1/05/2023

Algas e Musgos (Poesia), de Luís Delfino

 

ALGAS E MUSGOS


ALGAS E MUSGOS

Não prima esta obra de ourivesaria
Por leve, caprichosa e delicada,
Como devera ser, como pedia
Pequena tela de ouro trabalhada...

Nem de ouro sempre: a lâmina talhada
Foi do metal que às mãos acaso havia,
Logo que me soava uma harmonia
E eu via a frase em mole dança enleada.

Casando o ritmo ao frêmito das cores,
Vergéis em vale estreito enchi de flores,
Sob a cúpula azul de um céu ardente:

E indo gravar as mais triunfantes gemas,
Para as pôr dando luz em meus poemas,
Algas e Musgos burilei somente.

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CONCHAS E PÉROLAS
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OMBREIRA

Vagas cheirando a brisas das balseiras
Que vêm do oceano, num suspiro apenas,
E trazem conchas de ouro e de açucenas,
À flor da areia, expondo-as em fileiras,

Grutas soltas de nácar: mais não queiras
Nestes poemas ter; — são vãs falenas,
Que, para ir iludindo algumas penas,
Ato às asas da noite, e aí vão ligeiras.

Verás algumas pérolas, se fores,
Quando as ondas não crespas vão rolando,
Quando da tarde a luz cambiando as cores,

E ora azul e ora verde o mar baixando,
Têm nas escamas trêmulos fulgores,
E abrem-se às praias num bocejo brando...

 

O PERFUME DE UM HINO

Se alguém me vir perenemente moço,
Ou como um deus de Hesíodo ou de Homero,
Alta a cabeça, o olhar radiante e fero,
É que eu em toda parte a vejo, e a ouço;

Que em vê-la, e ouvi-la, eu sinto-me um colosso,
Pois tenho nela tudo quanto quero;
Nem temo a inveja a uivar, como um mar grosso,
Dizer que minto, que não sou sincero.

Nela eu vejo a mais nova irmã da Aurora,
Ela em mim o irmão gêmeo da Harmonia;
Não precisamos de mais nada agora.

Nossos filhos, o Sonho, o outro a Alegria,
Como eu os amo, a mãe como os adora!
E ambos são para nós a luz do dia...

 

PIGMALIÃO

Sinto-me todo em ti, tendo-te perto;
Prendes-te a mim num forte e estranho laço;
Vamos: quem acha o paraíso aberto,
Faz o que fazes tu, faz o que eu faço.

E enquanto o corpo teu osculo, e abraço,
Novos sóis anda um deus a urdir decerto;
E ouvem-se, a um pólen vasto enchendo o espaço,
Édens florir, cantando, em nu deserto.

É a ventura triunfal do malho,
Que bate o bloco, e o embebe, e o anima, e a ideia
Lhe põe, mordendo-o todo, a talho e talho:

E é do amor, que o buril fecunda e ateia,
Que entre gritos do mármore em trabalho,
Nasce Vênus, ou nasce Galateia.

 

TELA APAGADA

Tecum vivere amem.

Horácio

Como isto aqui mudou!... Agosto, o ano passado,
Tinha mais sol, mais luz, mais calor, menos frio;
Mas tudo o mais é o mesmo: a água do mesmo rio,
A ponte de madeira, as mangueiras, ao lado,

Velhas, grandes, em flor, o lanço esburacado
Do muro, e o líquen nele, e a avenca, e o luzidio
Lacrau, que salta, e vira, e já volta ao desvio;
O cão ganindo; e a um canto, à esquerda, ao longe, o prado;

Bambus em renque, em meio o caminho, e no espaço,
Longe do morro, ao fundo, a casa; e no terraço
Sobre o jardim, talhando o ar cintilante, a imagem

De um anjo, — um áureo nimbo à coma, o olhar humano
Como jamais pintou Corregio ou Ticiano:
Quem, levando-a, apagou a esplêndida paisagem!...

 

PALIDA VICTRIX

A fronte cheia de uma dor sonora
Na mão aberta tristemente pousas,
E a estrela de uma lágrima demora
Sobre um dos cílios... mas chorar não ousas...

Pasmas às triviais, pequenas coisas!
Vês manchando de larga sombra agora
A luz do céu, e pelo campo em fora,
Um bando azul de lindas mariposas.

Acaso abres o leque, e lentamente
Olhas sem ver dois calmos chins à beira
Dum rio argênteo; a rútila corrente

Mete-se em pontes de ouro, a luz a empoeira...
Que dor faz pois mais pálido e doente
Teu belo rosto pálido de cera?

 

NUM TURBILHÃO DE ESTÁTUAS

At the mid hour of night, when stars are weeping...

T. Moore: Irish Melodies

Quando os formosos mármores de Atenas,
Brancos, como os luares transparentes
Desmanchando seu feixe de açucenas
Na limpidez sonora das correntes,

Murmuram suas doces cantilenas
Pelas suaves curvas esplendentes,
Mas como um sonho, um vago sonho apenas,
Que embala a noite em páramos silentes...

Numa ebriez de luz, turbado e incerto,
Entre o alarido de rosais desperto,
Via erguer-se, surgir... ficar só tu.

Do turbilhão de estátuas fugidias
Restavam só as formas luzidias
Do teu corpo orgulhosamente nu.

 

VÊNUS MARINHA

Quem és tu? — Serás tu o que pareces?
Mármore duro, opaco, e resistente
Mármore vivo, cuja voz tremente
Vem de uns lábios, que sempre imploram preces,

Onde começas tu, onde feneces?
Onde pode a ti mesmo achar-te a gente?
Bela esfinge terrível, que mais cresces
Quanto mais desço em ti profundamente.

És uma imagem sob um véu de bruma:
Tu tens os grandes gestos de rainha,
E não sei de tua alma coisa alguma.

Tortura-me esta grande angústia minha;
Deusa, e pombas, e concha, e mar, e espuma...
Nada mais vejo em ti, Vênus marinha...

 

NUDAQUE VERA

Por quê?... Bem vejo o gosto, o esmero, o tino
Com que no escrínio luxuoso fechas,
Ora a nuvem das rútilas madeixas,
Ora do corpo o mármore divino.

Cinzelo, lavro, junto, ato, combino
Frase e frase, e engrinaldo-te de endechas:
Como és formosa assim!... Mas imagino
Abismos, céus... os céus que ver não deixas...

Oh! nua!... nua é que te quero!... nua...
Igual à rosa, ao lírio, à estrela, à lua,
No brilho astral dos monólitos nus!

Em rico estofo um corpo não escondas,
Onde por linhas ideais, redondas,
Cantam os sóis a Ilíada da luz.

 

CARROS QUE SE ENTRECRUZAM

Como serpente enorme, então a natureza
Enroscava-se ao meu espírito abatido:
Assobiava o sul no céu, como um bandido
Em caverna onde há sombra, ar úmido e tristeza.

E enquanto o frio, como um ferro agudo e buído,
Perfurava-me a carne, a mente inquieta e acesa
Arranjava uma alcova, um fogo, um livro lido
Na intimidade ideal de uma gravura inglesa.

Eis que perto de mim surge, irrompe, fulgura
Como fugida a um quadro, uma branca figura,
Como só Greuze e Holbein as sabiam pintar.

A cabeça gentil punha apenas de fora...
O seu carro voava arrebatando a aurora:
Um furacão de luz levava-a pelo ar...

 
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AD ASTRA
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... tu pudica, tu proba
Perambulabis astra sidus aureum.

Horácio

Estes anões são vis, são pó: — deixá-los.
Vem tu comigo acima, alma divina;
Era demais, deusa do bem, odiá-los;
Tu, a quem só o amor do bem domina,

Vem. — Eu já lanço os rápidos cavalos
Pelo meio da estrada cristalina,
E em cada sol, que ao ver-me a fronte inclina,
Tens o meu povo de ouro, e os teus vassalos.

A cada beijo, hemos de ouvir cantando
Os deuses logo, as deusas logo, em bando,
Cada um de nós em rútila curul.

Lá tu serás a minha loura Circe
Dentro em meu colo a rir-se, a rir-se, a rir-se,
Como uma estrela na lagoa azul.

 

ACORDO

Dizes que te não dê este amor, que é meu gozo,
E é o abismo estrelado em cujas bordas piso,
Que vive do clarão sonoro do teu riso,
E da luz que enluara o rosto teu formoso;

Este amor, que vê sempre aberto um paraíso
Em qualquer parte do teu corpo astral e ondeoso,
Que, como o vento ao mar, não me deixa em repouso,
Do qual, para o meu céu ser céu, ter sóis, preciso:

Este  amor não to dou. — Os astros resplendentes,
Um mar preso a outro mar, ilhas e continentes,
O espaço, e o que ele tem, o que é, e o que inda for.

Deuses, e turbilhões fantásticos... pudera!...
Dera-te tudo, tudo, oh! tudo!... e não te dera
Este amor, este amor, este meu louco amor!...

 

PAUCA

Oh! triunfar, dar corpo a ideais mais caros,
Haréns possuir, como um Sardanapalo;
Pôr no mármore o gesto e alevantá-lo,
Bem como um Pigmalião dando alma ao Paros;

Dormir nos ostros dos triclínios raros;
Prender o mundo à cauda de um cavalo,
Ou, como Orfeu, à lira de ouro atá-lo,
Que importa?  Uns bens tão vãos, eu do alto encaro-os.

Mesmo, se isto é ventura, e isto preferes,
Num turbilhão de esplêndidas mulheres
Ir pela vida inteira arrebatado,

Vive assim, morre assim; eu cá desejo
Ao colo de uma só viver num beijo,
De uma ao colo morrer num beijo, e amado.

 

A VALSA

Move-se, treme, anseia, empalidece,
Cai, agoniza; acaba-lhe nos braços:
Resfolga, arqueja, torna, reaparece,
Solda-lhe o seio, a boca, as mãos, os passos...

Gira, volta, circula... Os olhos lassos
Têm langue, mole, voluptuosa prece:
A fronte branca ao colo dele esquece...
Atam-lhe as carnes invisíveis laços...

Na sala, a um vão, inquieto a vejo... e o vejo!
Sofrer?!... não sei... mas toma-me um desejo,
Ao ver um só nos dois, o grupo enleado...

Rojar-me ao chão, à terra de repente,
E nas voltas daquela valsa ardente
Morrer embaixo de seus pés calcado!

 

A VIDA E A MORTE

Para que serve a vida? — me disseste:
Tremi, como haste ao vento, assim te ouvindo,
Mas pela sombra do teu rosto lindo
Vi pranteando o teu olhar celeste.

A vida é isto, o beijo, que me deste,
Que a impregnou toda de um olor infindo:
E a morte, o incêndio de um silvado agreste,
Onde há ninhos e pássaros dormindo.

Do ninho em breve os pássaros cantando
Surgem de asas e de ouro enchendo a esfera,
Brincam flores ao sol, no vale, em bando.

E a morte diz à vida extinta: — Espera!
E em carro azul irrompe, inda chorando,
O Riso e o amor puxando a Primavera...

 

SACRA FAMES

Como um falerno, és tu, rubro e sublime,
Espumaroso e quente, que conserva
A áscua da lava, o verde aroma da erva,
E o ardor, que a terra em fogo, e a arfar, lhe imprime,

Que mal se bebe um gole ou dois, deprime,
Endoida, cansa, ensonolenta, enerva...
— Quisera ver, perto de ti, Minerva
Pura sair do meu divino crime.

E tens talvez no escrínio inda áureo pomo...
Que fome grande eu sinto dele... como
Enche-me todo este desejo, e o quero...

Foi desta angústia e deste amor, criatura,
Que a Grécia viu o gênio e a formosura,
Vênus na vaga, e ao pé da vaga, Homero...

 

SURGIT STELLA

Chegou? Mas em que concha a deusa veio?
Que onda azul a deitou na fina areia?
Que branca ondina, que ao luar vagueia,
Disse-lhe adeus do mar num doce enleio?

De mole brisa o perfumado seio
Ela abandona, e dele, enfim, se apeia,
Como da concha desce Citereia
Contendo as pombas com delgado freio.

Milhões de olhos de luz na sala, — ao vê-la,
Abrem os candelabros, desatando
Rolos de ouro sutil, para envolvê-la.

Nos quícios riem as portas recuando;
E deixa um rastro luminoso a estrela,
No etéreo azul da alcova enfim baixando.

 

ÂNGELA - SIRENA

Tinha doze anos; chego; de repente
Enlaça-me com força: vou fugi-la;
Aperta-me inda mais, feroz, tranquila,
Como uma fera angélica e inocente.

Quase achei-me sem mim no atrito quente;
E ao ver-lhe o azul da límpida pupila
Molhar-se todo de um vapor luzente,
E uma inquieta tristeza enfim cobri-la,

Lento e lento arranquei-me dela, e a custo,
E sem que disso ideia exata forme,
Logo um pouco a tremer, num vago susto,

Como cansada de um trabalho enorme,
Sobre o meu colo reclinando o busto,
A face em fogo, e soluçando, — dorme.

 

A MULHER
(A Guimarães Passos)

She was false as water.

Shakespeare — Othelo

Amo a mulher, que o etéreo fogo ateia
Em Fídias, Sanzio, Gluck e Donatello,
Porque em si tem o filtro, o encanto, o elo,
Que o céu aos seus dois pés prende e encadeia.

Anda-me a vida do seu culto cheia;
E inda na morte em meu sepulcro, anelo
Vênus, filha do mar, como a sereia,
Em Serravezza ou Paros do mais belo.

Não que indo, como aos sóis vai a andorinha,
Desse acaso com uma, que seria
A parte da alma que faltou à minha:
Pôde encontrá-la alguém?  Não sei: diria,
Achando-a, achar a pérola marinha,
Mas, — como toda pérola, vazia.

 

APONTAMENTOS

Quarto azul como o céu; uma janela,
Uma porta; alto, grande, longo, estreito;
Dois espaçosos quadros, mesa, leito,
Pequeno espelho, e a um canto uma aquarela.

Tapete pérsio, a lâmpada singela,
Divã de um róseo-negro; em meu conceito,
É quanto basta; e procurar o efeito
Deixando encher-se o mais, tão só com ela.

Para lhe dar um toque ainda, eu ouso
Lembrar que o sol não entre aí; seria
Perder do luar, que o envolve, o estranho gozo.

A sombra quente; a luz um pouco fria...
Eu sei, como seu corpo esplendoroso
Melhor se enquadra, e nu melhor radia.

 

EPITALÂMIO

Deixa lançar-te ao colo o meu hálito quente,
Derreter-lhe com o lábio em fogo, e em torno, a neve.
O tempo, que nos dão, é curto, é pouco, é breve,
É nosso o instante só, e lá vai de repente.

Quem este epitalâmio, amor, cantar se atreve?
Como o vento demora e arrasta a asa fremente!
Como é alegre a luz mesmo do sol ao poente!
Como a noite aparece alta, estrelada, leve!...

Depois que minha boca encontrou tua boca,
Depois que eu fiquei louco, e tu ficaste louca,
Os grupos de ilusões, mandemo-los embora....

Pede coisa melhor ao universo; — e ei-lo mudo:
Olha: este último beijo é tudo, é tudo, é tudo!...
Qualquer deus não tem mais, não tem mais outra aurora!

 

ARIANA SOBRE A PANTERA

Vejo-a de um ponto, e vai numa brilhante esfera,
Como num plaustro de ouro imperatriz romana;
E doutro, reclinada, augusta e soberana,
Voa no dorso nu de terrível pantera.

Dizem que um fresco achado em Pompeia assim era:
Nereida conduzida ao dorso de uma fera;
De Dannecker também a marmórea Ariana
De um monstro faz o seu palanquim de sultana.

És sempre a mesma filha amada do meu sonho,
Ou vás no monstro, que é o olvido, a que me votas,
Ou na estrela do amor, por céus em que te ponho.

Mas eu sou o coral perdido em fundas grotas,
E enche o abismo em que vivo, imenso, atro, medonho,
O marulho de um mar de lágrimas ignotas...

 

IDÍLIO À MESA

Lembras-te? O idílio? Escrevo ao pé de ti, à mesa.
Falas: suspendo a pena, e respondo-te. — Jura?
Tornas. — Ergo a cabeça,  olho, e rio. — A ventura...
Interrompo-te: Está entre nós. — Tem certeza?

Calo-me. Enquanto a renda anda a cantar na alvura
Da luz: há drama; há cena: a sua mão acesa
De estranhos sóis corusca, e agarrando (surpresa!)
Prende o luar que há no linho ao charão da costura.

Pausa. Abrupto: — Ao entrar escrevias: eu vejo
O papel, olha... — Estava há muito tempo escrito.
Leio o fim de uma linha: O céu tenho em teu beijo...

Isto é meu. Mas por que choras?... Estranho mito!...
Deuses, para apanhar-lhe as pérolas, desejo,
Quero, dai-me, trazei-me o escrínio do infinito...

 

NUDA PUELLA

Soltas de leve as roupas, uma e uma
Caem-lhe: assim a camélia se desfolha;
E quando na água o belo corpo molha,
A água soluça, e o enleia, e geme, e espuma.

Logo que ela no banho, que perfuma,
Como ao luar um cacto, desabrolha,
Envolve-a o céu radiante, e a luz em suma
Põe-lhe o véu de ouro em cima, e a afaga, e a olha.

Ao sair, molemente em ondas frouxas
À nuca, à espádua, às nádegas, às coxas
Vão rolando os cabelos abundantes:

Cobrem-lhe um pouco o rosto, o seio, o flanco...
E ei-la, bem como à sombra um lírio branco,
No orgulho astral das deusas deslumbrantes!...

 

APRÈS LE BALLET

Vi. — Um deslumbramento, que irradia,
Fulgura, luz, cintila, arde, flameja,
Ora a cachoeira de ouro fugidia,
Ora a iriante agulha de uma igreja;

Ora um salão luxuoso, em que dardeja
A orquestra doida, a triunfante orgia
Dos sons, enquanto voa, ala-se, adeja
A turba astral, que a dança enrola e ebria.

E antes quisera uma palavra tua,
Um riso, um gesto, ou num silêncio apenas
Ver-te a andar pela alcova, a espádua nua,

Aos beijos só das lúridas melenas,
E eu a olhar como haver o sol e a lua
Para encher deles tuas mãos pequenas.

 

NA ALCOVA

Na alcova pequenina e carinhosa
Cabia um leito; o leito era gentil;
E eu falava com ela, — a descuidosa!
Em nada, o que sei eu? e em coisas mil...

