1/15/2023

Artigo de sensação (Conto), de Alice Pestana

 

ARTIGO DE SENSAÇÃO

Frio de rachar. Nortada cortante entremeada de rijas bátegas. Até os pobres que não têm albergue se somem, em noites assim, ninguém sabe para onde.

Na redação, diferença termométrica de muitos graus. Lá dentro uma atmosfera espessa, com mistura de fumo, poeira e ácido carbônico, oferece aos redatores relativo e saboreado conforto.

No gabinete do diretor, tão animado quase sempre de vozes e de gargalhadas, reina agora silêncio completo.

Nove badaladas lentas em S. Roque.

— "Coa breca!" — berrou, com um murro na secretária, o diretor. — "Muito tarda hoje aquele Cabral!" — e metia os dedos pelo cabelo riçado, ansioso de ideias, de inspiração.

O Melo, do seu lugar, olhou-o com placidez um momento. E, sem articular palavra, voltou logo à faina de corrigir granéis que lhe empilhavam a mesa.

Dois bons tipos, o diretor e o revedor de provas.

A importância ostensiva do Miranda evidenciara-se desde menino. Mas subira de ponto, notavelmente, desde que ele empreendera o jornal, com auxílio de um compadre rico que punha o dinheiro na expectativa de que ele pusesse o talento.

Aquilo de ter uma folha, onde verdascar à vontade a patifaria social, era um regalo que trouxera muita seiva tonificante ao seu estro. Agora ao menos o jornal era seu, a crítica era livremente sua; a voz activa ali era a sua. Uma ambição largos anos afogada.

Alto, ossudo, cor de greda; bota afiambrada, risca muito firme nas pernas das calças, gravata flamejante, colarinho descomunal e alvíssimo, chapéu do último figurino, luvas amarelas quase sempre com pospontos, lenço perfumado, charuto grosso, anel de brilhante como uma ervilha, monóculo buliçoso, unhas aparadas, dentes muitos sujos, tal o Miranda.

É casado com uma esguia de olhos piscos e lorgnon, muito dada a peles e pospontos de torçal de cores, invadida cronicamente da mania de nobreza, que às tardes, do lado oriental da Avenida, passeia dois meninos anêmicos e arregimentados, vestidos de veludo e luvas brancas.

O Melo é a antítese formal de tudo isto. Os colegas classificaram-no de pobre diabo e não o tomam a sério. Forjaram-lhe uma alcunha, o Escolho, alvejando o que eles chamam — o seu implacável espírito de contradição.

Tem sessenta anos e é solteiro. Sustenta uma carga de família pobre que se lhe aninhou em casa: mana viúva e uma quadriga de sobrinhas puxando um impetuoso carro de exigências, todas tendentes à aquisição de quatro maridos que as quatro, de comum acordo, procuram com a mesma avidez de dignidade matrimonial.

Excêntrico de marca — eis a cotação mais alta de que desfruta o Melo na redação. Mas nem por isso deixa de ser ali pedra angular. Ele tem duas paixões: a nitidez da impressão e a gramática. Quando endireita os óculos, não há gralha nem barbarismo que lhe escape.

O seu serviço é impagável. Leva os serões de pena em riste, corrige e mais corrige, diante dos granéis e provas de página. Todo o que esbarrou num problema ignorado de gramática vem bater àquela mesa. Sem ele, etimologia e sintaxe andariam por ali em farrapos. Ninguém sabe palavra de tais velharias.

De Inverno havia três cousas que ele não largava ainda que o sol dardejasse: o varino, o cachené e o guarda-chuva.

Não fumava e tinha ideais republicanos, que largo em largo explodiam por entre a atmosfera incolor, acomodatícia da redação, como um foguete em meio de grossa nevada. Tinha um estribilho: Que burros! Entrara-lhe aquilo com aplicá-lo à barbaridade dos tipógrafos quando revia os granéis. E logo, insensivelmente, deslizara a distribuí-lo com largueza a toda a gente.

As suas botas eram fenomenais, cheias de protuberâncias, com relevo orográfico. Corria como certo que a mão agradecida de D. Felisberta, a mana viúva, lhe traçava nas calças intrincada geografia de remendos e passagens. Nunca chegou a averiguar-se. Obstavam duas porfias inquebrantáveis: a do gabão no Inverno e a do guarda-pó no Verão.

O Miranda ergueu-se de um jato, mordeu o charuto, acendeu-o impetuosamente no bico do gás, e mediu o quarto a passos nervosos. Ao mesmo tempo engalfinhava os magros dedos pela crespa cabeleira que lhe resguardava o talento.

