1/14/2023

A visão do precipício (Conto), de Pinheiro Chagas


 A VISÃO DO PRECIPÍCIO


CAPÍTULO 1

O meu romance anuncia-se de um modo terrível. Começa por uma tempestade. Estou obrigado moralmente a apresentar alçapões, subterrâneos, e donzelas perseguidas. Se não invento por aí uns quatro assassínios, estou perdido no conceito de certos leitores!

Tenham paciência os amadores das Nodoas de sangue e dos Amantes infelizes ou as vítimas de uma paixão, mas desta vez hão de contentar-se com um romance bem morigerado, cujos heróis, todos eles pessoas honestas, não hão de incomodar, enquanto durar o enredo, nem as partes de policia, nem os regedores de paróquia, nem os jovens advogados, nem as colunas dos jornais destinadas pelos notíciaristas aos acontecimentos trágicos do país.

Feita esta declaração, vou introduzir os meus leitores... num lagar de azeite, por uma noite tempestuosa de dezembro, quando o vendaval açoita rijamente os pinheirais frementes, e os relâmpagos iluminam com pálido fulgor as campinas inundadas pelas chuvas copiosas de uma noite de invernia.

Recresce o temporal. As levadas de água, engrossadas com as chuvas, resvalam pelos penedos, despenham se, espadanam, fazem cintilar à luz do raio doidejantes borbotões de espuma, e arrastam na carreira vertiginosa as árvores desarreigadas pela força irresistível do furacão! Nestas noites, o aspecto ridente dos campos, que a primavera orna com todas as galas da vegetação, transforma-se completamente. Parece-nos impossível que o regato, que havia pouco se espreguiçava voluptuosamente sobre as campinas esmaltadas, seja agora a torrente impetuosa que arranca, num acesso de furor, as árvores que se miravam descuidosas na sua límpida corrente.

A mim agrada-me o quadro medonho das fúrias da invernia! Contemplo com delícias a fisionomia terrivelmente fantástica das planícies e dos bosques, onde paira, batendo as asas chamejantes, o sinistro arcanjo da tempestade!

São estes os episódios grandiosos do poema da natureza! São estas as páginas sublimes do livro da criação!

Era uma quinta solitária nos arredores de Santarém; a casa dos morgados campeava orgulhosa e insulada no meio dos campos cultivados, e lá mais ao longe alvejavam as modestas casinhas do lugarejo que se debruçava curiosamente sobre as águas do riacho, mirando nesse espelho cristalino o seu humilde aspecto, e contemplando depois, à socapa as pompas quase feudais do solar dos descendentes de algum valentão das Índias.

Como os gloriosos representantes dessa família aristocrática, deixando a quinta só, estão comendo em Lisboa os seus rendimentos, escusamos de lhes bater à porta, e, se vos parece, vamos imediatamente ao lagar de azeite, que não fica muito longe.

A entrada é franca, e a vista da fornalha, sobre a qual está colocada a caldeira, e onde arde um molho de lenha, produzindo um bom fogo, claro e crepitante, tenta deveras o pobre homem, que, todo ensopado, contempla o lume da fogueira, tão consolador e atraente em noites de frio e chuva.

Entramos em boa ocasião; o lagar está em plena atividade. Os clarões indecisos da lareira iluminam um quadro pitoresco e original. Aqui o engenho de água gira produzindo um som monótono, que, no meio dos rugidos da tempestade, semelha o resmungar de velha feiticeira por entre os coros dos arcanjos rebeldes em noite de congresso infernal, e, girando sem cessar, tritura conscienciosamente a azeitona submetida à sua implacável pressão. Além as varas, subindo e descendo com toda a regularidade, obrigam a azeitona, já triturada e estendida nas ceiras, a destilar o seu óleo precioso. Mas não se resumem nestes os trabalhos do lagar. Quem reconhecerá o azeite nesse líquido negro que vai acolher-se silenciosamente na enorme vasilha de barro, a que nos lagares se dá o nome de tarefa? Trata-se de o purificar; vamos às abluções. O líquido negro é assaltado repentinamente por um dilúvio de água a ferver, proveniente da caldeira, que opera a decomposição com toda a rapidez. Pelo inferno, comunicação subterrânea que conduz a um valo distante, escoa-se a água negra, que vai terminar ao longe a sua existência ignorada, e o azeite, livre finalmente da macula original, aparece em toda a sua limpidez, em todo o seu brilho, em todo o seu esplendor.

No centro da casa térrea, o Sr. Manuel dos Reis, mestre-lagareiro, chefe das operações, e supremo ditador nesta solene ocasião, vigia atentamente as multiplicadas operações do lagar, enquanto o Sr. João Moedor (assim chamado por causa das importantes funções que ali exercia), contempla satisfeito o andamento do engenho de água, confiado aos seus cuidados.

Os adjuntos destes dois chefes, sentados à roda da fogueira, alguns camponeses de fora, que tinham vindo para o "cavaco", e que a tempestade tinha acometido, os quais em pé encostados ao cajado ficavam no segundo plano, e dois rapazes de Lisboa a quem a cortesia aldeã tinha concedido o lugar de honra, eram as restantes figuras deste quadro.

Os dois lisbonenses merecem uma descrição especial.

Chamava-se o primeiro José Augusto de Albuquerque. Alto e elegante, pálido, desta palidez ardente, que é quase sempre sintoma de uma imaginação exaltada, revelava no fulgor desusado dos olhos, cintilantes como dois diamantes negros, o ardor daquela organização simpática, que devia ser ou a de um grande poeta, ou a de um grande doido, se estas duas ideias não são sinônimas, segundo a opinião de muita gente. As olheiras fortemente acentuadas, e que pareciam crestadas pela ardente irradiação das pupilas, acabavam de dar a esta fisionomia um cunho original, romântico enfim, tranchons le mont, porque devo confessar que o meu herói tem todas as aparências de um tipo de romance, apesar de ser tão verdadeiro como... o orçamento português.

O companheiro de José Augusto formava com ele um perfeito contraste. Se as centelhas de inteligência, que se escapavam dos olhos negros de José Augusto, revelavam uma organização em que o espírito predominava, em que l'âme dominava la bête, para me servir da classificação de Xavier de Maistre, a luz fria e sem expressão, que brilhava nos olhos azuis do seu companheiro, dava a conhecer a beatifica indiferença do adorador da matéria. Num a estátua delicada e quase feminil denunciava a fina constituição de uma natureza naturalmente aristocrática; no outro a obesidade das formas dava ideia do Sancho Pança de Cervantes, ainda que a alta estatura mostrasse que esta nova edição do governador da Barataria era feita noutro formato. Naquele os movimentos altivos da cabeça, o modo entusiástico com que atirava para trás as ondas lustrosas da sua negra cabeleira, indicavam bem as aspirações elevadas de um coração a trasbordar de poesia e de generosidade; neste os gestos pacatos, e as suíças loiras que flanqueavam serenamente uma cara de lua cheia, mostravam o gênio bonacheirão do homem que não pensa senão no modo de conservar sempre, em bom estado, a sua economia animal, satisfazendo as reclamações incessantes de um estômago insaciável.

