1/05/2023

Antologia Poética (Poesia), de José Albano


ANTOLOGIA POÉTICA


POESIA LÍRICA
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ODE À LÍNGUA PORTUGUESA

Língua minha, se agora a voz levanto,
Pedindo à Musa que me inspire e ajude,
Somente soe em teu louvor o canto,
Inda que a lira seja fraca e rude;
E tudo quanto sinto na alma, e digo,
Já que na alma não cabe,
Contigo viva e acabe — só contigo.

Língua minha dulcíssona e canora,
Em que mel com aroma se mistura,
Agora leda, lastimosa agora,
Mas não isenta nunca de brandura;
Língua em que o afeto santo influi e ensina
E derrama e prepara
A música mais rara-e mais divina.

Língua na qual eu suspirei primeiro,
Confessando que amava, às auras mansas
E agora choro, à sombra do salgueiro,
Os meus passados sonhos e esperanças;
Na qual me fez ditoso em tempo breve
Aquela doce fala
Que outra nenhuma iguala — nem descreve.

Língua em que o meu amor falou d'amores,
Em que d'amores sempre andei cantando,
Em que modulo os mais encantadores
E deleitosos sons de quando em quando
E espalho acentos inda nunca ouvidos
De mágoas e de gozos,
Queixumes amorosos — e gemidos.

Sempre e sempre te eu veja meiga e pura
Naquela singeleza primitiva,
Naquela verdadeira formosura
Que farei que no verso meu reviva.
E, se apenas um pouco se revela
Desse encanto jucundo,
Há de mostrar ao mundo — quanto és bela.

Outros andam o teu sublime aspecto
D'ornamentos estranhos encobrindo
Sem saber o que tens de mais secreto,
De mais maravilhoso e de mais lindo:
Em ti já não se nota o mesmo agrado
E eu não te reconheço,
Se o teu valor e preço — é rejeitado.

Quanta e tamanha dor me surge e nasce
De nunca ouvir aquele antigo estilo,
Mas eu fiz que ele aqui se-renovasse,
Para que o mundo enfim pudesse ouvi-lo.
E com todo o poder d'engenho e d'arte
Foi sempre o meu desejo
Ver-te qual te ora vejo — e celebrar-te.

Ah! como assim me enlevas e me encantas,
Ora chorando e rindo, ora gemendo;
E, se te outros ofendem vezes tantas,
Embora solitário, eu te defendo:
Eu te defenderei sem ter descanso
E em luta não inglória
Tu verás que a vitória — e a palma alcanço.

E em pago disto peço que me imprimas
Maior ternura na alma e não ma agraves;
Dá-me versos dulcíssimos e rimas
Eternas, peregrinos e suaves:
Dá-me uma voz melodiosa e amena,
Para que noite e dia
Diga a minha alegria — e a minha pena.

E não quero um som alto e retumbante
Para cantar d'amor ao inundo atento,
Pois não há língua que d'amor não cante,
Mas, nenhuma traduz o meu tormento;
Nenhuma se conhece que traslade,
Afora tu somente,
Do coração doente — a saudade.

 

SONETO I

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura,
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas tão pouco dura,
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia
E só com saudades, me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento,
Senão de ter cantado o que sofria.


SONETO II

Ditoso quem foi sempre desamado
Nem nunca na alma viu pintar-se o gozo
Que lhe promete estado venturoso
Para depois deixá-lo em triste estado.

Já me de todo agora persuado
De que não pôde haver brando repouso
E do afeto mais doce e deleitoso
Se gera às vezes o maior cuidado.

Não quero boa sorte nem sonhá-la,
Pois logo passa, apenas se revela,
Com uma dor que outra nenhuma iguala.

Mas quem desconheceu benigna estrela,
Se não teve a alegria d'alcançá-la,
Nunca teve o desgosto de perdê-la.


SONETO III

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido
Sem um suspiro vão, sem um gemido
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento
É deste inundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido
E todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido por dinheiro
E entre ladrões morrer crucificado.


SONETO IV

Mata-me, puro Amor, mais docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei sempre e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.

 

CANTIGA I

Nestes sombrios recantos,
Nestes saudosos retiros
Desliza um rio de prantos
E corre um ar de suspiros.

(VOLTA)

Tenho na alma dois moinhos,
Um é d’água, outro é de vento;
Ambos juntos e vizinhos
Estão sempre em movimento.
E giros tantos e tantos
E tantos e tantos giros
Dão ao primeiro os meus prantos
E ao segundo os meus suspiros.


CANTIGA II

Passarinho lisonjeiro
Cuja voz o espaço invade,
Se vives em liberdade,
Passo a vida em cativeiro.

(VOLTAS)

Vejo-te voar nos ares
Alegre, as asas batendo,
E o motivo não entendo
De tanto me lastimares;
Pois a não ser prisioneiro
Ninguém, a mim, me persuade;
Pela tua liberdade
Não troco o meu cativeiro.

Preferes o teu estado
E o meu destino prefiro;
Voas livremente em giro,
Trazem-me em grilhões atado.
Só no dia derradeiro
Hei de me soltar, pois há de
Ser-me morte a liberdade
E é-me vida o cativeiro.

Mas, se me tens em desprezo,
Ainda assim te perdoo;
Sobe pelos céus em voo
E deixa-me à terra preso.
E isso tudo eu te requeiro
Que no canto se traslade:
Louva a tua liberdade,
Que eu louvo o meu cativeiro!

 

ESPARSA I

Há no meu peito uma porta
A bater continuamente;
Dentro a esperança jaz morta
E o coração jaz doente.
Em toda parte onde eu ando,
Ouço este ruído infindo:
São as tristezas entrando
E as alegrias saindo.


ESPARSA II

Colhes rosas no jardim
E desfolhas malmequeres
Porém, se bem me quiseres,
Olha e tem pena de mim:
Quando em mim os olhos pões,
Vês que em tormentos insanos
Ando a colher desenganos
E a desfolhar ilusões.

ESPARSA III

Amor me faz esperar,
Esperança me faz rir,
O riso me faz chorar,
O choro me faz sentir;
O sentir me faz sofrer,
O sofrer me causa dor,
A dor me dá um prazer
E o prazer cantos d'amor.

(MOTE)
Olha para os olhos meus,
Que os meus olhos te dirão
As penas do coração.

(GLOSA)

Tu me não ouves gemer
Em tortura e desprazer,
Mas há tristezas mortais
Neste meu peito e jamais
Deixarei de padecer.
Os sonhos, voando aos céus;
Já me disseram adeus — 
E a escura mágoa sem fim,
Se ainda a não viste em mim,
Olha para os olhos meus.

Cuidados, tormentos vis
Que humana língua não diz,
Desassossego sem paz,
Tudo isto neles verás
E quanto sou infeliz.
Hás-me conhecer então
Esta dura condição;
Talvez chegues a chorar,
Vendo o profundo pesar
Que os meus olhos te dirão.

A dor que há dentro de nós,
Às vezes é tão atroz,
Que no suplício cruel
A boca se enche de fel
E a garganta perde a voz.
Quero, pois, soltar em vão
Suspiros que na alma estão,
Porém, se falar não sei,
Nos olhos te mostrarei
As penas do coração.

 

VILANCETE

Com lembranças do meu bem
Sozinho estive a chorar
Entre o sol-posto e o luar.