Estava deitada, e o rosto de perfil
Enterrava-o na fronha cor de rosa,
Numa espuma abundante e deleitosa
De rendas brancas de um lavor sutil.

Era-lhe o olhar inquieto e voluptuoso,
Guardando-o à fronte uma severa prega,
Como num nicho à argola um cão raivoso,

Que uiva, cai, late, investe, e não sossega:
Porém o lábio trêmulo e queixoso,
Vencida e inerme, ao meu desejo a entrega...

 

PÓLEN DE UM BEIJO

Não; eu não sei se lhe furtei um beijo,
Ou se ela a boca me entregou, enquanto
Vacilava entre a dúvida e o desejo.

Vi-lhe nos olhos constelar-se o pranto,
Toldar-lhe o rosto a palidez do pejo,
Torcer-lhe o corpo um lânguido quebranto,

E, como Ofélia à margem da corrente,
Cantar, chorar, sorrir, sem voz, sem cor;
Sofre, senhora? — eu disse — então que sente?
E ela me respondeu: — Estranha dor,

Pela qual o maldigo eternamente,
Porque de um beijo rápido e traidor,
Sinto que em mim gerou-se de repente
Um monstro grande, como o céu e o amor...

 

MITO

Sejas quem fores, doce criatura,
Nume casto, a quem sigo em azul profundo
Como um diamante que encontrei no mundo,
E que meu canto em céu triunfal pendura,

Taça em que bebo líquida a ventura,
De ti me vem à luz, de que me inundo,
Mar virgem, que de longe olho e circundo,
Sem lhe tocar na vaga imberbe e pura:

Deste-me, para ir ao imo oceano, o alento,
Pérolas mil colhendo ao pensamento,
Para delas encher-te as mãos ideais.

Ficarão, sabes, nus todos os mares,
Se um só desses teus límpidos olhares
Disser: — São poucas, vê, quero inda mais...

 

ALMA VIÚVA

És uma alma viúva e perturbada:
Foi-te a paixão um vento de passagem,
Que, indo, lançou do céu na tua imagem
Luxos da noite e joias da alvorada.

A flor de amor, macia e perfumada,
Não foi de oásis, foi de uma miragem;
Anda por ti, como um rumor de aragem
A um rosal, que deu rosas, pendurada.

Teu negro olhar... o teu olhar esconde
Lasciva flauta de dois tubos, onde
Pã tocara, cantando a selva em coro:

Dentro, o desejo, como instável onda,
Dorme fremindo, quando alguém o sonda,
Como um leão ao sol nas garras de ouro.

 

CONTRARIEDADE

Pois sai do banho agora? Então vim cedo.
Crê bem inopinada esta visita!...
Encontrá-la com menos uma fita,
Na rosa de ontem ler-lhe algum segredo...

Julga vossa excelência infame e tredo...
Mas... vê?... nesse abandono é mais bonita:
Deu-lhe um toque de deusa que tem medo;
E animou-me o terror com que me fita.

Por que de longe aquele espelho sonda,
E cora, e empalidece, e enfim se enleia,
Buscando uma asa, um raio, em que se esconda?

Como se acaso alguém achasse feia
A pérola arrancada, há pouco, à onda,
Inda molhada, inda atirada à areia!...

 

BANHO AO LUAR

Foi uma noite à límpida lagoa,
Que para recebê-la se enfeitara:
Não é que o Olimpo inda hoje se esboroa,
E dele cai um deus, que lá ficara?

E ao saber que ela iria ao banho, voa,
E forra o lago, e acende-o, como uma ara;
Azuis lá dentro, e os astros arranjara,
E clarões moles, que por selvas coa.

Ela nas margens deixa a roupa: nua,
Como quem entra numa festa lauta,
Lasciva, entre o tinir dos sóis, flutua,

Com um e outro correndo inerme e incauta;
Cai-lhe aos pés Pã, lacera-a a unha da lua,
E há uns ais pelo céu de sons de flauta...

 

A VÊNUS MISTERIOSA

Onde se perde aquela gente toda?
Agarrados às suas longas tranças
Andam velhos, arrastam-se crianças,
E a mocidade rola ebriada e doida.

Do céu descem-lhe pássaros em boda,
Cantam, metendo-a em luxuriantes danças:
E mudas, baixas, tímidas e mansas
O chão as feras lambem-lhe de roda.

Não há carne que em nós não chore e grite
Por seu corpo, onde estão sempre em festejo
Bocas de auroras, rubras de apetite.

Vênus mais Vênus, sem mostrar mais pejo,
Dá-nos a fome, acende-a, e não permite
Pôr no pó, que ergue aos pés, fugindo, um beijo!...

 

O ETERNO ENGANO

Quantas vezes passar fremindo apanho
De um ser, que não se vê, a voz ardente,
Como o vento carrega uma semente,
Que há de florir bem cedo, achando amanho:
Ouve-a também teu coração contente;
Corre em teu sangue um murmúrio estranho;
Metes teu corpo em luz do céu num banho;
Tua alma a sombra dela ao perto sente

Envolver-te num beijo. — A flor que cheira,
Pelo perfume é que se denuncia;
Tu colhes, sem mais ver, logo a primeira;

Era a primeira que no vale abria;
A mais branca, a melhor guarda-a a balseira,
Lírio igual a ti mesma, e igual ao dia...

 

TO WISH

Minha tristeza é como a noite funda
Lançada sobre os astros turbulentos,
Com que o céu todo se enche, alastra, inunda
Ao murmúrio lúbrico dos ventos,

Como sobre esperança moribunda,
O lençol, que se atira aos lazarentos,
Como em muros de velhos monumentos
Do tempo o musgo e a sombra vagabunda.

E essa dor vaga, amplíssima, infinita,
Dentro de mim, fora de mim se agita,
Como um mar sobre trevas recostado.

Que sol erguido pelo espaço infindo
Dera-me a luz... a luz de um rosto lindo...
Melhor do que isso, a luz de um rosto amado?...

 

LATONA

A mãe tem medo: ouve-se distante
O perlar argentino da voz sua;
E olho da sala vagamente a rua,
Enquanto a sinto longe alegre e errante.

Manda-me os filhos um a um adiante:
Depois vem ela: voa? anda? flutua?
Não sei. — Vem bela, pálida, radiante,
Como depois que a noite se acentua,

E o ouro o céu vermicula em vasta zona,
Que o azul em tons mais lânguidos desmaia...
E no meio da luz, que ri, Latona

Frisa o monte, inflamando o mar e a praia...
Assim vem ela, assim vem a Madona,
Bem como a luz entre as estrelas raia...

 
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PELA TARDE
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...quoedam flere voluptas...

OVÍDIO

Num assento de mármore, que doura
O tempo, e o sol, que vai passando, olhá-la
É ver a tarde triste e cismadora
Diante de um verde, que flutua e a embala.

Velho raio de luz desce a animá-la:
É a brancura numa sombra loura,
Como num quadro, cujo fundo fora
Pensado adrede por quem quer pintá-la.

Arfa o silêncio no seu rosto lindo,
Enquanto os olhos seus pairam pregados
No azul, mais forte sempre, o céu tingindo.

E ao barulho dos leques espalmados,
Vê, sem ver, os pavões, que vão subindo
Dois a dois, beira a beira dos telhados...

 

O MADRIGAL DAS ROSAS

Quando em grupo, enlaçada, e de joelhos
A chusma triunfal das rosas toma
Ares de quem à luz quer dar conselhos,
Num barulho sem fim de cor e aroma

Salta sobre os minúsculos artelhos,
E com a fronte a arder da acesa coma,
Cobrindo rostos bons, gentis, vermelhos,
Dos varandins pela esmeralda assoma:

Dizem todas ao sol com dor, com pejo,
Num madrigal, que o amor delas resume,
Que ele lhes leva a vida e o olor num beijo;

Meio a rir, meio em iras de ciúme,
Responde o sol, golpeado de um desejo:
— Dou-lhes o beijo, e negam-me o perfume?...

 

NO LEITO

Como estátua de mármore, na cama
Feita de linho, e sobre o nevoeiro
De rendas, em que rola o travesseiro,
Que luar doce o corpo teu derrama.

Azula-o brandamente etérea chama,
Molha-o a luz do teu olhar fagueiro;
E o sol, nos teus dois sóis prisioneiro,
Embalde ir para o céu forceja e clama.

Deixa-o ir. — Fica tu serena e casta
No calor desta alcova pequenina,
Que a imensa curva azul talvez mais vasta.

Deixa-me após na luz que me fascina,
Deste céu em que estás, e que me basta,
Cair morto aos teus pés, mulher divina.

 

UMA PRINCESA ANTIGA

Tem a grandeza antiga e peregrina
Das mulheres da Bíblia, e da Odisseia:
Anda, fala, aparece... e se imagina
Ou Palas ou Judite ou Diana ou Réa.

Mas quando ao campo os passos seus destina,
Sua estatura avulta: — então é Déa:
Jove, para a espiar da azul cortina,
Deixa os deuses no Olimpo em assembleia.

Juno descora... E ela no cercado,
Numa das mãos erguendo os seus vestidos,
Com outra lança às aves pão cortado,

E vê longe, entre os capins crescidos,
O velho boi de Homero, um boi malhado,
De passo tardo e chifres retorcidos.

 

OUVINDO-A

Tu movendo a cabeça, a boca, o braço,
Como a vidente de um antigo rito,
Dizes que mundos luminosos faço...
E então nos olhos teus meus olhos fito.

Do pasmo, com que em ti me prendo e enlaço,
Zombas com gesto irônico, esquisito,
E sinto que por ti me foge o espaço,
E rolam sóis, e cava-se o infinito.

E enquanto arranjas essa melopeia,
Enfiando uma ideia noutra ideia,
Enquanto esses castelos de ouro arrumas,

Eu vou boiando em tua voz sonora,
Como nau, pano ao vento, azuis em fora,
Entre as flores de prata das espumas.

 

SICUT SERPENS

Tens da virgem cristã a graça e o pejo,
Que de um certo desgarre não te exime;
E uma tristeza de mulher sublime,
Junto à lascívia dum brutal desejo.

És bela... e pura, creio-te, se vejo
Teu rosto aonde a palidez se imprime;
E o teu corpo, que dobra, como um vime,
Que dobra mesmo ao hálito de um beijo...

És pura, se te vejo de repente,
Se não me vem de súbito a lembrança
Da luz dos olhos teus molhada e quente,

Que como serpe, sai do ninho, e avança,
E em roscas de ouro luminoso — a gente
Enrola no teu corpo de criança.

 

NATUREZA INTERROGADA

Rosas, jasmins, bons dias; açucenas,
Festas e sóis; rir, minhas feiticeiras!
Rolai, brincai, voejai... mas vede... asneiras
Em cima delas, não, gentis falenas.

Alegres todas, rancho de pequenas!...
Margaridas, corimbos das balseiras,
Grotais do bosque, relva das clareiras,
Luz perfumada das manhãs serenas,

Sombra doce do trêmulo arvoredo,
Rio a cantar às costas do fraguedo,
Veiga e céu, ninhos, pássaros, rosais...

Rosais, pássaros, ninhos, céus e veiga,
Sede-me bons, falai: quando ela chega,
Que faz ela? que diz?... que diz? que faz?

 

PERDÃO AOS DEUSES

Castas brancuras virginais que cria
A terra, e que a mulher, o lírio e a rosa
Têm em si, são a sombra gloriosa
Do clarão que é teu peplo, e em ti radia...

Se a luz coalhasse, como tu seria
Quente, rija, brilhante e cetinosa:
Se de um bloco de luz branca e cheirosa
Deus te não fez... então não te fazia.

Perdoo a esse, e aos mais, o esquecimento
De terem feito um céu sem pensamento...
Se algum respeito mesmo inda revelo

É que o último golpe de martelo,
Que tinha de acabar o firmamento,
Pôde só acabar teu rosto belo.

 

AMAZONA

Oh! Era uma amazona verdadeira,
Quando montava o seu gentil cavalo:
Vinha-lhe em luz ao rosto o fundo abalo,
Que ia beber na rápida carreira!

Chapéu preto emplumado; a cabeleira
Lá dentro, como um sol dentro de um valo:
Um chicotinho só para guiá-lo...
Antes raio de luz na mão faceira.

Buscava ao longe as veigas mais secretas:
Acordava ao galope a gruta rouca,
Olhavam-na as estrelas inquietas...

E ela voava assim como uma louca,
Dentro dos olhos carregando as setas,
Levando o arco atravessado à boca.

 

UM CINZELADOR

Há, gentil criatura, um poeta que cinzela
A frase como um velho ourives florentino,
Que torce o ouro, e mistura a prata, e que martela
De um golpe, o vaso iriante, adamascado e fino.

Eu queria-lhe o gênio; amara-lhe o destino;
Lavrara com carícia a estrofe, e punha nela
Asas, sóis, muito aroma, o alarido de um hino,
E o azul... todo esse azul que o infinito apainela.

Para o rico ideal tenho a matéria-prima:
Obedece-me a luz, domestiquei a rima,
Guardo a música presa aos metros rugidores.

Neste trabalho a mão pode bem ser que trema...
Mas se tu queres, se desejas um diadema,
Vais ter em mim já um desses cinzeladores.

 

GRUPO
(A Manuel de Mello)

Figura graciosa e encantadora
De uma criança ao caulim talhada,
Vedes nos braços de gentil senhora
Ali no banco do jardim sentada.

Como a cabeça é grande comparada
Com todo o corpo!... e que cabelo a doura!
Rasga-lhe a fronte cristalina estrada,
Onde brinca em nudez a manhã loura.

Na atitude, da mãe e na do filho,
Desce do sol, que vai morrendo, um brilho,
Que enche de um riso tímido o vergel.

Parece o grupo esplêndido e tranquilo
Feito de uma das Virgens de Murillo,
Tendo ao colo um Jesus de Rafael.

 

OFÉLIA

É duma palidez que deslumbra e fascina:
Tem nos olhos clarões da chama que arde, enquanto
Rui, no ocidente aceso, a última Alhambra em ruína:
Se canta, os rouxinóis calam-se ao ouvir seu canto.

Sai do centro de um lírio; anda à roda, à surdina,
De olor suave embalando-a; arrasta, impondo espanto,
Trapos de luz nos pés, restos de sóis no pranto;
E o céu é um vasto nimbo azul, que ela ilumina.

Enlouqueceu? Que ser estranho a leva e a enleia?
Não é mais leve na água e mais bela a sereia.
Quem é? Quem vai como ela em tão longo noivado?

Ofélia, és tu, ideal do amor, que eternamente,
Solto o auroral cabelo, e às ervas enrolado,
Vemos fugir, cantando, a fio da corrente.

 

O MELHOR CANTINHO

Boiava como em ondas de perfume,
Movendo os braços nus e os pés pequenos;
E a voz sutil de pérfidos venenos
Vinha do quadro, que envolvia o nume.

No grande leito a alcova se resume,
E era a concha em que andava aquela Vênus:
As sedas por ali cantavam trenos
Tão meigos como o arrulho de um queixume.

O trêmulo fulgir do branco linho,
A renda que alfaiava o travesseiro,
O cortinado um pouco em desalinho;

A cama, o espelho amplíssimo fronteiro...
E ela dentro, tornava aquele ninho
O cantinho melhor do mundo inteiro...

 

VÊNUS E MADONA

Tens no teu corpo o azul, que esta hora explica,
Na brancura, que o artista ama e imagina,
Quando aos liriais quinze anos da menina
Na mulher, que ela encerra, os sóis salpica.

És a Virgem que Sanzio santifica,
— Ao colo o filho, — esplêndida e divina,
Cheia de graça, de modéstia rica,
Mas cópia fiel da amante, a Fornarina.

A luz, que a estrela mescla à noite escura
É como a luz da humana felicidade;
É na sombra que canta a luz mais pura.

E tu tens o que a vida ideal procura,
Tens da Madona a eterna castidade,
Tens da Vênus a eterna formosura.

 

ENTRE A CALMA E A TEMPESTADE

Por que me destes olhos, para vê-la,
E me destes ouvidos, para ouvi-la,
Deuses, se junto a mim não posso tê-la,
Se não posso de longe enfim segui-la?

Sem ela a vida fora-me tranquila,
Mas em meu céu lançada aquela estrela,
Que tão meiga e suave em mim cintila,
Não pude mais, não quis de então perdê-la.

Acho melhor a inquietação que sinto
Dentro de mim, que meu sossego extinto:
Faz-me bem, há delícia inda em tal dor;

Sofrer por ela a todo instante é gozo;
Prefiro a luta a intérmino repouso,
Prefiro à eterna paz o eterno amor.

 
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A VIRGEM
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La verginella è simile alla rosa.

ARIOSTO

É toda virgem lírio branco, ou rosa,
Que entre espinhos nasceu, e anda guardada,
Que é vestida de fulva luz radiosa,
Da terra, e céu, e sol enamorada;

E um nicho de perfume habita, e agrada
Como flor; mas abelha sequiosa
Teima com o inseto e a doida passarada
A ver quem mimos seus primeiro goza.

Se conserva inocente e intacto o seio,
É sempre bela: é bela enquanto é pura;
Mas se alguém arrancá-la ao encanto veio,

Desmaia logo a sua formosura,
E o amor, que tanto a ebriou, e lhe era enleio,
O amor noutros vergéis amor procura.

 

CARLOTA

Desatas o corpete, e abres o seio,
Como a cecém a virginal corola,
Depois o teu olhar, cantando, rola,
Dando as voltas sublimes de um gorjeio,

Num ritornello, num suave enleio,
Que em doidas festas teu filhinho enrola,
E cais num largo e fundo devaneio,
Que te unindo a ele só, do mais te isola.

Como ao vento, que passa, a luz de um círio,
Vendo o teu rosto, que um luar desbota,
Teus peitos brancos, como o cacto ou o lírio,

Treme minha alma de emoção ignota,
E então compreendo Werther em delírio
Ante a imagem serena de Carlota... 



O ANJO DA FÉ

Primeiro hão de correr
Pera traz rios e mar,
Nas coisas discórdia haver,
Que a mim me falecer
Desejo de inda a gozar.