O Melo olhou um momento e voltou placidamente aos granéis. O outro sorriu sarcástico, mal-humorado.

— "A paz de espírito é que eu lhe invejo, ó Melo! Nunca o senhor foi homem que, um dia por acaso, nos trouxesse aqui uma notícia boa, uma notícia de sensação. Já é! Vê a gente em apertos e nada!"

O Melo, com o seu usual Que burros!, marcou sinal de abrir parágrafo; e, a seguir, resmoneou entredentes:

— "Eu para esses biscates não sirvo."

— "Pois!… Fossemos todos a dizer o mesmo!… As assinaturas não sobem… E o fato é que o jornal tem decaído… Levamos semanas inteiras sem um artigo que se diga verdadeiramente de sensação! Tudo água chilra!… Também há que tempos não aparece um crimezito de jeito!… Já me lembrou meter uns artiguitos de modas com figurinos… Você que diz, ó Melo?"

Estrondeou a grande tosse do Cabral, a interromper-lhe a música predileta, o hino da Carta, que ele vinha assobiando entrecortadamente.

— "Homem, até que enfim!" — bradou-lhe o Miranda, regozijado: — "Trazes material para a loja?… Tu ao menos, melhor ou pior, é raro o dia…"

O Cabral tinha atirado consigo para uma cadeira, estafado. Andava sempre a correr para certificar-se de não ter lesão no coração. Finava-se com medo de doenças.

Apalpando solenemente uma das algibeiras, anunciou satisfeito:

— "Trago canela fina, ó menino."

Enquanto ele remexe e rebusca papelitos de que anda atulhado, demos uma vista de olhos ao Cabral.

Baixo, gordanchudo, vermelhaço. Chapéu mole que o sebo endureceu um tanto. Calça descaída, de proeminentes joelheiras. Olhos injetados. Joanetes salientes. Cabelo desvairado. Gravata escocesa. Bengalão de cana. É evidente que nunca tomou banho. A sua passagem traz uma vaga reminiscência de queijo Roquefort. Na boca sempre uma cousa: palito ou cigarro. Despede profusão de gafanhotos quando fala. Usa muitos vocativos: "Ó menino! Ó homem! Ó coiso! Ó grande besta! Ó minha flor!" — consoante a intimidade e o estado de alma.

Vive numa casa de hóspedes. Não quer pensões. Fuma cigarros como um desalmado e a tosse não o larga. Busca sempre a proximidade do escarrador, adminículo indispensável ao seu bem-estar. Sobre a mesa de trabalho há de ter por força o almanaque comercial, a folhinha do ano corrente e uma botija de genebra.

— "Pois isto é do fino… Não adivinhas, ó coiso?" — e o Cabral escolhia, procurava, não logrando sair a contento da confusão das suas notas.

— "Sei cá!… Roubo de polpa?" — e o Miranda escancarava olhos cobiçosos.

— "Upa! Upa! Muito melhor… Tens para dois ou três dias pelo menos" — e, elevando enfaticamente a voz: — "Duplo crime de filicídio… Criminosa de vinte anos… Hoje não se apurou grande cousa… Mas amanhã, entre diligências policiais e o mais que se apanhar por fora, dá-te pelo menos página e meia."

— "Bem. Desembucha, que se faz tarde" — e o Miranda foi sentar-se à secretária, estendendo maquinalmente para o tinteiro os dedos onde tremeluzia o brilhante do tamanho de uma ervilha.

Como o outro continuasse a complicada rebusca entre papelinhos miúdos que eram o seu sistema e o seu desespero quotidiano, ele, para ganhar tempo, escreveu, com letra garrafal, no alto do seu linguado — tinha sempre predisposta, à mão, uma rima de linguados —, Mãe Desnaturada, e ficou, por distração, a acentuar muito os grossos nas duas palavras.

— "Cá está" — e o Cabral leu, depois de ter tossido e escarrado ponderosamente: — "Maria do Rosário Caramujo, filha de Romana da Encarnação e de Aparício Caramujo, apontador da via-férrea da linha de Oeste, solteira, criada de servir, de vinte anos… Foi presa à chegada do comboio de Alfarelos e conduzida à esquadra da Rua de Santo Antão onde ficou incomunicável…"

— "Bem, homem… Mas o crime, o crime" — pediu, impacientado, o Miranda, que já molhara três vezes a pena e não passara de pintar as duas palavras Mãe Desnaturada, que já via dançar, como diabinhos, sobre o papel pautado.