(VOLTAS)

Na hora mais triste que sei
Das horas que vêm e vão,
Saudosamente espalhei
Suspiros do coração;
Pois que me nascia então
Uma mágoa singular
Entre o sol-posto e o luar.

E eu dizia: “O sol morreu;
Não me vê gemendo assim,
 A lua, oculta no céu,
Não sente pena de mim.
 O dia teve o seu fim
 E a noite está por chegar
Entre o sol-posto e o luar.

Já chorei muito a sofrer
Saudades longe de ti,
Porém nunca em desprazer
Senti o que sinto aqui!
E desta arte conheci
Quanto é mais triste — chorar
Entre o sol-posto e o luar.

 

TROVAS COM ECO

Debaixo desta alta fronde
Ninguém me ouvirá gemei"
Com a tristeza e desprazer
Que dentro da alma se esconde.

(Eco)
Onde?

Chorai, olhos meus, chorai,
Que eu não abafo o que sinto;
No coração quase extinto
Quanto tormento me vai!

(Eco)
Ai!

Eco saudoso e brando,
Que tens compaixão de mim,
Se sabes gemer assim,
Andas acaso penando?

(Eco)
Ando.

Dura sorte o céu te deu,
Mais eu sou mais desgraçado,
Pois quem por ordem do lado
Tem pesar igual ao meu?

(Eco)
Eu.

 

COPLAS

Que me roubou o amor cego?
O sossego.
E esta vida triste e escura?
A ventura.
E o fado cruel e iroso?
O meu gozo.
Comigo os dias quem passa?
A desgraça.
A chorar quem me condena?
Uma pena.
E quem me traz desmaiado?
Um cuidado.
Desta arte, em queixas desfeito,
Contra o meu destino brado,
Trazendo dentro do peito
Desgraça, pena e cuidado.

Desta arte vivo entre a gente

Onde está o céu risonho?
No meu sonho.
Onde o gosto benfazejo?
No desejo.
Onde a paz serena e mansa?
Na esperança.
Desta arte já não maldigo
O bem que se não alcança,
Pois tenho ainda comigo
Sonho, desejo e esperança.

 

ENDECHAS

Quantas vezes choro
Sem saber por quê
E o pranto sonoro
Se ouve e não se crê.

Em nenhuma parte
Vejo mal ou bem,
Nem prazer que parte,
Nem pesar que vem.

Mas noites e dias,
Tardes e manhãs
Voam fugidias
Estas queixas vãs.

Risos sem começo,
Lágrimas sem fim:
Se tanto padeço,
Que será de mim?

Duma pena ignota
Mágoa singular
Que se sente e nota
Pelo suspirar.

Pois, se os olhos seco
E não choro mais,
Inda se ouve um eco
De saudosos ais.

E em qualquer retiro
Destes que bem sei,
Sem querer suspiro
Onde já chorei.

Onde acharei pranto
Para tanto dó?
Ai que já não canto,
Desde que vivo só.

Mas para lamentos
Haverá razão?
Cuidados cruentos
Nunca tornarão.

Estas queixas mansas
Que espalhando estou,
São talvez lembranças
Do que já passou.

Mas a dor fugindo
Cessa e já não é;
Surge amor infindo
Com esperança e fé.

A alma se traslada,
Voa para o céu,
Doce pátria amada
De quem já sofreu.

Um anjo me guia,
Me leva e conduz
Para ver Maria,
Para ver Jesus.

Onde tudo é gozo
Que não vejo aqui,
E serei ditoso,
Já que padeci.

Onde em brando riso
Tudo se desfaz
E a dor suavizo
Em serena paz.

Onde a primavera
É meiga e gentil
E um bem que se espera,
Se transforma em mil.

Onde num desmaio
Doce e encantador
Entre abril e maio
Nasce o eterno amor.

Onde se ouve a pura
Voz celestial,
Bem como murmura
Fonte de cristal.

E a fragrância amena
Pelo espaço azul
Vence a da açucena
Nos jardins do sul.

Onde se prepara
Ao coro fiel
A mais santa e rara
Hóstia d'Israel.

Doce manjar d'alma
Que o Senhor bendiz,
Me alenta e me acalma
E me faz feliz.

E como duma ave
Os suspiros meus
Em queixa suave
Vão aos pés de Deus.

Dos olhos sentidos
A lágrima cai,
Sobem os gemidos
Aos pés do meu Pai.

Todo me enche e invade
Lânguido prazer,
Em felicidade
Deixai-me morrer.

No mundo mesquinho
Tudo é só pesar:
Ao meu pátrio ninho
Deixai-me voar.

Onde veja o amante
E perpetuo bem
E com os anjos cante
Glória a Deus. Amém.



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POESIA ÉPICA
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COMEÇO DO TRIUNFO

Era no tempo, quando a terra perde
O alvo manto de neve e a doce Flora
Adorna o bosque e esmalta o campo verde.

Nos ares se ouve a música sonora
De Progênie que lá vai, lânguida e lenta,
Tornando aonde Filomela mora.

Eis sobre o manso e livre de tormenta
Assento das nereidas saudosas
Um triunfo aos meus olhos se apresenta.

Coberto só de lírios e de rosas,
Aurifulgente carro vem trazido
Por mil pombinhas meigas e amorosas.

Nele com o ledo e trêfego Cupido,
Está Vênus; serena e sorridente
A cujo raro encanto andei rendido.

E o seu olhar se alonga no ambiente,
Como uma clara estrela matutina
Começa a cintilar suavemente.

E o seu sorriso voa na campina
Como um jasmim que docemente caia,
Quando Favônio a leve rama inclina.

E entre ondas de perfume que se espraia,
Vêm as Graças gentis em brando adejo:
Eufrosina e Tália com Agláia.

E as horas imortais admiro e vejo
Diceia, Eunômia e Irene com a formosa
Musa que ainda acende o meu desejo.

Esta é quem só d'amores vive e goza,
Esta é quem faz que eu só d'Amores cante
Em melodia doce e dolorosa.

 

FALA DA MUSA

Caro amador, nunca houve quem te visse,
Senão tratando só do afeto puro
Que amor manda que sempre se cobice.

O mesmo bem procuras que procuro,
E em pago do teu longo sofrimento
Aqui verás pintado o teu futuro.

Ouve-me, nunca viverás isento
D'arte ou d'engenho e sempre terás na alma
Da poesia o brando sentimento.

Terás a doce avena que te acalma,
E a belicosa tuba que te anima,
Para que alcances sempiterna palma.

E voando no espaço, lá de cima
Espalharás em sonoroso canto
O que nunca se disse em verso ou rima.

Nunca te faltará do monte santo
A proteção benigna e benfazeja
Das nove musas a quem amas tento;

Que eu te prometo que o Parnaso seja
Em teu favor e desta vida escura
Evites a vulgar e vil peleja.

Sentes comigo a mesma desventura
E o mesmo gozo e, cheia de gemidos,
Na mesma língua a tua voz murmura.

Ah! nunca de mim sejam esquecidos
Os acentos da música celeste
Que vencem e arrebatam os sentidos.

E como sempre assim cantar quiseste,
Em sons ou d'amargura ou d'alegria,
Farei que o teu amor se manifeste.

E erguerás nesta vida fugidia
Um monumento como outrora os houve,
Contra que o duro tempo em vão porfia.

