,
tu és a prole da Lágrima e da Dor.
— És o sinistro e monstruoso Amor!

Mas não és esse Amor doce e sereno,
nascido da Beleza, o Amor antigo,
irmão das Graças, lírico e pequeno
amando o riso, o campo, e o sol amigo!
És o Amor desolado como um treno,
terrível como o açoite dum castigo,
e empunhando na destra ensanguentada
um ramo de ciprestes e uma espada!

Como eu sofri das largas cicatrizes,
que abriste no meu peito, sem piedade!
Como eu cantei meus sonhos infelizes!
Como eu te amei ao sol da mocidade!
Como inda sinto as pontas das raízes
do amor que alimentei, e com saudade
lembram-me as tardes que ia nos caminhos,
pensando em ti, sentindo teus espinhos!

Mas hoje mocidade, vida alento,
tudo se foi, para não mais voltar!
Vai dissipar-se tudo, como ao vento,
do fim da tarde o fumo azul dum lar
Já sinto flutuar-me o pensamento
como uma flor aquática num mar,
e nas páginas do livro dos meus ais
a Sombra por o triste nunca mais!”

“Não sou o negro Amor, irmão da Pena
— a Sombra disse — e não empunho espada,
mas tenho visto a tenebrosa cena,
da tragédia da Vida malograda.
Tenho visto a blasfêmia que condena,
a lágrima que queima ensanguentada,
a lágrima que gela e que não corre,
como um desejo que estacou, e morre!”

E continuou a olhá-lo fixamente
com o seu olhar trágico e marmóreo,
e um suspiro vibrou profundamente
dolorido, no vasto dormitório.
Como através dum sonho incoerente,
neste sonho da vida transitório,
o Gênio leu, no seu olhar parado,
todo o luto e terror do seu Passado.

“Conheço-te afinal, — num grande brado
o Gênio diz. — Tu és a velha Glória,
mas a Glória do gênio amaldiçoado,
a Glória das lágrimas da História!
És a Glória do gênio e do soldado
que expira soluçando e sem memória,
num doloroso e lívido arrepio,
como um cadáver que rejeita o rio.

Deves ter visto as penas penetrantes,
como os bicos agudos do espinheiro,
as desveladas noites soluçantes,
mais negras do que o rosto dum guerreiro,
e as tristes magras mãos febricitantes
que te buscam a ti, num derradeiro
esforço de ansiedade e de desdita,
com a blasfêmia e a lágrima maldita!

Ilusão! Ilusão! sonho que encerra
em si a pobre humanidade inteira,
louros que faz buscar a morte e a guerra
nuvem que foge, à hora derradeira!
Glória! nome vão, a quem a Terra
busca, e só palpa a lívida caveira,
como pálidas flores das ilusões,
que esmagaram os pés das procissões!

Glória! nome vão! sonho e quimera,
íris triunfante de vistosas cores,
verme luzente que vagueia na hera,
sonho de estio entre luar e flores!
Ó giesta gentil da Primavera,
amendoeira da manhã de amores,
por que nos gelas do Destino à beira,
como a chuva que molha uma bandeira!?

Glória! esfinge eterna que dominas
com teu olhar profético do Incerto,
que nos fazes sonhar verdes colinas;
na poeira da areia do deserto,
Harmonia longínqua, mas que perto,
cremos ouvir, marchando entre ruínas,
e que de repente nos fulmina e estala,
como um conviva que morreu na sala!

Como eu te procurei por vale e monte,
e me rasguei nas lanças dos espinhos!
Como eu vi teus acenos no horizonte
a ensinar-me as veredas e os caminhos!
Como eu te vi um dia numa ponte,
num zimbório, nuns campos entre ninhos,
e outra vez, numa lua sossegada,
a galopar nas pedras duma estrada!

Vi-te ainda outra vez, ao vento frio
duma tremenda e lúgubre procela.
Estendias-me a mão, entre o assobio
do nordeste e das ondas, branca e bela.
Bem te vi, eras tu, e foi aquela
santa energia, que hoje já fugiu,
foi esse teu olhar que hoje desmaia,
que exausto e salvo me atirou à praia!

Mas só hoje te vejo claramente!
Só hoje, fundo, nesses olhos leio!
Tardaste muito em vir, Sombra inclemente!
Já muito tarde o teu auxilio veio!
Desalentado, pálido, doente,
nenhum alento me comove o seio!
Podes levar, ó Sombra! o teu tesouro.
Não vale tanto suor teu verde louro!”