O primeiro era, como disse, José Augusto de Albuquerque, rapaz com alguns vinténs, que viajava para se divertir. O segundo era o Sr. John Williams, inglês ingênuo e bem morigerado, que aguentava uma boa dose de garrafas de vinho sem vacilar, que bebia exatamente o que ganhava num escritório de negociante, e que, apaixonado por viagens, como todo o bom inglês deve ser, tinha pedido licença de um mês para acompanhar o seu amigo José Augusto numa excursão à Extremadura.

No momento em que entramos, reinava um profundo silêncio. Lá fora os rios, que a chuva fazia ferver em cachão, ressaltavam sobre os rochedos com um estampido formidável; as rajadas da ventania, batendo com furor de encontro à porta, faziam-na ranger, e abriam-na de vez em quando, arrojando torrentes de chuva para dentro do lagar. A voz da procela ora se assemelhava aos rugidos blasfemos do anjo das trevas, ora, plangente e soturna, imitava os gemidos das almas penadas, que vagueiam na terra pedindo aos vivos orações. O trovão, ribombando no espaço, dominava, de vez em quando, com a sua voz majestosa, o pavoroso ruído da tempestade.

Havia harmonias sublimes naquela desarmonia aparente; era selvática mas grandiosa a imensa orquestra do temporal.

― Santa Barbara nos acuda, murmurou devotamente o Sr. Manuel dos Reis, tirando o seu barrete azul, já bastante azeitado, no momento em que um trovão formidável fazia benzer todos os circunstantes ― São Jerônimo te afaste, ruim trovoada, de todo o povoado onde haja almas cristãs.

― Amém, resmungou em coro a companha aldeã.

― E temos a chuva pegada, que não há que esperar senão uma noite de água. O vento puxa por ela que é um regalo, tornou o mestre-lagareiro, quando o terror produzido pelo trovão se dissipou um pouco mais. Ah! meu fidalgo, vossa senhoria querer meter-se a caminho por uma noite destas é mesmo tentar a Deus!

― Deixá-lo, tornou o interpelado, que era o nosso amigo José Augusto de Albuquerque, sabe você, Sr. Manuel dos Reis, que eu gosto de noites assim? Que diabo! quando atravesso a galope a clareira de um bosque inundado pela chuva, e que vejo, à luz do relâmpago, as árvores nuas de folhas estenderem-me os braços descarnados, e formarem em torno de mim, guiadas pelo furacão, danças fantásticas e extravagantes, imagino ver as danças da meia-noite, travadas pelos espectros nos cruzeiros dos cemitérios, e, lembrando-me dos contos lindíssimos que a minha ama me contava quando eu era pequeno, chego a acreditar na sua realidade, e acho prazer naquilo. Então que quer?

― Arreda! ― bradou o João Moedor, coçando a cabeça e fazendo ao mesmo tempo um gesto de susto, sempre vossa excelência diz coisas que fazem arrepiar os cabelos à gente. Gostar vossa senhoria de ver dançar as avantesmas as suas danças malditas, como o meu compadre viu com os seus próprios olhos na noite de São Bartolomeu, em que anda o diabo solto, como vossemecê há de saber. Safa! Era capaz de seguir o fantasma do Açude até ao seu esconderijo infernal.

― O fantasma do Açude! O que é isso, o que é isso, ó Sr. João?― perguntou José Augusto com a maior curiosidade.

― Histórias da vida, meu fidalgo, retrucou o Sr. Manuel dos Reis, é este diabo do João Moedor que não sabe fazer outra coisa senão contar contos da carochinha. Bom estavas tu, meu rapaz, para mestre-lagareiro! Andas com a cabeça a razão de juros a pensar lá nessas maniversias, deixavas ir o azeite pelo inferno abaixo, e nunca eras capaz de por o espicho a tempo e a horas. Sempre estás um maçador!

― E é verdade, sôr Manuel dos Reis. Este João Moedor não faz senão moer a paciência à gente, tornou um camponês que estava ao pé da porta, encostado com toda a denguice ao seu varapau.

Todos se riram do calembourg aldeão, e o Sr. João Moedor esteve algum tempo sem poder falar no meio dos motejos e das risadas da turba campesina. Finalmente:

― Leva rumor! ― bradou ele. Com que então, sô Zé do Moinho, acha você que eu moo a paciência à gente, hein! Você não acredita nestas coisas, apesar de eu ter visto muita vez sua tia andar por cima da folha, e correr por cima das latadas para ir ter com seu compadre Berzabum! E ainda não estou muito certo se não é você, sô cara de não sei que diga, que anda a horas mortas a cumprir o seu fado, feito burro, por esse mundo de Cristo, como fazia seu avô que foi lobisomem, segundo diz a gente antiga cá da terra.

A vitória ficou desta vez ao novo campeador. Os motejos dirigiram-se todos para o Sr. Zé do Moinho, que quis replicar enfurecido, mas que se viu obrigado a meter a viola no saco, e a ficar de cabeça baixa a um canto. O triunfador havia pouco era agora humilhado. Sic transit gloria mundi!

― Conte lá a história, ó Sr. João, que aqui tem você um ouvinte que não é capaz de duvidar da veracidade das suas palavras ― tornou José Augusto com a curiosidade a revelar-se-lhe nas feições.

― Tem vossa senhoria muita razão, meu fidalgo, retrucou o João Moedor com modos de triunfo, e com perdão de vocemecê, sôr Manuel dos Reis, sempre lhe direi que a história do fantasma do Açude não é conto da carochinha. Em noites assim de temporal, quando o rio engrossado pela cheia, ceifa os pinheiros mais taludos como eu ceifaria uma espiga de trigo no tempo da monda, não é cá o rapaz que se atreve a passar ao pé do Açude, sem se benzer quatro vezes, e sem fechar os olhos para não ver a melancólica D. Branca. E não é só a mim que isso acontece; o mais pimpão do sítio tremia, como varas verdes, se se visse obrigado a passar a estas horas por aquele sítio amaldiçoado, a não ser o Come-bichos, que vendeu a alma ao diabo. Deus me perdoe se minto; mas o maldito tem mesmo cara de condenado. E conheço eu alguns que se fazem muito valentes quando estão bem acompanhados, e que não eram capazes de passar sozinhos por ao pé do Açude, nem que lhes dessem todos os tesouros encantados do imperador da Mourama.

Esta última alusão ia evidentemente com sobre-escrito para o Zé do Moinho; a resposta deste (se por acaso ele tencionava responder), foi abafada pelas aclamações dos restantes, que aplaudiram o orador, bradando em coro:

― Tem razão! É uma heresia duvidar destas coisas! O João falou bem. Tem uma linguinha de ouro, este moedor!