E embora a gente humana te não louve,
Hás de viver contente, conhecendo
Que Polínia te inspira e Apolo te ouve.

 

APARIÇÃO DE AFRODITE

Já se escutam sussurros e clamores
Contra, os de Luso, a tal empresa afeitos,
Quando aparece a deusa dos amores
Que traz em laços corações e peitos;
E, olhando aqueles dons encantadores,
Os numes imortais ficam sujeitos
E o próprio Zeus se espanta e maravilha
Da formosura que lhe mostra a filha.

Como abelhas em voo diligente
Saem da colmeia, cheia d'áureos favos,
De madrugada, quando no oriente
E os derrama os seus cabelos flavos:
Pousam aqui e ali suavemente
Em brancas rosas e vermelhos cravos:
Desta arte beijos vão subindo entorno
Ao colo ebúrneo, palpitante e morno.

E como pombos, revoando à tarde,
Quando a noite começa e o dia finda,
Descem com a luz do último raio que arde,
Pela celeste altura etérea e linda;
E o doce ninho que os proteja e guarde,
Este acha logo e aquele busca ainda:
Assim de toda parte ao seio brando
Suspiros amorosos vão chegando.

E qual o caminhante no deserto
Que ouve os múrmuros sons dalguma flauta,
Ou qual o pescador que leva perto
Dos cantos da sereia a barca incauta;
Parece o mundo um paraíso aberto
Ao viajor cansado e ao triste nauta:
Desta arte Citereia nos fascina,
Erguendo a voz em súplica divina:

Ó grande padre Zeus, é bem notório
O amor que tenho ao peito lusitano
Que ousadamente dobra o promontório
Sem medo a tempestade, morte ou dano;
E agora quero, em prêmio não inglório
Do seu atrevimento mais que humano,
Levá-los longe da estação severa,
A pátria da perpetua Primavera.

Já fiz surgir uma ilha nunca vista
Em meio do oceano, amena e doce,
Onde o audaz coração, dado a conquista,
Pelos amores conquistado fosse;
E aí, longe de tudo que contrista,
Guiei as invencíveis naus, e trouxe,
Onde se repousassem das fadigas
De mares e de terras inimigas.

Mas, se lhes dei lugar tão benfazejo,
Para que enfim um pouco descansassem,
Mais merecem, segundo entendo e vejo,
E peço que sem guerra avante passem;
Pois agora é o meu único desejo
Que vivam onde eternos gozos nascem,
Em deleitosos sonhos duradouros
Mirtos verdes juntando aos verdes louros.

E a ti, sublime padre Zeus, entrego
O futuro da minha gente amada,
Faze que pelo tormentoso pego
Mansamente navegue a lusa armada.
E, se alguém com furor maligno e cego
Contra os nautas levanta a voz, e brada,
Não lhe creias, pois tudo te assegura
Que é fruto só d'inveja baixa e escura.

 

FALA DE HERMES

Desta arte fala o padre soberano
Que a tudo manda e ordena sabiamente,
Parte-se Poseidon irado e insano,
E a lânguida Afrodite ri contente;
Vai, pois, ilustre capitão, sem dano,
Que Zeus aos Lusos navegar consente
Aonde a Primavera enternecida
Há muito que te chama e te convida.

Vai pelo mar azul à verde terra
Tão fértil, tão fecunda e tão formosa,
Em cujo seio a natureza encerra
Tudo que o coração deseja e goza;
Em cujo bosque, vale, prado e serra
Corre um perfume d'açucena e rosa,
Em cujas grutas frescas e quietas
Hão de morar as musas e os poetas.

Disse e qual andorinha que em procura
Voa d'ameno e deleitoso clima,
Vendo uma branca vela na água pura,
Dos céus desce e lhe vem pousar em cima;
Mas em seguida pela etérea altura
Com asa mais leve a revoar se anima:
Desta arte subiu lépido e ligeiro,
Pelo caminho lácteo o mensageiro.

 

DESCRIÇÃO DA PÁTRIA DA PRIMAVERA

Por um declive saudoso rio
Entre as penhas desliza lentamente,
Formando um lago claro e luzidio
No qual se espelha a selva florescente;
Vê-se ali um vergel verde e sombrio,
Banhado pela límpida corrente,
Onde colher se podem, sem embargos,
Doces laranjas e limões amargos.

E entre mil retorcidas trepadeiras,
Nos duros troncos procurando encosto,
Nascem romãs, à vista prazenteiras,
E roxos figos d'esquisito gosto;
Em cachos tintos pendem das parreiras
Os frutos de que o néctar é composto,
Enquanto as auras plácidas e calmas
Meneiam mole e mansamente as palmas.

De ramo em ramo voam beija-flores,
Abrindo as refulgentes e áureas penas,
Borboletas azuis, multicolores,
Sobem silenciosas e serenas;
Murmura entorno música d'amores
Em continuas e doces cantilenas,
Derramando nos ares o segredo
Da triste rola e do canário ledo.

Passa o pavão cuja beleza suma
Pincel não pinta e pena não descreve,
Ave que sempre acompanhar costuma
A alta esposa de Zeus em voo leve;
E pela água, desfeita em pura espuma,
Nadando o cisne vem, da cor da neve,
Ave sagrada a Citereia, e santa,
Que vive muda e, quando morre, canta.

Abelhas com sussurros sonorosos
Ambrosia nos campos vão colhendo;
No ninho arrulham pombos amorosos,
Suaves beijos dando e recebendo:
Quantas delicias há e quantos gozos
Que em vão com a mente imaginar pretendo
Olhai, do prateado arroio à margem,
Ervas e flores que fragrância espargem.

A rosa ali se vê purpúrea e bela,
Nasce-lhe a cândida açucena ao lado.
A roxa violeta se revela,
E o cravo, d'amadores estimado;
Do alto cai o jasmim qual nívea estrela,
Em redor a bonina esmalta o prado,
Cresce também (notai o estranho efeito)
Junto do malmequer o amor-perfeito.

Perto a camélia ou branca ou rubicunda
Com o rosmaninho e a tulipa viceja
D'olores o alecrim o espaço inunda,
Rescende a madressilva benfazeja;
E, para que com a mágoa se confunda
Algum prazer, é bem razão que esteja
Com o triste goivo o mirto imorredouro,
A hera perpetua e o sempiterno louro.

E com a magnólia e a passionária santa
Floresce a parasita sem aroma,
E o girassol que a vista ao céu levanta
Onde Febo dourado surge e assoma;
E aquela desejada e rara planta
Que adormece a quem dela as folhas coma,
Pintando em sonho um gozo etéreo e ignoto:
Doce e maravilhosa flor do loto.

 

CATÁLOGO DAS MUSAS E DOS POETAS

Aqui a vossa língua bela e branda
Que da latina fonte se deriva,
Há de escutar-se, pois o fado manda
Que novamente aqui floresça e viva;
E quer que a doce música se expanda,
Não alcançando fama fugitiva,
Mas, apesar do tempo que o consome,
Com a vossa língua dure o vosso nome,

E, para que o reclamo se levante,
Entorno murmurando mansamente,
Dalgum ditoso coração amante
Ou magoado coração doente,
Do Olimpo há de enviar o grão tonante
As musas para o novo continente,
Sem cujo auxilio a sonorosa lira
Não canta, não soluça nem suspira.

