1/12/2023

Amélia (Conto), de Leocádio José Correia


AMÉLIA

Pedro e Amélia encontraram-se pela primeira vez em um passeio campestre; trocaram promiscuamente duas ou três olhadelas e foram bastantes para que o deus travesso os prendesse em sua corrente magnética.

Não descreverei Amélia como o tipo da beleza; basta dizer que era simpática e cheia de atrativos. Morena, de olhos pretos e mui vivos, com elegante andar à espanhola, tornava-se um diabinho de quinze anos, capaz de fazer cair em tentação o santo mais pudibundo que tenha sido canonizado.

Pedro, diante da encantadora Amélia, ficou todo atrapalhado; procurava posição, e não achava jeito para tornar-se agradável e elegante.

É que o bichinho carpinteiro principiava a abrir casa no coração do rapaz.

Amélia, e uma senhora que ia em sua companhia, sentaram-se em um banco de madeira à sombra de uma arvore secular.

Pedro, quase em frente, porem mais distante, conversando com um outro jovem, tinha assim ocasião de contemplar Amélia, que procurava igualmente entreter a sua companheira, como que achasse prazer em ficar ali por mais algum tempo.

O companheiro de Pedro reparou casualmente que tinha em frente a si uma moça bonita, e conhecendo pelas distrações de Pedro que ela não lhe era indiferente, acrescentou com malicia:

- Pedro, tu és muito fino...

- Por quê?

- Nada, só te digo que podes ir pentear monos!

- Pois acreditas que...

- Não acredito nada, adeus, sê muito feliz; até outro dia.

Pedro ficou só, e corou, vendo descoberta a sua inclinação por Amélia; que ele a todo o custo trataria de ocultar, tanto mais quando não a conhecia.

O sol já se havia escondido, e Pedro ainda se achava no campo, pensativo. Seguiu maquinalmente o caminho que tomou Amélia, e chegou à casa perturbado e inquieto.

Naturalmente passou a noite a sonhar com a imagem de seus encantos, porque no dia seguinte assim que concluiu os trabalhos da oficina, tratou de saber quem era a moça que lhe havia impressionado tão seriamente.

Soube então que Amélia era órfã, e que vivia honradamente em companhia de uma tia e madrinha, a qual, posto não fosse rica, esmerava-se em dar-lhe uma modesta educação a par de seus recursos.

O dia seguinte era santificado.

Pedro ataviou-se da melhor forma que pôde, e destinou o seu passeio pela rua em que morava Amélia.

O pobre rapaz já andava arrastando a aza, ferido pelas setas de Cupido.

Viu-a felizmente à janela, cumprimentou-a, e foi correspondido com agrado. Mais adiante deixou cair o lenço, e voltando-se para apanhá-lo, observou que Amélia ainda olhava para ele com acanhamento.

O pretendente a um gordo emprego, recebendo o titulo de sua nomeação, não ficaria mais inchado do que o nosso Pedro, vendo que o seu amor era correspondido.

Faltava ser apresentado ou relacionar-se em casa de Dona Angélica, tia de Amélia, com quem esta residia. A pretexto de encomendar-lhe algumas costuras, para o que tinha ela adquirido a melhor fama, lá se apresentou um dia, e não saiu descontente. 

Quem ama tem necessidade de agradar a pessoa que lhe pode ser útil; e por isso como todas as senhoras, principalmente as que já tem vivido meio século, não desgostam de uma baforada de incenso, Pedro por esse modo soube insinuar-se no espírito de Dona Angélica, e relacionou-se na casa.

Se diz por aí, que o amor é fogo não sei se por isso lavrou a sua chama no coração de Pedro e Amélia, a ponto de ficarem quase incendiados! E como os banhos de igreja são as melhores bombas para apagar o incêndio do coração, tratou-se logo do casamento que é sempre no que dão essas travessuras.

As leitoras dispensarão por certo mais comentários a respeito; e portanto será ocioso dizer que os noivos confessaram-se, que se fez o enxoval e os de mais preparatórios.

Isto posto, haviam decorridos seis meses, e já Pedro e Amélia estavam bem amarrados pelo nó que lhes deu o vigário da Paróquia, desfrutando uma adocicada lua de mel, cercados de todas as delicias que presidem esses tempos venturosos.