O distinto orador cumprimentou modestamente os seus amigos políticos pela ovação que fizeram ao seu estiradíssimo discurso, e que impacientou apenas o Zé do Moinho, que era da oposição, José Augusto de Albuquerque, que estava desejoso de conhecer a lenda, e o leitor, que talvez nem esteja para a ouvir.

― Vamos à história, vamos à história, bradou José Augusto, todos lhe prestamos atenção, e acreditamos em tudo quanto você disser, como os maometanos na missão do seu profeta.

Ninguém compreendeu a comparação: por conseguinte todos ficaram fazendo uma elevadíssima ideia da erudição de José Augusto. João Moedor piscou os olhos, e bradou com entusiasmo:

― Falou que nem um livro. Pois então já que tanto aperta, lá vai a história.

Todos se chegaram uns para os outros, e João Moedor começou no meio de um silêncio solene a sua narração.

Chegado a este ponto, Roberto Soares interrompeu-se, e, levantando os óculos, disse para os seus ouvintes:

― Não me responsabilizo pela verdade do modo de dizer. José Augusto, que tinha o desagradável sestro de fazer estilo, quando me contou a história, transfigurou completamente a expressão do narrador da aldeia. Contudo asseverava-me ele que o estilo do camponês tinha uma certa elevação.

― Siga, siga, acudiu o doutor Macedo. José Augusto é o seu Jedediah Cleishbotham, já vemos. Era moda no seu tempo, como as epígrafes.

Roberto Soares riu-se e continuou da seguinte maneira:

Há de haver um par de anos, muito antes do terremoto, e talvez antes que tivessem nascido os pais dos nossos bisavós, governavam os mouros a maior parte da nossa terra abençoada. Segundo eu ouvi contar ao nosso padre prior, que Deus haja, dava-se e recebia-se muita lançada antes que a bandeira de Cristo flutuasse triunfante nas ameias das fortalezas. Cada palmo de terra conquistado aos cães dos sarracenos era regado por muito sangue, e muitos cadáveres dos nossos antepassados adubaram a terra, antes que os seus descendentes pudessem fazer em paz a semeadura e a colheita. Era mau tempo aquele. Mas Deus e Santiago eram por nós, e os esquadrões cerrados dos cavaleiros de Cristo levaram sempre de vencida as hostes aguerridas dos perros amaldiçoados.

Como dizia o padre prior, os pergaminhos desses fidalgos, que por aí andam tão orgulhosos da sua inutilidade, foram selados com o sangue de seus antepassados nos campos de batalha, em que se comprou bem cara a independência portuguesa. Desonrado seria para todo o sempre o fidalgo português que não envergasse as armas ao sair da infância, e não lutasse incessante a favor dos oprimidos até cair no campo da batalha amortalhado na sua armadura de ferro. Repousem em paz nas campas os ossos desses valentes.

― O João Moedor sempre tem uma cachimônia de truz, resmungou à parte o Manuel dos Reis; onde ele vai buscar tudo isto!

― O que ele é, é um papagaio, murmurou o Zé do Moinho, não faz mais do que repetir tim-tim por tim-tim o que ouviu ao nosso antigo padre prior.

― Nesse tempo, continuou o João Moedor sem reparar na interrupção, viviam aqui neste sítio dois fidalgos velhos, que, depois de terem ganho muitas cicatrizes, e criado muitos cabelos brancos no seu lutar incessante contra o poder da Mourama, tinham vindo descansar na paz dos seus castelos das lides gloriosas em que haviam despendido a sua existência inteira. Não porque lhes faltassem valor e bons desejos; mas a idade tudo gasta, e os corpos alquebrados dos bons cavaleiros já vergavam ao peso da armadura, e a voz implacável da velhice advertiu-os que cedessem o lugar a novos e mais vigorosos campeões. Penduraram na sala de armas dos seus castelos as valentes espadas, e, sentados ao canto da lareira, esqueciam o peso dos anos com as gratas recordações das suas façanhas de outrora.

Ao mais velho dos dois; Inigo Pais, concedera o céu um filho; Raimundo se chamava ele. Era a delícia do bom velho rever no esbelto mancebo a risonha imagem da sua mocidade. Vendo-o crescer em anos, em vigor e em destreza, consolava-se o valente cavaleiro, esperando que Raimundo não desonraria, nas fileiras portuguesas, o nome venerando que ele próprio tinha conquistado. Esperava com ansiedade que seu filho completasse os dezoito anos para lhe cingir a espada, afivelar-lhe o arnez, e dizer-lhe, apontando lhe o campo da batalha: "Vai, é esse o caminho da gloria."

E tinha razão em se gloriar de ter um filho assim. Ninguém meneava com mais garbo e destreza um cavalo fogoso, ninguém manejava com mais vigor o pesado montante, ninguém mostrava mais ardor guerreiro, quando o pai, sentado no salão do castelo, contava aos rapazes, ansiosos de aventuras, os feitos de armas dos velhos campeadores. E se Raimundo dava esperanças de ser um rude lidador, nem por isso deixava de ser o mais gentil mancebo destas cercanias. Alto e elegante, se os seus olhos negros quisessem falar de amor, não havia dama que se não rendesse, nem coração feminino que escutasse insensível os seus protestos enamorados. Mais de uma altiva castelã aparecia na varanda do seu solar para ver o elegante Raimundo correr a cavalo por essas campinas. Mas que importavam ao filho de Inigo Pais todas as castelãs do mundo se tinha o coração já preso, e se Branca, a ingênua Branca, lhe conquistara o afeto, e acendera nos seus olhos a chama ardente do primeiro amor?

Branca era filha do companheiro de armas de Inigo Paes; grande desconsolação tivera ele, vendo-se viúvo em idade avançada, sem ter um filho a quem pudesse transmitir a sua herança de gloria. Muitas vezes, ao ver a filha a doidejar na várzea, como gentil borboleta esvoaçando por entre flores, se lhe enrugava a fronte, e duas lágrimas de tristeza deslizavam pelas faces crestadas do velho soldado. Mas a sombra ligeira, que lhe anuviava o gesto, dissipava-se prontamente com as caricias afáveis da gentil donzela. Quem poderia resistir à influência daquele anjo de candura, louro e rosado, como as imagens sedutoras dos querubins que cercam a Virgem Nossa Senhora na pintura do altar-mor da freguesia!