No Hélicon donde surge a fonte clara
Que do alado corcel a origem teve,
E no Parnaso a cuja linfa rara
A imorredoura inspiração se deve,
O coro das donzelas se prepara
A atravessar o mar sereno em breve
E, se bem o futuro desenrolo,
Há de vir-lhes à frente Febo Apolo.

Bem como pombas assustadas, quando,
Repousando nos ramos duma fronde,
Ouvem o caçador que vem chegando
E atrás dum tronco d'árvore se esconde;
Num só momento vão partindo em bando
Pelos espaços sem saber aonde:
Desta arte, um pouco esquivas e confusas,
Irão à nova terra as nove musas:

Clio que os tempos idos rememora,
Euterpe com o cálamo, Tália
Que ri sempre, Melpômene que chora,
Terpsícore que as leves danças guia;
Erato, dada a Amores, a canora
Polínia, Urânia, dada à astronomia
E Calíope cujo fogo santo
Da tuba retumbante inspira o canto.

Da Grécia hão de trazer a alta doutrina
Da arte imortal, segundo vejo e espero,
Lá donde se ouve a música divina
Do velho pai da poesia, Homero,
E o som que o magno Píndaro me ensina,
E Ésquilo, mestre da Tragédia austero,
E o queixume que espalham sem repouso
Sófocles brando e Eurípides choroso,

Virão à Itália, assento sempiterno
D'engenhos peregrinos, pátria santa,
Onde com o bom Horácio e Ovídio terno
Virgílio sonoroso a voz levanta;
Onde Alighieri pinta, céu e inferno
E Petrarca suspira em mágoa tanta,
Onde canta Ariosto sorridente.
E Tasso geme dolorosamente.

E passarão pela Provença bela,
Terra dos amorosos trovadores,
De cuja suavíssima querela
Voam ainda os sons encantadores;
Ali toda a ciência se revela
Da suprema alegria e dos amores,
Nem se podem sentir outros cuidados,
Senão de corações enamorados.

Verão também Castela onde Cervantes
Tem nos lábios o riso e a dor no peito,
Onde o grão Lope, como nunca dantes,
Traz o fogoso Pégaso sujeito
E Calderón em versos elegantes
À branda influição se mostra afeito,
Bebendo em copa d'ouro a água perene
Das fontes de Castália e d'Hipocrene.

Enfim chegam ao ninho lusitano,
Ledo berço da triste saudade,
Onde a alma só d'amores sente o dano,
Mas onde tudo a amores persuade;
Onde Camões sublime e soberano
Faz que por toda parte se traslade
O clangor da trombeta nunca ouvido
Ou da avena o dulcíssimo gemido.

Daqui no argênteo carro d'Anfitrite
(Que Poseidon irado já descansa)
Hão de partir, e Éolo assim permite,
Pela vaga do mar cerúlea e mansa;
E sem perigo extremo que se evite,
Irão alegremente, na esperança
De que Zéfiro brando as leve e traga
Ao doce porto e desejada plaga.

Assim como o áureo sol resplandecente,
Quando reina nos céus a noite escura,
Ainda meio oculto, lentamente
Vai derramando os raios pela altura
E em seguida, surgindo de repente,
Enche o espaço de luz serena e pura:
Tal da treva negríssima e sombria
Há de nascer de novo a poesia.

 

FINAL DA ALEGORIA

Tal como quem, nutrindo uma esperança
Em meio desta vida, triste e incerta,
Dorme, iludido na ventura mansa
Que do anelado bem lhe faz oferta;
Nas no momento mesmo em que ele o alcança,
Abrindo os olhos, súbito desperta
E, perdendo o prazer doce e risonho,
Não pôde crer que tudo foi um sonho:

Desta arte Clóris, quando não mais pinta
O que repete a fala tão sonora,
Um não sei que faz que saudades sinta,
Vendo a clara visão voar embora:
E, acabando cansada e meio-extinta,
Suspira sem querer e quase chora,
Porém, olhando logo a Lusa gente,
Vence o desgosto e ri serenamente.

Qual terno beija-flor que deixa o ninho
Com a cara consorte e filho implume,
De rosa em rosa no jardim vizinho
Colhendo o néctar, cheio de perfume;
Aias depois, revoando o passarinho
Aonde todo o amor se lhe resume,
Com os seus em paz repousa benfazeja
E dali nunca mais partir deseja:

Tal a meiga alegria vai fugindo
Da alma cândida, amável e sincera,
Mas logo torna em riso ao rosto lindo
E ao coração que ardentemente a espera;
Puro contentamento está sentindo
A gentil e mimosa Primavera,
Porque da língua lusitana sabe
Não sofrerá que a poesia acabe.

Pois nela manda o céu que, nova e nua,
A formosura helênica admiremos
E o latino vigor se restitua
Segundo a tradição que conhecemos:
Enfim a glória antiga continua
E estes maravilhosos dons supremos
A língua para si recebe e toma
Da bela Atenas e da forte Roma.

Musas, não mais! O último som derramo
E já se apaga a flama em que me alento,
E não vos peço imarcescível ramo
Em prêmio do imortal atrevimento:
Mas dai-me sempre aquilo que mais amo,
Musas, nunca deixeis que viva isento
De branda poesia um peito brando
Que anda os vossos louvores celebrando.

E tu, suave citara canora,
De cujas cordas tiro a melodia,
Ou quando em mim uma saudade mora
Ou quando uma esperança me alivia:
Pende ao meu lado sempre como agora
Em jucundo prazer ou dor sombria,
Para que eu possa leda ou tristemente
Dizer em verso tudo que a alma sente.

E vós que vã cobiça não condena
A uma perpetua, dura e áspera luta,
Vós que a filha de Zeus, Palas Atena,
No templo consagrou da arte impoluta,
Vinde comigo à Arcádia doce e amena
Onde continua música se escuta,
Vinde viver sem mágoas e sem danos,
Claríssimos engenhos soberanos.

E olha, coração meu, vê quanto gozas,
Quando o sublime canto se traslada;
Nascem louros ainda, nascem rosas
Para trazer a fronte coroada;
E, porque Apolo e as Musas amorosas
Tenham sempre na terra uma morada,
Sobre colunas dóricas levanto
Um novo Parthenon eterno e santo.


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POESIA DRAMÁTICA
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ORAÇÃO A NOSSA SENHORA DE LOURDES

CORO DE PASTORAS
Violeta suave,
Santa Maria,
O teu pranto nos lave
De noite e dia.

Tu que em Belém nos deste
A graça suma,
Açucena celeste,
Tu nos perfuma.

Rosa d'amor primeva,
Casta e pudica,
Tu nos levanta, enleva
E glorifica.

E, até que enfim desponte
A alta ventura,
Corra a água desta fonte
Perene e pura.

 

PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS

DESCRENÇA
Ó moço peregrino, deixa o abrigo
Dessa gruta onde estás, e vem comigo

Se porventura queres provocar-me,
Farei que a tua audácia se desarme.

DESCRENÇA
Lutar é claramente o meu direito
E dele quanto posso, me aproveito.

Mas saiba o mundo todo que a Descrença,
Deus manda que a Razão também a vença.

RAZÃO
Depois de longes terras ter corrido,
Ao puro gozo elevo o meu sentido
E a ti declaro, ó Fé, com alma sincera
Que um Deus reside na celeste esfera.

DESCRENÇA
Nego.

Negas em vão, que â Virgem clara
À Razão milagrosamente ampara.