Bernardim Ribeiro – Églogas

Sonho de amor, estrela peregrina
Por céus onde se azula a primavera,
Rosa ideal de um éden, que imagina
Quem se refoge na mais alta esfera,

Sombra de luz que me segreda: Espera.
Mão que atravessa abismos, e se inclina,
Trazendo a transbordar cheia a cratera
De uma bebida cálida e divina;

Cimos que busco, cimos, que não vejo,
Eu para vós adejo... adejo... adejo...
Sois tão longe, eu bem sei; tão longe! embora:

O Anjo da Fé murmura-me: Caminha...
E eu digo: — Vem, ó tu, que hás de ser minha:
Por que tardas assim? — Que te demora?...

 

LA POVERINA

Vi num quadro, talvez cópia de Tintoretto,
Uma gentil fanciulla, errante e poverina,
Que eu guardara na glória em fogo de um soneto,
Como num áureo escrínio a pérola mais fina.

Como o fundo, em que estava, era estranha ruína;
Magra, entretanto forte, um mármore perfeito,
E acesa de clarões, como um diamante preto,
Tempestua-lhe à espádua a grenha leonina.

A dor fulva do luar toda a pintura exala.
Nero no Coliseu, nas Termas Caracala,
Crê-se que inda lá dentro em longa orgia estão.

Roma arranjando a ossada às púrpuras da lua,
Olha, sem levantar-se, a bela deusa nua,
E o templo e o altar da deusa em pedras pelo chão...

 

A GOTA D’ÁGUA

Não há pedra que a água não consuma;
Sem ferir-se, a água fere a pedra dura;
Quer tempo: e gota e gota, uma após uma,
A beija, a encanta, a enlaça, a envolve, a fura.

Caminha mais: rendilha-se de espuma;
E enquanto existe rocha, e a gota dura,
A água trabalha, até que enfim murmura,
Sem ter, sob os seus pés, mais rocha alguma.

Fez dela um berço, em que anos mil porfia,
Agora ao sol, agora à luz da lua,
Para urdir nesse berço a penedia!...

Hoje, nele espreguiça-se e flutua;
E ri de um fauno astuto e vil, que espia
Náiade ao colo seu dormida e nua...

 

SONHAR!

t’was like a sweet dream...

T. Moore:  Lolla Rookh

Sonho às vezes... levando-a desta fria
Estância a um paço em zonas levantinas,
Num lago, em cujas margens haveria
Cactos, rotins, bambus e casuarinas,

Onde em junco pintado de harmonia
Com o céu, e o verde d’água, e a cor das finas
Porcelanas, que o sol inflama, iria
Ela beirando a fímbria das colinas.

Das grandes aves do Oriente as penas
De ouro e esmeraldas, prasios e turquezas
Dar-lhe-iam sombra ao lácteo rosto apenas.

E em honra à flor mais branca das devesas,
Lhe entornaria a noite nas melenas
O escrínio azul das pérolas acesas.

 

NUVEM

Criança de olhar límpido e tranquilo,
Esculturada, como lavro as odes,
Quando de espaço e olímpico as burilo,
Cheias de canto e luz, como os pagodes:

Tu só entendes, tu somente podes,
Lendo, ouvir o que em si tem de sigilo:
E o ouro delas, — e é só o escrínio abri-lo,
Como aos astros nos céus faz Deus, sacodes.

Ouves ondear na estrofe o teu perfume;
Vês o universo, que uma voz resume;
Há loureiros nuns sons, há sóis, e mais...

E não têm conta as pérolas que arranca
Teu dedo à espuma, que as envolve, ó branca...
Branca nuvem de uns brancos ideais!...

 

MULHER TRISTE

Quando ela passa como um sol ou luz,
Rasgando o fundo azul ao firmamento,
Sinto em torno de mim o irradiamento
De alguma coisa leve que flutua...

Um leve estremecer de carne nua...
Um ruído de vida sonolento...
Um barulho de rosas... e o contento
Dos lírios brancos pela espádua sua.

E o ambiente de aroma em que ela nada!?
E a nesga azul na pálpebra pousada
A espremer-lhe no olhar clarões de aurora!?

Mas tudo, tudo, imerso em funda mágoa...
Parece, como a estrela dentro da água,
Que é dentro de uma lágrima que mora...

 

A MÃE

Tinha uma graça infinda... uma estranheza
Na cor do rosto fina e desmaiada;
Um toque de ouro na imortal beleza...
E a noite, enfim, dos olhos estrelada!

Uma gorda criança pendurada
À mama chupa em langue morbideza,
E, entre a opala e o rubor de aurora acesa,
Sai-lhe o bico da boca entrecerrada.

Uma das mãos já túmida e vermelha
Suspende e abraça o filho; a outra semelha
Na brancura, que um leve azul tempera,

Obra de arte, que um chim pintasse em louça,
Enquanto dentro, — em cada olhar da moça, —
Nada em luz, canta e ri uma Quimera.

 

FAREWELL

É noite. — Pela curva azul celeste
Fervem astros no enorme firmamento:
Coração, alma, e sangue, e pensamento
O pélago do céu profundo investe.

Ó sóis, quem essas clâmides vos veste?
Ó nebulosas, quem vos roja ao vento?
Ó abismo pesado e sonolento,
Quem te abriu? ou tu mesmo te fizeste?...

Ilhas de ouro, serenas, luzidias,
Que alvo procura o vosso eterno adejo?
Para quem são as vossas harmonias?

Sois belas... sois... Mas até logo... Vejo
Que falta às vossas músicas sombrias
O murmúrio do seu casto beijo.

 

DE MENINA A MOÇA

Que é isso então? Que incógnita tristeza
A um estranho prazer se lhe mistura?
Revolve em torno, dentro em si procura
De um tal enigma ter qualquer certeza.

Tem-na em seus fios novo encanto presa;
Doce, como a serpente da escritura,
Embala-a o amor na voz da formosura,
Luxuosa chega e o afirma a natureza.

Andava alegre e andava atormentada,
Vendo num largo céu azul, que abria,
A alva, que aí vem, e deuses de emboscada...

Calhandra perto lhe apontava o dia,
E já manhã, mas inda em névoa enleada,
Tudo nela cantava e tudo ria...

 

IGNOTA DEA (PELO AZUL)

Se houver na terra quem entenda este meu canto,
Um anjo, um Eloá, espírito de luz,
Que escadas de cetim faz de escadas de pranto,
E muda em raios de ouro os cravos duma cruz;

E acolhe um aleijão da sorte sem espanto,
Sem asco, sem terror, com seus dois braços nus,
Que estenda sobre mim as dobras do seu manto,
Que me leve consigo onde o céu o conduz;

Consigo se quiser levar-me ao paraíso,
Basta só que me acolha à sombra do seu riso
E abra, e arqueie, e me estenda um cantinho da mão:

E fazendo baixar até mim sua imagem,
Murmure entre aflição e esperança: — Coragem,
Sempre algum coração quer outro coração...

 

ÀS PORTAS DE ALHAMBRA

A tristeza, que os olhos teus inunda,
Sobe-te da alma, à espessa treva presa:
E tudo que ela encerra, e nela abunda,
Se esconde nessa nuvem de tristeza.

Vejo-te assim, fantástica princesa,
Mendiga à noite, pálida, errabunda,
Como a miséria lúgubre e profunda,
Às portas duma Alhambra em festa acesa.

Nasceste gêmea com a Aurora, e és filha
Da luz; e a luz do céu em ti rebrilha:
Fez-te rainha a formosura, ó flor.

Porém teu pobre coração vazio
Faz-te morrer de fome, e sede, e frio
Às portas de ouro dessa Alhambra, o amor.

 

CADÁVER DE VIRGEM

Estava no caixão como num leito,
Palidamente fria e adormecida;
As mãos cruzadas sobre o casto peito,
E em cada olhar sem luz um sol sem vida.

Pés atados com fita em nó perfeito,
De roupas alvas de cetim vestida,
O torso duro, rígido, direito,
A face calma, lânguida, abatida...

O diadema das virgens sobre a testa,
Níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada,
Mas como noiva que cansou da festa...

Por seis cavalos brancos arrancada,
Onde vais tu dormir a longa sesta
Na mole cama em que te vi deitada?

 

A ETERNA VÊNUS

Quando, nos ricos panteões, procuras
Mármores vivos de mulher, ao vê-los,
Não sentes inda o susto de perdê-los,
Oh! mágoa! nas catástrofes futuras?

O que Atenas legou de ideais modelos,
Tipo de raça, em grandes formosuras,
Quando nos dava as suas criaturas,
Envoltas só no véu dos seus cabelos!...

O gênio grego límpido e quieto,
Como o céu e o seu mar, guarda no menos
Trabalhado pedaço o mais completo

Que a arte tem em pentélicos serenos;
E a flor nos deu das filhas de Japeto,
Perfeita, eterna, e imaculada em Vênus...

 

TRAQUINAS

Com vestido de branca musselina,
A farta trança negra derreada,
Sem uma joia, ou brinco, ou flor, sem nada,
Era de uma riqueza peregrina.

Tinha a idade da aurora essa menina,
Magra e forte, serena e descuidada;
Cada pé numa concha nacarada...
Creras, ao vê-la débil e franzina.

Na fronte riam desmaiadas cores;
Dava de um anjo a tímida lembrança...
Das asas dela ouviam-se rumores.

Como uma borboleta que não cansa,
Tornava a casa num vergel de flores...
Lembrava ainda a virginal criança.

 

SUNT ANIMAE RERUM

Estrelas, que loucura e garridice
As vossas danças esta noite têm?!...
E quem, há muito tempo, se não risse,
Vendo-vos rir, deitara a rir também.

Arroios desgrenhados de doidice,
Por entre seixos, que buscais além?
Beijam-se os velhos troncos!... E há quem visse
Fremindo um lírio ao pé de uma cecém!...

A noite é um ninho; o amor uma doçura;
E quando a brisa pelo azul murmura,
Soluça o bosque... e há beijos pelo vale!...

Deuses e deusas turbulentamente
Passam a rir no laranjal florente...
Ou chora... ouvis?... ou chora o laranjal?...

 

QUE VOS DARIA?...

Se tiverdes, um dia, um capricho, Senhora,
Um capricho, um delírio, uma vontade, enfim,
Não exijais o carro azul, que monta a aurora,
Nem da estrela da tarde o plaustro de marfim.

Nem o mar, que murmura e aí vai por mar em fora,
Nem o céu doutros céus, elo de céus sem fim;
Que se isto fosse meu, já vosso há muito fora,
Fora vosso o que é grande e anda em torno de mim...

Mostrasse num só gesto ingênuo um só desejo...
O universo, que vejo, e os outros, que não vejo,
Sofreriam por vós vosso último desdém.

Que faríeis dos sóis, grãos vis de areias de ouro?
Mulher, pede-me um beijo e verás o tesouro
Que um beijo encerra e o amor que um coração contém.

 

QUAND MÊME

Minha alma anda a voar pelo ambiente
Com o adejo sem fim da mariposa,
Que a flor do paraíso em torno sente,
Mas roubar um aroma à flor não ousa.

Ela quer... quer, anseia, e não repousa,
Sem saber uma vez, uma somente,
Que tu entendes seu amor ardente,
E que dele te orgulhas qualquer coisa.

Podem outros, que não te entendem tanto,
Julgar que não mereces o meu canto,
Que é demais ver-te sol doirando azuis,

Que é meu amor o equívoco de uma hora:
Que importa? Eu vejo em ti meu céu, embora
Creiam-te o lume errante dos pauis...

 

ILUMINAÇÃO INTERIOR

Fitas de ouro bordando o morro e a encosta!...
Veio argênteo que a cinge, e ondula e bolha!...
Ígneas rosas que o céu sobre ele esfolha!...
E ante isso a alcova, a um claro-escuro exposta.

Tens medo? O amor deste silêncio gosta...
Que suor frio a tua fronte molha!...
Encosta a boca à minha boca, encosta...
Oh! que o beijo murmure apenas, olha...

Baixo, carícias; ouvem-nos fazê-las:
Põe o dedo de rosa ao lábio, aurora;
Deuses e sóis, passai, passai, sem vê-las.

Luz, fica à porta, espera-nos lá fora:
Rolai ao fundo de minha alma, estrelas,
Onde ela está, onde a festejo agora.

 

ESCRÍNIO

Eu imagino pérolas perfeitas,
Que inda dormem nos mares do Oriente,
E diamantes de esplêndidas facetas
A rir nos seios do Brasil ardente.

Veludo cróceo, deslumbrante, quente,
Cheio da alma odorosa das violetas;
Ouro, piropo, e as rútilas palhetas
De artista raro, grande, onipotente...

Cinzel de Fídias, tinta de Murillo
Para uma joia lúcida e sonora,
Para um escrínio de divino estilo,

Onde a guardasse, onde, entre pasmo e assombro,
Ninguém a visse um dia pôr de fora
A asa que eu lhe conheço em cada ombro.

 

VIA SMARRITA

Che la diritta via era smarrita.

Dante: Inferno

Ela vendo-se só comigo, teve medo.
Estávamos num bosque à noite: o escuro intenso,
Apesar do luar belíssimo, o arvoredo
Lançava em torno, — um muro em ruínas suspenso.

Na relva aberta, aos pés, havia o olho de um tredo,
Um carreiro assassino, a iludir-nos propenso:
Atrás da serra o sol caía então mais cedo;
Ao meu lado tremia a folha, ou ela, eu penso.

Vinham três ébrios dando urros, enchendo o espaço
De gritos; os perfis de quem foge à procela,
Que ruma; uma mulher bufando de cansaço.

O vento uivando: — ao longe, ao menos à janela
Da casa, a luz a rir?  não ria: e ela ao meu braço
A ter terror de mim!... e eu a ter terror dela...

 

O MAL DA VIDA

Amor, pois, é a esplêndida loucura,
E a miséria de um sol que nos invade?
Caiu alguém aos pés da formosura
Que lhe não deixe aos pés razão, vontade?

Este delírio vem da eternidade,
Vem de mais longe, eu sei: — quem o procura
Acha-o mais velho do que Deus: quem há de
Fugir do mal da vida porventura?

E o amor é o mal que acaba em paraíso;
E para dar-nos céus num só lampejo
Basta-lhe um pouco, um nada é-lhe preciso:

De sonhos de ouro e luz calça o desejo:
E então, de dia, em rosa abre o seu riso,
E em ampla estrela, à noite, abre o seu beijo...

 

TRIUNFO

Deixo as torcidas, hórridas carrancas
Da inveja e do ódio, — um vesgo, outra impotente, —
E encontro ao ver-te (ó deuses bons!) em frente
Abertos, como largas asas brancas,

Teu santo olhar, o teu sorrir clemente:
À sombra deles que alegria franca!
E à mão, como ave tímida e fremente,
Meu pobre coração à dor arrancas.

Bebo o céu com seus sóis em ti num beijo;
Eu acho em ti o que amo e o que desejo;
Tu achas tudo quanto em mim esperas...

E em minha audácia, em meu orgulho dantes,
Após meus grandes sonhos triunfantes,
Marcho ao hino das rútilas quimeras.

 

A INVESTIDURA

Quando o grupo invencível dos gigantes,
Ao som da lira harmônica tangida
Movendo os rubros, triunfais descantes,
Parou na minha incógnita guarida,

E a púrpura de estrelas guarnecida,
E laços de ouro, e rendas deslumbrantes,
Me fez vestir... tremi e a minha vida,
Não maior, não mais calma a vi, que dantes.

Então roncaram por meus pés as setas;
E ouvindo urrar aos hinos de vitória
A plebe vil das ambições inquietas,

Eu sopesava as páginas da história,
Rijas, de bronze, e lendo a vida aos poetas,
Ia-os seguindo à apoteose e à glória.

 

IN FIDE

O lindo barco da gentil rainha,
De estrelas a granel colmado e ufano,
As sonorosas vagas do oceano
Com proa de ouro retalhando vinha,

E, como um lírio, à flor d’água marinha
Abria as vastas pétalas de pano:
De Nereidas azuis um grupo insano
Em torno dele canta e redemoinha.

Como em tela de artista, a recortada
Montanha, envolta em luz do sol mais puro,
Enchia o fundo, túmida, aprumada.

E eu a esperava em terra... e tão seguro!...
Ai! e ainda te espero (e em vão!) amada
Rainha, ó Glória, ó Ânsia do futuro...

 

EM PLENO AZUL

Voa, meu galeão fantástico; galeras
Companheiras, abri as deslumbrantes velas;
Rumo ao país azul e ideal das quimeras,
Temporais, vede-os ir; vede-os ir, ó procelas.

Praias de jalde, e de ouro, e nácar tendes belas
Ilhas, que vejo ao longe!... E eu quero-vos deveras;
Aproaremos a uma onde as doidas querelas
Rujam dos Imortais, repartindo as esferas.

Deixo-te, terra, velha eivada de pesares,
Que a invisível bordão já trêmula se arrima;
Alga podre do céu, morta estrela dos ares;

Destroço vão de um mundo, o teu fim se aproxima:
Nutriste vermes só aos seios seculares...
Foge, meu galeão; acima, acima, acima...

 
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GRAVURAS
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PRIMEIRA MISSA NO BRASIL
(A Victor Meirelles)

Céu transparente, azul, profundo, luminoso;
Montanhas longe, encima, à esquerda, empoeiradas
De luz úmida e branca; o oceano majestoso
À direita, em miniatura; as vagas aniladas

Coalham naus de Cabral; mexem-se inda ancoradas;
A praia encurva o colo ardente e gracioso;
Fulge a concha na areia a cintilar; grupadas
As piteiras em flor dão ao quadro um repouso.

Serpeja a liana a rir; a mata se condensa,
Cai no meio da tela: um povo estranho a eriça;
Sobre o altar tosco pau ergue-se em cruz imensa.

Da armada a gente se ajoelha; a luz golfa maciça
Sobre a clareira; e um frade, ao ar, que a selva incensa,
Nas terras do Brasil reza a primeira missa.

 

A CRISÁLIDA
(A Capistrano de Abreu)

Cai das pedras a fonte: iria o chamalote
D’água arrufada ao sol — a joia do seu manto;
E uma mulher, quebrando o belo talhe, entanto
Parece que procura apanhá-lo num pote.

A atitude em que está levanta-lhe o saiote,
E desce-lhe o corpete; é vê-la assim um encanto;
Tem a moleza e o ardor da barra de ouro, enquanto
Coalha na lingoteira o fúlvido lingote.

São amplos os quadris; os dois pequenos peitos
Têm brancuras e azuis, são duros e perfeitos;
Sai do colo o fulgor da porcelana fina.

Crisálida ideal, donde irrompe a Frineia,
Tem a força que doma, a graça que fascina...
E na carne a rugir panteras de alcateia...