Branca e Raimundo conheciam-se e amavam-se desde crianças. Juntos tinham crescido, juntos tinham doidejado nestas campinas, e, sem que nunca a palavra amor fosse pronunciada, tinham apesar disso consagrado um ao outro um afeto que a idade fora desenvolvendo. E era um par galante a mais não poder ser. Quando Branca, fatigada de correr atrás de uma borboleta, vinha, com as faces vermelhas como duas rosas, os olhos a brilharem de alegria infantil e as loiras tranças flutuando em ondas douradas sobre os seus ombros de neve, refugiar-se nos braços de Raimundo, e encostar o rosto encantador nas faces levemente morenas do gentil fidalguinho, todos os que os viam paravam extasiados, e faziam votos pela felicidade daqueles anjos de inocência e de candura.

Chegou finalmente o dia em que Raimundo completava dezoito anos, e em que, para não desmentir as gloriosas tradições da sua raça, devia cingir a espada, e ir aos campos de batalha pagar à pátria e à santa religião dos nossos pais o tributo de sangue, que devia ser pago por todos os que se prezavam de cristãos fiéis, e portugueses leais.

No dia fixado para a partida de Raimundo, encontraram-se os dois namorados no sítio do Açude. É um sítio medonho, como v. s.a há de saber; um pinhal sombrio, que vai terminar à beira de um precipício, no fundo do qual o rio faz mugir, espadanando nos rochedos as suas águas turvas e espumantes. Mas nesse dia o sol estava brilhante, e dava a esse quadro medonho o mais ridente aspecto. Os pinheiros, iluminados pelos raios de um sol de agosto, pareciam frechas douradas que mão oculta arrojava ao céu límpido e azul de um bonito dia de verão. Cada gotinha de água parecia um espelho que refletia a imagem brilhante do sol de Portugal, e o rio cintilante e espumoso parecia arrastar na corrente palhetas de ouro e prata. Gorjeavam os pássaros na floresta, e tudo dizia contentamento, quando os corações de Branca e Raimundo somente sentiam tristeza e desesperação.

Branca vinha triste, triste como a rola namorada que vê fugir para longes terras o escolhido do seu coração, e pálida como a açucena batida pelo vendaval. Mas que bem que lhe ficava aquela palidez, e como a alvura da face realçava a cor negra das roupas que vestira em sinal de luto e de saudade! O brilho dos olhos, empanado pelo pranto que tinha derramado, parecia ainda mais suave e meigo, e os louros cabelos, caindo-lhe ao desdém sobre o pescoço deslumbrante de brancura, faziam-na assemelhar à imagem da Virgem que está pendurada na sala do presbitério, e que o senhor padre prior dizia ser copiada de um quadro pintado por um italiano chamado Rafael.

Chegou, e ajoelhou aos pés de um crucifixo, que então existia naquele sítio; porque nesses tempos de fé viva, a imagem do Crucificado aparecia em toda a parte para acolher em seu seio misericordioso as orações dos fiéis. O sol tinha surgido havia pouco do Oriente, e a oração da cândida virgem, pura como a rosa que abre o seio ao primeiro alvor da madrugada, foi, perfume singelo, de fé e de inocência, conduzida pela brisa aos pés do trono do Senhor.

Quando se levantou viu Raimundo em pé diante dela, de cabeça descoberta, pálido e mal podendo conter as lágrimas que lhe bailavam nos olhos.

― Raimundo, disse ela desatando a chorar, e escondendo a cabeça no peito do mancebo, não me deixes!

― Não posso, Branca, tornou ele, apertando-a ao peito com ansiedade; o que pensariam de mim o rei, os ricos homens e os vilões, se preso nos teus braços me esquecesse do que devo a mim, ao rei e a Deus? Era um nome desonrado o nome de teu esposo, Branca, e não mo podias aceitar. A espada de meu pai, que outrora brilhou ao sol das batalhas com deslumbrante fulgor, não pode jazer inerte a um canto do meu solar, enquanto as achas de armas dos meus compatriotas escrevem nas páginas de pedra, das fortalezas mouriscas, a história sanguinolenta da ressurreição dos godos. Bem vês, Branca, é um penoso dever; mas devo cumpri-lo.

― E o nosso amor, Raimundo! ― balbuciou a donzela, afogada em lágrimas.

― Oh! cala-te, Branca, não vês que me despedaças o coração? Queres que eu perca o ânimo, queres que o puro azul dos teus olhos me faça esquecer que existe outro céu, outra ventura que não seja o teu amor, outro dever que não seja o adorar-te? Não, Branca, não ordenes a minha desonra; a tua imagem sedutora será a estrela que me há de guiar no caminho da gloria. Quais serão as façanhas para mim impossíveis, pensando que o teu sorriso será a recompensa do meu valor, e que será a tua mãozinha branca e mimosa que me há de limpar na fronte o suor dos combates e das lutas sanguinolentas?

― Mas quem sabe, Raimundo, tornou Branca, erguendo para ele os olhos radiantes, ainda umedecidos das lágrimas que derramara; quem sabe se nesses países longínquos não encontrarás alguma formosa dama cujos encantos te farão depressa olvidar a imagem da triste Branca, que dizes ter gravada no coração? Oh! meu Deus, que horrível ideia! Se tu me esquecesses...

― Que fazias, Branca?

― Morria! ― tornou ela com resolução.

Raimundo apertou-lhe a mão e levou-a ao pé do crucifixo. Ali, erguendo os olhos para o rosto divino do Cristo crucificado, bradou com voz solene e altiva:

― Juro diante de Deus que morreu pregado na cruz para remir os homens do pecado original, juro guardar-te sempre fé inteira e imutável, como te juraria se um sacerdote nos abençoasse ao pé do altar. És minha esposa diante de Cristo. Caia sobre mim a vingança do céu se atraiçoar o meu juramento.

― Oh! obrigada, Raimundo, obrigada, clamou a donzela, lançando-se com imenso ardor nos braços do mancebo e derramando copiosas lágrimas; também eu juro amar-te sempre, meu Raimundo, amar-te com inalterável Constânsia, não viver senão com a tua imagem, não pensar senão em ti, meu único amor. E agora parte, acrescentou ela, erguendo-se com inesperada resolução, vai conquistar um nome glorioso; a benção de Deus vai contigo, porque os nossos anjos da guarda, abraçados e de joelhos ao pé do trono do Senhor, rogarão a Deus que proteja os esposos, cuja união foi abençoada pelo Crucificado, saudada pelos cânticos da alvorada, perfumada pelos turíbulos das flores, iluminada pelos raios do sol nascente!

Raimundo apertou-a ao peito com entusiasmo; deu-lhe na fronte, com timidez, um beijo, e montando num cavalo que o esperava a pouca distância, seguro por um pajem, partiu, dizendo com ardor:

― Adeus, minha gentil esposa!

― Adeus, meu adorado esposo!

Estas palavras pronunciara-as ela, caindo ajoelhada aos pés da cruz. O perfume das flores, o canto dos passarinhos, o rumorejar das folhas, a luz pura e serena do sol, tudo parecia abençoar o seu amor. Unicamente no momento da despedida, uma nuvem ligeira passou por diante do astro do dia e ofuscou-lhe um pouco o brilho.