“Não sou Amor, nem Musa, nem Glória,
— a Sombra disse — nem talentos faço.
Mais terrível, funesta é minha história!
Mais duro e horrendo o peso do meu braço!
Não colho os louros; sítios onde passo
traçam sulcos de sangue na memória.
Ah! mil vezes terrível é meu nome
tenebroso e profundo!... Eu sou a Fome.”

“A Fome! — o Gênio clama — dando um grito,
como um soluço último estridente.
A Fome me conduz para o infinito!
A Fome é meu final, o meu poente!
Foi isto que ganhou meu braço ardente,
foi isto que ganhou meu estro escrito!
a agonia e o suor num mundo ingrato,
desilusões, e a enxerga dum grabato!

Ó ilusões, ó nuvens peregrinas,
horas da mocidade já fugidas!
ilusões ó princesas perseguidas
galopando em fantásticas colinas,
ó brancas catedrais de pedra erguidas
com as santas, à tarde, purpurinas
vegetações, florestas, ideal
recebei meu adeus no hospital!”

“Como tu, tenho visto, — disse a Fome —
pender muita cabeça venerável,
muito crânio de gênio, muito nome,
que eu lancei no abismo do insondável.
Muitos que a glória cega e que consome
duma selvagem sede insaciável,
tenho cingido como a tristes noivos,
e hoje estão nas raízes, e entre os goivos!

Muitos tenho apertado entre meus dedos
que se hão finado num febril delírio,
e têm-me dito os últimos segredos,
com suas bocas lívidas de lírio.
Dormem alguns à sombra de arvoredos;
mas outros para mais mortal martírio,
ninguém lhe importa em seu desprezo fundo
onde estão os seus ossos sobre o mundo!

Gigantes crânios de candente lava
têm repousado no meu magro peito!
Bem lindos corpos onde a morta crava
seus dentes, dormem sob o céu perfeito!
Mas, quando um gênio como tu, no leito
mata ao abandono a geração escrava,
pelo universo, cúmplice sombrio,
corre um remorso, como um calafrio.

Por isso eu vim colher-te, inda tremente
logo que expires, ó Gênio, sem confortos,
a lágrima de mármore imponente,
que se gela nas pálpebras dos mortos.
Porque quero levar como presente
aos príncipes, aos povos absortos,
e aos astros a lágrima marmórea,
que num grabato derramou a glória!

Mas, se acaso na terra e sobre os mares
ninguém avaliar este teu pranto,
acima irei das nuvens e dos ares
dos astros, dos planetas, do Espanto:
mais acima das Dores e dos Pesares,
da Justiça sublime ao trono santo,
às solenes e eternas regiões,
pedir justiça ao pranto de Camões.”

Dizendo isto a Sombra descarnada
debruçou-se do Gênio sobre o leito.
Camões morria já: hirta e gelada
a Fome lhe cruzou as mãos no peito:
e a lágrima marmórea, regelada,
lágrima que infunde pávido respeito,
então colheu do rosto moribundo,
— como um frio protesto contra o mundo.

 

CANTO TERCEIRO: O LENÇOL DO GÊNIO

O conde Vimioso em seu solar
dá uma ceia a nobres e senhores;
Estalam as risadas pelo ar.
Pelos copos espumam os licores.
A Gula e a Carne ali gozam a par:
fala-se em caças, touros, e de amores:
e riem dentre as suas pedrarias
marquesas que hoje estão em galerias.

Nisto um estranho velho entra na sala,
hirto e solene, como um quadro antigo;
seu porte triste pelos peitos cala,
seu ar hostil é como de inimigo.
Os risos param, emudece a fala,
como ao ver um remorso, ou um castigo.
Calam barões falando de corcéis,
e as damas com as mãos cheias daneis.

E o velho disse: — Estranho é meu pedido!
Estranho sim! no meio duma festa:
mas venho por um morto protegido,
e este pedido os lábios não me cresta!
Para um Gênio de que hoje nada resta,
para um Gênio da fome consumido,
um Gênio infeliz! um apagado sol,
venho pedir a esmola dum lençol!

O lúgubre pedido num momento
fez em todos roçar um calafrio:
figurou-se-lhes o gesto macilento
da morte, ao longe, em seu corcel sombrio:
figurou-se-lhes a Febre, o Passamento,
e a Doença em seu catre úmido e frio,
e as damas, os barões, e os cavaleiros
perderam os sorrisos zombeteiros.