Nisto Amélia foi feliz, porque conhece-se por aí muita moça que é amada três ou quatro anos, já com um amor embolorado e cheio de teias de aranha, sem que o ingrato se resolva a pedi-la em casamento.

Um namoro velho, minhas leitoras, é muito prejudicial ás moças, porque se o namorado por qualquer circunstância deixa de casar, nenhuma outra pessoa se anima pedi-la, se não pelo receio de uma recusa formal, ao menos pela bem fundada suspeita de que ela possa ainda sentir algum tic-tac de tempos passados.

Assim é que destas delongas resulta muitas vezes o alistamento de mais uma praça para o batalhão das involuntárias tias!

Se pudera ser moça (do que estou livre) teria naturalmente o meu passarinho verde; porem impunha-lhe logo a condição de casar dentro de um ano, sob pena de ser eliminado da matricula de meu coração, embora confirmasse assim o juízo que faz da mulher o maestro Verdi no seu Regoletto: 

La dona é móbile
Qua piuma al vento

Deixemos, porem, estas divagações que vão alongando a história de Amélia, e passemos adiante.

Pedro era artista.

Tipógrafo de algum merecimento, ganhava bastante para satisfazer a maior parte de suas necessidades.

Se não era rico, também a miséria não lhe batia à porta, e podia viver honradamente sem sacrificar a moça que escolhesse para sua mulher.

Todas estas considerações ele havia feito antes de casar.

Amélia não tocava piano, nem falava francês, porem a sua educação domestica era perfeita.

Nos trabalhos de agulha, e outros misteres de casa, poucas lhe levariam vantagem; por isso, com esse trabalho suave e necessário para distração, poupava ao marido muitas despesas.

***

Havia passado o primeiro ano de uma vida cheia de paz e felicidade. Se Pedro amava Amélia, esta pagava com juros o seu amor.

Porem, como neste mundo não há felicidade completa, vão ver como o destino mudou a sorte deste casal.

Um dia Pedro entrou para casa muito agitado, e disse a sua mulher.

- Sabes Amélia, chegou o vapor da corte com notícias de muita importância.

- Boas, ou más?

- Infelizmente terríveis para nos! 

O tirano do Paraguai declarou guerra ao Brasil! Aprisionou um vapor nosso que conduzia o Presidente Carneiro de Campos para Mato Grosso, e já uma quadrilha desses vândalos invadiu essa província, matando, roubando e incendiando sem piedade!

- Jesus!

- Sim, Amélia; os cambiais nada respeitam... até as inocentes criancinhas são arrancadas dos braços das mães e suspensas nas pontas de baionetas!

- Meu Deus, que horror!

- É horrível, mas é certo.

Do Rio de Janeiro já embarcaram três mil homens de tropa de linha nos vapores Lapok e Cruzeiro do Sul, e o governo promove a aquisição de voluntários, oferecendo prêmios e vantagens a todos que se quiseram alistar.

Amélia conhecendo o gênio resoluto de seu marido, empalideceu.

- Mas eu, continuou Pedro, não quero nenhuma recompensa, não exijo sacrifícios da nação. Sou brasileiro, e como tal, não posso tornar-me indiferente... a minha pátria reclama o concurso de seus filhos e...

Amélia sufocada em prantos tinha-se lançado nos braços de Pedro sem poder proferir uma palavra. Pedro enxugou também a furto uma lágrima, e tratou de consolar Amélia, contando assim o que lhe

havia acontecido.

- Passei pela rua Direita, e encontrei aí povo apinhado. Rompi por entre uma massa compacta de povo, e cheguei ao centro de uma reunião popular.

Aí se achavam diversas autoridades, ao lado das quais uma linda menina vestida de branco, com uma fita verde a tiracolo, e coroada de folhas de Independência, empunhava a nossa bandeira.

 

A musica que tocava incessantemente o hino nacional; os eloquentes e patrióticos discursos que eram pronunciados; os entusiásticos – vivas – que ecoavam por todos os lados, fizeram-me esquecer que era marido... só lembrei que era brasileiro!

Nesse momento, Amélia, o meu entusiasmo tocou no delírio: senti o sangue regurgitar-se nas veias e o coração palpitar pela santa causa da pátria.

Dei um passo à frente, beijei o estandarte do Brasil, e... alistei-me como voluntario!

- Que fizeste, Pedro?!