Ai! Branca, tímida Branca, nos momentos de felicidade uma ligeira nuvem é indicio temeroso de tempestade! 


CAPÍTULO 2

"Passaram-se meses e meses ― continuou o João; veio o outono desfolhar as árvores, e estender sobre a terra o seu manto de tristezas; depois o inverno gelado agrupou as famílias ao canto da lareira; voltou a primavera sacudindo sobre os campos o seu regaço cheio de flores e verduras, voltaram as longas tardes do estio, e o sol ardente de agosto veio de novo dourar os pinheiros que ensombravam a cruz do precipício; e nem a triste Branca recebia notícias do seu noivo, nem Inigo Pais a podia consolar com outras novas, que não fossem as que, logo pouco depois da partida de Raimundo, tinham sido trazidas por um fidalgo que voltava das terras do Algarve.

Contava ele que vira numa renhida escaramuça o filho de Inigo Pais estrear-se no arduo mister do lidador daquelas eras. A estreia fora digna do nome honrado de seu pai. Contava o fidalgo que o tinha visto arrojar-se aos mouros com valor sobre-humano, e abrir com a acha de armas um largo e sanguinolento sulco nas fileiras maometanas. Quando, no fim da escaramuça, Raimundo Pais passou de viseira levantada junto dos prisioneiros, estes, vendo o rosto delicado, o buço que lhe assombreava levemente o lábio superior, e a beleza quase feminil do mancebo, não queriam acreditar que fosse o mesmo que praticara prodígios de valor, e ante o qual as cimitarras mouriscas voavam em lascas, decepadas pelo montante que parecia manejado pelo braço de robusto montanhês.

Estas notícias encheram de orgulho o coração paternal do velho guerreiro. A Branca não sucedia o mesmo. As façanhas que entusiasmavam Inigo Pais, faziam recear à gentil donzela que Raimundo, arrastado pelo seu ardor juvenil, fosse encontrar a morte no gume afiado de um alfanje maometano.

Assim correram os meses, e as rosas do rosto de Branca desbotavam, desbotavam até se trocarem nos lírios que a desesperança ia fazendo brotar nas faces da donzela.

E Raimundo? Valente cavaleiro, não há proezas que absolvam um perjuro, nem as indulgencias, concedidas pelo santo padre aos defensores da fé, são suficientes para arredar de cima da cabeça do sacrílego o raio fulminado pela mão do Onipotente.

Raimundo Pais, Raimundo Pais, que demônio fatal te arrojou aos pés da cruz, e te ditou o terrível juramento, que havias de esquecer tão cedo? Ai! cavaleiro, ainda o vento do outono não desfolhou a verde grinalda que enramava a cruz do precipício, e já o vento da inconstância fez murchar o cândido afeto que floria em teu peito, e que juraras conservar tão puro e tão sem mancha, como era pura e imaculada a imagem daquela que to inspirou.

Ai! Branca, tímida rola, que, escondida na espessura, a sós com as tuas tristezas, pranteias a ausência do ingrato que te esqueceu, mal sabes tu que, enquanto fitas o olhar melancólico na lua pálida como o anjo da saudade, e pareces perguntar-lhe mudamente se o teu olhar se cruza no espaço com o olhar saudoso do teu gentil campeão, ele, o pérfido, o perjuro, o sacrílego, esquece nos braços de outra o teu amor de virgem, o teu modesto encanto, as tuas graças infantis.

Durante os primeiros tempos, as meigas recordações do seu amor de criança arderam dentro dele tão vivas e tão serenas, como arde viva e serena a lâmpada do altar no recinto sagrado da igreja cristã; se uma tentação má lhe surgia no ânimo, e lhe mostrava à luz de um relâmpago infernal mundos desconhecidos de prazer vertiginoso, era logo repelida pelo saudoso mancebo, que conservava o coração perfumado de inocência, como santuário florido, onde o cristão abriga devotamente a imagem da Mãe do Salvador.

***

Era por uma noite sombria, calada e misteriosa, noite própria como nenhuma outra para emboscadas e ardis de guerra. Nessa noite, num alcáçar mourisco, situado em terras do Algarve, dormiam sossegados os perros descridos, confiados na vigilância das atalaias, e certos que os rudes batalhadores de Cristo, vencidos do cansaço, concederiam involuntariamente tréguas aos filhos de Mafoma. Os almogávares, voltando das suas excursões, não tinham trazido novas de movimento algum no exercito cristão. Dormiam as almenaras no cimo das montanhas, e a atalaia, vigiando no alto da torre, não estremecera vendo uma pluma de fogo acender-se de repente, e, ondulando nos ares, dar sinal da aparição dos nazarenos. Quão enganados estavam, e essa serpente de ferro, que se enrosca às muralhas da fortaleza, vai acordá-los inesperadamente do seu sono voluptuoso!

De repente o grito de São Tiago é avante! ecoa nas barbacãs do alcáçar, e as sentinelas, caindo apunhaladas sem terem tempo de soltar um grito, pagam com a vida a sua indolência descuidosa.

Que cena de confusão no meio das trevas! Os gemidos dos moribundos, os gritos das mulheres, as blasfêmias dos guerreiros surpreendidos cruzam-se com os gritos de vitória dos cavaleiros portugueses. Apenas de quando em quando um ou outro árabe mais destemido arranca da cimitarra, e faz brotar centelhas instantâneas, cruzando-a com o pesado montante cristão. Não tem quartel os vencidos; os vencedores sequiosos de sangue transformam naquele momento o valor do guerreiro na ferocidade do assassino. Eras de barbaridade! Já vão longe, felizmente.

Raimundo vai entre eles. Embriagado pela carnificina, descarregava às mãos ambas a acha de armas sobre os que pretendiam fugir à sorte de seus irmãos. De repente um vulto feminino roja-se-lhe aos pés, suspende-lhe o braço já levantado para descarregar o golpe, e com uma voz melodiosa como o sussurrar da brisa nos ramos do salgueiro, murmura em português: Perdão!

A lua, que até aí se conservara escondida entre nuvens, desembaraçou-se afinal do seu manto sombrio, e veio acariciar com os raios da luz serena as faces tostadas da árabe gentil.

Nunca Raimundo vira um rosto tão diabolicamente tentador! Eram uns lábios onde se viam arfar promessas voluptuosas de beijos delirantes. Eram uns olhos negros, onde brilhavam as chamas do desejo, as labaredas infernais da tentação! Eram as tranças negras flutuando sobre o colo nu, que a brisa beijava com delírio, roubando-lhes perfumes inebriantes, que vinham enlouquecer o ingênuo amador da casta Branca. E ele sentiu a febre do desejo a vir escaldar-lhe o sangue, sentiu uma ignota ansiedade vir oprimir-lhe o peito. Era o terrível despertar dos sentidos num rapaz de dezoito anos. Eram as tentações da voluptuosidade, eram as comoções do prazer sensual, era um demônio desconhecido que lhe vinha murmurar ao ouvido os vagos encantos de misteriosos amores.