Porém o Conde dominando o gelo
do terror que estragava a sua ceia,
e desmaiava o busto grego e belo
da mulher por quem todo se incendeia,
com um riso que tem do orgulho o selo
bradou ao velho cujo sério odeia:
Que gênio é esse então, bom velho honrado,
que comparais ao sol já apagado!?

Todos riram. Um riso irresistível
onipotente, intrépido, animal,
pela sala estalou, bronco e terrível,
como um insulto e a folha dum punhal,
O rude velho trágico, impassível,
deixou passar aquele vendaval,
depois num rir, de irônico respeito,
os longos braços encruzou no peito.

Zombai — o velho disse — altos senhores!
e magníficas damas cintilantes,
nas ricas pedrarias, plumas, flores,
mais brancas do que os vossos diamantes!
Zombai ao pé dos vinhos, dos licores,
das baixelas lavradas, dos amantes,
desta coisa tão cômica e sem nome...
dum Gênio pobre e que morreu de fome!

E o velho riu: — Ah! de que serve, é certo,
um Gênio infeliz? um portador, de lira!?
de que serve dos Prantos no deserto
um instrumento que uns sons doces tira?!
Um Gênio é lava que importuna ao perto,
e um grande crânio que o talento inspira,
se com seu canto consolou as almas...
que coma o louro e as triunfantes palmas!...

Ah! que servem andar como faróis,
como Moisés a conduzir um povo,
alvoroçando as almas para os soes,
num canto heroico, original e novo?
Se com os prantos destes rouxinóis
que alvoroçam e turbam, me comovo,
talvez vos choque e às almas verdadeiras,
que não façam crescer as sementeiras!

E o velho riu. As glórias do Passado
dos heróis e dos feitos doutra idade
nos castelos, no mar ilimitado,
hoje fazem sorrir a mocidade!
As glórias de avós só tem o lado
poético de dar solenidade
e grandes tons magníficos, imponentes,
nas salas, entre as telas de parentes!

Ele, o Gênio, cantou esses combates
dos homens, e das forças do insondável
da eterna Dor, naufrágios, e os embates
terríveis do que é frágil e mudável!
Castigou com a sátira os dilates
do arbitrário, do injusto, e miserável.
Foi poeta, filosofo, e guerreiro.
Só nunca conseguiu ser um toureiro!...

E o velho sorriu amargamente,
com um sorriso cáustico, sombrio,
num riso superior em que se sente
uma alma forte que jamais faliu.
O Conde então, bradou-lhe secamente,
com um grande ar todo solene e frio:
“Antes de tudo dir-me-ás primeiro,
se és fidalgo, peão, ou cavaleiro!

E narra-nos depois, miudamente,
a mim, aos cavaleiros e senhores,
e às preciosas damas, que ao presente
te escutam, piedosas sempre às dores:
narra-nos essa história surpreendente
desse gênio infeliz, e esses horrores,
que trazes, como vejo, na lembrança,
com mais respeito que a dos pares de França."

De novo tudo riu. Toda a sonora
e ampla sala ecoou com as risadas.
Viam-se rir as bocas cor de aurora
das magníficas damas decotadas.
Duquesas louras, tranças cor de amora,
com belas mãos, macias, delicadas,
abafavam o riso em transparentes
lenços lacerados entre os dentes.

O velho ergueu-se em toda a majestade
e bradou numa voz terrível, dura,
que fez cessar de pronto a hilaridade,
pelo tom nunca ouvido de amargura:
— “Ah! infeliz, indigna Humanidade
mil vezes infeliz! se a Criatura
sempre se risse assim do que é sublime
ou quando o mundo se infamou num crime!

Ah! infeliz mil vezes! se o que é nobre
e o que é infame, ignóbil, monstruoso,
sob o Azul sagrado que nos cobre
tivesse o mesmo aplauso vitorioso!
Maldito e excomungado fosse o pobre!
e maldito o Destino criminoso!
por trabalhar ainda para o mundo
com um suor inútil e infecundo!

Maldita fosse a Vida e o ardente beijo
do Amor que produziu a Criação,
maldito o Sonho e as asas do Desejo
maldito o Pranto, a Ânsia, e a Aspiração!
Despenhada mil vezes sobre um brejo
de insondável miséria e humilhação
o mundo se abismasse num inferno
do implacável, ansioso gelo eterno!