 

SANGUÍNEA
(A Alberto de Oliveira)

Longe... vasto horizonte retalhado
De serras cor de um glauco-azul, distantes;
Brumas por cima, como véus flutuantes;
Perto... o fragor das músicas do prado.

O acre, o intenso bálsamo exalado
Da mata, onde andam Faunos, como dantes;
Rochedos ideais, e as espumantes
Águas do rio às cristas pendurado.

Um cheiro bom das coisas, que embriaga;
A luz que sobe, sobe, embebe, alaga
O azul enorme; a gárrula manhã,

Correndo a ouro e pérolas as nuvens...
Ora!... Deus plagiando um quadro a Rubens?!...
Quando isto vir, o que dirá Rembrandt?!

 

GRAVURA MISTERIOSA

Por quê? Não sei: mas tu entras nesta gravura.
Olha. — Um torso auroral de deusa, o oval nitente
Da alva barriga, o incêndio, o alarido, a fartura
Da trança, em que ela esconde o que tem de serpente.

Há na tela, em cada ângulo, o esboço inteligente
De um sileno, os dois pés de cabra, a catadura
Impossível, grotesca e austera, impertinente
E lasciva, obliquando o olhar à formosura.

Mato; anões; grifos maus entre enigmas; orgias
De quimeras floreando uma banalidade;
O infinito a fugir por baixo de arcarias

Finas, atorçalando o vago e a obscuridade...
E eu quantas vezes vi que tu dali saías,
Como um silfo atravessa o aranhol de uma grade!

 

A FONTE QUE EXTASIA
(A Arthur Azevedo)

Por soberbos degraus de mármore luzente
Sobe-se ao chafariz de bronze; e despenhada
Em pérolas sutis e em grãos de ouro a corrente
D’água cai como gaza apenas arrufada.

De um lado a embebe, a doira, a iria o sol cadente,
E doutro a fere a sombra aérea e desmaiada,
Que vem de uns véus de opala, em que anda envolto o ambiente...
Afoga-se em silêncio a abóbada azulada.

Duas pombas irmãs na nítida brancura,
Tendo os pés cor-de-rosa à borda da bacia,
Bebem, rugando o colo: — enquanto a água murmura,

E um amor de metal, que encima o aquário, espia...
Uma linda mulher, que a jarra encher procura,
Deixa que ela transborde e ante o amor se extasia.

 

PAISAGEM NOS ALPES
(A Garcia Redondo)

É noite. — Invade a tela a luz azinhavrada.
Água larga, folheada em mica iriante e aço,
Vem de longe: após lambe astrágalos da arcada,
Que uma ponte romana ergue aos ombros no espaço.

A lua, como uma ave imensa depenada,
Paira sobre a torrente; em monte enterra o braço
Na água, que foge, espuma, urra, ulula entalada,
Enquanto a um tempo a envolve em sombra de espinhaço.

O leito é abrupto, vasto, os ângulos cosidos
De raquítica relva, e o vento, que murmura,
Anda no pinheiral, vê-se aos ramos torcidos.

Sobre a ponte um chalé das rochas se pendura,
E ouve-se um grande cão enchendo o ar de ladridos,
E um lobo a uivar, que surge a meio da espessura.

 

CÃO DA TERRA NOVA

O pai saiu: a mãe sai, e o filhinho deixa
No berço, um anjo rubro em céu do Espanholeto;
E vai serena e forte, e vai sem uma queixa,
Com seu amor, que é de ódio e de ternura feito.

A um Terra-Nova escuro, um cão à casa afeito,
Fia a flor dessa carne, e o ouro dessa madeixa:
Ai! de quem nesse lírio, o seu tesouro, mexa;
Ai! de quem se aproxime, estranho e alheio, ao leito!

E enquanto dorme e ri, e ri e dorme a criança,
Como em torno de um barco o mar as vagas lança,
Cerca-a do seu olhar, e interroga-a... O que quer?...

E o paternal carinho o engrandece e ilumina,
Como auréola ardente em cabeça divina,
Como em virgem, que sonha, um sonho de mulher...

 

UM TIGRE AO LUAR
(A Felix Ferreira)

Cai no bosque o luar... Como o luar é lindo!...
A abóbada do céu tem os leites da opala.
Um cheiro penetrante e doce a mata exala,
Nuns fantásticos véus os ombros encobrindo.

No silêncio, em que jaz, contudo está-se ouvindo
A meiga voz, a voz de amor, com que ela fala;
A sombra, que soluça, a luz num beijo embala...
Desce um vago tremor do firmamento infindo.

Como numa aquarela, escoam-se os caminhos...
Há passos no moital... há barulho nos ninhos...
Há Dríades na relva... há deuses pelo ar...

Um sabiá rompe o canto à beira da floresta,
Enquanto um tigre vem solenemente à festa,
E escuta-o sob o pálio aberto do luar...

 

RUBENS

Um conde italiano, moço e airoso,
Enfim suspende o toque da guitarra;
E inda retalha a esplêndida fanfarra
O ambiente morno, lúbrico, cheiroso.

Um negro esbelto, fino e musculoso,
Vermiculada de ouro argêntea jarra
Sustém na salva; impertinente gozo
Lança ao vestido da duquesa a garra.

Pinta Rubens a eleita: — aí vem, aí passa;
Olha-a, erguido o pincel; passou; — mistura
Nova tinta; compõe: a doma, a enlaça.

Palmas ao mestre; a triunfal pintura
Venceu: de hoje em diante à eterna graça
Junta o poema da cor a formosura.

 

VAN-DYCK
(A Arthur Barreiros)

Tintinam taças dos cristais mais finos
Da Boêmia no mármore da mesa;
Fervem ainda os vinhos purpurinos
Das jarras de ouro; a sala esplende acesa.

Principescos senhores, femininos
Rostos, que fulgem de ideal beleza,
Juntos, e em vários grupos peregrinos,
Conversam: canta entanto uma duquesa.

Enquanto mãos de artista e de fidalgo
Tiram de um cravo a música escolhida,
Brincam sobre o tapete um negro e um galgo.

A sala é um céu, um firmamento a vida...
E entre eles, — grave a pálida figura, —
Van-Dyck estuda uns toques de pintura.

 

ALBERTO DURER

Mas... por que Durer dava a eternidade
Do seu nome imortal, com tanto esmero,
Para salvar do olvido a fealdade,
Como que diz: eu devo, eu posso, eu quero?

Dele se ouvia: — O tempo é meu, quem há de
Erguer o tempo contra mim? — E o Homero,
E o Hesíodo da cor, tremendo e fero,
Enchia o monstruoso de verdade.

E viva horrivelmente a natureza
Se estorcia na tela e na gravura
Do grande artista, a um fogo enorme acesa.

Quem nos explica pois essa loucura,
E a causa dessa intérmina tristeza?
Que mal lhe fez, um dia, a formosura?...

 

OVÍDIO

Com que dor tu deixaste Roma, e em Roma
O coração, que em ti foi tudo, ó poeta!
A glória ia a embalar-te a vida inquieta,
E um belo sol de amor, que a doira, a soma.

Teu plectro a Orfeu os sons mais doces toma;
Tem o teu surto incircunscrita meta;
A inveja, um cão sem asas, jamais doma
A uma águia o voo, a um gênio obra que enceta.

Ao exílio embora o ódio te sagra, o exílio
Dá mais doçura ao hexâmetro latino;
Há todo um campo em flor num teu idílio.

Na dor, que em ti pranteia, alvora um hino;
Fulge a lágrima dele em cílio e cílio;
Cantar, sofrer, ser deus, foi teu destino.

 

DANTE
GRAVURA DE BOTTICELLI
(A Luiz Murat)

Sobe de um vão tonilho ao estrondear de vozes,
Que urram, rangem mordendo a lôbrega floresta:
Na clâmide romana, e sob os louros resta
Parado o mantuano ante as bestas ferozes.

A púrpura, que rola até aos pés, empresta
Uma austera tristeza ao companheiro; atrozes
Gritos golpeando o ar, que a noite em pranto infesta,
Dão-lhes ao rosto a cor das lívidas cloroses.

Pragueja, ulula o horror do desesperado eterno:
Sombras em multidões regougam, rugem... O inferno
Entornou sobre a tela o escopro de um gigante.

Embalde!... A tela, a pedra, o bronze não aguenta
Os sóis negros chispando em meio da tormenta,
Em que andam gênio, amor, e as cóleras de Dante...

 

NÚPCIAS DE ARTAXERXES
(A Valentim Magalhães)

O sândalo, que enerva, o nardo, que embriaga,
Nas caçoulas queimado em fumo se desata,
Que se enrosca em festões na vasta colunata;
A harpa curva estremece à fina mão que a afaga.

Dentre as colunas vê-se o azul, que em luz se alaga,
Tamareiras gentis, nopais de sombra grata:
O alto estrado real de mármore e de prata
Mancha um jorro de sol, como uma enorme chaga.

Artaxerxes de pé ao lado da judia
Tem o prazer da fera, — uma calma sombria. —
Dá tons de sangue a luz à festa nupcial.

Da África e da Ásia a força e o orgulho aos pés avista:
E o seu olhar, que lambe a esplêndida conquista,
Darda em torno a algidez aguda do punhal.

 

UM CRISTO ALEMÃO

Há um Cristo alemão de um cunho peregrino:
Fronte espaçosa sob uma cabeça loura,
Escrínio que o ideal puríssimo entesoura,
Barba bem penteada, e rosto feminino,

Longo cílio, que adoça a luz do olhar divino,
Pele branca, que o sol do Oriente apenas doura,
Uma boca gentil, que para o beijo fora,
Se ela não fora para outro melhor destino.

Nada altera esse gesto eterno de bondade;
Guarda ainda a beleza, a graça, a majestade,
Entre dois homens vis, nu, em sangue, na cruz.

Gosto deste ideal: a dor mais o levanta.
Por seu suplício, por sua obra grande e santa...
Merecia ser Deus o pálido Jesus.

 
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MARINHAS
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A APANHADEIRA DE CONCHAS

Fantástica explosão de ouro e pedrarias!...
Rendilhados Kremlins em chama... O sol declina...
Soprando torto búzio, impa o vento, e na fina
Areia arrasta à dança as nereidas bravias.

Recortam-se num fundo azul as serranias,
E os navios aquém arfam, e os ilumina,
Esculpindo-os no ar, a tarde purpurina,
Na nota escura das ígneas oleografias.

Pobre mulher na praia, acaso, neste instante,
Colhendo conchas, só, — ouvindo a cantilena
Das vagas, com um sorriso agarrado ao semblante,

Como a alga ao seixo, alvar, vil, mesquinha, pequena,
Pelo oceano estendendo a sombra de um gigante,
Dava um toque de vida humana à vasta cena.

 

EFEITOS DE LUA
(Ao paisagista Décio Freire)

Há nas serras, em arco, a forma da moldura
Que fecha em roda a vasta e límpida aquarela:
O claro-escuro é bom; tem perspectiva a tela;
Vibram toques de luz no céu de tal doçura

Que a mesma noite ri e aos astros se mistura;
Dorme-lhe o oceano aos pés, como o leão da novela;
Ao terral, que chegou, a água apenas murmura;
Duas barcas de pesca arfam por cima dela.

Da indolência em que a vaga embala-se e flutua;
Como um corcel do mar, que o dorso de repente
Dardo em chama feriu — salta, avança, recua...

Do alto viso do monte, entre árvores, em frente,
Fisga-lhe as flechas de ouro a caçadora nua,
E ao largo-verde flanco as torce lentamente...

 

GAIVOTAS

Do crespo mar azul brancas gaivotas
Voam — de leite e neve o céu manchando,
E vão abrindo às regiões remotas
As asas, em silêncio, à tarde, e em bando.

Depois se perdem pelo espaço ignotas,
O ninho das estrelas procurando:
Cerras os cílios, com teu dedo notas
Que elas vêm outra vez o azul furando.

Uma na vaga buliçosa dorme,
Uma revoa em cima, outra mais baixo...
E ronca o abismo do oceano enorme...

Cai o sol, como já queimado facho...
Do lado oposto espia a noite informe...
Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho...

 

SURPRESA

Dorme a cidade. A noite à fronte dela assenta
O áureo resplendor de estrelas, com que c’roa
Os mártires também; a brisa sonolenta
Perpassa, e ouve-se quase o cair da garoa.

À pesca. — Enche a maré ruflando: esta hora é boa.
A vaga oscila, vem, cai, soluça, rebenta,
Como um beijo de amor na areia, em doce e lenta
Carícia: a água festeja a alígera canoa.

O pescador então, fincando o remo, lança
O pássaro marinho à vaga azul, que range,
Ferve: canta-lhe após a rir uma esperança.

Mas súbito pegão, que as asas foscas tange,
Nos anéis de uma serpe invisível, que avança,
Vibra-lhe a lua, como ensanguentado alfanje...

 

PINTURA A FRESCO

Como um cisne pousado na lagoa,
Por onde as asas cor de neve estende,
E que, se ao fundo azul do céu não voa,
O fundo azul das mansas águas fende...

Assim a fina, a quérula canoa,
Que lado a lado as duas velas prende,
Talha, como estilete, o mar com a proa,
Que todo em ouro e pérolas se acende.

Sentado ao leme o canoeiro aspira
A acre aragem, que vem como uma lira
Cantar-lhe à marcha doce e preguiçosa.

Fundem morros e céus num arabesco...
E o quadro assim ao sol parece um fresco
Que um Rubens pinta ouvindo um Cimarosa.

 

A CANOA

Ela notava então... (e com que graça
Ela notava com seu lindo dedo!...)
A vaga azul do mar lambendo a medo
Leve canoa, que oscilando passa.

É quase do tamanho de uma taça...
Vai rente e rente à beira do rochedo...
Ai!  se a asa, em que vai, se lhe embaraça,
Morre a ave marinha ali bem cedo!...

Isto dizendo, tristemente ria,
Porque seu casto riso de alegria
Tem de outro riso a eterna viuvez.

Mas os ricos tesouros de Golconda,
Que ela mostrava no sorriso à onda,
Tinham mais brilho e mais valor talvez.

 

COISAS DA TARDE

Era o disco do sol, no poente, um forno
Aberto, a chama calma, e cor-de-rosa:
E a lua, uma camélia branca, adorno
Que tinha a tarde azul na trança ondosa.

Criara o amor o acaso, e a voluptuosa
Hora, e o lugar, e o monte escuso, em torno
Do qual as vagas, num marulho morno,
Gemiam, como quem ou sofre ou goza.

Profundamente um cheiro glauco e amargo
Aspirávamos nós, num beijo insano...
Num beijo insano, demorado, largo.

Fugia ao longe um barco a todo pano...
E era uma dor sumir-se... sem embargo
De quanta verde luz enchia o oceano...

 

PELA PRAIA

Vão mais depressa... Deixa-os. — Dá-me o braço;
Vem das sombras do monte, em roda, o escuro;
Há muita tarde; o medo é prematuro;
Não temas: vá, mais devagar o passo.

Mais devagar... assim. Esse cansaço
Cura-se, haurindo lentamente ar puro;
Não receies; teu corpo ao meu seguro,
Encostado, é mais leve, encurta o espaço.

Olha os teus pés; levanta um pouco a saia,
Qué-los beijar o mar, os quer, e afaga:
Cai a noite? — Que tem que a noite caia?

Com que delícias o terror nos paga,
Quando vamos tão bem a sós na praia,
Ouvindo a flauta ao vento, e o búzio à vaga!...

 

DANÇA DE TRITÕES

Vasquejava o oceano indômito defronte:
Como corola agreste, a choupana de pinho
Abria-se por sobre o dorso hirto do monte,
Entre o álacre esplendor do mato em flor, vizinho.

Como aranhol de festa, a lua no horizonte
Alumiava o areal e as curvas do caminho;
Na praia, negro, horrendo, a coma em desalinho,
Parecia o penedo aspérrimo Caronte.

Nele atada uma lancha: a lancha arfando inquieta...
E ele rijo, de pé, nessa inflexível reta;
Pela grama descia um carreirinho ao mar;

E mulheres enchendo-o, e um grupo de crianças
Riam, vendo na praia a cadência das danças
De espadaúdos Tritões, búzios soprando ao luar.

 

A FARSA DOS MORTOS

Quando a Aurora ao surgir ia ensopando o espaço
De aromas bons, parou: — que fez parar a Aurora?
Fugiram-lhe, em remoinho, as pombas do regaço,
Caíram-lhe do cinto as rosas de ouro em fora.

Os pássaros, que prende à tenda, que decora,
Pousavam-lhe, cantando, à coma, ao ombro, ao braço;
E em pé, de um lírio viu, a nau que o mar devora
Há três dias, rosnando ante astrágalos de aço.

E onda a onda entoava uma odisseia ignota;
E os cadáveres rindo um riso alvar de idiota,
Mostrando os dentes e movendo os olhos tortos,

Rolavam numa dança insana e persistente:
E o velho oceano os via, e zombava igualmente
Da ironia dos céus e da farsa dos mortos...

 

NOCTE OCEANUS

Como um milhar de leões — disse-me o Oceano — eu rujo!
Pois bem: à tarde, em pé, eu vi do tombadilho
Do barco em que ia, entrar no oceano o Sol, por cujo
Antro ainda lançava ao longe ígneo rastilho;

E a Noite vir, trepar, subir, como um marujo,
Por mastros e brandais cheios de asas, e brilho
De anéis de aço e de bronze areados, — num sarilho,
Manchando tudo em torno ao pulso enorme e sujo...

E eu surpreendi embaixo o mar numa humilhada
Atitude ante o céu calmo, estrelado e frio:
E essa água assim escura, ondeante e fatigada,

Parecia-me então um polvo luzidio
Que pelo dorso imundo e visguento, agarrada,
Arrastava na sombra a concha do Navio!


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LEVANTINAS
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ARCO

Viajo agora ebriado o velho Oriente...
E eu que sei o esplendor das formas tuas,
Que és branca, como o luar das noites suas,
Que és, como o aroma dos seus bosques, quente,

Tendo-te sempre em meu pensar presente,
Lagoa funda e quieta em que flutuas,
E que a beijar-te as doces carnes nuas,
Nunca sinto fartar-me e estar contente:

Em chão sáfaro mesmo, ou mau, que piso,
Rasgo, estendo, armo, enfloro um paraíso,
Granizo sóis e o solo é deles cheio.

Mas das rútilas coisas que imagino,
Tu só me deste, ó puro ser divino,
Lâmpada de ouro eterna em céus que arqueio...
 