RAZÃO
Foi a serena estrela matutina
Cujo esplendor ainda me ilumina,
Que me mostrou na noite espessa e escura
A etérea luz que o coração procura.
O homem, quando primeiro os olhos deita
Na criação magnífica e perfeita,
Pergunta sempre donde vem o mundo,
Donde vêm o alto céu e o mar profundo?

DESCRENÇA
A criação não conheceu começo,
Mas sempre foi.

RAZÃO
A tal mentira avesso,
Não pôde o entendimento e jamais ousa
A origem duvidar de qualquer coisa.

DESCRENÇA
De que haja Deus, jamais me persuado,
O mundo por si mesmo foi criado.

RAZÃO
Ouve, não é possível que a confusa
Matéria antes de ser faça ou produza:
Medita, que verás como evidente
Nada pôde existir eternamente
Nem nada se criou, de tal maneira
Que uma só conjectura é verdadeira
Das três que a mente humana nota e estuda,
Que outra alguma não há que nos acuda.
Eis a verdade sempiterna e viva
Donde a santa doutrina se deriva:
Um Criador augusto e soberano
Criou o céu e a terra como oceano. 

DESCRENÇA
E quem criou o Criador?

RAZÃO
Atende,
Para que a eterna luz se recomende
E esse vão pensamento logo passe
De que um Deus porventura doutro nasce.
E assim, parando o estéril argumento,
Sendo eu Razão que a Fé também sustento,
Aos que Esperança a Caridade impele,
Faço que um Deus supremo se revele
Sem princípio nem fim, soberbo e forte,
Mandando ao céu, à terra, à vida e à morte.

Foge, Descrença. E tu, Razão, venceste,
Auxiliada só da Mãe celeste
Que entre as sombras da dúvida nos guia
Com o suave nome de MARIA.

RAZÃO
Se falei bem, somente peço e rogo
Que o santo amor de Deus domine logo,
Pois é mais justo e o céu assim obriga
Que o sinta a Fé, mas a Razão o diga.

 

SOLILÓQUIO DE ADÃO

Dum profundo letargo me levanto
E ainda sinto um lânguido quebranto.
Sou, não era e contudo me parece
Que sempre fui. Oh quem fará que cesse
Este mistério tão remoto e escuro
Que em vão com o pensamento ver procuro,
Pois não sei apesar de todo empenho
Quem sou, aonde vou nem donde venho.

 

FALA DE MIGUEL

MIGUEL
Oh quão ditoso és tu que na alma sentes
As virtudes sublimes e excelentes:
A fé que vivifica e fortalece
A influição dum hino ou duma prece;
A esperança que pinta os mais risonhos,
Os mais suaves e os mais lindos sonhos;
E a caridade enfim que o peito abrasa
Na pura chama da celeste casa.
Ergue, pois, a Adonai os teus louvores,
Porque não serás digno, se não fores
Grato a quem tudo manda e determina
Na vida humana, angélica e divina.
E, porque tenhas a noção bem clara
De quanto o Criador em ti prepara,
Vê como em criatura tão pequena
Com sabia mão Ele dispõe e ordena
Na alma as três faculdades, e os sentidos
Cinco que se acham no teu corpo unidos.
Mas primeiro olha o espírito sublime
Em que a imagem de Deus se grava e imprime
Nele vês a memória que em traslado
Presenta aos olhos o prazer passado,

E logo o entendimento alto e profundo
Que nos define a natureza e o mundo,
Com a vontade livre e não sujeita
Que escolhe o bem e todo mal rejeita.
Agora atenta na matéria nua
Na qual a essência etérea continua:
Nela se encontra a vista com que notas
As coisas ou vizinhas ou remotas,
As sete cores e as mil formas várias
Em céu e terra, em plantas e alimárias,
Pelo ouvido percebes as suaves
E alegres vozes das canoras aves,
O murmúrio das ondas e o som brando
Dos zéfiros que em giro vão voando.
E pelo o olfato docemente gozas
O aroma d'açucenas e de rosas
E a fragrância sutil, leve e fugace
Que de violetas e cravos nasce.
E olha mais longe e admira aquelas frutas
Nas videiras, d'orvalho nunca enxutas,
Vê também a colmeia onde é composto
O doce mel que tanto agrada ao gosto.

E enfim, para que o tacto se conheça,
De leve toca nesta relva espessa,
Nesta de flores matizada alfombra
Que frondoso arvoredo cobre e ensombra.
Bem vês, Adão, em que o viver consiste,
Desde que os olhos atônitos abriste.
Dá graças, pois, a Deus, porque consagre
E confirme inda mais este milagre,
Pois um sublime espírito uniu todo
A um baixo corpo, feito só de lodo.

 

OS SETE DONS DO ESPÍRITO SANTO

MIGUEL
Ditoso Adão, eu te bendigo e louvo
E louvo o teu amor sincero e novo.
E em prêmio dele é bem razão que tenhas
Os sete dons divinos, já que empenhas
O teu esforço em só servir Àquele
Que sempre ao bem nos leva e nos impele,
Para que enfim no empíreo recebamos
A áurea coroa e os viridentes ramos.
E, para que a Adonai vivas sujeito,
Guarda a sabedoria no teu peito,
O intelecto e o conselho que te ampara,
A alta ciência, a fortaleza rara
E a piedade milagrosa e meiga
Que com o temor de Deus em ti se arreiga.
Ao céu cerúleo o teu olhar levanta,
Porque é lá que verás a pátria santa
E a morada estelífera e secreta
Onde todo desejo se aquieta.

 

HINO INAUGURAL

CORO
Louvemos Adonai alto e perfeito
E o seu nome sublime bendigamos
Ao som de tuba e lira saudosa.
E do mais fundo e mais interno peito
Erga, harmoniosíssimos reclamos
Tudo que entorno sente, vive e goza.
A música chorosa
Aos etéreos espaços se levante
E, ora grave, ora aguda,
Celebre a cada instante
Aquele que do empíreo nos ajuda;
Pois virtude não há mais meritória,
Senão que se repita
Esta infinita — e sempiterna glória.

Louvem-no o sol brilhante e a branca lua,
A noite escura e o luminoso dia,
As estrelas de prata e os astros d'ouro,
O fresco orvalho, a nuvem que flutua,
A umedecente chuva, a neve fria
E o verão deleitoso e duradouro.
Dos céus se abra o tesouro
E lá da parte onde se estão formando
Da nevoa os densos muros,
Venham descendo em bando
As mansas auras e os favônios puros.
E, ou quando surja a luz ou já não arda,
Seja com voz sonora
Bendito agora — e sempre quem nos guarda.

Louvem-no as fontes e águas cristalinas,
Os regatos e lagos prazenteiros,
Os caudalosos rios e oceanos,
Louvem-no os vales, montes e colunas,
Louvem-no as serras, louvem-no os outeiros,
Os campos e vergéis ledos e ufanos.
Os cedros soberanos,
Os salgueiros, carvalhos e ciprestes
Derramem mil louvores
E com as ervas agrestes
Esparjam doce aroma as lindas flores.
E pelas moitas que entre as veigas crescem,
Das fugidias aves
Os mais suaves — hinos nunca cessem.
Louvem-no os peixes e os répteis estranhos,
Os basiliscos e os dragões daninhos,

Os tigres e os leões feros e atrozes.
Louvem-no as águias, louvem-no os rebanhos
D'ovelhas e de castos cordeirinhos,
Os bravos touros e os corcéis velozes.
Sejam as várias vozes
Da criação numa só voz unidas
E juntas espalhadas
Nas aéreas guaridas
E nas terrenas e úmidas moradas.
Desde o alto céu até ó mar profundo
Tudo quanto nos ouve,
Bendiga e louve — o Criador do mundo.