- Perdoa, minha Amélia... fiz o meu dever... o dever de todo o brasileiro que alimenta no coração o sacrossanto fogo do patriotismo.

- Oh! dize antes que esse foi um sonho, dize que estás louco, porem, não me mortifique assim...

- Coragem, Amélia, é forçoso confessar-te fui o primeiro a registrar o meu nome no grande livro dos beneméritos da pátria!

Não fui senhor de minhas ações nesse momento... Se souberes, minha Amélia, o que é o patriotismo, se calculares a força que tem esse sentimento gerado no coração do homem, desculpar-me-ias, se por ventura me pudesses julgar ingrato.

Amélia que não podia duvidar do amor que lhe consagrava seu marido, apenas respondeu com acanhamento.

- Ao contrário, Pedro: eu não condeno o teu nobre e leal procedimento; queixo-me apenas da minha sorte, pois que terei de sofrer amargurada tristeza com a tua ausência, talvez eterna...

Devias ao menos lembrar-te que és o meu único arrimo neste mundo, e que sem ti não sei o que será de mim...

- Amélia, acrescentou Pedro, suplicando, não me mortifiques assim... as tuas palavras são punhais que me tocam no coração... bem sabes o quanto te idolatro... porem devia eu cruzar os braços vendo ultrajado o pavilhão do Império, o símbolo da nossa liberdade?

- Está bem, meu Pedro, eu te acompanho, quero estar a teu lado, quero participar contigo dos trabalhos e fadigas da guerra... se uma bala te ferir, eu quero ser a tua irmã de caridade... e se morreres... quero ir também abraçada com teu cadáver à sepultura!

- Criança! Podes tu avaliar todas as peripécias de uma guerra? Serias capaz de suportar as horríveis privações de um soldado em campanha? Oh! nem eu consentiria em semelhante coisa. Sim Amélia, tu hás de ficar, e eu partirei; assim é forçoso. 

A pobre menina levantou maquinalmente as mãos para o céu, e com os olhos arrasados em lágrimas exclamou:

- Meu Deus! Que mal hei feito para ser castigada deste modo!... Perder o meu Pedro ainda tão cedo!

- Que é isso, Amélia? Não sejas criança, porventura vou morrer?

- Não sei o que me advinha o coração... parece que não hei de te ver mais!...

- Amélia, resigna-te, não faças de mim um desgraçado. A minha honra, os meus brios de cidadão estão comprometidos.

Queres que de hoje em diante eu seja apontado como um covarde?

Queres que diga, lá vai passando um homem sem dignidade, sem honra, sem brios?... é Pedro o tipógrafo, marido de Amélia indigno de ser brasileiro?

Queres um marido assim eu ficarei!...

- Não, disse Amélia em tom altivo, não; antes a morte de que deixar um nome amaldiçoado para nossos filhos. Vai, Pedro, vai; não seja eu que sacrifique a tua honra. 

Vê? Já não choro! Oh... a mulher não é tão fraca como injustamente a julgam. Ela tem forças bastantes para suportar a desgraça com resignação.

Vai, meu Pedro, vai; sê digno de tua família e de tua pátria!

Abafarei em meus peitos os suspiros de saudades... morrerei talvez de desgosto, porem saberei também ser digna de ti!...

- Abraça-me, meu anjo de bondade, disse Pedro satisfeito, o meu sentimento assim será menos sensível.

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Um mês depois, embarcava para o Rio da Prata o batalhão de voluntários do qual Pedro fazia como primeiro sargento.

***

Amélia com a ausência do marido apesar dos esforços que empregava para conformar-se, ficou entregue à mais pungente saudade.

Não podia afastar de si a funesta lembrança de perder para sempre o seu querido Pedro.

Sua tia, que desde o dia do embarque de Pedro, veio fazer-lhe companhia, procurava todos os meios para distraí-la; porem todos eles eram improfícuos, porque a tristeza de Amélia aumentava de dia para dia. Não queria tomar alimento algum; desejava estar só, pouco conversava, ocultando-se até ás pessoas com quem tinha intimidade.

A tarde pelas instancias da madrinha dava um pequeno passeio pelo jardim, e depois sentava-se à sombra de uma copa da laranjeira, onde também pouco se demorava.