Raimundo sentiu o perigo, e quis afastar-se dele. Repeliu-a, e, invocando a imagem de Branca, quis fugir da tentação fatal; mas a moura, enroscando-se a ele, como a serpente se enrosca ao corpo do homem fascinado pelo poder invencível do seu olhar, murmurou:

― Não me deixes, nazareno. Os teus olhos são negros como noite sem estrelas; mas são transparentes como o espelho das águas. Porque havias tu de ser cruel como a hiena do deserto, se és belo e majestoso como o leão das selvas? Olha, sou tão nova! Ainda a amendoeira não floriu vinte vezes, desde que minha mãe me apertou pela primeira vez ao seio palpitante. Salva-me, salva-me e serei a tua escrava. Servir-te-ei de joelhos como a meu senhor e amo, cingir-te-ei a armadura, adivinharei os teus caprichos, e adorar-te-ei como adoro o profeta de Medina. Ouves? Filho dos cristãos, salva-me, salva-me!

― Deixa-me, tentação do demônio, bradava Raimundo com voz balbuciante; deixa-me, anjo das trevas; deixa-me, enviada de Satanás.

― Não, tornou a amaldiçoada, aproximando os lábios vermelhos como a flor de romanzeira dos lábios de Raimundo. Sou bela, e amo-te! Sou tua, e tu és todo meu, porque te vejo torcer desesperado nos braços de fogo do prazer. Amas-me, e eu... sou tua.

― Amo-te, amo-te, bradou Raimundo, caindo opresso aos pés da muçulmana.

Ai! Branca, tímida Branca, chora o teu amor profanado! Nesse momento fatal o anjo da guarda do teu amante velou com as mãos o rosto celestial, que as lágrimas inundavam, e foi, suspenso num raio da lua, prostrar-se aos pés do trono do Onipotente!

Entrado na senda da perdição, não havia poder humano que salvasse Raimundo da condenação eterna. Tinha vendido a sua alma por um beijo de fogo, e trocara o paraíso pelo inferno da voluptuosidade. Profanado o terrível juramento, o que havia de sagrado para Raimundo? O que importava a honra de cavaleiro a quem prostituíra a santa crença de seus pais? Apagara-se a cândida estrela que o guiava nas trevas da existência, e a luz, que o fascinava, cintilava nos olhos negros de Zoraida, a gentil amaldiçoada. Se tinha reflexos infernais, tinha também o esplendor prestigioso da tentação sensual.


Desde essa noite ninguém mais soube dele. Diziam que renegara, e que, enlaçado nos braços da muçulmana, fechara os olhos à luz do cristianismo, e se arrojara ao abismo infernal, onde há o fogo eterno e o eterno ranger de dentes.

Foram estas as notícias que Branca recebera, no dia em que fazia um ano que Raimundo a deixara. Não disse palavra ao receber a nova fatal. Saiu e caminhou pálida, hirta e vagarosa como estátua adormecida num túmulo, que, obedecendo a feitiço desconhecido, se erguesse do seu leito de pedra, e se dirigisse muda para o sítio aonde a chamava a atração misteriosa.

Os aldeãos, que a encontravam, paravam para a saudar. Mas ela nem os ouvia, nem parecia vê-los. Costumados à amabilidade da fidalguinha, ficavam os coitados boquiabertos, ao verem a desusada distração. Mas, se lhe reparavam nas feições demudadas, vendo a palidez de mármore, os lábios brancos e entreabertos, os olhos fixos e esgazeados, benziam-se devotamente, e murmuravam que era mau olhado que tinham dado à menina do castelo.

Assim caminhou até chegar ao sítio do Açude. Ajoelhou junto da cruz, e um aldeão, que a seguia de longe, viu-a rezar muito tempo, e abraçar os pés do Crucificado. Depois, chegou à beira do precipício, e sem hesitação, sem fraqueza, despenhou-se no abismo. O corpo gentil enovelou-se nos ares, e foi despedaçar-se nas pedras da cascata, espirrando ondas de sangue que tingiram de púrpura o manto de espuma que envolvia as rochas. As águas do rio abriram-se para tragar o cadáver, e depois continuaram indolentes a correr, e a murmurar o seu eterno cântico, como se não se tivesse escrito ali o epilogo de um drama desventurado.

O aldeão, que vira de longe a cena fatal, sem poder obstar ao seu inesperado desenlace, fugiu dando um grito de horror, e foi contar ao castelo o que presenciara. Quem perdeu alguma vez, de modo tão terrível, um ente estremecido, avalie a dor do triste pai de Branca. Eu não a sei narrar. Sente-a o coração, mas os lábios recusam-se a exprimi-la. Veio depois gente do castelo, e tiraram do fundo do precipício o cadáver horrivelmente desfigurado da gentil donzela. Enterraram os restos daquela pobre mártir aos pés do Crucificado, que ouvira a sua última prece, e a quem pedira talvez perdão do crime que ia cometer. Plantaram ao pé da cruz roseiras e madressilvas, cujo perfume suavíssimo ia levar ao longe a última recordação da que tivera na terra a coroa da inocência, e tinha agora nos céus a palma do martírio."

― Pobre rapariguinha, interrompeu o mestre lagareiro com mostras de penalizado, dar cabo de si por causa daquele patife!


― Então que quer vossemecê,  Manoel dos Reis, coisas que acontecem, tornou o narrador, ninguém pode fugir à boa ou má sina, que Deus lhe deu. Era aquela a sorte de Branca, havia de cumpri-la.

― Vamos à história, vamos à história, bradou José Augusto, com entusiasmo! Que fez Raimundo? O que aconteceu a Zoraida? Quero saber quem é por fim de contas o fantasma do Açude.

"Raimundo, meu fidalgo, não via senão Zoraida neste mundo. Um capricho dela valia mais do que um mandado de Deus.

Cristão tripudiou com a infame sobre a cruz despedaçada do Redentor; cavaleiro, quebrou a espada de seu pai para que esse espelho de honra não lhe refletisse constantemente toda a hediondez do seu crime, fidalgo e português, salpicou de lama o brasão de seus maiores, e abandonou a defesa da pátria, quando ela reclamava o auxilio de todos os seus filhos. Aqui está o que se pode chamar um amor de perdição!

Uma noite chovia água se Deus a dava, o vento fazia tremer as casas, e curvava até ao chão os pinheiros agigantados! A trovoada estalava com medonho estampido, os relâmpagos cingiam a terra com o seu cinto de chamas, e os raios vinham de vez em quando, lascando as rochas, transformar as árvores em archotes colossais. O temporal era como nunca se tinha visto nesta terra, nem nunca mais se tornou a ver, porque todos dizem que a procela daquela noite era obra de Satanás. No Açude principalmente era medonho o aspecto da tormenta. O rio furioso arrojava borbotões de espuma, que se cruzavam com os raios, que vinham lamber as rochas com as suas línguas de fogo. Deus me perdoe, mas o temporal de hoje tem algumas parecenças com a tempestade dessa noite infernal. Quer-me parecer que também hoje anda fazendo das suas o inimigo do gênero humano."