Louvem-no em meigo e magoado treno
Adão sublime e os filhos da futura
Geração d'Israel soberbo e santo:
Ruben ditoso, Simeão sereno
E com Levi que só do templo cura,
Judá, coberto do purpúreo manto.
E ergam também o canto
Zabulon, Issacar e Dan, seguidos
De Gad que ao claro assento
Eleva ais e gemidos
Com Aser e Neftali em ritmo lento;
A quem José com Benjamin responde:
Qual eco em selva ou gruta
Diz o que escuta — e não se sabe donde.

Louvem-no em diviníssimas cadências
Os serafins, em flamas abrasados,
Os querubins e os tronos gloriosos.
Dominações, virtudes e potências
Gemam e juntamente principados
Com arcanjos e anjos digam os seus gozos.
Os sons maravilhosos
Partam e docemente irão subindo,
Contínuos e canoros,
E com prazer infindo
Suspirem sem cessar os nove coros.
E no universo soe eternamente
Uma voz sobre-humana,
Cantando hosana — a Eloá onipotente.

 

NASCIMENTO DE EVA

Nestes jardins que o Paraíso abarca,
Do homem Adão, primeiro patriarca,
Há de gerar-se nova criatura
Duma composição perfeita e pura:
Eva, a mulher sempre amorosa e branda,
Que obedece ao consorte com quem anda
E, delicada e débil, casta e honesta,
Menos força e mais graça manifesta
E, sendo semelhante e diferente,
As mesmas coisas doutro modo sente.
Esta há de ser aquela que se ufana
Duma Filha serena e soberana,
Luz e esplendor do céu, do mar, da terra
E de quanto o universo guarda e encerra,
Que, assim como da aurora nasce o dia,
D'Eva também há de nascer Maria.

 

EVA EM PROCURA DE ADÃO

EVA
Anjos do céu que estais aqui comigo,
Dizei-me onde se encontra o meu amigo.
Os olhos são mais lindos que as estrelas,
As faces mostram duas rosas belas
E os seus lábios encerram tal doçura,
Que. vencem qualquer flor singela e pura.
E, quando o seu sorriso voa entorno,
É como aroma deleitoso e morno,
E, quando a sua voz d'amores fala,
Os passarinhos vêm para escutá-la.
Anjos do céu que estais aqui comigo,
Dizei-me onde se encontra o meu amigo.

CORO
Como é formosa a criatura nova
Que o divino poder revela e prova,
Tão inocente, ingênua, tenra e branca,
Do seio saudosos ais arranca
E, em amoroso fogo toda acesa,
Sofre e não sabe ainda o que é tristeza.
Qual sol dourado sobre clara neve
Na fronte os crespos fios caem de leve.
Os olhos donde a luz raios envia,
Espalham mais fulgor que o próprio dia.
E das faces e lábios lentamente
Se derrama um aroma puro e ardente.
Bem como surge a aurora leda e grata
Ou como a lua na água se retrata:
Desta arte o olhar, cheio d'amor infindo,
Entre as louras pestanas vai luzindo.
Bem como a cotovia alegre canta
E o rouxinol suspira em mágoa tanta:
Desta maneira o seu falar é doce,
Como se acaso magoado fosse.
Como as auras tranquilas e serenas
Espalham nó ar fragrância d'açucenas:
Desta arte os seus suspiros, revoando,
Deitam olor delicioso e brando.
Como enxame d'abelhas que prepara
Os frescos favos d'ambrosia rara:
Deste modo na boca só lhe coube
Néctar que amor não deixa que se roube.
E também como a rola meiga e mansa
D'afagar os filhinhos não se cansa:
Desta arte, leve como uma asa d'ave,
Acaricia a sua mão suave.
Ditoso quem te amar, Eva formosa,
Pois nos teus braços brandamente goza
Doce prazer que nunca se define,
Por mais que nos encante e nos fascine,
E, embora dentro da alma se reserve,
Cada vez mais aumenta na alma, e ferve.

EVA
Anjos do céu que estais aqui comigo,
Dizei-me onde se encontra o meu amigo.
Em sonhos me ele veio não sei donde
Nem sei agora em que lugar se esconde.
Bem como a ovelha perde o cordeirinho
Que ao longe corre, mísero e mesquinho,
E com uma dor e desprazer tamanho
Em busca dele deixa o seu rebanho
E não sossega na áspera peleja,
Até que novamente o encontre e veja:
Desta maneira irei por toda parte,
O meu amado esposo, a procurar-te.

 

FALA DE ADÃO

ADÃO
Amar e não viver, senão amando,
Quem pôde imaginar gozo mais brando?
Quando brilha nos olhos a ternura,
Toda desfeita em luz serena e pura,
Quando nasce nos lábios a promessa
E o coração a suspirar começa,
Quando o sorriso fala e o beijo canta
Numa quietação suave e santa,
Amor não deixa mais que amor nos doa,
E alma com alma pelo espaço voa.
Vem, casta esposa minha, irmã formosa,
Aonde com a açucena cresce a rosa,
Aonde o cravo se une à violeta,
Antes que maio novos dons prometia.
Dize que me amas sempre, amiga minha,
Abril maravilhoso se avizinha
E docemente os verdes campos junca
De malmequeres que não morrem nunca.
Prendem-me os teus cabelos ao teu peito
E nunca este prazer seja desfeito.
De mil flores a vida se perfuma
E nunca cesse esta delicia suma,
Mas antes sempre noite e dia aumente
Cada vez mais constante e mais ardente,
Quando emudece a entrecortada fala
E o olhar vagos desejos assinala,
Quando amor faz que mais amor se adquira
E coração a coração suspira.

 

EPITALÂMIO

CORO
O glorioso dia, hora e momento,
Quando entre violetas e boninas
A mulher pareceu ao lado do homem.
No verde prado e no cerúleo assento
Não há flores mais frescas e mais finas
Nem astros que mais docemente assomem.
Os tempos não consomem
O etéreo gozo que nasceu com ela,
Nem o pudor constante
Que às vezes se revela
No súbito rubor do almo semblante.
E em nenhuma outra parte se depara
Coisa mais linda e pura
Que a formosura — milagrosa e rara.

A luz do sol lhe beija os olhos belos
E o chão que lhe sustenta o peso brando,
Disto mais alegria ainda sente.
Com os leves e longuíssimos cabelos
O vento brinca e o rio, murmurando,
Lhe dá pérolas claras da corrente.
Porém mais fortemente
Que fogo, terra, ar e água Adão sublime
Guarda no seio o afeto
Que entende e não exprime,
Tanto é sacro, inefável e secreto.
E mais ainda faz que ele se enleve
Cada rosa que nasce
Na lisa face — entre jasmins de neve.