Aí o pipilar dos passarinhos, o perfume das flores que a brisa trazia por entre as folhagens vinham despertar-lhe recordações tão saudosas, que a desconsoladora Amélia não podia deixar de soltar doridos suspiros. E assim, banhada em lágrimas, recolhia-se para seu quarto, onde passava noites de verdadeiro martírio.

Uma leviandade, ou por outra, uma imprudência que se comete sem refletir-se no mal que pode causar, veio contribuir seriamente para agravar a triste situação em que se achava Amélia.

Havia na vizinhança uma velha, amiga e comadre de Dona Angélica, mulherzinha espevitada e que não tinha papas na língua. Quando ela abria os diques da palavra, inundava tudo com a torrente de sua loquela!

A língua desta parladeira velha seria um precioso tesouro para algum deputado mudo.

Chamava-se ela, Dona Astrogilda da Purificação, que pelo nome não se perca.

Um domingo ao anoitecer, horas em que costumam aparecer as corujas e morcegos, Dona Astrogilda preparou-se também para sair, com tenções de visitar a sua comadre e Amélia ao mesmo tempo.

Pôs o seu capote de cabeção, já de cor duvidosa, encapelou uma touca de lã, e seguiu o caminho da casa.

Assim que chegou ao corredor, começou a dar movimento à língua.

- Salve Deus à minha comadre, à menina Amélia e toda obrigação da casa!

E lá foi entrando para a sala de jantar, onde encontrou Amélia sentada em uma rede, ainda muito pálida e abatida.

Depois de um cumprimento que ia por aí além! a velha encetou conversação notando logo a tristeza em que se achava Amélia pela ausência do marido. Apesar dos sinais que Dona Angélica fazia à sua comadre para não falar em Pedro, continuou a velha falando dos negócios da guerra, que era a ordem do dia: 

- As coisas por lá não vão muito bem, minha comadre; o Paraguai é um matadouro, e o Lopez um carniceiro levado de quantos diabos há!

Infeliz da mãe que tem filhos nesta ocasião, porque se não morre na guerra, morre de peste!

Ainda hoje chegou o vapor com noticias bem desagradáveis..., Amélia estremeceu.

Sua tia que achava inconveniente a conversação, estava incomodadíssima; olhou significativamente para Dona Astrogilda, e exclamou atalhando-a.

- Tempo de guerra, aparecem mentiras como terra – este antigo rifão é muito certo. Por esses dois ou três meses estará tudo acabado. Lopez há de fugir ou render-se porque o Brasil tem muita gente e dinheiro para gastar, que é o que acaba com tudo. Não falemos mais nisto.

Dona Astrogilda que não dava pelo leme, apenas teve tempo de sorver uma narigada de canjica, e respondeu apressada:

- Não creia nessa, comadre; ainda hoje estive ouvindo a leitura do jornal que conta da ultima batalha em que Pedro foi ferido.

Amélia deu um grito, e pendeu a cabeça como que fulminada por um raio!

A insensata velha conhecendo então a sua imprudência, desculpou-se como pôde e tratou de retirar-se apressadamente, porque Dona Angélica num momento de impaciência não guardou os deveres de civilidade, e despediu sua comadre bruscamente.

Pela precipitação com que saiu a velha, errou a porta e entrou em casa de um vizinho sapateiro que estava fazendo o seu serão.

Este, pela violência com que esbarraram na porta do corredor, levantou-se assustado e meteu o pé dentro de uma panela de grude!

- Quem é que anda por aí?

- Desculpe-me, vizinho, sou eu que errei a porta; boa noite.

- Salta, bruxa! Ave agoureira! Tu o que merecias agora, era uma lambada de tirapé.

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O estado em que ficou Amélia depois desta visita imprudente, inspirava sérios receios: em pouco tempo a febre se apoderou dela e por fim apareceu o delírio.

Sua tia sempre desvelada e caritativa, cercada de algumas amigas sinceras não abandonava a cadeira junto à cama da enferma, prodigalizando-lhe todos os cuidados.

- Que tens minha filha, o que sentes, perguntava-lhe frequentes vezes. Mas Amélia não podia responder-lhe. Deitava uma mão sobre o coração, apontava com a outra para o céu, e uma lágrima rolava pelas pálidas faces.

Chamado o medico, declarou este que a doente começava a sofrer de um desarranjo mental, e por isso convinha quanto antes combater esse mal.