A SEDE DE PADIXÁ

À noite o Padixá raríssimos instantes
Furta ao labor imperial: dorme sob o crescente,
Na verdura, Istambul; arfa a aragem do oriente...
Voa à vela o caíque em ondas de diamantes.

Leva só velho eunuco, e a escrava adolescente,
Nua... quase em nudez, as formas deslumbrantes,
Cantando à harpa tricorde uma canção dolente,
Que faz ver, como um sonho, as mesquitas distantes.

Num descuido de harém, numa graça felina,
— Ouves? quero beber o céu, Abdul dizia;
— Ouço: e estendendo a mão branca, comprida e fina,

Ela, por não lhe dar o que no olhar lhe ria,
Perfidamente meiga, em taça bizantina
Dava-lhe o céu, que em fogo o Bósforo acendia...

 

PALÁCIO DE VERÃO
(A Mucio Teixeira)

Tremem beijos do sol na fina porcelana
Do palácio imperial, redondo e torreado,
Sobre os cristais do rio Amarelo pousado,
Onde passa o verão a gentil soberana.

Ela, — as horas, que vão morosamente, — engana,
Por entre as grades pondo o rosto cinzelado,
Como um vaso de cobre em Pequim trabalhado;
E o olhar molhado em luz, que sussurra e espadana,

Solta-o pela corrente abaixo, ao longe... e espera,
Como outro sol, luzindo à popa da galera,
Entre os seus mandarins, o belo imperador;

Vê-se entre o ferro as mãos, louras como manteiga,
E as unhas de coral, e a expressão vaga e meiga
Da mulher quando oscila entre a saudade o amor.

 

À CONQUISTA DO SOL

O guarda-sol de seda à mão longa e alourada,
Como o bronze que luz nas jarras de Pequim,
E o leque noutra mão, cuja folha espalmada
De penas de pavão abre sobre marfim,

Andando sobre os pés, como uma ave pousada,
Curtos pés em prisão dentro dum borzeguim,
Que a levam, como a vaga oscilando, embalada
Pelas brisas do mar no verde mar sem fim,

Sobre campos de chá, cuja flor branca alveja,
Entre bambus em moita e rotins verde-escuro,
À cuja sombra o quiosque ao céu azul adeja,

Torres de porcelana e de caulim mais puro...
Ela vai esperar que o imperador a veja...
Põe no filho do sol o sol do seu futuro.

 

O-HANA

Não tinha O-Hana a cor amarelada
Das pinturas da louça japonesa;
Mas... era branca, e de uma tal fineza,
Como a da neve aos fogos da alvorada.

De estirpe régia e antiga, era princesa
Com todos os prestígios de uma fada:
Nada faltava à oriental beleza
Dessa mulher encantadora... nada.

De um camicém seu nome era a harmonia,
E, quando alguém O-Hana repetia,
O céu, a rir-se, o festejava ao ouvi-lo.

Amava o chá, as flores e os diamantes:
E seus olhos de raios crepitantes
Brilhavam, como sóis num mar tranquilo...

 

PÉROLA QUERIDA

Pérola azul de esplêndido horizonte,
Onde a aurora encontrou eterno asilo,
Pois te auréola tanta luz a fronte,
Como a luz com que o sol alaga o Nilo,

Pérola em cima do mais alto monte,
Como a lua de olhar doce e tranquilo,
Desejo, diz Abdul, não sei se o conte,
E, se contando, tu rirás de ouvi-lo...

Rica joia do Cairo, eu desejava
Ser o pórfiro branco, em que se lava
Teu rosto, e as mãos fulgindo entre os anéis,

Mas sobretudo, ó pérola divina,
Quisera ser a fonte cristalina
Em que te banhas da cabeça aos pés...

 

FELIZ - INFELIZ

Fi lhe dizia: — A tua boca, que arde,
É como a luz, que chega e enche o caminho.
Na alva a calhandra, o rouxinol à tarde
Cantam ao colo teu branco de arminho.

Quem uma vez sofreu o teu carinho,
Quem foi só, por mais só enfim que seja,
Atrás não volta, e nem voltar deseja:
Anda, e não sabe mais andar sozinho.

Leva de ti a sombra, o brilho, e o aroma;
E um ar de deus vencido, que se anula,
O desgraçado para sempre toma.

Em ti o sol lhe nasce, a ave modula,
E sabe que beijando a mão, que o doma,
Outro a beijou, e em breve um outro a oscula...

 

NASCER DO SOL

Acorda, como emir voluptuoso,
Na cálida ebriez de essências puras,
E traz a enorme cicatriz do gozo
O sol, trajando as largas vestiduras.

À noite, que de esplêndidas loucuras,
Beijando uris em raivas de amoroso!
E o divã, — entre nítidas brancuras, —
Guarda mal o segredo duvidoso.

Veem-se amarelos sândalos na cama,
Lençóis esparsos, véus da cor da chama,
Laca vermelha, cintas e corais,

Sandálias de esmeralda, ramalhetes,
Argolas de ouro, fulvos braceletes,
E o acre rubor de carnes ideais!

 

O FELÁ

Guarda o sultão Ramsés um diamante,
Um rubi, uma pérola Moabita,
Que era do seu harém a favorita,
De um belo olhar de ferro chamejante.

O raio doce, trêmulo, iriante,
Dava a luz dum punhal, que ao sol se agita:
Mas tinha um gesto às vezes suplicante
De estrela que de um lago azul nos fita.

Um felá, que uma vez a viu somente,
Ficou doido e dizia a toda a gente:
— Não hão de ser os meus desejos vãos

Quando vir que por ela eu choro tanto...
Virá com beijos recolher meu pranto
Às taças brancas das marmóreas mãos.

 

A FESTA DO RAJÁ

Rajá Nallá-Tambyr-Modelear stá sentado
Num coxim, um primor da Pérsia, numa sala
Que forra o vetiver com arte entrelaçado,
E que, ao pancá que passa, o morno odor exala.

Medrosa a luz por entre as esteiras resvala
— Odalisca a pasmar num serralho fechado, ―
E o ardente hucá, que entrança um filó perfumado,
Numa sombra discreta o fulvo ambiente embala.

Por colunas, que têm a graça das palmeiras,
Da varanda, que em torno o doce éden rodeia,
Adivinha-se a acácia, os bambus, as figueiras...

Escoam-se os chocrás... a música escasseia...
Morre... e logo depois ouve-se a sala cheia
Dos beijos de Nalá... dos ais das bailadeiras...

 

OCASOS

Thou Fou pensava: — Ó Fchitrá, queria
Dar-te a beber em vaso primoroso,
Do caulim, que não há mais hoje em dia,
O pranto meu, que já conter não ouso.

Junto a ti gole e gole, e gozo e gozo,
Haurindo o aroma, que de ti viria,
E um chá cor do teu corpo saboroso,
Eu lentamente, e quase alegre, iria.

Na pintura da taça, enfim, teu brando
Olhar, um rio ao vento a arfar, percorre,
Vendo um cisne, e um golfinho atrás, nadando,

Enquanto a luz prateada e mole escorre
D’água azul, machucada, em pregas, quando
Frio o sol, e o amor teu mais frio, morre.
 


O ADUAR

No aduar serpenteia a fila de elefantes:
Têm brilhos de iatagã os recurvados dentes,
E por sobre os faquires austeros e indolentes
Torcem, ao sol que os morde, as caudas palpitantes.

O cansado cornaca, à sombra dos gigantes,
Dorme na areia: ao sul há miragens ridentes;
Passam trombas ao norte, e beduínos distantes:
A alma do mar rodando em todo o areal presentes.

O junco verde e esguio, o rotim em soqueira
Emergem d’água, que dentre as uranias mana;
Do cardo olha o chacal; o tigre o ambiente cheira;

Na tenda o pancá freme; a música espadana;
Bate os pés, gira, salta, ondeia a bailadeira;
E o emir, que ela inebria, esquece a caravana...

 

O MINUTO DE MEI-BI

Mei-Bi à tarde, em hora cismadora,
E Yuan consigo, trêmulo, indeciso,
Olhava ao largo e ao longe o negro friso
D’água, como um cabelo que o sol doura:

E dizia-lhe Bi: “Se o instante fora
Eterno, eterno fora o paraíso,
À sombra acesa e boa do teu riso,
Na minha a tua mão cavada e loura;

Num grande fogo, em púrpura o ocidente,
O bangalô entre os rotins metido,
Na areia fulva, à margem da corrente;

O vento a amarrotar o teu vestido,
E a levantá-lo mesmo de repente,
Num beijo curto, curto e irrefletido...”

 

O RISO DE BAHVANY

Assim dizia Abdul a Bahvany: — Deitado
Tens à boca de aurora um riso em flor, que ébria,
Como um faquir repousa ao sol do meio-dia
Sobre um tigre de dorso escuro e acetinado.

Tem o humilde animal o fundo olhar velado:
É uma cama doce, elétrica, macia;
E abre indolentemente a fauce, onde à porfia
Há marfim, há coral róseo ao mar arrancado.

Morde o sono o faquir, o domador da fera:
Esta, mau grado a calma intensa, inquieta espera,
Lambendo as garras de aço e afiando-as ao chão.

Rosa fulva também sobre os teus lábios dorme:
Jaz teu riso, o faquir, enquanto o tigre enorme
Ouve nele o rumor das maltas do Indostão...

 

O UNIVERSO DE ALIM

No esplêndido al-marajé e na indolência
Que pede o Oriente tépido e cheiroso,
Maharajá — flor e joia de opulência, —
Ouvia ao poeta Abdul, grave e em repouso.

E Abdul cantava: — Alim, a uma inocência
— Um loto branco em vaso melindroso, —
Amava tão sem calma, e sem prudência,
Que a fazia chorar para seu gozo.

Na doce luz da lágrima chorada,
Como o lago em que um cisne corta e nada,
Banhava-se cantando um rouxinol.

Era Alim: — E o universo, ele dizia,
De novo nos seus olhos se fazia...
E era esse orvalho... o seu primeiro sol.

 

O FAQUIR E O SULTÃO

Tinha o faquir um sestro, uma cegueira:
Amava a filha do sultão Mohamede;
Vê-la, e beijar-lhe as mãos, é quanto pede;
E leva nisso sua vida inteira.

Soube o sultão, e disse-lhe: — Esterqueira,
Que come arroz de Mangalor e fede,
Põe o Corão à tua cabeceira,
E que do meu caminho Alá te arrede.

Senhor, diz-lhe o faquir: — Sou um cachorro;
Mas... que quereis?... por vossa filha morro,
Sofrendo alegre o criz que me ferir.

Quando os meus olhos nas estrelas cravo,
Têm elas que temer do pobre escravo?
Que mal lhes faz o mísero faquir?...
 


O KUN E O NUN

Contam: — De Cachemira um rei antigo,
Que ao das Índias negava vassalagem,
Andava langue, fraco e sem coragem,
Tudo ocultando ao seu melhor amigo.

Fala um dia ao vizir: — Virás comigo.
E foi com ele à esplêndida paragem:
Parecia que o odor da própria aragem
Dobrava-o, como à branca flor do trigo.

E às montanhas azuis erguia os dedos:
Desenhavam-se o Kun e o Nun ao fundo
Do céu sereno, esplêndidos rochedos.

E diz: — Que longo amor, que amor profundo!
Pois só as pedras sabem-lhe os segredos?
Não há dois corações iguais no mundo...

 

THOU-FOU

Thou-Fou prendeu, em folha que escolhera,
Mundos de ouro de uns olhos luminosos,
Rubis de argola, prasios de pulseira,
Da fulva seda os poemas capitosos,

Joias da boca, que à baunilha cheira,
Dos pés de ave que oscila os tons radiosos,
O azeviche da trança, e, ondeada e inteira,
A forma rota, antemostrando gozos,

Em bronze esborcinado as mãos pequenas,
E essas, que voam no seu ninho apenas,
Duas pombas em que ninguém tocou:

E quando veio o vento do levante,
Leva, diz, dando-a ao vento, à minha amante;
Vendo-a, dirá: vem dele; é de Thou-Fou.

 

A SULTANA

Foi festa, e grande, em toda Cachemira
Quando chegou, montada no elefante...
Viu-se em leve sandália de safira
O seu pé de uma alvura deslumbrante;

Colhendo as sedas, sua mão ferira
Com luz nevada a multidão, diante
Da qual o rosto apenas descobrira
Na sombra do riquíssimo turbante;

Mas quando viram seus nevados seios,
Brancos, riscados de azulados veios,
C’roados de uma auréola de cabelos,

— Tênues fios de estrela que irradia...
Para não ofendê-la à luz do dia
Fugiram dela ao trote dos camelos.

 

UM DRAMA NO DESERTO

Tu ias sobre o dorso do elefante,
Já perto das ruínas de Balbeque,
Aromando o teu rosto de diamante
Com sândalos do teu flexível leque.

Tu vales Cachemira deslumbrante,
Vales Mafoma e Alá, inda que eu peque;
Por isso eu ia à sombra do gigante,
Lamentando não ser um grande xeque.

Quando o simum soprando de improviso,
Muda em nagas de areia o paraíso,
Em que ias tu, ó flor de madavi!...

Eis que te salvo em meu robusto braço...
E quando o sol furou de novo o espaço,
Teu doce olhar a me morder senti!...

 

CAPRICHO DE SARDANÁPALO

“Não dormi toda a noite! A vida exalo
Numa agonia indômita e cruel!
Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo!
Faço-te agora amigo meu fiel...

Deixa o leito de sândalo... A cavalo!
Falta-me alguém no meu real dossel...
Ouves, escravo, o rei Sardanapalo?
Engole o espaço! É raio o meu corcel!

Não quero que igual noite hoje em mim caia...
Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia,
Ao sol, à lua... voa, Radamés,

Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho,
Quero dormir também, feliz, debaixo
Das duas curvas dos seus brancos pés!...”
 


A NÚBIA

Alegre, fresco, límpido, cantando,
Na eterna mocidade das torrentes,
Passa pelos destroços esplendentes
De um povo grande, agora miserando,

O velho rio, o manto desdobrando,
Riscada à noite pelos sóis ridentes:
Da boca azul os cristalinos dentes
Vão os restos dos templos triturando.

Aí contudo o Nilo — enorme espelho —
E em sua tenda o negro esbelto e rude,
E o alígero corcel, e o tigre e o leão,

E o dromedário, e o céu, e o mar Vermelho
Têm inda o viço, as cores e a atitude
Das paisagens da Bíblia e do Alcorão.

 

MÊNFIS

Amon-Rá lança esplêndidas zagaias,
E veste o Nilo azul de ouro e diamantes:
E os loureiros em flor, das curvas praias
Olham, manchando-o, as velas palpitantes.

Maio embandeira: os bandos doidejantes
De pardais e bulbuis cantam nas faias:
Fila de acácias, renque de gigantes
Cedros circundam da cidade as raias.

Entre estátuas graníticas do Siena
Levanta a fronte rútila e serena
Mênfis, que doiram rindo eternos sóis.

Dizem dela: — As estrelas serão mortas:
Mas dentro a mole de esculpidas portas
Hão de sempre reinar os Faraós...

 

ECBATANA

Das espáduas graníticas do Oronte
Ergue, como um cocar de penas de ouro,
Seus templos grandes, vastos, como um monte.
Roja-lhe o mundo o universal tesouro.

Rugem leões; panteras rugem. — Louro,
Nopal, acácia enfloram-lhe o horizonte;
O sol pousa-lhe a garra à altiva fronte;
Cantam vagas do Cáspio ao longe em coro.

Relutam, ruem às portas da cidade,
De sedas, joias, ouro e cheiro alteados,
Mil elefantes; ri-se a mocidade.

E clamam, vendo-a os hóspedes chegados:
“Sultana da Ásia, tens na eternidade
A pérola em que pões teus pés dourados”.

 

O DEUS DO SILÊNCIO

Não sei por quê; porque dizer não ouso:
Seguindo estância e estância o antigo rito,
No templo de Ísis, adorava o Egito
O deus sem voz, o deus misterioso.

Milhões de olhos de um vago olhar aflito
Cobrem-lhe o corpo; e em lânguido repouso,
Guardando um gesto altivo e desdenhoso,
Pousava à boca um dedo de granito.

E como um olho só, tudo isso olhava
Do fundo de uma orelha, que o envolvia:
E aos seus pés vendo a turba imbele e escrava,

O mudo olhar inquieto ardia em lava...
Porém... quanto mais via, e mais ouvia,
Menos falava o deus que não falava...

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O BRÂMANE

I – RAINADJATA

Outros sofrem, diz Fi, desta tortura,
E achar devem na taça a mesma lia:
Bebe-se o amargo e o doce de mistura;
Se o mesmo vale o cardo e o lírio cria!...

Rolar no loto em flor da formosura,
Enquanto um outro espera e ansiado espia?!...
Sombra igual abre o céu por noite escura,
Luz igual abre o céu por claro dia.

Ouvi-la, é ouvir a lira de Nãrada;
Mas como a estranha voz que diz serpente,
Ou diz colar de pérolas, quem brada

Nunca sei; — em que frase ela não mente...
Mas quando a beijo, e em mim a sinto enleada,
Creio-a minha... Oh! ser minha eternamente...


II — MIÇRAKÉÇI

Disse o Brâmane em casa: — Estão brincando?
Miçrakéçi morreu, não é?  Que importa?...
Como a andorinha o azul do céu recorta,
E atrás duma vem outra, e outra, e um bando,

Uma cabeça apareceu à porta,
Deitou a medo oblíquo olhar, recuando...
Mas alguém, que a palpou, num gesto brando,
Murmura: — Sim, caiu... mas não stá morta.

Para Fi era entanto um corpo extinto:
Rolara do seu culto de repente,
Como uma estátua que escapou de um plinto.

— Morreu; ela morreu? se inda está quente...
Lhe respondiam; Fi tornava: — Eu minto?!...
Então, ‘stá morta para mim somente...


III — O BRÂMANE VIVO

Eis o sagrado Brâmane que habita
Aquele canto da floresta indiana,
Olhos fitos na abóbada infinita,
Toda a alma cheia de uma ideia insana.

Imóvel, mudo, nada mais o agita;
Sustenta-o só a caridade humana;
E a passarada gárrula se engana,
Põe-lhe o ninho à cabeça, e às mãos dormita.

A faia, a tamareira, o aloés selvagem,
A umbela cada qual dos ramos lança
Naquela doce e veneranda imagem.