Maldito fosse tudo o que suspira,
maldita a Dor, mais o soluço Humano,
maldita a Alma e a lágrima da Lira,
maldito tudo quanto é grande e insano!
Que sobre o mundo horrível, onde gira
a serpente da Idea no oceano
da treva, o derradeiro homem horrendo
expirasse, ainda rindo, e maldizendo!

Agora, quanto a mim, ó altas damas
magníficas, divinas, cintilantes,
e cujos belos olhos têm mais chamas
do que os olhos dos rígidos brilhantes,
antes de ouvirdes os funestos dramas
da fome, horrorizai-vos, sabei antes
que eu sou só um plebeu vil que trabalha,
e que saio das ondas da canalha!

Senti também em mim o fogo ardente
da Lira perpassar-me pela fronte,
e amei tudo o que é justo e que é potente,
e meus irmãos chamei ao bosque e ao monte.
Nos desertos castelos do Ocidente,
às nuvens cor de sangue do horizonte,
também eu fui sentar-me nas colinas,
a chorar sobre as glórias e as ruínas!

Mas o Gênio infeliz, o vulto imenso
o herói cantor vencido pela morte
esse que me perturba, quando penso
no implacável da tirana Sorte,
esse que já entrou no bosque denso,
que já partiu o muro brônzeo e forte,
que em breve vão deitar na escura vala,
esse, só de eu falar... treme-me a fala!”

O velho então contou a trabalhosa
lenda do Gênio, a musa, e seu destino,
a intuição da Natureza rumorosa
da flor, da sombra, e rio cristalino.
Como o Sol pai das plantas, e da rosa,
penhasco alcantilado e voz do sino,
Vegetações, florestas, nuvens, ventos,
e células, raízes, pensamentos;

tudo que é vida que tem alma e sente,
tudo que é flor suave e tem perfume,
tudo que é asa e corta o ar luzente,
tudo que é astro, brilha ou que tem lume,
tudo que foge líquido e corrente,
tudo que em corpo e alma se resume,
tudo que é belo como o sol na alfombra
ou fundo e triste como a voz da Sombra,

todo esse vasto Todo verde e belo,
toda essa santa Natureza enorme,
o luar como a folha dum cutelo,
o minério que creem que só dorme,
as heras nas ruínas do castelo,
os moluscos e a larva humilde e informe,
tudo isso belo ou feio que se ostenta,
tem voz, tem alma, chora e se lamenta!

Mas que o Gênio no meio disto tudo
sofre mais, porque entende estes lamentos!
Ele traduz a Dor disso que é mudo,
e resume os gerais desolamentos!
Não tendo contra a Sorte um outro escudo
que não sejam seus fortes pensamentos,
passa curvado num pesar profundo,
— sentindo em si o mal de todo o mundo!

E todos escutavam silenciosos
damas, barões, religiosamente,
os sentidos gerais misteriosos
das palavras do velho estranho e ardente.
E cuidavam ouvir os mil chorosos
e soluçantes ais, longinquamente,
das subterrâneas Coisas infelizes:
os ais da planta e os choros das raízes!

Ele pintou depois o Gênio, quando
deixou prender seu forte coração
nos sorrisos dum gesto puro e brando,
e vagou na torrente da Paixão.
Como feridos rouxinóis cantando,
os seus versos rezavam da aflição,
das tragédias, desgraças e dos brados
dos tristes corações despedaçados.

E as palavras sentidas, violentas
do plebeu calavam pelos peitos,
e sentiam-se ouvir como os tormentos
dos grandes corações santos desfeitos.
Parecia-se sentir as suarentas
e desveladas noites sobre os leitos
diamantes separados, solitários,
mais gelados que os leitos funerários!

Desenhou-o depois triste e exilado,
por todo o mundo errante peregrino,
vagando como herói, como soldado,
açoitado do vento do Destino:
e o seu rude pesar fundo e divino
da grande viuvez do ente amado,
pondo-o nas rochas trágico e proscrito,
de braços levantados ao Infinito.

E todos escutavam, surpreendidos,
essas desgraças bárbaras sepultas
no mistério do olvido, e esses gemidos
e essas sagradas lástimas inultas.
Barões e cavaleiros comovidos
enxugavam as lágrimas a ocultas,
e as pálidas senhoras soluçantes
alagavam com prantos os brilhantes.