Ei-los que se olham e já d'onda em onda
Soa dos ternos peitos o segredo,
Ei-lo que chega, ela, porém, se esquiva;
Ei-lo que espera em vão que ela responda,
E para quase, mas um riso ledo
Faz que o contentamento lhe reviva.
Então de fugitiva
Ela se torna mais mimosa e mansa
E assim, mole e benigna,
Enlanguesce e descansa
E a amar e a ser amada se resigna.
E, como em braços do álamo a videira,
Eva com Adão forte
Beija o consorte, — meiga e lisonjeira.

Ó ditoso himeneu, ó novo encanto
Que une dois corações num só desejo
E simultaneamente acende e acalma.
Ó momento d'amor suave e santo
E mais que todos grato e benfazejo
Cuja eterna lembrança fica na alma.
A viridente palma
Dê sombra em horas plácidas e amenas
E deste campo infindo
Brotem mil açucenas
E do alto venham mil jasmins caindo.
E, ou seja em verde vale ou verde outeiro,
Cantem as flores todas
As castas bodas — do casal primeiro.

 

LOUVORES DE MARIA

GABRIEL
Desde o alto céu até, à baixa terra
Nenhuma criatura guarda e encerra
Tanta virtude e encanto nunca visto
Como a Virgem que deu à luz o Cristo.
Filha do Pai e Mãe do Filho e Esposa
Do Espírito que nela se repousa,
Das três Pessoas derivando a graça
Que nunca diminui nem nunca passa.
Como a violeta amável e modesta
À verde alfombra os seus matizes presta
Quase que sem querer, mas um perfume
Tão suave e sutil em si resume,
Que outra cheirosa flor a não supera
De quantas faz brotar a primavera:
E como a rosa que, d'orvalho cheia,
Inclina a fronte e ainda se receia
D'olhar o sol que no cerúleo espaço
Espalha os raios d'ouro não escasso,
E, escondida entre a mole e imóvel erva,
No seio as raras pérolas conserva:
Desta maneira a Esposa, Mãe e Filha
Ante a santa Trindade surge e brilha.

CORO
E qual do girassol a flor estranha
Que, quando o louro dia as terras banha,
Os rubros resplendores vai seguindo
E à hora em que descem no oceano infindo,
Com sentimento e com amargura chora,
Até que nasça novamente a aurora:
Desta arte o coração, em mágoa posto,
Procura o brilho do formoso rosto
E a alma se torna dócil e tranquila,
Quando o sereno olhar no céu cintila.
E qual a cotovia em voo brando
Estende as asas pelo espaço, quando
O clarão da alva estrela matutina
As fugitivas nuvens ilumina,
E, toda cheia d'alegria e gozo,
Do alto derrama um som maravilhoso:
Assim a voz queixosa a cada instante
Em mansa melodia gema e cante
E o saudoso reclamo nunca cesse
Do amor ardente que no peito cresce.
E qual o beija-flor a flor deseja
Que mais mimosa e mais melíflua seja,
E errando voa entre purpúreos cravos,
Passionárias azuis e lírios flavos,
Até que chegue ao milagroso loto
Excelso, inatingível e remoto:
Não doutro modo o afeto casto e raro
À meiga Virgem pede brando amparo
E todo se desfaz, leve e risonho,
Num admirável e inocente sonho.

 

ORAÇÃO DE RAFAEL

RAFAEL
Pelo anúncio arquiangélico e jucundo,
Profetizando o Salvador do inundo
Que virá redimir de toda pena
A mesma gente indigna que o condena:
Pela visitação suave e grata,
Quando o louvor se espalha e se, dilata,
Glorificando a castidade pura
Donde há de renascer toda a ventura:
Pelo natal de Cristo que prevejo,
Com um inefabilíssimo desejo;
Quando retumbam no ar os novos hinos,
Versos d'amor e cânticos divinos:
Pela apresentação no excelso templo
D'Aquele cuja glória já contemplo,
Quando em tons magoados o profeta
Chora e lamenta a dor longa e secreta:
Pelo encontro do qual me maravilho,
Da saudosa Mãe com o meigo Filho,
Quando Deus faz que à terra se traslade
A etérea luz que ao bem nos persuade:
Na hora da tentação negra e sombria.

CORO
Roga por nós, ó Virgem Mãe Maria.

RAFAEL
Pela agonia do Messias no horto,
Na mais profunda mágoa todo absorto,
Erguendo ao Pai a angustiosa prece,
Para que nunca a humana glória cesse:
Pela flagelação dura e importuna
Do justo Salvador, preso à coluna,
No horrendo sacrifício levantando
Os olhos para o céu sereno e brando:
Pela cruel coroação de espinhos,
Quando os algozes feros e mesquinhos
Batem naquela fronte nobre e augusta
Que nenhum medo turva nem assusta:
Pela cruz santa que Jesus carrega,
Seguido pela gente bruta e cega,
Três vezes sopesando o lenho rude,
Sem que ninguém acaso o ampare e ajude:
Pelo momento doce e derradeiro,
Quando, pregado no áspero madeiro,
O Filho do Homem com ânsia mansa e calma
A Deus entrega entre suspiros a alma:
Na hora da tentação negra e sombria. 

CORO
Roga por nós, ó Virgem Mãe Maria.

RAFAEL
Pela ressurreição de Jesus Cristo,
Dos olhos lacrimosos nunca visto,
Em alegria plácida e profunda
Transbordando de luz que os céus inunda:
Pela ascensão do Filho glorioso
Ao claro assento d'infinito gozo,
Quando o Padre celeste na áurea esfera
Entre ondas de esplendor o aguarda e espera
Pela vinda do Espírito sagrado
Aonde se reúne o grão senado
Dos discípulos castos e eloquentes
Os quais irão salvar nações e gentes:
Pela tua assunção maravilhosa,
Quando entre nuvens d'ouro, neve e rosa
Voas, pelos espaços transportada,
À região da eterna madrugada:
Pela coroação alta e sublime,
Quando a Trindade sacrossanta exprime
O triplo amor que se consagra e vota
A ti, Rainha egrégia e ainda ignota;
Na hora da tentação negra e sombria.

CORO
Roga por nós, ó Virgem Mãe Maria.

RAFAEL
Roga por nós, Virgem Maria, e escuta
Os contínuos suspiros de quem luta,
Em ti cuidando e só por ti gemendo
Neste combate formidando e horrendo.
Tu nos protege sempre e tu nos salva,
Ó para nós farol e estrela d'alva!
E se no eterno pensamento vives,
Dessa visão divina não nos prives,
Mas surge como o véspero flutua
Entre o dourado sol e a argêntea lua,
Do dia marca o derradeiro instante
E com o reflexo raro e rutilante,
Pousando aqui e ali, veloz e vago,
Treme de leve no cerúleo lago.