— "Já lá vamos, ó filho" — e o Cabral deitava o gadanho a outro papelito, mais pequeno que o primeiro e muito mais sujo. Leu mentalmente e narrou depois em voz alta: — "Filaram a rapariga por ter havido denúncia de que pretendia matar um filho que trazia numa canastra. Parece que eram dois gêmeos, e que o outro já foi pelo mesmo caminho. Um cúmulo de malvadez! Se vissem como a cabra chorava no caminho para a esquadra! Tudo umas embusteiras!" — e o Cabral foi largar os apontamentos na mesa do diretor.

— "Você viu-a?" — perguntou o Melo, levantando os óculos para o alto da cabeça.

— "Bem boa, por sinal! Uns olhos pestanudos!" — e o Cabral formava um círculo com os dedos da mão direita, unindo o polegar ao indicador: — "Assim!"

— "E a criança?"

— "Lá ia também de charola para a esquadra, nos braços de um moço. Berrava como um porco atado pelo pé. Uma inferneira!"

— "Pobre criaturita!"

— "Bem" — concluiu o Miranda, muito prático. — "Deixemo-nos de sentimentalismos, senão não se faz nada. Afinal, em resumo, o que apuraste tu de positivo?" — e percorria, de olho desprezador, os apontamentos do Cabral.

— "Ó menino… Positivo, positivo, não temos ainda nada, mas…"

— "Então bolas! Muito obrigado!… E vinhas tu com esses espalhafatos!… Afinal, o importante: a mulher matou ou não matou?"

— "É quase certo que matou o outro e quis matar este… Ainda te parece pouco? Com a tua facilidade tens mais do que assunto para um artigo de sensação. Pudesse eu!… Tu, em todo o caso, dás a notícia. Que te importa? Se não é certo, amanhã retifica-se… Ainda aqui tenho outras coisitas para notícias miúdas que te vou deixar. Tenho que ir à Águia d’Ouro."

— "Entrevista?… Ó diabo, espera."

— "Volto mais tarde."

— "Com mil bombas, espera… Isto faz-se aqui num rufo."

O Cabral encolheu os ombros. Resignadamente, foi-se à botija, saboreou um copito de genebra e terminou a operação com um eloquente estalo de língua. Depois pôs-se a refundear uma gaveta cheia de papeluchos revoltos.

O Miranda era todo concentração, anediando a gaforina. Tomando atitude resoluta, molhou a pena outra vez e começou, lendo alto: — "Mãe Desnaturada. Ponho-lhe o subtítulo Filicídio e tentativa, hein?"

— "Vai bem" — aplaudiu o Cabral, sempre a revolver, preocupado, os papéis da gaveta. — "Tipo um pouco mais pequeno… Vai bem, vai."

O Miranda, eletrizado, ia escrevendo e lendo alto, com inflexão teatral. Deliciava-se na harmonia dos períodos: — "O caso que narramos hoje é daqueles que arrancam brados de indignação, apesar de serem frequentes por culposa benevolência dos tribunais…"

— "O preâmbulo está filosófico…" — apreciou o Cabral, preparando um cigarro.

— "Cala-te agora" — suplicou febril o Miranda. E prosseguiu: — "Faltam por enquanto dados seguros para uma acusação positiva, mas tudo leva a crer que estamos diante de uma verdadeira fera; triste aberração da natureza, não pensando mais que em destruir os seus próprios filhos. O caso é para causar sensação…"

— "O caso é para causar, a modo que não soa lá muito bem, ó coiso" — intercalou o Cabral, acendendo o cigarro no bico do gás.

— "Tens razão. Põe-se notícia — A notícia é para causar sensação e provocar justa indignação."

— "Agora verso" — grunhiu, mal-humorado, o Melo.

— "Hein?" — ecoou o Miranda, sempre nervoso com as interrupções.

— "Cá falo." — E o Melo continuou corrigindo os granéis com tanta força que rompia o papel.

— "Como preâmbulo, já basta… Agora copio os apontamentos só com uma ou outra palavra mais viva para dar realce… para dar a cor" — e o Miranda ia escrevinhando sempre, tendo na mão esquerda a tirita de papel com letra microscópica e esgarafunhada fornecida pelo Cabral. — "Só os nomes da família enchem três linhas. Uma mina! Ele o apelido que diabo é? Estás cada vez com pior letra! um escândalo!"

— "Caramujo, ó filho" — explicou o Cabral sem se melindrar com a franqueza.

— "Pois para caramujo saiu menos mal da casca a tal menina!" — e a mão sempre escrevinhando febrilmente: — "Tu disseste que a rapariga chorava, não?"