Depois pintou o horror da tempestade
e o assobio dos ventos nas procelas,
dos naufrágios a lúgubre verdade,
um navio sem mastros e sem velas.
E o Gênio do mar na imensidade,
à fria claridade das estrelas,
entre as ondas, os ventos, os espantos,
salvando o grande o livro dos seus cantos.

Depois mostrou-o pálido, quebrado,
no fundo duma lúgubre enxovia,
no declinar da vida, envergonhado,
preso pela Injustiça, e Cobardia.
Pintou ao fundo trágico e assentado,
na misera masmorra úmida e fria,
o Desespero torvo e macilento,
irmão magro e infernal do Desalento.

E do plebeu nas frases singulares
sentia-se o glacial dos luares frios,
os rugidos dos ventos pelos mares,
o desfazer das taboas dos navios:
as fundas despedidas, e os pesares
dos adeuses nos cárceres sombrios,
e um vento a soluçar como um açoite
do Destino, rasgando a eterna noite.

E todos escutavam, surpreendidos,
essas desgraças bárbaras sepultas
nos mistérios do olvido, esses gemidos
e essas sagradas lástimas inultas!
Barões e cavaleiros comovidos
enxugavam as lágrimas a ocultas,
e as pálidas senhoras soluçantes
banhavam com seus prantos os brilhantes.

Depois contou as noites inarráveis
da Miséria, e da Neve as ladainhas,
sobre os gelos os grandes miseráveis,
em atitudes trágicas, mesquinhas.
Desenhou os carvalhos formidáveis
em lúgubres lençóis, as andorinhas
fugidas, procurando outros países.
E sempre! sempre a Fome! e os Infelizes!

Depois narrou a rude luta imensa
com todas as potências da Desgraça,
e o Gênio atravessando a névoa densa,
como um espectro lívido que passa:
as lágrimas da Fome e da Doença,
e o mendigar do escravo sobre a praça,
pedindo suplicante à turba e ao mundo
esmola para um Gênio moribundo.

Pintou a morte desse escravo amigo,
e o Gênio inda mais triste e no abandono
da força desse servo, seu abrigo,
dos amigos, dos nobres, e do trono.
E o terrível guerreiro do inimigo
pintou em noites lívidas, sem sono,
velho, dobrado, pelas névoas cruas,
faminto à chuva, e ao vento, pelas ruas.

Pintou depois, chorando, a última cena
e da tragédia o derradeiro ato,
e essa cabeça pálida, serena,
no frio travesseiro dum grabato.
Desenhou esse hospício, uma geena,
onde vai terminar muito aparato,
e depois, ai! depois, fria e fatal
a desolada lágrima final!

Quando acabou, sentia-se na sala
o ruído dos choros sufocados,
e os soluços e as lástimas que exala
a Dor nos corações muito abalados.
O Conde estava em pé, hirto, e sem fala,
hirtos, sem fala, em pé, os convidados,
e as damas atiravam soluçantes,
às plantas do plebeu os seus brilhantes.

“Guardai-o velho disse — altas senhoras!
as vossas belas joias preciosas,
que já de nada servem nestas horas
ao que morreu, sem vossas mãos piedosas.
Prendei-as novamente às tranças louras,
que o cantor, nestas horas lutuosas,
para ir enterrar-se, à luz do sol,
carece só da esmola dum lençol!"

O Conde deu uma ordem. Num momento
um nítido lençol pajens trouxeram.
Ao pegar-lhe no rosto macilento
do plebeu as lágrimas correram.
“Eu choro — bradou ele — esse talento,
esse crânio que as lágrimas arderam,
e que em prêmio do gênio que trabalha
só teve por esmola esta mortalha!

Este lençol vai ser o teu sudário
ó grande Gênio! que rolaste à praia
da Morte, desgostoso e solitário,
mais branco do que a lua que desmaia.
Quando soar teu sino funerário,
e no teu crânio a campa rasa caia,
chorai damas, barões, num choro fundo
a maior alma que deitou o mundo!

Essas faces chorai, as quais araram,
as lágrimas do abandono e da desgraça,
as quais como carvões rubros queimaram,
ou como um vento de areal que passa:
este crânio chorai, de cuja taça
as lágrimas de sangue se entornaram,
e este lençol sabei damas, barões
vai embrulhar o corpo de Camões!"