Receitou, prometeu que a visitaria amiúde, e que empenharia todos os recursos da ciência para restabelecê-la.

Não querendo contristar mais as leitoras, que provavelmente devem ter se interessado pela sorte de Amélia, vou conduzi-las ao acampamento de Pedro.

Fecho pois, este capitulo, deixando Amélia entregue aos cuidados do medico, e da sua dedicada tia. 

***

O valente voluntario já não era simplesmente um sargento; havia entrado nos primeiros combates, e tendo-se distinguido pela sua bravura, foi promovido ao posto de alferes por merecimento. 

Uma noite, escrevia ele a seguinte carta de sua barraca, para Amélia.

“É a terceira que te escrevo depois da nossa separação, sem que tenha recebido letras tuas, talvez por descaminho. Isto de alguma forma podia inquietar-me se não tivesse a certeza de te haver deixado com saúde e com o necessário para uma vida descansada ao lado de tua boa tia.

“Pela leitura dos jornais deves ter visto o meu nome na relação dos feridos no ultimo combate; porem não ter assuste essa noticia, porque foi apenas um arranhão, tanto que não me priva de escrever-te.

A ponta de uma baioneta inimiga veio rasgar-me a farda na altura do braço direito e resvalando por entre a carne foi enterrar-se no peito de um soldado que me ficava à retaguarda.

“Devido a bondade dos meus comandantes, que não esqueceram os serviços que prestei nesse dia, fui promovido ao posto de Alferes.

“Já tenho, Amélia, um galãozinho em lugar das divisas de pano, e uma banda de seda em vez de lã.

“O entusiasmo aqui é geral: não há um só filho do Brasil que ouvindo o sinal de carga à baioneta não se atire como leões sobre as trincheiras inimigas!

“Tenho fé que muito cedo a bandeira auriverde ondulará vitoriosa sobre as derrocadas muralhas da formosa Humaitá, e que os canhões da esquadra e o sabre dos nossos bravos levarão do Paraguai um sentimento nobre, ali desconhecido – a liberdade!

 “Crê, minha Amélia, que muito breve hei de abraçar-te; nada receies por mim: um oculto pressentimento me anima a dizer como o herói de Marengo e Austerlitz “a bala que me há de matar, ainda não está fundida”. “Adeus – sê digna do teu Pedro” 

Esta, assim como outras cartas, quando Amélia chegou a recebê-la, já estava restabelecida, porque sua tia guardou-as para entregar-lhe quando o seu espírito pudesse suportar qualquer emoção.

Passaram-se, porem alguns meses sem receber-se cartas do Pedro, o que contristava e afligia muito a sua mulher.

E não era sem razão.

Depois de uma batalha valorosamente disputada com muita bravura pelos voluntários, foram encontrados no campo muitos oficiais mortos, e alguns tão mutilados que dificilmente se podiam conhecer. Pedro naturalmente entrou no numero deles, porque desde então não se soube mais noticias suas.

A sua morte ficou algum tempo ignorada por Amélia, porem não podendo ficar para sempre, e ela suspeitando já essa desgraça, pediu que não lhe encobrissem a verdade, pois que a incerteza em que vivia era para ela um penoso martírio.

Soube então que não se sabia noticias de Pedro, pelo que supunha ter morrido.

Amélia considerou-se viúva.

Há muito tempo ela saberia de seu estado, se Dona Astrogilda não tivesse metido uma rolha na boca, como severa condição que lhe havia imposto Dona Angélica para poder frequentar a casa.

Como o tempo é melhor balsamo que há para cicatrizar a chaga que o infortúnio abre no coração da humanidade, Amélia chorou muito, porem no fim de alguns meses se foi resignando.

Fugia de todas as reuniões, vivia melancolicamente e com uma resignação evangélica.

Viúva, moça, e bonita, apesar de que pouco aparecia, não faltou logo quem lhe quisesse render finezas: porem fiel à memória de seu marido, repelia sempre todas as tentações de uma maneira tão enérgica e positiva que fazia honra a seu sexo. 

Entre esses mineiros da desgraça, andava um ancião que dispondo de recursos, e valendo-se da sua posição social, não encobria as suas malévolas tendências, fazendo-se gamenho.

Dançava ainda como qualquer rapaz, e tinha a mania de recitar.