— "Uma Madalena. Na intrujice são todas o mesmo."

O Miranda continuou na mesma tessitura: — "A Maria do Rosário foi filada ao chegar o comboio. Chorava no caminho para a esquadra a infamíssima criatura, talvez pesarosa de não haver realizado o seu feroz intento."

— "Isso, isso" — reforçou o Cabral, rindo cinicamente. — "É atiçar-lhe. Aproveita, menino, aproveita. O Zé disso é que gosta. E um tema destes não vem cá todos os dias."

O Miranda seguiu sem vacilar, olho no linguado, olho na inscrição jeroglífica do Cabral: — "É alta, bem-parecida. Veste saia azul, xale claro, lenço branco de malha na cabeça. Daremos, logo que a obtivermos, a fotografia da criminosa. Compreendemos a ansiedade do público por todos os pormenores do monstruoso drama. Foram apreendidas cartas que se julga lançarão muita luz sobre o assunto. Parece fora de dúvida que estamos em presença de um crime dos mais extraordinários e revoltantes, que nos revela a autora como o maior dos monstros. A justiça que cumpra o seu dever, desafrontando a sociedade, ultrajada nos seus mais lídimos sentimentos. Que tal?"

— "Ó aquele, isso está primoroso!" — elogiou, sincero, o Cabral. — "Tu tens a bossa do jornalismo… Lá isso não se te pode negar."

— "Sempre tive vocação, isso tive…" — e o Miranda, compenetrado, esfregava as mãos que a nervosidade periodística arrefecera.

Entrou, pedindo licença, com voz sumida, um rapazote de seus quinze anos, com mais granéis para o Melo. Impressionante cara! muito chupadinho de fome, de insônia, talvez já do vício.

— "Levas isto para compor já" — intimou o diretor, estendendo-lhe o artigo sem o reler. — "Que tomem cuidado nos tipos que vão marcados. Primeira página. No alto. Entendeste?"

— "Sim, senhor."

O pequeno, ao sair, cruzou-se com o Lúcio Mascarenhas.

— "Boas noites, meus senhores. Aqui, sim; aqui pode-se estar. Não entra cá o frio."

— "Adeus, Lúcio!"

— "Adeus, ó menino!"

— "Viva!"

— "Trazes alguma cousa para o jornal? Noticiazinha de sensação, hein?"

— "Qual!… Julguei, julguei… Afinal dois caracóis! Um suposto filicídio!… Só as voltas que eu dei por causa dessa porcaria!… Tinha-me cheirado a cousa gorda… Interessava-me…"

— "O caso da rapariga de Alfarelos?" — perguntou o Cabral, escarvando um ouvido com o dedo mínimo, e arreganhando os olhos de espanto.

— "Sim, esse. Espremido o limão não deitou sumo."

— "Ó aquele, essa agora é de cabo de esquadra! Uma pantera que matou um filho e quis matar outro! Ainda mais sumo!"

— "Mas se está provado que a mulherzinha não matou nem quis matar cousa nenhuma!… Venho agora mesmo da esquadra. Afinal resume-se tudo nisto: a rapariga saiu há meses da casa onde estava a servir e foi para a dos seus pais onde teve duas crianças. Secou-se-lhe o leite. Veio a Lisboa e largou numa escada um dos filhos que foi recolhido na Misericórdia. Como a miséria acho que era muita, vinha agora ver se fazia o mesmo ao outro. Ora a mulher pode ser, e é naturalmente, uma desavergonhada, mas isto tudo, tomado como matéria jornalística, como matéria sensacional, é uma desgraça; não presta absolutamente para nada. Não há mistério; acabou o interesse. Até se apura quem é o presumido pai das crianças… mas, como isso não vem para o caso…"

— "Que burros!" — grunhiu o Melo que havia momentos deixara de corrigir e parecia meditar, com os dedos encravilhados no queixo.

O Lúcio olhou sobressaltado, o Miranda retorceu mais o bigode para encobrir o riso, e o Cabral infundiu mais um copito de genebra.

— "Você perdoe, ó Lúcio" — disse enfim o Melo, saindo claramente da habitual tranquilidade. — "Que o nome do patife não vem para o caso?! Pois esse é que devia vir sempre na frente. Melhor que pespegar para aí a parentela da pobre mulher com todos os ff e rr"

— "Não, homem, não… Isso é muito diferente" — e o Lúcio sorria malicioso aos outros dois, querendo dizer — Cá está o Escolho de volta comigo. Deixá-lo, coitado!