E a sombra, que aos pés dele oscila e dança
Ao som do quim da perfumosa aragem,
Fá-lo rir, como estólida criança!


IV — O SUPLÍCIO DO BRÂMANE

Deixou ouros e mármores de Elora,
Por não mentir ao seu divino Brahma,
E foi na selva, onde o silêncio mora,
Furtar-se ao encanto da mulher: é fama.

O amor também santos varões devora,
Com sua intensa e voluptuosa chama;
E o Ganges muitas vezes não derrama
Tanta água como quem tais males chora.

Hoje vegetação luxuosa medra
Em torno dele, que parece pedra,
E envolve-o no seu verde turbilhão;

Cantam-lhe em cima os rouxinóis em bando;
E quem passa parece ouvir cantando
A alma do monge a eterna dor em vão!...


V — O BRÂMANE MORTO

Como rocais de matizada escama
Brincam-lhe ao colo as serpes enroscadas;
São quedas d’água a reluzir à chama
Das longas cãs as ondas arrufadas.

O olhar já lume interno não derrama;
Trepam-lhe ao dorso as relvas enfloradas;
E há um faceiro e pequenino drama
De lírios rindo em órbitas furadas.

Num ombro à tarde o rouxinol gorjeia;
Saltam lacraus da fenda dos artelhos;
‘Stá do aroma do santo a selva cheia.

Quem o vê põe por terra os dois joelhos:
E ouvireis, quando ao vento a mata ondeia,
O Brâmane inda a murmurar conselhos!...


VI —  BRÂMANE MORTO, A RIR

As lianas em flor, dos pés à fronte
Subindo, e os nós do corpo sujeitando,
Guardam, depois de morto, ao venerando
Brâmane o gesto em que viveu no monte.

E o leão, e o tigre mosqueado, e o insonte
Pássaro, e a aurora, e o sol, e o luar brando,
E as estrelas que fervem no horizonte,
Há séculos, que o veem a rir, passando.

Junto dele ri tudo, e a tamareira,
E a acácia, e o cedro, e a fonte que marulha,
E a luz do céu e o disco da clareira...

Os grandes dentes brancos da caveira
Têm no seu rir descomunal tal bulha,
Que arranca igual risada a selva inteira!


VII — O BRÂMANE E AS ALMEIAS

Quem entra o bosque? — As rútilas Almeias:
Têm de bronze polido o corpo fino;
Vêm em bando; entrelaçam-se em coreias
Bailando aos pés do Brâmane divino.

Fazem rir; ri a mata à dança e ao hino:
Pensam elas que o santo monge, em vendo-as,
Há de sentir das lúbricas amêndoas
Dos olhos seus o dardo cristalino,

E hão de acordar o secular dormente:
As mamas bolem, chispam-lhe centelhas
Das mãos, dos pés, em saltos de serpente;

As faces brilham úmidas, vermelhas;
E do arcabouço veem golfar somente
Falenas de ouro, turbilhões de abelhas...

 
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MOSAICOS
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O VERSO

Juntai bem, e num grupo, coisas belas,
Coisas viris, ideais, em sons diversos,
Com frases de ouro, azuis, rubro-amarelas;
Dai-lhes o ritmo e a luz dos universos:

E da arte grande, donas e donzelas
Riam-se, e os parvos, rústicos, perversos...
Só sobre o tempo ficarão aquelas
Que o poeta salve em sonorosos versos.

Quando ninguém tiver mais na memória
De um rei a fama, um campo de batalha,
Algum retalho esplêndido de história:

Quando um império, enfim, já nada valha,
Nem deixe data, ou busto, ou vil medalha,
Pode um verso guardar-te o nome e a glória.

 

NUM CARRO DE BOIS

Cum sol oceano subest.

Horácio

Desde a infância, imortais, vós sonhadores sois!...
Vós, ó poetas, só vós, ouvis a sinfonia
Que espalhavam na estrada, ao declinar do dia,
Um velho, um carro tosco e dois morosos bois!...

Que véu de opala e de ouro em pó fino os cobria...
Como, a se entrerroçar, inclinavam-se os dois!...
Pelas cercas à flor a luz inda sorria,
Dulias de aroma à luz cantava a flor depois!...

Quando, a aguilhada ao ombro, o carreiro indolente,
Deixava-me ir na caixa, agarrado aos fueiros,
De lá eu via a sol descer pisando, ao poente,

Espáduas colossais de deuses prisioneiros;
Enquanto ouvia já passar furtivamente
As Dríades no vale, os Silfos nos outeiros...

 

A PEQUENA DIVINA COMÉDIA

Belo dia de campo!... A noite inteira
Choveu: o fio d’água da torrente
Aumenta, engrossa; a ponte de madeira
Resiste mal à cheia recrescente.

Vem, rio abaixo, ilhota florescente,
E traz num galho um ninho, de maneira
Que parece afundar-se, tão à beira
Vai da vaga ululante, hirta, iminente.

O ninho tem três pássaros arfando,
De olhos grandes, cerrados, nus, sem penas...
Da borda em cima a triste mãe piando,

Voa mais alto, e volta, e louca apenas
Busca salvar o grupo miserando
Nas pobres asas, úmidas, pequenas...

 

LUTAS

Vens para me perder. Desces à arena
Disposta já para a batalha rude,
Caída ao colo em ondas a melena,
E branca, como Ofélia no ataúde.

A orelha nua, o nimbo da virtude
C’roa-te a fronte plácida e serena;
Simples no gesto, casta na atitude...
A sala compreendendo-te... pequena,

Muda, cheia de enleio, e quase escura,
Para melhor fazer, como em moldura,
Brilhar a neve do teu rosto... então

Chego-me a ti com medo, a voz tardia,
O passo incerto, a mão molhada e fria...
E acho mais fria a tua própria mão!...

 

PENDANT...

Daqui a uns anos mais, que mais esperas?
Há de incender-se o céu de estrelas de ouro,
Pelas curvas azuis as primaveras
Espalharão o seu cabelo louro...

As covas se abrirão como crateras,
Berços e ninhos se encherão de choro,
E hão de fugir nas asas das quimeras
Os sorrisos e as lágrimas em coro...

Os dias, esfolhando as ígneas rosas,
Bem como um bando de águias luminosas,
Varrerão a amplidão dos céus risonhos...

E Deus, no entanto, sonolento, calmo,
Verá surgir a treva, palmo e palmo,
Sobre a nossa existência e os nossos sonhos!...

 

ÓDIO ESTÉRIL

Gosta de ver a multidão rendida
Esta mulher, mais velha irmã da aurora,
Que, há muito tempo, do botão da vida
Toda nova, a áurea fronte pôs de fora.

Contudo a luz da tarde amortecida
Doira-lhe a tez da cor triunfal de outrora,
E inda conta, sorrindo, hora por hora
Muita cabeça aos seus dois pés caída;

Seu poder, cheio de desdéns, não cansa:
E o alfanje rubro, o seu rir voluptuoso,
Abate a quantos enche de esperança.

Mas eu... por lhe não dar estranho gozo,
Dou-lhe o meu ódio... e sei que esta vingança
É um lobo a uivar por seu luar formoso!...

 

DEUS OMNIPOTENS

Sabem? O amor é o deus onipotente,
Que fecunda o universo, e o traz suspenso:
A ouvir-se um largo beijo (ouvi-lo eu penso)
A luz multiplicar-se em luz se sente.

O seio, que arfa, e ascende, e desce, o ardente
Astro acusa em si mesmo: é fogo denso;
Eu, como o argueiro e o espaço, ao sol pertenço;
Há pedaços de sol em nós somente.

Têm-se contado já num grão de areia
Muitas mil existências: porventura
Há céus, que amor em seus abismos creia?...

Ver mais mundos aí, será loucura?
Do amor, que aos sóis dá vida, a vida é cheia:
Vermes, deuses, e sóis amor mistura.

 

O AMOR DO MENDIGO

Gosto de todas: amo-as loucamente...
Uma, em que palpo o escultural contorno,
Dispo, tiro-lhe até o último adorno:
E ouço a forma cantar num corpo quente.

Fremindo o coração, em fogo a mente,
Chispa, cintila, como aceso forno;
E o meu olhar, vulcão sangrento e morno,
Dardeja-lhe punhais, que ela não sente...

Mendigo, em descalcez, roto, esgrouviado,
Tendo-a nua ao meu seio, amor ensaio...
Abre-me o sol um leito aveludado:

Aureola-me a fronte, em deus, com um raio
De um sonho róseo ao fundo, ela a meu lado...
Sob a umbela do céu azul desmaio.

 

A DREAM

Da paz maciça dos anacoretas,
Embebidos nas límpidas esferas,
Eram também as minhas horas feitas,
Quando era eu teu e minha então tu eras.

De ti em torno, como as borboletas,
Na verde luz das tuas primaveras,
Queimando as asas de ouro e das quimeras,
Mal, um dia, as abri, estavam pretas.

No fogo dos teus olhos que devora
O branco aroma às brancas açucenas,
Cria haver toda em corpo e em alma a aurora,

Enchendo o céu de amplas manhãs serenas,
Um céu sem fim, um céu pelo céu fora...
E isso tudo... era um largo sonho apenas...
 


AS NAUS

Sobre as asas pairando, as naus entram, na lenta
Marcha de aves do mar, que chegam fatigadas:
E, enquanto aos pés em flor uma vaga rebenta,
Outras cantam solaus, rindo em torno grupadas.

Parecem catedrais marmóreas, torreadas,
Fugindo a um velho mundo, e fugindo à tormenta,
Que entre nichos de pedra, e agulhas lanceoladas,
Rolam pesadamente a mole corpulenta.

Dromedários do mar — intérmino Saara —
Ó naus, vós afrontais os ciclones, o grito
Negro, que sai do abismo, e uracões, cara a cara:

Sois mais que esses troféus lendários de granito,
No seu panejamento enorme de Carrara...
Vós, cuja base é o oceano e a cúpula o infinito.

 

OS GRANDES ANÔNIMOS

Esboço rude dos Rembrandts infantes,
Alma que pelos sóis com deuses priva,
Raça frustrada de titãs errantes,
Quem te foi mestre em obra assim tão viva?

Que o ar, a sombra, a luz, em tudo plantes,
Dando ao conjunto estranha perspectiva!...
Assim o poeta às odes deslumbrantes
Ritmo, e harmonia, e graça, e ardor cativa.

Morangos, figos, pêssegos, amoras,
Maçãs, laranjas, mangas, ananases,
O que é desenho e cor embalde ignoras;

Mestre sublime, com teus frutos fazes
Quadro em que rufa um triunfal de auroras,
E ecoara o hino de pincéis audazes...

 

MIRABEAU E O CANTO DO CISNE

Luz divina e pagã, vem tu em meu socorro,
Vinde, flores com ela, e com ela a alegria
De um pedaço de sol, de um pedaço de dia,
De um pedaço de céu, onde o azul golfe a jorro.

Perfumes siderais, chamais-me? Eu vou; eu corro;
Por tarde o rouxinol, pela alva a cotovia,
Quem os pudera ouvir cantar, como os ouvia:
Mulheres, como é bom viver convosco, e eu morro.

Orquestrizai, clarins: — tempo, ebria-te, ó louco;
Amor, canta um idílio, e entre eu nele inda um pouco;
Glória, açula-me a carne, e acende-me aos teus sóis!

Atleta, estás de pé: ousa alguém desarmar-te?
Se é preciso partir, vai; é cedo, mas parte:
Deuses, vós conheceis os deuses e os heróis...

 

DOIDO SUBLIME
(Ante o quadro de Driendl, representando Ferreira Vianna)

Da idade média esplêndida figura
À geração moderna transplantada;
Tem de um nimbo de santo a fronte orlada,
Azul, do muito céu que lhe mistura.

Foi o Pedro Eremita da Cruzada,
E, como Conde ou Rei, a sepultura
Buscou de Cristo, a arder na fé mais pura,
Reluzindo-lhe às mãos tremenda espada.

A doce cor do rosto macilento
Acusa o asceta ao fundo de um convento,
Crendo em visões, melhor sabendo vê-las.

Saiu do horror das lutas de um Sínodo,
Ébrio de luz, sublimemente doido,
Bom para andar num cárcere de estrelas.

 

DRAMA ESQUÍLICO

À tarde. — A casa à praia. — A brisa harmoniosa.
Movendo a juba de ouro, amarelo, de lei,
O mar era o leão de forma fabulosa;
Lentamente a estendia ao sol, o velho rei.

E as crianças riam, quando a mestra corajosa
Lhes disse, a rir também: — Aos vossos pais dizei
Que o colégio acabou, e que eu mesmo acabei...
E para sempre — adeus, anjinhos cor-de-rosa.

— Ó mãe, clama a família então, — findou a escola?...
Mãe... ó mãe, amanhã pediremos esmola!!...
Aquela voz, que ulula, e acusa, — a ré, a ouvi-la,

Ergueu-se, e o peito em chaga aos filhos mostra... e os sonda...
O céu se abria atrás da úlcera hedionda:
E a úlcera era uma estrela em radiação tranquila!...

 

SUB PARVA LUCERNA
(Pauperis somni aula)

Sobre a cômoda antiga o oratório domina:
Tem ele um Cristo velho e mau, à cruz pregado
Ao centro: a um lado um santo, a Virgem de outro lado...
Anda lá fora, ao luar, um pássaro que trina.

Pelas fisgas da porta entra o vento. — Franzina
Criatura, formosa e alegre, destrançado
O comprido cabelo ao colo, inda se inclina
Sobre o berço de um louro anjinho entreacordado.

Ela só alvoroça em festa o pobre asilo;
Um atleta, ao rir bom do seu olhar tranquilo,
Dorme assim como o mar, que ronca num escolho.

E esse impalpável corvo, a escuridão, de um canto,
Busca a alcova meter sob as asas, enquanto
A tênue luz de longe a fita, como um olho.

 

RENVOI
(A Valentim Magalhães)

Salta-te em casa a aurora peregrina,
Num berço de ouro, num alegre espanto:
Eis que a ouves cantar, e o próprio canto
Faz-te sofrer de embriaguez divina.

Teu astro tem frescura matutina
Em vítreo azul cheiroso e calmo, e entanto
Pensas que ele do meio ao ocaso inclina:
Ébrio de luz, é de prazer teu pranto.

Pois não veem?!... Porque chilram passarinhos
Entre os verdes palmares dos caminhos,
Porque te entrou mais um do aéreo bando,

Porque tens mais um coração a amar-te,
Ficas todo a chorar, e dás-nos parte
Que tens no lar um novo sol cantando!...

 

AOS CEM DIAS DE UM JORNAL

Quando, cheias as velas, a galera
Ia zarpar às Índias Orientais,
Na praia havia muita gente à espera,
Toldavam pavilhões os arsenais.

Via-se a mole triunfante e fera
Ante os mares dos Gamas e Cabrais,
Certo, que se não faz a volta a esfera,
Sem calma agora, agora temporais.

Tu, pequenina nau do ipê mais duro,
Há cem dias navegas a bom vento,
Alerta ao leme um sábio palinuro.

Cavando o oceano após o pensamento,
Vais buscando as ideias do futuro,
Forte na fé do teu descobrimento...

 

VOTOS
(Num aniversário)

Criança, a quem na alegre festa brindo,
Bebendo este áureo, espumaroso vinho,
Auroras brancas forrem-te o caminho,
Doure-te a vida a luz do sol mais lindo;

Beijem-te as faces primaveras rindo,
Deem-te flores o aroma, e não o espinho,
Vias-lácteas de opala, e prasio, e arminho
Deixem-te os ombros seus pisar subindo.

De carícias, amor, enche-lhe a cama,
Segui-o em bando, deusas da memória,
Do ideal do belo, natureza, o inflama;

Dá-lhe uma folha do teu livro, história,
Epopeias, prendei-lhe o nome e a fama,
Amplas portas do templo abre-lhe, ó glória...

 

CRISTO NUMA MEDALHA

Foi com amor igual ao do que inda arde e ateia
Ximenes, Becerril, Arfe, que estoutro inventa,
Com desejo infinito, e paciência lenta,
Esmaltar um metal, a que um Cristo encadeia;

De um fundo flavo e quente a cabeça rebenta,
Como uma flor que inclina o sopro de uma ideia,
E o Salvador do mundo, o filho da Judeia,
‘Stá na criança já, que o mundo à mão sustenta.

O seu olhar é doce, é calmo, é transparente;
Subir da alma e transpor céus em fora se sente;
Há sobre tudo um pó de amortecida luz.

Como de uma caçoula, edênico perfume
Sai do manto, que faz já dele estranho nume,
E um nimbo de ouro à fronte encima este Jesus.

 

UM CRISTO DE REGISTRO

Num quarto de papel comum, com quatro pregos
Sustentado à parede esboroada e escura,
Um Jesus Cristo à cruz, sangrento, se pendura:

A cabeça caída ao peito, os olhos cegos
Pelo frio da morte; o corpo na postura
De um cadáver que já força alguma segura...

A candeia apagou-se em um supremo arranco,
Vermiculando de fumo e centelhas tudo:
E o grande Morto jaz imóvel, grave, mudo,
Sem que a luz o acoberte em seu velario branco...

Dormem por perto. O ar, que se respira, é quente:
E um besouro, que vem, que vai, sem que alguém veja,
Como um órgão de sons enchendo alguma igreja,
Mete uma nota austera e rouca em todo o ambiente...

 

UM CRISTO NO TIROL

Quando a terra de Dante e de Petrarca, a amiga
Itália Heine pisou, o sol no azul radiava,
E aos sons d’água a correr um tirolês cantava
Ora um hino guerreiro, ora velha cantiga.

Sentada no poial, graciosa rapariga
À porta do palazzo, em ruínas já, fiava,
Como grega rainha, ou como grega escrava,
No belo ideal de Homero. — A Penélope antiga.

Um Cristo no jardim, obra de antepassados,
Fronteiro à mole imensa, e a vedá-la, existia:
Perto o pombal, mais longe os montes azulados.

Como as crianças outrora, as pombas recebia
Nos seus dois braços nus, à cruz inda pregados,
Bom sempre, inda que triste, o filho de Maria...

 

O CRISTO ROMANO

Eis o rei triunfador, que aclama a populaça,
Em cujas faces ri em cheio a mocidade;
O que une o céu à terra, a terra ao céu abraça,
E abre, pelo sepulcro, édens à humanidade.

Tem nos gritos da cor a voz da tempestade:
A chama, a luz, o ostro é multidão que passa
Pontuando o manto azul, roubando a austeridade
Do Jesus do evangelho amor, bondade e graça.