E novamente as lágrimas correram,
e os soluços de novo rebentaram,
as cores novamente se perderam,
e os convivas em pé se levantaram:
os lacaios o passo suspenderam,
muitas damas mimosas desmaiaram,
como caiem as lágrimas internas
nas funerais separações eternas.

O velho ia a sair. Porém o Conde
o deteve e bradou: — “Que nome é o teu
ó homem singular, onde se esconde
um peito que é mais nobre do que o meu?
Por que reinos cruzaste? Dize aonde
aprendeste, ó fantástico plebeu!
a falar das estranhas aflições,
dum modo que sacode os corações?!...”

O velho então ergueu-se, em toda a altura
do seu corpo potente e agigantado,
e deixou ver a atlética figura,
de sorte que pareceu ter-se elevado.
E então, num tom terrível de amargura,
que deixou todo o mundo alvoroçado,
bradou num ai, num grito, estranho e novo
— Sou o Pranto do Povo e volto ao Povo!

 
CANTO QUARTO: A LÁGRIMA DE MÁRMORE

Essa lágrima imóvel que se gela
sobre as pálpebras roxas dos finados,
e que eu já vi rolar funesta e bela
nas faces de dois entes bem amados,
o que é que ela nos diz? que nos revela
de profundos desejos decepados,
de inauditas ou íntimas desgraças,
que são as flores fúnebres das Raças?!

O que é que ela nos diz, que nos remove
até ao mais profundo das entranhas,
triste como flor onde não chove,
no cume inacessível das montanhas?!
Dirá ela um desejo que já houve,
cheio de dor e aspirações estranhas,
e expirou e morreu num mundo falso
como um amor ao pé dum cadafalso!?...

Quando a Fome colheu do moribundo
a lágrima de mármore dorida,
pôs-se logo a caminho pelo mundo
e foi vendê-la aos Príncipes da Vida.
Mas alguns, num desdém fino e profundo,
riram da triste oferta nunca ouvida:
outros tiveram um horror absorto
ao verem uma lágrima dum morto!

Lembrou-se então dum Príncipe potente
que vive num país todo de gelo,
que ama tudo que é gélido, inclemente,
e frio como a folha dum cutelo.
Penetrou no palácio refulgente,
todo cheio de mármore e ouro belo,
e onde ele desvelava insônias cruas
no meio de milhões de espadas nuas.

Quando o César cruel viu esse pranto
de que gostou seu gênio monstruoso
à Sombra disse — Acho um secreto encanta
neste gélido objeto curioso!...
Deixa-a ficar que causará espanto
ao meu povo selvagem tenebroso,
e assim lhe ensine num terror mortal
como é que gela a lágrima final!

Porém da noite no silêncio frio
quando o César dormia no seu leito
esta lágrima ao Príncipe sombrio
infundia-lhe um trágico respeito.
Das visões no terrível desvario
via da Morte o último trejeito:
e as caveiras sem olhos, nem narizes,
de todos os sinistros infelizes!

E a lágrima implacável e severa
acusava-o de todos os seus crimes
dos seus instintos trágicos de fera,
dos mortais que dobrava como vimes,
dos irmãos e dos Pais que ele prendera,
e das almas viris, fortes, sublimes,
a quem seu braço sem cessar enterra
pelas entranhas úmidas da terra!

E o Déspota na lágrima parada
lia a lenda de todos que sem nome
sobre a neve, ou na mina bronzeada
tinham morrido esquálidos de fome:
via os prantos da plebe esfarrapada
que num suor estéril se consome:
e os clamores formidáveis, justiceiros,
dos prantos de milhões de mineiros!...

Fugiu logo do leito insuportável,
e por todo o palácio vaga errante.
De manhã chama a Sombra miserável
e entrega-lha, com mão febricitante:
Leva daqui — lhe grita — esse implacável
tormento, que é mais frio que um brilhante,
porque de prantos tenho um cemitério
no gelo excepcional do meu império!

Lembrou-lhe então à Fome ir ofertá-lo
de Roma ao mais sinistro inquisidor.
Deixa à porta o seu pálido cavalo.
Penetra cheia dum mortal terror.
Quando o sicário a viu sentiu abalo
e disse à Fome: — Eu gosto desta flor
que floresce nos mortos, como lírios
que gelaram nos olhos dos martírios!

Porém da noite no silêncio enorme,
a fixidez da lágrima impassível
olhava-o como um olho frio e informe,
e acusava-o de tudo que há de incrível,
Acusava-lhe a alma, antro disforme;
e estendia-lhe então num sonho horrível
de eternos prantos um gelado mar
— como uma imóvel solidão polar.