O Melo deu fé do sorriso e espevitou-se. Erguendo os óculos ao alto da cabeça: — "Os senhores, verdade, verdade, de mão na consciência, consideram essa rapariga uma grande criminosa?"

Risota geral.

— "Olha o Melo a defender infanticídios! Ai, que pagode!"

— "Homem, essa agora! Com a sua seriedade!…"

— "Você dormiu mal esta noite, ó Melo… Por mais que me digam!…"

— "Mas, com um milhão de demônios" — e o Melo descarregou dois murros enormes na mesa. — "Que queriam os senhores que a rapariga fizesse? Sim; que queriam?"

— "Ora essa! Que trabalhasse! que ganhasse para os filhos."

— "E quanto ganha uma mulher ainda que se esfalfe? Os senhores sabem como se paga o trabalho das mulheres neste país?"

— "Ó Melo, a modo que isso agora trescala a feminismo… Irra!" — e o Cabral despedia gargalhada e tosse atroadoras.

— "Mais lógica, é o que faz falta… Mais lógica e mais humanidade" — e o Melo esfregava os óculos com o lenço para vazão da atividade nervosa. — "Nos outros crimes não se exigem responsabilidades a todos os cúmplices? E neste, porque não?… Elas, quando não os matam, também os vêem muitas vezes morrer de fome. Mas desse crime ninguém quer saber, ninguém lhe busca o responsável…"

— "Bem, bem. Isso agora já é transcendência de mais para o jornalismo" — decretou o Miranda de testa franzida, assumindo o seu arzinho grave de diretor. — "A obrigação de uma folha diária é trazer o público ao corrente dos acontecimentos. Questões de doutrina não são para aqui. Deixemo-nos de filosofias que não adiantam nada e vamos ao que importa: deixa-se ir a notícia como está?"

— "Não, homem, não" — protestou vivamente o Cabral. — "Tem que se reformar."

— "Que diabo de maçada! E é que saiu bom, o artigo… Tem vibração… tem frêmito… É de que precisam os jornais para viver…"

Houve um silêncio cheio de concentração.

— "O verdadeiro é rasgá-lo" — optou corajosamente o Melo.

— "Este Melo! Este Melo!" — gargalhou o Cabral atroadoramente. — "Se o homem sempre foi jacobino chapado!"

O Miranda trejeitou dos ombros, muito frenético. De repente, com uma forte palmada na testa:

— "E se publicássemos uma local, na última página, com epígrafe À última hora, atenuando a notícia?"

— "Excelente, ó grande diabo! Tu hoje estás feliz" — e o Cabral expandia a satisfação, rolhando bem a botija, que colocou debaixo da mesa porque ia sair.

— "Não me parece mal" — conveio o Lúcio. — "Sempre se aproveita um pouco o efeito."

O Miranda puxara um linguado em branco e já estava de pena em punho. Esgarafunhou: À ultima hora. Mãe Desnaturada. Somos informados de que este caso não tem a gravidade que a princípio se lhe atribuiu. Fiéis ao propósito de bem informar os nossos leitores, voltaremos amanhã ao assunto com todos os esclarecimentos que pudermos obter.

O Miranda pousou a pena, muito contente de si, e levou o dedo ao timbre.

Apareceu logo o rapazito, o cara chupada.

— "Toma. Manda compor. Vai na terceira página. E as provas aqui ao Sr. Melo… Não confio nessa gente nem para isto. Entendeste?"

— "Sim, senhor" — e o rapazito voltou, melancólico como tinha entrado, como sempre estava, de dia ou de noite, de semana e ao domingo, no Verão, no Inverno, no Natal, na Páscoa.

O Cabral e o Lúcio já estavam em pé para sair.

O Miranda abotoou o sobretudo, pôs com meticuloso cuidado o chapéu, encaixou o monóculo, sacudiu as pernas para desenrugar as calças.

— "Também sais?" — perguntou o Lúcio, querendo saber para onde ele ia.

— "Vou um bocado à Duse" — e o Miranda calçava com arreganho as luvas amarelas. — "Ainda tenho que vir fazer a crônica teatral."

— "Acompanho-te. Também lá vou um bocado."

— "Adeus, ó Melo. Você não rasgue o artigo, hein?"

— "Até já."

— "Adeus. Não sei se logo virei por cá. Ando farto de noitadas."

— "Boa viagem!"

E, quando eles iam todos na escada, o Melo, de braços estendidos, espreguiçando-se com amplo desafogo: "Louvado seja Deus! Que burros!"

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