 

VITÓRIA DE MIGUEL

Anjos, ouvi a narração da luta
Contra a maldade e astucia baixa e bruta
E o sublime triunfo nunca visto
Para glória e louvor de Jesus Cristo.
E que também retumbe nó universo,
Depois de derrotado o arcanjo adverso,
Das armas e das tubas o ruído,
Saudando o vencedor nunca vencido,
E em toda parte celebrado seja
Miguel, invulnerável na peleja.
Já no terreno próprio e bem-disposto
Estão os combatentes rosto a rosto,
Quando ao som da trombeta que se espera,
Lúcifer salta qual veloz pantera
E, andando em roda, com a fina ponta
A Miguel ameaça que traz pronta-
A espada e juntamente pronto o escudo
E sem mover-se em pé, severo e mudo,
Somente os olhos do adversário fita,
Buscando ocasião que lhe permitia
Dar um seguro passo mais avante,
Na mão direita o gladio rutilante.
Em vão Lúcifer tenta desarmá-lo,
Miguel do medo não conhece o abalo,
Mas antes em coragem vai crescendo,
Cada vez mais feroz e metuendo.
Qual áfrico leão soberbo e forte
Irosamente espalha entorno a morte
E, erguendo aos céus o formidável uivo,
Erriça todo o pelo crespo e ruivo
E logo se arremessa sem detença,
Até que rompa, fira, abata é vença:
Tal o arcanjo belígero e robusto
Com ardente olhar infunde frio susto
No inimigo que, vendo força tanta,
Três vezes cai, três vezes se levanta
E por fim em letárgico repouso
Jaz aos pés de Miguel vitorioso.

 

VISÃO DA SANTÍSSIMA TRINDADE

CORO
Que visão majestosa se apresenta,
Subindo pelo espaço lenta e lenta?
A visão da amantíssima Trindade
Cujo ardor tios inunda e nos invade:
Deus Padre, o Criador onipotente,
Deus Filho, o Salvador da humana gente,
Deus Espírito santo e sempiterno,
O Glorificador que vence o inferno.
Quem nos dará ligeiras penas e asas
Para deixarmos as campinas rasas
E como cisnes que pelo ar vizinho
Vão revoando para o doce ninho,
Antes que em duro e doloroso trance
A águia cruel e pérfida os alcance,
Pousam numa enseada mansa e curva
Cujo claro cristal nunca se turva:
E também como cervos malferidos
Que abafam os tristíssimos gemidos
E, traspassados duma aguda seta,
Numa carreira célere e inquieta
Vão ansiosamente à fresca fonte
Onde não há perigo que os afronte:
Assim subamos para o sólio puro
Onde entre Deus e os anjos não há muro.
Então, do nosso Criador mais perto,
Veremos como num espelho aberto,
Do empíreo descerrando-se as cortinas,
Mais claramente as perfeições divinas:
A potência que cria o céu e a terra,
A sapiência que tudo abarca e encerra,
A bondade que toda mágoa abranda,
Para que dentro da alma não se expanda,
A imensidade que não tem limite,
A providencia que prever permite,
A justiça que pune, sendo boa,
Com a misericórdia que perdoa,
E com a beneficência que governa,
A infinidade e a caridade eterna.

MIGUEL
E dessa caridade que esperamos
A áurea coroa e os viridentes ramos.
Cantai, anjos, cantai com alegria,
Glorificai Eloá noite e dia.
E o saltério do amor maravilhoso
Exprima o nosso indefinível gozo,
Acompanhado em melodia amena
Com harpa e lira, com trombeta e avena,
Para que todos juntamente em coro
Louvemos Adonai imorredouro.

GABRIEL
Anjos, agora aos claros céus voemos
E lá nos claros céus descansaremos.

RAFAEL
Anjos, à alta mansão vinde comigo,
Deus nos espera no celeste abrigo.

 
APOTEOSE

MIGUEL
Qual íris, rutilando no áureo espaço,
Sobe num voo vagaroso e lasso:
Desta arte a Virgem Mãe surge sem susto
Diante de Adonai soberbo e augusto.

CORO
Salve, ó Senhora,
Cheia de graça!
Luz que nos doura,
Não se desfaça:
Mas docemente,
Plácida e pura,
No peito aumente
Rara ventura.

Ó tu, mais nobre
Dentre as donzelas,
Bem que se encobre,
Tu nos revelas:
Jesus, Menino
Meigo e risonho,
Mimo divino,
Divino sonho.

Mãe sempre amada,
Sempre querida,
Na madrugada
Da nova vida;
Cesse o teu breve
Voo indeciso:
Jesus te eleve
Ao Paraíso.

GABRIEL
Nasçam rosas gentis pelo caminho,
Corram brandos perfumes no ar vizinho,
Que todo o brilho já se manifesta
Da Virgem admirável e modesta.

CORO
Eis vem a Esposa
Cândida e calma
Em quem repousa
Encanto d'alma.
Rúbido pejo
O rosto inunda
Tão benfazejo

Em paz profunda.
Flor de laranja
Nas trancas cheira,
Mas não lha tanja
A aura ligeira.
E com agrados,
Tímida e inerte,
Cravos nevados
A mão aperte.

Salve, ó Rainha
Mimosa e mansa,
À alma mesquinha
Traze esperança:
Não transitória
Flor dum instante,
Mas alta glória
Inebriante.

RAFAEL
Já do seio de Eloá não se afasta
A Virgem meiga, encantadora e casta
E, como claramente vejo e advirto,
No céu mais do que o louro vale o mirto.

CORO
Juntas e unidas,
Em voos lentos
Vão duas vidas,
Dois pensamentos:
Aonde nasce
Como perfume
Bem não fugace
Que amor resume.

Ninguém na terra
Nunca se indigne
Contra o que encerra
Ânfora insigne:
Coração ledo,
Fechado cofre,
Guardas segredo
De quem não sofre.

Coração puro,
Supremo amparo
E forte muro,
Aos anjos caro:
Em alegria
Com os doces nomes
Jesus, Maria.

MIGUEL
Anjos do céu, cantai um canto novo
A Fênix santa que bendigo e louvo.

CORO
Vaso argênteo d'amor, donde o jucundo
Aroma se derrama pelo mundo,
Donde nascem virgíneas açucenas
Olorosas, melificas e amenas,
Os zéfiros fagueiros perfumando
Com o eflúvio mais sutil, mais leve e brando:
Ebúrnea torre de queixosas aves,
Do frágil ninho os sons altos e graves
Suavissimamente despedindo
Com um murmúrio saudoso e infindo,
Quando entre nuvens róseas surge fora
A reluzente e rubicunda aurora:
Áurea mansão d'inúmeras abelhas,
Beijando flores níveas e vermelhas,
De jasmim em jasmim, de cravo em cravo
Colhendo o néctar esquisito e flavo
Que da corola imóvel e tranquila
Entre ondas d'ambrosia se distila:
Porta celeste e resplendente, aonde,
Quando o dia claríssimo se esconde,
Durante a noite calorosa e calma
Úmidas folhas d'amaranto e palma
Se erguem, sorvendo o orvalho deleitoso
Em puro enlevo e lânguido repouso:
De ti, Maria, vêm as esperanças
Que para nós na láctea via alcanças,
De ti vêm os prazeres e as doçuras
Que para nós com afeição procuras,
Cheia de graça rara que convinha
A quem da corte angélica é Rainha.
A ti sobem os sôfregos desejos
Imensos, infinitos e sobejos
E lentamente as ilusões e os sonhos
Pelos ares cerúleos e risonhos.
Ó Mãe de Emanuel, sempre querida
De quem ao sumo gozo nos convida;
Por ti, Maria, os duros sofrimentos
Deixam de ser penosos e cruentos,
As longas-dores e os extremos danos
Deixam de ser ferinos e tiranos,
Ó Donzela seráfica e divina,
Em ti se encontra doce medicina:
Flor de Judá, Maria graciosa,
Lírio sem mancha e sem espinho rosa,
Salva-nos tu que és cândida e impoluta,
Os nossos hinos mansamente escuta
E com ternura meiga e benfazeja
Roga a Jesus amado que assim seja.

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