E ao bandido lembravam-lhe as torturas
dos que vira morrer nos seus flagícios,
de todas as sinistras criaturas
a quem passara a esponja dos suplícios.
E as disformes e enérgicas figuras,
com blasfêmias, gritavam-lhe os seus vícios,
e entre injúrias, mostravam, justiceiras
os braços calcinados das fogueiras.

Envia de manhã chamar a Fome,
e à Sombra grita com sorriso duro,
podes levar a lágrima sem nome,
e esconde-a bem no antro mais obscuro.
Como uma pedra que o abismo some
faze que ela se suma; e no futuro
não me tragas jamais estes espelhos
dos que morreram contra os Evangelhos!

Quando a Fome largou os dois sicários
foi procurar o rei dos mais banqueiros,
que era também senhor dos usurários,
cujos navios eram aos milheiros.
O palácio valia os mil erários
dos príncipes mais ricos estrangeiros.
E as suas salas tinham cem figuras
das mais raras e nuas esculturas.

Quando o banqueiro viu a estranha oferta
disse num tom irônico e orgulhoso,
“A vida dum poeta é pobre e incerta!
Mais mesquinho o seu pranto angustioso!
Contudo, como a fome vil te aperta,
guardarei este pranto curioso,
e na alcova a porei, como memória
de que vai tudo Ouro, e nada a Glória!"

Porém, de noite no silêncio fundo,
a lágrima impassível fixa, dura,
recordava-lhe os prantos que no mundo
fizera derramar a sua usura.
E num estar imóvel e profundo,
como um espectro duma sina escura,
todos choravam, neste pesadelo,
— inconsoláveis lágrimas de gelo!

Levantou-se o banqueiro torturado
e mal a aurora avermelhou a terra,
chamou a Fome, e lívido, aterrado,
disse à Sombra: — “Confessa-me o que encerra
esse impassível pranto amargurado
que não sei o que tem me gela e aterra,
tendo eu só nestas salas cem figuras
das mais ricas marmóreas esculturas?”

Não sei-a Sombra disse: — Têm-me dito
o mesmo, muitos grandes assassinos.
É que esse pranto foi talvez o grito
do Gênio contra o injusto dos destinos.
É que o Gênio é o açoite do Infinito
contra os crimes, e os grandes desatinos,
e mesmo sob os goivos mortuários
regela ainda as almas dos sicários!

Depois disto ninguém mais quis o pranto!
Todos riam do estranho dessa oferta.
Uns fugiam da Fome com espanto.
Outros julgavam-lhe a razão incerta.
Uma virgem, porém, dum rosto santo
bradou, a face de rubor coberta:
— Eu amei dum poeta a fronte amada!
Ai! quem dera essa lágrima gelada!

Porém nada te dou, porque sou pobre,
a ti que és pobre como eu sou também.
Sobe acima do azul que a todos cobre,
acima dos Desprezos, do Desdém.
Sobe acima da Dor que é grande e nobre,
mais acima dos astros, mais além
do Egoísmo, da Inveja, e da Cobiça,
e vai levá-la ao trono da Justiça!

Então a Sombra abandonou o mundo,
e ergueu-se logo acima das esferas,
longe da Besta de Ouro e Vício imundo,
para longe dos Tempos e das Eras,
perto do abismo do insondável fundo,
onde têm corpo as lúcidas quimeras:
montada num cavalo horrendo e feio,
sem estribos, sem rédeas, e sem freio.

Quando ela contemplou embaixo a terra,
humílimo planeta grão de areia
preza do Tempo e insaciável Guerra
e onde a raça dos mortais ondeia,
ela que nada já comove e aterra,
que nenhum pranto dum estranho anseia,
sentiu brotar no seco coração
a rubra e estranha flor da Indignação.

Ela através passara de almas, vidas,
e dos mártires lúgubres descalços,
das jovens mães cruéis infanticidas,
das ilusões e dos sorrisos falsos,
através das eternas despedidas,
dos crimes, dos incestos, cadafalsos,
e de todos os crimes e desgraças
que são os frutos trágicos das Raças.

Ela através passara dessas almas
aonde em prantos se escreveu jamais,
das grandes solidões das neves calmas,
através das galés, dos hospitais,
através das blasfêmias e dos ais,
das glórias, dos triunfos, e das palmas,
e através sempre! sempre! do gemido
do Gênio eternamente perseguido.