Um grande coração, que o fogo purpureja,
Brilha, em pleno, ante o peito; e um dedo longo e fino
Do próprio Cristo o aponta: a auréola dardeja

Raios em torno à fronte; arde o olhar sibilino...
Mas este Deus só quer salvar a sua igreja,
E não o mundo ao erro e à cruz do seu destino...

 

TELA ACHADA

Essa rosa que fulge ali no vale,
Entre outras, olha, vê, é a mais rosa:
Porém não sabe o que é, nem quanto vale,
E a apanha a mão primeira e descuidosa.

É como tu: quem há que a ti se iguale?
Sabes o brilho, e o aroma, e a primorosa
Cor que te veste a pele cetinosa?
Ninguém te disse o que és? não há quem fale?

Mas o tempo reduz tudo à ruína:
Não te sentes cair, mulher divina?
Mesmo assim, quem te beija, amor, te goza.

És como tela de pintor de fama,
Perdida e achada soterrada em lama,
Rota no centro, rica, e inda formosa...

 

PARTIDA DE UMA ANDORINHA

Podeis ir, sóis de amor, não mais vos fecho
Às mãos; — parti, rolai noutras esferas:
Céu azul de minha alma, isto é deveras?
Este era pois o lúgubre desfecho?

Que veiga toda a abrir-se em flores deixo!
Vale cheio de sombra e de quimeras,
Meu confidente e o dela há pouco inda eras!...
Deuses, não, não de vós, de mim me queixo.

Nela um cálido raio de ouro eu tinha
Daquele olhar divinamente terno,
Idílio bom, que embala a quem caminha.

E eu, que julgava este meu sonho eterno,
Busco inda o voo à última andorinha.
Mas donde vem assim tão cedo o inverno?...

 

ALTAR SEM DEUS

Inda não voltas? — Como a vida salta
Destes quadros de esplêndidas molduras:
Mulheres nuas, raras formosuras...
Só a tua nudez entre elas falta...

Pede-te o espelho de armação tão alta,
Onde revias tuas formas puras;
Pedem-te as cegas, lúbricas alvuras
Do linho, que a paixão no leito exalta.

Pedem-te os vasos cheios de perfume,
Os dunquerques, as mesas, as cortinas,
Tudo quanto a mulher de bom resume,

Escolhido por suas mãos divinas...
E sai do teu altar vazio, ó nume,
A tristeza indizível das ruínas...

 

IGNOTUS!

Há Deus, se alguém de um Deus a prova exata der-me.
Não vale Paganini um pássaro no ninho;
De Theard ou de Wurtz o opulento cadinho
Não dará nunca ao mundo o óvulo de um verme.

Que prova? — Isso mais nada. E eterna, muda, inerme,
A esfinge!... A esfinge sempre em meio do caminho:
Um céu findando noutro, os céus em torvelinho,
E num giro fatal o esterquilínio e o germe!...

Como uma sombra informe atravessando um muro,
Pelo fundo do abismo azul um vulto escuro
Passa às vezes — Quem foi? O esquema de um de nós

Loucamente buscando a mão que enflora o monte,
Ou quem esculpe a noite, e lhe circula à fronte
A tiara de ouro, a tiara enlhamada de sóis!...

 

SOBRE O PÉGASO

Upa, ginete, aos céus, em marcha. — Espora às ancas,
Rédeas presas às mãos, a velha estrada mudo...
Rasguemos regiões mais límpidas, mais francas,
Quero ver se esta eterna dor da vida iludo.

Vamos. Sinto-me alado, e firme, e ereto, e mudo;
Amor, nem mesmo tu destes azuis me arrancas:
Voo como envolvido em duas asas brancas,
Que são a minha guarda e a minha força em tudo.

Aqui de longe, aqui, por uma esfera vasta,
Tendo sob os meus pés o globo, que se arrasta,
O dardo ao flanco, ao passo o tédio do cansaço;

Vendo o orgulho com que vão nele os homens todos,
Num alarido, como um turbilhão de doidos.
Upa! grito ao ginete, em marcha, espaço... espaço!...

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CAMONIANA
(Glorificação brasileira a Luís de Camões 
no terceiro centenário da morte do poeta
10 de Junho de 1880)

I — A LUÍS DE CAMÕES: LEÃO ALADO

Como um leão, que volta, e vem do firmamento,
Tinta a boca de luz dos astros imortais,
E que na fulva garra — ousado e famulento, —
Arranca ao céu azul pedaços colossais...

E sacudindo a crina e as asas de ouro ao vento,
Como às girafas dos seus pátrios areais,
Das estrelas no colo — indômito e violento, —
Mete o dente... e revoa em procura de mais...

Seu gênio assim — Leão alado da harmonia, —
Roubava as ideais estrelas da poesia,
Pendurando-as da pátria aos múltiplos florões...

Quem não ouve o fremir dos mundos fulgurosos,
Nos ombros carregando os versos sonorosos
Do canto secular que nos legou Camões?!


II — A LUÍS DE CAMÕES

Dai-me o vosso rumor, indiânicos mares,
Vosso aroma e verdor, matas orientais,
Vossa voz, ó leões, vossa sombra, ó palmares,
Ó céus, o vosso azul, e os sóis, com que brilhais;

Fragrâncias de Ceilão, que volitais nos ares,
Macau em cuja gruta inda ecoam seus ais,
Eu desejo somente encher-lhe os seus altares
Da luz, da voz, do amor com que inda o festejais.

Ó rei, maior que os reis da nação que cantaste,
E que de eterna luz a cova alumiaste
Da terra onde estendeste as estreladas mãos...

Ergueste o sólio augusto em penhas de Calvário,
Ó poeta imortal, três vezes centenário,
Mendigo que tiveste os sóis por teus irmãos.


III — A LUÍS DE CAMÕES

Enquanto ao fogo intenso, em que o peito te ardia,
Do teu grande padrão fundias o metal,
Enquanto o eterno molde a tua fantasia
Riscava do poema enorme e colossal...

Enquanto o monumento acabado saía
Selado por teu gênio olímpico e imortal,
Enquanto a eternidade a tua obra envolvia,
E punhas ante Homero o seu maior rival...

Enquanto se ebriava a terra a ler teus versos,
E vinham do horizonte ouvir povos diversos
A epopeia do mar e da navegação...

Ó Luís de Camões, ó grande sombra morta,
Nas ruas de Lisboa um jau de porta em porta
Para seu amo esmola um pedaço de pão.


IV — A LUÍS DE CAMÕES

Devias ter colhido estrelas luminosas
Para fazer o fogo enorme e criador,
E o bronze preparar das formas grandiosas
Da estátua do feroz e horrendo Adamastor.

Devias ter bebido às curvas graciosas
Do céu o leite doce e cheio de vigor,
Que sai dos seios nus das cintilantes rosas,
Para pintar Inês — a pérola do amor.

Devias ter sorvido as lágrimas da aurora,
Para a Vênus gentil pintar, quando ela chora
Perturbando no Olimpo os deuses imortais.

Mas para encher de sóis teu canto imorredouro
Devias ter roubado ao Deus a pena de ouro,
Com que ele pinta o azul a traços colossais.


V — A LUÍS DE CAMÕES: A VOZ DA SOMBRA

E para responder, a sombra despertando,
Quando lhe foram lá por ele perguntar,
Dos braços nus terror e anos gotejando,
A fronte levantou da pedra tumular.

Tinha terrenas cãs, o aspecto venerando,
Maciça noite de três séculos no olhar,
Estrelas nos rasgões do fato miserando,
E o silêncio que canta em noites de luar.

E disse: — Quando o Eterno ergueu o firmamento,
Nos sóis e turbilhões fixou seu pensamento,
E escondeu-se detrás de sua obra imortal.

Por que buscais Camões num túmulo sombrio?
Jesus também deixou seu túmulo vazio,
E o túmulo de um Deus é a alma universal.

 
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NUVENS E RAIOS
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VERITAS VERITATUM

É mais louco talvez quem mais estuda!
Dizer que a luz se extingue e tudo alaga,
Que aquilo que morreu, não morre, muda...
Morre e não morre, apaga e não apaga!...

A vaga treme, expira, e é sempre vaga!
A morte vive em cada coisa muda;
A dor que morre, qual! não morre, e ajuda
A dor que canta no seu ninho — a chaga.

Alma feita de lutas e procelas,
Na espumarada vã das coisas mansas
Rolam mortas milhões de coisas belas,

Boiam milhões de mortas esperanças;
E, tu, minh’alma, morta em cima delas,
Morta... vives ainda, e não descansas!...

 

WISH

És a corrente, eu sou a barca apenas:
Tu vais, eu vou singrando ao sol, que a doura;
E quando venha a noite sonhadora
Encher-te o seio azul de cantilenas,

Enquanto o céu a fronte de açucenas
Cinge, como se negra noiva fora,
E banha as vagas límpidas, serenas
De quanta branca pérola entesoura,

És a corrente, eu vou: vais ao infinito?
Irei também: caminho, e não reflito:
Não há contigo para mim mau porto.

Mas... se um dia lançar-me uma onda à sirte,
Que inda assim cante o escolho, e o escolho a rir-te,
Mostre na água dançando alegre e morto...

 

TERROR DO PARAÍSO

Eu que tenho vulcões jorrando fogo e lava,
Eu, que os ouço bramir, e lacerar-te em chama:
E em que manhã brutal de um céu feroz derrama
Punhais de ouro e de luz, que nos meus seios crava:

Eu, que ouço o temporal, que hórridas pugnas trava,
Que ruge, ulula, raiva, estoira, morde, brama,
Sendo minh’alma o palco em que se move o drama
Colossal, como em bronze Ésquilo os moldurava...

Que ouço em meu sangue ruir os sopros da procela,
Só em vê-la, a sonhar, somente em pensar nela,
Quando a vejo em nudez iluminada, a sós.

Quando o meu coração ao seu conchego, absorto
Empalideço, tremo, e caio, como um morto
Hirto, frio, sem ar, sem luz, sem cor, sem voz...

 

VIA CRUCIS

Aquele mente; aquele ali não só me nega,
Como me ultraja; este outro engrandece-me, e odeia!...
E nunca ilusionou-me o canto da sereia;
E vi sempre que a glória aos Cáucasos nos leva!...

Passai, Proteus, passai, na indômita refrega,
Que arranca o rio ao leito, e muda em lodo a areia:
A torrente, que arrasta o furacão, é cega;
E eu amo a calma, a paz, a luz, que vem da ideia.

Sinto em mim novo ser, um ser novo e divino,
Quando um caluniador of’rece-me o destino,
Para poder ser bom, perdoando-lhe o mal.

Infame e vil, não quero a folha de um loureiro;
Imaculado, e puro, e intemerato obreiro,
Prefiro ser o sangue a ter sido o punhal.

 

A PEDRA

E então a rocha dura da montanha,
Grande, como um pedaço do infinito,
Lá por dentro em seu torso de granito,
Não é à mágoa universal estranha?

Quando uma a outra, em largo amplexo, apanha,
Pela fatalidade desse atrito,
A voz humana acusa, e trai num grito,
E vê-se o fogo que elas têm na entranha.

Consolo à dor também ninguém lhe oponha,
Quando enfim dos latíbulos de um cofre,
No rumor largo da expansão medonha,

Saem-lhe do seio lágrimas de chofre...
A pedra pensa, e porque pensa, sonha;
A pedra vive, e porque vive, sofre...

 

A BÍBLIA DE ALCALÁ DE HENARES

O sábio cardeal Ximenes, já bem velho,
Arcebispo e ministro ao lado de Fernando
E Isabel, ambos reis, um dia desejando
Dar na vulgata, e em mais de uma língua, o Evangelho,

Fez imprimir a Bíblia, esse polido espelho
Das tradições cristãs, sacrário venerando
De poesia e de história, em Alcalá; e ao mando
Juntou para Brocário, o editor, o conselho.

Tudo que em arte é bem, rico em tipografia,
O velino, a vinheta, a estampa, a iluminura
Em volatas de cor e em rubro espasmo ardia.

E quando creu assim ter preso um povo, — o cura
Não viu Deus, que atacava aí dentro a ditadura,
E à liberdade e à luz a alma da Espanha abria!...

 

SONO

Dormindo nós, o espírito tem olhos.
É um cego, não vê, quando acordamos.

Ésquilo

Não, Ésquilo, não creio no que dizes:
Quando se dorme, o espírito então vela?!
Quando se dorme são os infelizes,
Que, em carro de ouro, a providência atrela.

Nenhum tormento aspérrimo os flagela:
Nem têm da luz aos nítidos matizes
Amor, ou ambição, que os torça, e nela
Não sofre uma alma as navalhadas crises.

O sono é doce bálsamo nas chagas,
E faz parar as lágrimas vertidas,
Como a pesca das pérolas nas vagas.

Ah! que seriam de milhões de vidas,
Sem dar-lhes, noite, a morte, com que apagas
A dor que grita o fundo das feridas?...

 

A FRAQUEZA DE UM MOMENTO

Veio. — De um jato só do mundo americano
Vasto império arrancou, aos reis domesticado;
E entregou sem fragor ao velho e augusto oceano
Um velho e augusto rei num trono espedaçado.

Ter um novo país de pronto alevantado,
Sem pranto de ninguém, sem traição, crime ou dano,
Reformador feliz, mais feliz que o soldado,
Não houve a um grande esforço um maior prêmio humano.

Mas chegou de improviso um formidável dia,
E o povo em torno dele, alheado e absorto, via
Desprender-se, oscilar, ruir de um céu azul

Do seu destino imenso a enorme estrela acesa:
Foi sua audácia — olvido; o olvido — uma fraqueza...
Certo fora, sem ela, o Washington do Sul...

 

NO ECLIPSE DA LIBERDADE

Quando ela veio, com a grande calma
Da força que triunfa, e que perdoa,
Entre estrelas andava, e era tão boa,
Que o chão em palmas foi-lhe uma só palma.

Chegou, enchendo tudo de sua alma...
Que faz? onde erra agora? em que céus voa?
Por vale e monte o nome seu não soa:
Que crime à garra adunca a tem, a empalma?

O infortúnio do tempo, um dia, achou-o;
Viu no monstro a beleza de Antinoo,
No traidor viu o espírito do forte;

E de então, como à flor a gota d’água,
Sinto que dobra a minha fronte mágoa,
Que ódio não turva, ou medo ao exílio e à morte...

 

OS EVANGELIZADORES

Homens de bem, mentis; mas eu vos compreendo:
Vós não fazeis a Deus este cobarde insulto
De diminuir-lhe o grande, o misterioso vulto...
Tomo como virtude o vosso crime horrendo.

Quase que vos perdoo, e este preito vos rendo,
Que vós sabeis o que há de ridículo e estulto
Nessa história de sangue, e nesse imenso culto
Que nasceu de Jesus, no Gólgota morrendo...

Pode espalhar mais sóis sobre o nosso caminho,
Aos espinhos da vida arrancar um espinho,
Ser Prometeu, e ao céu ir roubar a verdade...

Sendo tudo quimera, excetuando as dores,
Por que não lhe deixar um sonho...  Ó sonhadores,
Prendeis assim a um sonho eterno a humanidade...

 

OCULTISMO
(A Medeiros e Albuquerque)

Quando à noite sozinho, alheado e mudo,
Passam por mim, num turbilhão medonho,
Mundos que palpo, e que não são contudo:

Busco em vão quem os fez e os leva, e ponho
A olhar-me: existo? quem sou eu? e estudo
Se isto, que vejo inda acordado, é sonho...

Há dentro em nós recordações trazidas
De outras terras e céus, num vago enleio:
Lembranças de sofrer jamais perdidas,
Sofrer que unir-se às nossas mágoas veio?

Num deus... deus que agoniza, há muito, eu creio,
Que a não ser, jovens mães estremecidas,
Nunca irrompera mais do vosso seio
A dor com toda dor das outras vidas...

 

PROFUNDIDADES DESCONHECIDAS

Por uma escada feita de diamantes,
Obra de rara e incógnita estrutura,
Vou subindo, subindo ao céu, à altura
Dos olhos seus, esferas rutilantes.

De cima deles desço, alguns instantes,
Aos abismos em que sua alma pura
Deve estar em nudez: lá ‘stá; fulgura;
Encontro-a; é ela; e volto, como dantes;

Sim: é ela: Lá ‘stá de esplendor cheia;
Ebria-me, seduz, prende-me, enleia;
Mas saber o que quero a empresa é vã.

Aí fulgem só imagens escolhidas,
Reais no fundo, em luz e em cor mentidas,
Como a Ronda Noturna de Rembrandt.

 

O CONSELHO DE HAMLETO

Trazes um coração dentro do peito,
Um casto ideal, um forte pensamento,
Tu és honesto?  Vai para o convento,
Como à Ofélia mandou um dia Hamleto.

Quem à virtude só der o seu preito,
Para encontrar no sono a calma e o alento,
Busque o sepulcro, não procure o leito:
Se viver, viverá do seu tormento.

Vida é delírio: vê rosais, escuta
Canções, com que alma embala a mente insana;
Se a razão volta, o quadro então permuta,

Vem de novo o sofrer, que a febre engana:
À mesa, em que se senta a escória em luta,
Não tem lugar a flor da raça humana.

 

PROLIFICUS DOLOR

Esta infinita Sede do infinito,
Não a contenta e farta coisa alguma:
Vê só de todo o mar em cima a espuma;
E não vê senão forma, ou culto, ou rito.

Acha que o espaço é uma boca, e o grito
Que a síntese da vida enfim resuma,
Que sai dela, é de um sofrimento escrito
No céu, na terra, além por tudo em suma.

Andar nisto um mistério atroz se sente!...
Quando um beijo arfa ao encontro de outro beijo,
Trai a gozo um gemido ali presente.

Será por isso então que o amor nos mente?
Pois que o amor, sob o impulso do desejo,
É a dor que fecunda a dor somente.

 

STRUGGLE FOR LIFE

Fui-me viver nas sombras da floresta,
Viver aí só, aí só buscar repouso,
E a serena alegria, e o íntimo gozo
Do céu cheio de luz, da terra em festa.

Pois olhem, nada disto achei, e ouso
Crer que ninguém a paz haurira nesta
Mentida calma: um véu delicioso
Cobre o ódio, a traição, que o campo infesta.

Fura o bisso da túnica impoluta
Do lírio a larva imunda e o inseto: — e ouço
O rumor surdo de áspera disputa

Do berço à flor, do pranto em grito ao fosso:
E dão o amor da vida e o horror da luta
Armas ao verme, espantos ao colosso...