Um calafrio de horror correu pela assembleia. Todos se chegaram mais para o pé do lume, e olharam uns para os outros benzendo-se silenciosamente ao passo que lá fora gemia o vento com voz soturna na porta carunchosa do lagar.

"Nessa mesma noite Raimundo e Zoraida atravessavam a cavalo o pinheiral que termina no Açude. A reprovada de Deus folgava com noites tempestuosas, e nunca se sentia tão bem como quando os raios lhe iluminavam a estrada, e o trovão respondia majestoso à sua voz blasfema.

― Olha a cruz do nazareno, bradou Zoraida quando chegaram à cruz do precipício; não vês, Raimundo, como a chuva açoita irreverente o rosto do mártir do Calvário! Porque não transforma ele os raios, que fulminam a cruz abandonada, em cimitarras de fogo que façam rolar a seus pés a cabeça da condenada, da filha de Maomé?

E ela ria, ― ria com umas gargalhadas estridentes, que vibravam sinistras dominando os ruídos da tempestade, e que, repercutidas pelos ecos do abismo, tinham um não sei quê de infernal. Raimundo estremeceu.

― Não zombes desta cruz, respondeu ele com modo sombrio; quando eu era inocente― e suspirou― vinha aqui ajoelhar muita vez. Não zombes desta cruz, peço-to.

Zoraida fitou por muito tempo nele o seu olhar aveludado, fascinante, diabólico e tentador. Era incompreensível a magia desse olhar, e mais incompreensível ainda o domínio que exercia no moço cavaleiro. Dir-se-ia que dois sentimentos opostos combatiam no coração de Raimundo: de um lado a repugnância, a rebelião da vontade, do coração, do espírito contra aquele demônio opressor; do outro lado uma atração irresistível, fatal, que o arrastava a seu pesar, e o prostrava aos pés da muçulmana.

Venceu o anjo mau. Raimundo curvou-se sobre o pescoço do cavalo, ébrio de amor ou de desejos fitou um olhar frenético nos olhos de Zoraida, e quando ela, com um sorriso de escárnio, se aproximou da cruz, e cuspiu no rosto do Crucificado!... ele, vencido pelo demônio, imitou-a, rindo com um riso convulso e doloroso, que fazia horror."

― Jesus! ― bradaram os circunstantes. 

O vento abriu a porta do lagar, e à luz de um relâmpago viu-se o campo devastado pelo vendaval e inundado pela chuva; um trovão medonho fez benzer todos, e emudecer o narrador. Chegaram-se mais ao lume, e olharam uns para os outros. Estavam todos pálidos e trêmulos.

― Aconteceu exatamente o mesmo que aconteceu agora, continuou o João Moedor com a voz a tremer-lhe um pouco; a luz de um relâmpago deixou ver uma lousa aos pés da cruz, e o nome de Branca inscrito sobre a pedra. Um trovão formidável ribombou sobre a cabeça dos dois amaldiçoados, e a campa estalou como se fosse de vidro. O fantasma de Branca, envolto em cândidas roupas, e com a fronte cingida de rosas virginais, ergueu-se da sepultura, fazendo recuar Raimundo horrorizado. Este quis desviar a vista, e o fantasma seguiu o movimento dos seus olhos; quis tapar o rosto com as mãos, e as mãos fizeram-se-lhe transparentes, deixando ver ainda a imagem da donzela serena como uma santa, triste como uma mártir, impassível como o destino. Quis enterrar os acicates nos ilhais do cavalo, e o cavalo esvaiu-se como fumo, adelgaçando-se, e escapando-lhe por entre os joelhos, como um pedaço de neve que o sol derrete nas montanhas. Raimundo deu um grito de horror, e estacou petrificado.

Então voltou os olhos para Zoraida, e ficou aterrado da transformação da sua amante. O rosto, cuja beleza o fascinara, fizera-se negro, mais negro do que o carvão. Cintilavam os olhos como duas brasas, e nos lábios volteava-lhe um sorriso de ironia. O braço acetinado que beijara tanto, estendia-se para ele terrível e ameaçador. Raimundo, por um esforço supremo de vontade, recuou dois passos, mas o braço estendeu-se, estendeu-se, tornou-se desmesurado e apertou-lhe o pescoço, queimando como se fora uma tenaz ardente.

― Não me foges, bradou ela com voz rouca, vendes-te-me a tua alma, renegado. Segue-me, segue-me. Pertences-me. Vem, que o inferno celebra hoje o nosso noivado. Os raios são os fachos do himeneu, e Lúcifer o sacerdote. Vem, é este o leito nupcial.

E, arrastando-o com uma força irresistível, precipitou-se com ele no abismo. Um clarão avermelhado iluminou as águas da torrente, que exalaram um cheiro nauseabundo de enxofre.

Mas o fantasma de Branca ficara ajoelhado aos pés da cruz, implorando o perdão do condenado. No rosto de Cristo, suavemente iluminado, resplandecia um vago arraiar precursor da aurora da misericórdia.

Apenas Zoraida desapareceu, desfez se o encanto. Serenou a tempestade, e a brisa perfumada da noite veio tímida brincar nas rosas do túmulo de Branca.

Mas ainda hoje, em dias de vendaval, se vêem duas sombras terríveis correndo para o precipício, uma horrorizada, trêmula, arrastada, a outra com uma alegria feroz no semblante. Aos pés da cruz vem então ajoelhar uma sombra com o rosto inundado de lágrimas celestiais.

É que Raimundo ainda está cumprindo as penas do purgatório, e Branca, o anjo do Senhor, sem deixar de implorar a misericórdia divina para aquele que tanto a fez sofrer, mas a quem tanto amou! 

***

― Era inevitável, disse, rindo, Lúcio Valença depois de feitos os cumprimentos do estilo, eu estava já prevendo que íamos descambar em plena idade média. O nosso amigo Roberto Soares não pode dispensar-se de consagrar um vivo afeto às couraças da sua adolescência, e às achas d'armas da sua criação. Fez-nos voltar para 1830 o nosso bom amigo.

― E não era época tão má como isso a tal de 1830, disse Roberto Soares. Abusava-se do veneno e do punhal e dos solares e das chácaras e dos cavaleiros que voltavam da cruzada, mas, como dizia Musset, um dos românticos do tempo: 

Hugo portait déjà, dans l'âme
Notre-Dame,
Et commençait à s'ocuper
D'y grimper.