As lágrimas do passado eram os versinhos de sua predileção. Uma noite entendeu ele que devia ir recitar a sua favorita à janela da casa em que morava Amélia, e lá foi.

Dona Angélica que ciava muito da reputação de sua sobrinha; e que não era mulher que se deixasse tentar pelo canto de qualquer sereia, ouvindo a cantarola abriu de mansinho a janela, e pespegou nas bochechas do noturno cantor, com estes versinhos:

Serena besta a pastar não viste?
Pálida e triste, recitar também?
Pois já findou-se seu ar dengoso,
Salta tinhoso! Vai morrer além!

Com este troco não esperado, o apaixonado cantor retirou-se corrido de vergonha.

***

Passaram-se três anos.

A guerra estava concluída; voltavam já os restos de alguns batalhões de voluntários da pátria, e começavam os festejos populares para a sua recepção.

As fortalezas e os navios ancorados no porto embandeirados em arcos, salvavam de cinco em cinco minutos; os marinheiros agrupados nas vergas e enxárcias davam entusiásticos vivas à Nação Brasileira! As ruas estavam tapetizadas de folhas aromáticas; dos sobrados pendiam colchas de damascos de cores, e em cada janela flutuava a bandeira brasileira, tendo na haste uma coroa de louro.

A musica se fazia ouvir por toda a parte entre brados patrióticos, acompanhados de um sem numero de foguetes.

Pelas ruas em que passavam esses valentes filhos do Cruzeiro, uma chuva de flores vinha cair sobre eles. Cada um reconhecia um parente, um amigo; tudo em fim respirava contentamento:

Só em uma modesta casa se passava uma cena muito diversa do prazer e entusiasmo que reinava na rua: uma senhora abraçada a uma jovem vestida de luto derramavam lágrimas pelo mesmo motivo que a outros causava tanta alegria. Eram, Amélia e sua madrinha, que no canto da sala ouviam os ecos do regozijo popular com profunda dor de coração... lembravam-se de Pedro que havia ficado para sempre nos campos do Paraguai...

- Coragem, minha filha, dizia Dona Angélica, Deus não é injusto, ele se compadecerá de teus sofrimentos.

Se hoje provamos a taça amarga da desventura, amanhã ele nos apresentará um paraíso de felicidades.

- Sim, minha tia... mas é que para mim acabaram-se todas as ilusões do mundo!... Só me resta a paz e o descanso do tumulo...

E os gemidos e soluços ecoavam tristemente nessa habitação de dor.

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Momentos depois um tenente de voluntários entrava em casa de Amélia; trazia uma cicatriz na fronte e uma condecoração ao peito.

Amélia e sua tia enxugaram as lágrimas para irem receber a pessoa que as procurava, talvez para dar-lhe noticias de Pedro.

Abriram a porta e deram um grito de espanto!

Era Pedro que corria para elas com os braços abertos, exclamando:

- Amélia! Minha tia! Aqui está o vosso Pedro!

Avaliem esta cena tocante, meus leitores, porque a minha pobre pena não pode descrevê-la.

***

Pedro não havia morrido, como se pensava com bom fundamento. Depois de uma batalha disputada com muita bravura, foi ele ferido gravemente. Exausto de forças pelo muito sangue que havia perdido, na confusão do combate caiu sobre os cadáveres de seus companheiros, e na retirada do exercito ficou ele no campo sem sentidos.

Na ocasião em que um soldado inimigo ia descarregar-lhe um golpe sobre a cabeça, ele deitado sobre uma poça de sangue, disse com voz fraca: - Amélia! Morro proferindo o teu nome...

Um oficial Paraguaio movido de compaixão, porque Amélia era também o nome de sua mulher a quem muito idolatrava, impediu o golpe e salvou-lhe a vida. Ficou então prisioneiro.

Curado de suas feridas restabeleceu-se, porem não lhe era permitido escrever nem podia dar noticias suas, passando assim como morto.

Quando o exercito brasileiro tomou a fortaleza de Humaitá, foi então que ele pode recuperar a liberdade.

Soube por alguns comprovincianos, que sua família existia, pediu que guardassem segredo porque estando próxima a conclusão da guerra, queria pessoalmente causar-lhe esta agradável surpresa.


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Publicado originalmente no “Jornal das Famílias” (1878).
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2023)

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