Por isso quando foi perto do trono
da terrível Justiça, da Imutável,
ia ainda indignada do abandono
em que se afunda o Gênio inconsolável.
Como os nordestes varrem pelo outono
as roseiras, assim ela implacável,
tinha varrido toda a piedade
contra a dura e egoísta Humanidade.

Mal a viu a Justiça disse — ó Fome
o que é que trazes da sombria Terra?
Trazes um ai do que morreu sem nome?
Sonho de virgem que teu braço enterra?
Trazes um riso que o infeliz consome?
Último beijo em que um amor se encerra?
Trazes um grito, um desalento fundo?
Trazes um pranto de que riu o mundo?

Trago mais que isso replicou sombria
a magra Fome, apresentando o pranto:
— Eu trago-te esta lágrima tão fria
como o gume da Espada justo e santo.
Eu trago-te este pranto de agonia,
e que a ti mesmo causará espanto,
pranto que gelou como uma esperança,
pranto que clama um grito de vingança!

A Fome então narrou, sucintamente,
a história da lágrima marmórea.
Narrou toda essa vida descontente,
toda essa tragédia tão sem glória;
seu gênio, seu destino, e febre ardente
do Belo, e de gravar-se na memória,
e esse pranto tão triste e tão profundo,
que só o quis uma mulher no mundo!

Ao acabar ergueu-se ferozmente
a Justiça em seu trono, comovida,
e clamou com um brado onipotente
tal que as origens abalou da Vida:
“— Eu juro pelo sangue do inocente,
por mim, por esta lágrima caída,
pelo Céu, pela Dor, e pelo Espaço,
por minha espada, e força de meu braço;

por tudo que há de justo e de terrível,
por tudo que há de santo e de implacável,
pelo pranto que cai no Invisível,
e o soluço que rola no insondável,
que não destruo ó mundo, ó insensível,
planeta! essa vida miserável,
por ter havido uma mulher que quis
um desolado pranto de infeliz!

Mas já que o não quiseste ó Terra fria,
quero-o eu, de continuo, na presença!
Quero tê-lo de noite, quer de dia,
como um sonho constante em que se pensa!
Quero ter esta lágrima sombria,
para um dia lavrar tua sentença!
Quero tê-lo ante mim, como lembrança:
para lembrar-me de que sou Vingança!

Quero tê-lo ante mim, ah! como um grito,
que me recorde os tristes que sem nome
hão estendido os braços no Infinito,
na sede de Justiça que os consome!
Quero tê-lo ante mim, como o aflito
brado do Gênio que morreu à fome,
e que vos prove desta espada os brilhos,
de que vós, ó Poetas, sois meus filhos!”

Assim disse a Justiça. E desde então
ante ela jaz o pranto eternamente,
para provar que se não verte em vão
a lágrima, na terra, do inocente:
que a natureza é mãe, e o Gênio irmão
do espírito dos astros refulgente
e que a Justiça sopra a sua ira
nas cordas vingadoras duma Lira.

Eu não sei se entendestes o sentido
Oculto e justo desta alegoria,
se fiz ondular bem a vosso ouvido
os tenebrosos sons desta agonia?
E vós, ó tristes! tristes! que haveis ido
transidos repousar na vala fria,
esquecidos, inglórios, sem um pranto
a lágrima aceitai deste meu canto!

Aceitai este canto, como preito
crânios de lava que não orna o louro!
e enfim morrestes, porque o vosso peito
bateu nas pedras, dentre as nuvens de ouro.
Aceitai nesta lágrima o respeito,
vós que encontrastes só riso e desdouro!
e que em vez do festim do que trabalha,
não tivestes nem louros, nem mortalha!

Aceitai nesta lágrima o protesto
de muitas gerações de rebelados
contra o abandono insólito e funesto
do mundo silencioso aos vossos brados!
Em vez do riso, insulto, e do doesto,
aceitai nossos pêsames irados,
e neste canto, ó mortas existências!
os protestos de muitas Consciências!

E tu, ó mundo, aprende-o! De ora avante
não mates mais o Gênio que irradia!
Não se ergam nunca mais ao céu distante,
Contra ti, magros braços de agonia!
Porque hoje, sabe-o bem! fixa e brilhante,
está clamando e bradando noite e dia,
acima de Ódios, Prantos, e Cobiça,
a lágrima marmórea ante a Justiça.

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