― Não há duvida, não há duvida, acudiu o doutor Macedo, e Lúcio é de certo o primeiro a prestar homenagem a essa época da potente eflorescência literária; mas, por Deus, tornou ele interrompendo-se com espanto, está já vencida a meia-noite; a Sra. D. Isaura adormeceu!

Era verdade; Isaura, que não tinha de predileções literárias senão o quantum satis para ser senhora da moda, enfastiada já destas repetições de histórias fantásticas, resistira um momento ao sono que a perseguia, mas, quando se entrara na história dos amores de Raimundo e Zoraida, fora a pouco e pouco encostando a cabeça para traz, e adormecera profundamente.

― Pudera, pensou de si para si o nosso Henrique Osório, teimando em ver em Isaura uma menina toda idealizadora, e capaz de apreciar os mais elevados prazeres do espírito, pudera! Eu mesmo me vi em ânsias para resistir ao sono. Quem atura hoje um destes solaus cansados e gastos que deliciaram a velha geração, com os seus cavaleiros de armas negras, e os seus diabos disfarçados em mulheres formosas, e os seus fidalgos que venderam a alma a Satanás como na Dama Pé de Cabra, de Alexandre Herculano, ou na Torre de Caim, de Rebelo da Silva? Isso foi bom no seu tempo, hoje está longe do maravilhoso moderno, e Isaura, com a fina intuição do seu juvenil espírito, não pôde comover-se com esses velhos trucs de mágica, ressuscitados ingenuamente pelo Roberto Soares para nos entreter à meia-noite.

Enquanto Henrique Osório fazia de si para si esse monologo, Leonor acordava a sua amiga, que, abrindo sobressaltada os olhos, foi acolhida por um riso jovial de todos os seus companheiros de noitada.

― Venceu-se ou não se venceu? dizia o doutor Macedo. Veja vossa excelência se hoje lhe produziu a mais leve impressão a meia-noite, e se lhe deram muito cuidado os fantasmas.

― Ah! meu Deus, eu peço-lhes mil desculpas, disse Isaura um pouco envergonhada. É que estou fatigada das noites passadas em claro, porque o pior não é aqui, o pior é depois quando vou para o meu quarto. Custa-me a conciliar o sono, e vem às vezes pesadelos terríveis perturbar o meu dormir inquieto.

― Minha senhora, exclamou, rindo, o doutor Macedo, nem tudo são rosas no tratamento de uma enfermidade. Pois vossa excelência não sabe que são muitas vezes amargos os remédios salutares? Então julgava que, para ter uma cura radical, bastava-lhe ouvir aqui ler contos, numa sala confortável, cheia de luz, a dois passos do seu papá, e apertando a mão da sua amiga? Nada! nós aqui douramos-lhe a pílula. Se depois lhe sente no seu quarto o amargor, paciência! Mitridates é de crer que também não achasse aos venenos o gosto da ambrosia. Afinal bebia-os como quem bebe água. Vossa excelência ontem dormiu mal, hoje há de dormir melhor, daqui a dois dias chega a tornar-se-lhe necessária uma história de fantasmas para adormecer profundamente.

― Ah! doutor, eu ao menos peço tréguas. O Sr. Henrique Osório, ontem, com a sua alameda transformada em cemitério, e com essa mulher pálida desenterrada, atacou-me os nervos de tal forma que fiquei deveras enferma. Cheguei a supor que eu mesma era uma defunta.

O próprio Henrique Osório é que ficou deveras atordoado! Decididamente Isaura não lhe perdoava a criação do tipo de Julieta que ele julgava que tanto devia lisonjeá-la. Persistia em acreditar que ele não tivera outro intento senão o de lhe chamar desenterrada.

― Minha senhora, disse ele, eu sinto realmente profundissimos remorsos por ter assim concorrido involuntariamente para a magoar. Creia vossa excelência que a minha intenção era boa, continuou ele em voz mais baixa; se depus a seus pés um ramalhete de goivos em vez de um ramalhete de rosas, foi porque as flores funéreas eram as únicas que a nossa regra me permitia que colhesse.

Isaura era coquete, e, sentindo nesta frase um aroma de galanteio, vibrou a Henrique um olhar fascinador. Neste momento, porém, o doutor Macedo levantou-se, e, depois de ter pedido licença para ir acender um charuto, cantarolou, puxando uma baforada de fumo, com musica desconhecida, esta quadra de Tomás Ribeiro:

Trazes agourento goivo
prezo em negros passadores!
Disse-te acaso o teu noivo
que tinhas novos amores?

― O Dr. Macedo, murmurou Isaura, voltando-se para Henrique Osório com uma expressão no olhar muito diversa da que primeiro lho iluminara, o Dr. Macedo está-me explicando involuntariamente o sentido da sua oferta do ramalhete de goivos. É um epigrama, Sr. Osório?

― Minha senhora, respondeu Henrique desesperado, estou por tal forma infeliz com vossa excelência! Vossa excelência  interpreta de um modo tão singular todas as minhas palavras, e todas as minhas ações, que desisto de as explicar de um modo satisfatório.

Estava verdadeiramente mortificado. Levantou-se cumprimentando secamente a sua interlocutora. Dirigiu-se a uma janela e abriu-a para respirar mais à vontade. As reclamações dos circunstantes obrigaram-no a fechá-la de novo. Isto ainda mais o desesperou. Estavam-se fazendo as despedidas. Leonor, ao passar junto dele, disse-lhe com um riso malicioso, e em voz baixa:

― É para que tu saibas o que valem os galanteios fúnebres.

― Olha, sabes que mais, Leonorzinha? tornou Henrique bruscamente, ocupa-te das tuas bonecas. 

A pobre senhora sentiu a dor profunda do golpe. Recuou um passo, levou a mão ao coração, e marejaram-lhe nos olhos duas lágrimas.

― Perdão, menina, acudiu Henrique, caindo em si.

― Estás perdoado, respondeu Leonor com voz fraca, mas... mas como tu a amas!

Saiu. Se se demora mais um instante, rebentavam-lhe os soluços mesmo diante de Henrique.

O doutor Macedo, ao passar por diante de Osório, parou, e disse declamatoriamente:

Si je vous le disais pourtant que je vous aime,
Qui sait, brune aux yeux bleus, ce que vous en diriez?

― Está falando por enigmas poéticos, doutor, exclamou Henrique impaciente. Quer fazer concorrência ao Diário Ilustrado, ou ao Jornal da Noite?

― Não, disse o doutor, quero apenas dizer, com palavras de Alfredo de Musset, que passam muitas vezes duas pessoas ao lado uma da outra, sem saberem os sentimentos que vivem nas suas duas almas, e que, se ousassem exprimi-los, voariam a encontrar-se.

― A solução no próximo numero, não é verdade, doutor? tornou Henrique, impaciente.

― Talvez, redarguiu o doutor.

E saiu, ao passo que Henrique Osório encolhia os ombros com desdém. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...