 

O ESPAÇO LIMITADO

Quando eu julgava e cria intérmino este espaço,
Jamais pude entendê-lo, e andava mais contente:
Hoje que dizem ter um fim, acho-me em frente
Ao maior, mais profundo e lúgubre embaraço.

Tem um limite então provado? Ergue-se o braço,
E não achando mais o vácuo eternamente
Encontra um muro, um muro enorme de repente:
Que de hipóteses vãs, que me enleiam, não faço!...

Para isto tudo!... E além? Por mais que a razão torça,
Não compreendo o céu e não entendo a força!
Procuro: é o universo um coxo, um cego, um mudo?

Eu noto só que a morte em vida se renova,
Que ao mesmo tempo a cova é berço e é berço a cova,
E que tudo anda em nós, como Deus anda em tudo.

 

IMPLACABILIS DEA

Do amor a áscua fatal eternamente acesa
O homem nivela ao verme, e a um universo o iguala;
Mas traiu, o que a deu, nada perdendo em dá-la;
Parece força; ilude: — é apenas fraqueza.

Nela se banha, e inova, e enflora a natureza;
A alma branca do lírio o aroma branco exala.
Sem pudor, como um cão, quem arma esta surpresa,
Uiva à dor pela boca esquálida da vala.

Como os cisnes, em grupo, espraiam-se nos lagos,
Deuses vão pelo espaço, em bando, a rir do aflito
Lutar, em que imos nós, presas de uns sonhos vagos.

Que lhes importa?  Sempre o gozo última um grito:
E a morte há de sair de um beijo e dois afagos
E dar mais luz aos céus, e mais céus ao infinito.

 

BLASFÊMIA

Pôr sobre a vasta dor humana um sol tranquilo,
Como ao gorjal de um cão um vil guiso amarelo!
Porém que obreiro ousou pensar somente aquilo?
E feito, e posto ali, quem ousou achar belo?

Sei que o esboço escondeu, sei que guarda o sigilo:
Como o meu nome é cepo, o seu nome é cutelo:
Quero vê-lo, e não vem; chamo-o, e não há de ouvi-lo;
Mas embora: ao seu ódio o meu ódio nivelo.

É um tormento o amor, maior tormento a vida.
Desce à cova o universo, escorralha caída
Dum em outro mistério e um grito em torno disto;

E disto em cima um Deus imenso, eterno, infindo,
Surdo, pacato, bom, farto, contente, rindo
De Prometeu um dia, e outro dia de Cristo...

 

A DOR

E a dor sentada à porta, à chuva, ao vento, espera;
Sabe que ela há de entrar; sabe que há de ter hora:
Deixem contente o lar a rir, que logo chora;
Só pela voz da flor gorjeia a primavera.

Antes deste universo arfar a dor não era:
Sair de si a dor, a dor não pode agora,
É dor, mau grado seu, como a aurora é da aurora,
Como a rosa é da veiga, e o fogo é da cratera.

Fatal, como é a sombra, ela se arrasta e inclina:
Preferira cantar, como um pássaro trina,
Ser a alegria em vez de ser a dor... mais nada.

Lágrima eterna presa a um soluço infinito
Sou eu, és tu, a terra, o mar, o céu, num grito
De dor, que a própria dor solta aterrorizada...

 

CRAS...

Dizem que é bom sofrer, que a dor descerra a porta
Das esferas azuis, onde ouro e jalde é tudo:
Mas estando o sepulcro eternamente mudo,
Mudo todo universo, — o crer num céu, que importa?

Ir num mesmo caixão uma esperança morta
De um morto sonho ao lado!... ó deuses, não me iludo.
Do infinito aos seus dois pontos, quem vai? E o agudo
Grito da terra muito embaixo o espaço corta...

Deixa, eterna miséria, o eterno horror do obscuro:
Por que sou? deste mal a causa em vão procuro;
Para explicá-lo só um crime enorme resta.

Vamos. Erga-se altar à deusa da alegria:
Quem, na ebriez do cantar, notará dia a dia
Que por um que faltou canta um outro na festa?...
 


A CEGA

A vida... quem a fez, fez a dor: punhalada;
Fez-se o mar, pôs-se nele um crime: a tempestade;
Inventou-se o terror servindo à crueldade;
Fez-se a flor, nela dorme o veneno: emboscada.

Fez-se a rosa, o que é bom, para o espinho: cilada;
Fez-se o céu, um abismo; outro, o inferno: maldade;
Fez-se o verme, um horror, torpe inutilidade;
Enfim o homem fez Deus: Deus fez isto, e mais nada.

Deus não ama a ninguém, como a ninguém odeia;
Do seu nome, isto só, toda a terra está cheia;
Como nós, qualquer vício ele em si mesmo traz.

A força será sempre essa louca, essa cega
Que tudo deixa, e logo em tudo outra vez pega,
E, Penélope eterna, anda, faz e desfaz?...

 

VANITAS

Ser César, dominar o mundo inteiro,
Ser Colombo, inventar um continente,
Ser Homero, brandir a lira ardente,
Que vale? — É o universo um grande argueiro.

Tudo é mesquinho, e vão, e passageiro,
Inútil no passado, e no presente,
Sonho, oásis que ilude, e foge, e mente
Na fútil obra do orgulhoso obreiro.

É ser grande, ter isso? — Isso é ventura?
Só no palhal, que à beira do caminho,
Da fisga de um rochedo se pendura,

No sítio em urzes, de árvores maninho,
Há, — e quem sabe?! — uma alegria pura,
Pregada à sombra, como ao galho o ninho...

 

OBSCURIDADE ILIMITADA

Sempre o enorme ringir desse eterno problema!
E o conúbio da luz de orbes pontuando a esfera!...
E essa dúvida amarga, essa ânsia, que nos queima,
No cairel desta vasta e lôbrega cratera.

Não há sol que não morra; estrela que não trema:
E o que dizem os céus aos céus, quem assevera?
Que canta em ritmo estranho o universal poema?
Se Deus é Deus, enfim para ser Deus, que espera?

Há no verme a ironia? Há no espaço uma ideia?
O que fez está feito? O que disse, está disto?
Por que não compõe Ele uma nova epopeia?

Se doutros Prometeus, que hão de vir, não receia,
Que quer de nós, que quer, dispondo do infinito?
Por que os mundos que move entre dois grãos de areia?

 

WITHOUT HOPE

Não te perdoo o mal que me fizeste,
Ó Deus, porque me sinto humilde e escravo,
Mesmo se insulto os sóis, se a pugna travo
Com o vasto espaço, onde os teus sóis puseste.

Que sei? — Tu prestas? Há quem saiba, e preste?
Por que geme e espumara este mar bravo
De amor, que tudo assoma, inunda, investe,
Em que meu corpo, irado, ou mancho ou lavo?

Eu que desejo ou quero com certeza?
Para que ponto arrasta-me a corrente,
Que ora sigo, ora fujo, e volto, e, presa,

Leva-me enfim irresistivelmente,
De queda em queda, aflito e sem defesa,
Vencido eterno, eterno descontente?...

 

CULTO

A um princípio, que adeja alto em céu impoluto,
Que mão alguma alcança, e império algum assusta,
Curvo-me: e a consciência aplaude esta ação justa.
Vença o belo: por ele eu vivo, eu sofro, eu luto.

Arma-me estranho deus um braço resoluto,
A fé meteu-me bronze à espádua, e a fez robusta;
Fecha-me dentro em si o bem, como um reduto,
E o amor, complicação daquela ideia augusta.

Descer ao eterno abismo, — o coração — quem ousa?
Da alma branca de Abel se em nós há qualquer coisa,
Em Caim todos têm o mesmo sangue irmão.

A quem pois o meu colo hei de baixar? Mostrai-o.
De golpe a estátua de ouro a pó reduz o raio;
Dê, se quer, o universo ao pó um culto: eu não...
 


VIRGÍLIO E PASCAL

Quando penso em Pascal, quando em Virgílio penso,
Diante deste universo em giro eterno, diante
Do fim, da causa, e autor da máquina possante,
A incógnito terror o espírito suspenso;

O silêncio por tudo impassível; sem senso
A instável criação, reviva e agonizante,
Nascendo, para só morrer no mesmo instante,
Todo caminho obscuro; à razão tudo infenso:

A ver quase arrasada essa mudez feroz,
Quisera tê-los hoje entre nós, o gigante
Nos números montado, e o poeta, a luz do Dante,

Bela estrela de Roma augusta à fronte acesa...
Não ‘stá cheia de Deus a grande natureza,
A grande natureza está cheia de sóis...

 

O ETERNO ENIGMA

Na terra é grande a cólera das almas;
Boas são as que só têm menos ódios;
No deserto é que dão mais verdes palmas:
O mar e o vento, um mesmo deus sacode-os.

A pérola, que brilha, e esplende, e azula,
É a moléstia de um molusco apenas;
Do dia a ausência é que abre e vermicula
De astros as noites límpidas, serenas.

Quem, louco!  tem o orgulho da verdade?
Donde virão os bons ou maus conselhos?
Grãos de areia, ante o espaço e a eternidade,

Valeis menos ou mais que os sóis vermelhos?
Se é cheia a própria luz de escuridade,
Ante quem dobrarei meus dois joelhos?!...

 

VANITAS VANITATUM

Fluxo e refluxo enfim do indomável oceano,
Leva-o neste oscilar o seu destino eterno,
Gota e gota perdendo o seu sangue ano e ano,
Sem édens nunca achar e sem sair do inferno.

Sobre o esqueleto nu do mar há de o galerno
Soprar um dia sem ter que encher um só pano,
Morta a vaga sem um grito de pelicano,
E amortalhado o sol em seu lençol de inverno.

Homem, ridente luz, homem prantiosa treva,
Que Adão fez revoltoso, e humilde e bom fez Eva,
Que encheste a terra e o céu do pó do teu barulho,

Fazendo a cada passo o bronze ecoar da história,
Ora um clamor de luto, ora um rumor de glória,
Que foi de ti com todo o teu banal orgulho?...

 

VITÓRIA DA CIÊNCIA

Triunfará a Ciência, e os seus batalhadores
Os selos quebrarão dos mitos consagrados?
Se ela não triunfar, que importa? Estão lançados
Os destinos da vida em moldes superiores.

As loucas soluções de escravos e senhores,
Os sonhos vãos adrede escritos e sonhados,
Semelham os dobrões e os florins de ouro usados
Que acabaram nas mãos de antigos possuidores.

Águia, que o céu domina, águia, que desce o abismo,
Homem, há no teu pleito um eterno heroísmo;
Tens a grandeza e tens a amargura dos mares.

Para o ideal da existência, e para a luta imensa,
Não basta crer, quer mais o que medita e pensa:
Quer provada a verdade, a que há de erguer altares.

 

INSÍDIA MÁXIMA

E quando a criação triunfante o espaço enchia,
Das esferas azuis, onde ouro e jalde é tudo:
Era austera verdade a sagrada alegria,
E era um riso a manhã, e um sorriso era a sesta.

Disto nada ficou: disto nada nos resta.
Jeová armara à vida uma insídia, e caía
O homem nela: e ora em sangue um cadáver dizia
Que era, já pela morte, a dádiva funesta.

Ser ignoto, amontoa as cóleras no cenho:
Chame seu o Teu crime um qualquer vil conselho,
De Ti, da noite eterna um vão terror não tenho.

Marca o ponto que lamba o cão do sol vermelho;
Meta ao jugo o universo o teu poder ferrenho;
Força, esmaga-me, és Ódio: Ódio, eu não me ajoelho.
 


O CÉSAR ADRIANO

Não venceste, assassino; e era nobre o teu fito,
No culto à Guerra e ao Belo, a arte humana e divina!
E entre os grandes e os bons querendo o nome escrito,
Tiraste à Tivoli a pedra travertina,

À Ibéria a prata e o ouro, o ferro à Palestina,
Os mármores à Frígia, os pórfiros ao Egito,
O alvo jaspe à Lacônia, à Tessália o granito,
A pérola à Golconda, à Gália a turmalina.

Semeaste a ponte, o templo, a terma em toda parte,
Deu-te auréolas Minerva, e deu-te louros Marte:
Em deus atravessaste o Coliseu e o Foro,

Chegaste à História, e ao Olimpo inda a chegar, um triste
Ensanguentado espectro ergueu-se, olhou-te, e ouviste
Bradar: — Para. — E paraste à voz de Apolodoro.

 

O IMPERADOR CARACALA

Fartou o povo-rei até a saciedade
Com o espumante falerno e os rubis de Marsala;
O César Antonino, o grande Caracala
Pode por cima dele ir da Terma à cidade:

Se lhe dá tudo, pão, festas, e liberdade,
E o sangue do estrangeiro... o fétido, que exala
No circo o leão e o tigre esfaimados, invade,
Mas recua ante o olor dos sândalos da sala.

Na piscina ele nu entre belezas nuas,
Brancas, no alvo esplendor das semicurvas luas,
Dão horas ao amor, palpitando aos pedaços.

Jamais a consciência o crime lhe importuna:
Quem pisa o mundo e aos pés leva Deus e a Fortuna
Pode esmagar o oceano entre o anel dos dois braços...

 

MIRAGENS

Eu caminhava... Enchia o campo olente aragem:
Como uma rosa enorme, há pouco, o sol nascera;
E num vasto rumor de aurífera poeira
Erguia-se outro sol do fundo da paisagem.

A luz, que tem na loira aurora o louro pajem,
Que faz brotar a flor dos olhos da caveira,
Que crava no deserto intérmino a miragem,
E ante a qual abre o céu, como o leque a palmeira,

De longe, aureolar um santo parecia!
Quando perto cheguei, a última agonia
Vi de um cão; pobre galo esgravatava o cisco

Por entre vidros, terra, e algumas pedras toscas;
Fervilhava por cima um turbilhão de moscas...
E era nisso que a luz pusera o augusto disco!...

 

A HUMILHAÇÃO DA VIDA

O pranto sobre o pranto é necessário à vida,
Como é preciso a gota em cima doutra gota,
Esta de pedra sai, que tenha a entranha rota,
Como aquela sai da alma esmagada e partida.

Para a viga melhor ser curvada e torcida,
Dentro d’água se deita, e aí fica um tempo imota;
Assim a água do seio; assim a água da grota:
Não há água que corra e se suma perdida.

Arqueia o corpo e a alma humilha, isto é verdade;
Mas porque a torna mole, e suprime a dureza,
É que ela serve e é boa à pobre humanidade.

Da nossa frágil carne e nosso orgulho presa,
O que podemos nós contra a fatalidade,
Se temos contra nós a própria natureza?

 

SUPREMUS DOLOR

Há uma grande e lúgubre tristeza
Que outra, creras maior, nem inda iguala,
Que não encontra irmã na natureza:
De que jamais ninguém falou, nem fala.

Não anda, ao amor, que trai, gemendo presa;
Tem-nas todas a morte, e a não exala;
Não sai da cova, não a cospe a vala;
É sofrimento e a um tempo uma surpresa.

Não é, mau grado, a lágrima que esfria,
Sem ter achado o coração preciso,
Com outra ao pé de si, em companhia:

A dor suprema é rir, num paraíso,
Rir só, sem ter o rir de outra alegria,
Que é mais doce chorar que rir tal riso.

 

PELEJA INÚTIL

Quando às vezes procuro um nome que resuma
O que sou? por que sou? por onde vamos indo?...
Se penso, não encontro o belo em coisa alguma:
Se não penso, acho mais ou menos tudo lindo...

Um som prende outro som, cobre a espuma outra espuma
De um grande sonho, como um vasto mar infindo;
Se irrequieto o abandono, e outro caminho cindo,
É tudo arneiro, estepe, ou rocha, ou vento, ou bruma.

Por mais que eu clame a um deus, um deus qualquer que seja,
Para mudar da aranha o esquálido organismo,
Que baba os fios de ouro em que o universo arqueja,

Nada: e torno a chamar: ninguém: — indago, cismo...
E largo de cansado a estúpida peleja,
Tendo a um lado o mistério e doutro lado o abismo...

 

O IDEAL E O REAL

Dois universos!... Um, o que dá forma e sonha
Nossa mente; abre, e rasga, e arqueia, e azula, e cria;
E esse outro, em que se inverna, essa cava medonha,
Que guarda uma ilusão de cada extinto dia.

Um é obra gentil da vária fantasia,
Cheirosa, alegre, doce, esplêndida, risonha:
Outro, a fome, a miséria, a lágrima sombria,
Onde escarra a traição a esquálida peçonha.

Quero o primeiro: esta alma ardente, ansiosa, aflita,
Dele, para viver, dele só necessita,
E tem só nele luz, céus, olimpos, que ver.

Quando a taça de fel a angústia humana traga,
Não é pelo ideal, que nos faz rir e embriaga,
É pela luta amarga e austera do dever.

 

O MESTRE

Nas tardes de janeiro, o sol no ocaso, à beira
Do mar inquieto e ondeando à doce luz do poente,
Parava Ele de olhar às vezes de repente,
Como alguém que arfa e cai em meio da carreira.

Cego e surdo ao rumor da natureza inteira,
Na palidez mortal de um mármore indif’rente,
Parecia ter ido onde não vai a gente,
Onde jamais chegou voo de águia altaneira.

Como quem surge após de um abismo, trazia
Nesgas de alva cantante e pedaços de dia
No olhar, na fronte; e um pouco em si de cinza e lava.

E nós: — Mestre, por lá, o que de novo achaste?
E ele ereto, bem como a flor em cima da haste:
— Vi Prometeu no fim do céu: inda o escalava!...

 

TENTANDA VIA

Restam mundos a ver... Eia, heróis. — Nau que brilhas
Dentro em mim, cai rufando à mó de irmãs galeras:
Erguer âncoras, vá, alar! às maravilhas
De um mar hirto de leões em fogo e estranhas feras!

Arquipélago argênteo, esplêndidas Antilhas,
Farelhões de rubis, lumaréus de crateras,
Alfaquis de corais, por entre vós flotilhas
De áureas palandras vão rodando como esferas.

Aproar... subir ao céu, rumo dessa obra prima:
Vamos de perto olhar quem a faz, quem a ordena,
Quem o abismo no abismo encrava, e o estende, e o anima.

Aos deuses!... Ao chegar bradaremos: À cena...
E hemos vê-los jogar os sóis abaixo e acima,
Como besantes de ouro às mãos de histriões na arena!

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