1/05/2023

Canções da Decadência (Poesia), de Medeiros e Albuquerque


CANÇÕES DA DECADÊNCIA


VERDADE

Como se pelo azul rolara decepada
uma cabeça enorme, ensanguentada e loura,
lentamente no mar, cuja amplidão redoura,
atufa-se do sol a esfera abraseada.

E, como colossal e rúbida granada
mancha de sangue o campo onde, ao cair, estoura,
ela — ao baixar do oceano à curva rugidora —
de vermelho macula a abóbada azulada.

Então, se a noite estende o crepe funerário
sem do sol recordar que o rubro lampadário
há de, em breve, o romper com vivos arrebóis,

eu penso — ao ver a luta assim dos elementos —
que a Verdade também se oculta por momentos;
mas com brilho maior nos ilumina após.

 

TRAZES-ME FLORES E SONHOS

Trazes-me flores e sonhos,
leves afagos risonhos,
doces carícias de amor;
queres saber as tormentas
fundas, enormes, cruentas,
que me roubam viço e cor.
Queres, meu anjo, que eu diga
que rude espinho me fere... 
Dizes que ria, que espere,
que tenha visões de luz... 

Ah! mas não sabes, criança,
que o norte que me conduz
não tem clarões de esperança... 
Tem tufões — não tem bonança... 
Tem mágoas — não tem sorrisos... 
Ah! tu não sabes, na treva,
o desalento que neva
do meu peito nos granizos!
Não sabes que quem me leva
pelas estradas da vida
— como pomba foragida,
que no futuro não pensa —
que o meu guia, minha estrela
é o Arcanjo da Descrença!

Dizes que apague os meus choros,
que busque virentes louros
da Glória nos arrebóis... 
Eu sei que a Glória é mentira,
sonho por que se suspira,
que tem o brilho dos sóis
e após, em fumo ligeiro,
como as miragens, expira... 

Não! Eu não quero coroas... 
Basta o riso feiticeiro
com que tu me galardoas... 
Só ele pode, ligeiro,
por um momento somente,
dissipar minhas tormentas
fundas, enormes, cimentas... 

 

DEUS

Eu não sei quem tu és. Sei que minh’alma,
nos céus librando o largo voo ansioso,
jamais encontra do teu céu a calma,
— sombra ilusória de mentido gozo.

E, se minh’asa mais e mais se espalma,
remontando no pego luminoso,
os mundos vejo que ninguém acalma
do Universo no giro portentoso.

Mas, se te busco, ó deus potente e forte,
elo que enlaças a existência à morte,
fonte sublime que criaste tudo,

vejo a Matéria as amplidões enchendo,
vejo a Força seu seio revolvendo,
e só o céu, p’ra confessar-te, mudo...

 

A UMA CANTORA
(Em uma festa abolicionista)

Pois que tu — gênio das artes —
da Liberdade aos clarões,
teu nobre fogo repartes
sobre quebrados grilhões,
pois que teu canto sublime
do escravo aflito redime
o sofrimento feroz,
— a ti, de envolta com as palmas,
rojamos também as almas, 
as almas de todos nós.

Colhe tu — se tu puderes —
quanta luz, quanta afeição
dos cantos que tu desferes
se envolvem na suavidão.
E em vez dos negros espinhos,
que dos gênios nos caminhos
costumam sempre apontar,
dos negros prantos das dores
que tu secaste, hão de as flores
para cobri-los brotar!

 

ESTÁTUA

Eu tenho muita vez a estranha pretensão
de me fundir em bronze e aparecer nas praças
para poder ouvir da voz das populaças
a sincera explosão;

senti-la, quando, em festa, as grandes multidões
aclamam doidamente os fortes vencedores,
e febris, pelo ar, espalham-se os clamores
das nobres ovações;

senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor
nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte
e curva para o chão a entristecida fronte
do povo sofredor;

poder sempre pairar solenemente em pé,
sobre as mágoas cruéis do miserando povo,
e ter sempre no rosto, eternamente novo,
uma expressão de fé.

E, quando enfim cair do altivo pedestal,
à sacrílega mau do bárbaro estrangeiro,
meu braço descrever no gesto derradeiro
a maldição final.

 

LÚCIA

Flor desbrochada em gótica ruína,
sem que um raio de sol, vivo, a calente;
flor, que no cálix virginal não sente
meigo afago da brisa matutina,

nessa cabeça pálida e franzina
quem te lançou dos sonhos a semente?
que dor te fez verter o pranto ardente
que te estiolou da vida a flor divina?

Por que, às vezes, ó pomba imaculada,
numa vaga tristeza mergulhada,
nas devesas em flor cismas errante?

Que sonhas? que procuras? Teu olhar
acha talvez nos raios do luar
vaga lembrança de um pai distante?
 

QUANDO EU FOR DOIDO

Eu sinto que a Razão em mim, às vezes,
como um ébrio sem forças, cambaleia,
e, nas trevas da insânia, que tateia,
busca e não acha a luz.

E minh’alma confrange-se tremente,
como criança lívida e assustada,
porque lhe falta a vastidão rasgada
dos amplos céus azuis!

E eu vos quero pedir, a vós, carrascos,
que heis de — quando chegar o triste dia
querer me dar a lúgubre enxovia
de um hospício qualquer,

que me deixeis, ao menos, nesse transe,
afinal, a suprema liberdade
de, em pleno sol, em plena claridade,
como um doido — morrer!

 

A BEIRA DE UM TÚMULO

Não venham cuspir o insulto
de uma ironia sangrenta
sobre a face macilenta
desta formosa criança;
não venham falar agora
de um deus de amor e esperança!

Morrer... Morrer, quando a vida
desabrochava florida,
desabrochava risonha!
Morrer na idade sublime
em que a donzela, que sonha,
sonha delícias de amores!

Oh! não... Não venham falar-nos
do deus que lança nas flores
vida, perfumes e encantos... 
Deixem as crenças mendazes... 
Deixem os hinos e cantos...
Se Deus houvesse, — os vorazes
vermes sinistros somente
cantariam negramente
seus louvores, seus carinhos... 

Morreu na idade em que as almas
são como tépidos ninhos,
abrigando os passarinhos
das quimeras doidejantes... 
Morreu... E eu lembro-me ainda
de a ver tão virgem! tão linda!
passar mimosa, brincando,
com finos risos galantes... 

Calem as notas das preces
ao deus que os mundos domina,
deus que sem pena assassina
as douradas, fulvas messes
das nossas crenças singelas... 
Não lancem negros escárnios
sobre a campa das donzelas!

Ela adorava a cadencia
das magas valsas ardentes,
tinha n’alma a florescência
das quimeras inocentes...
Era formosa... Era virgem... 
Doidejava na vertigem
do torvelinho da vida,
cercada toda de galas,
de doces mimos, de falas
de uma esperança querida.

E dizem... dizem que existe
um deus, dos céus nas alturas,
que enxuga os prantos do triste,
que lança o riso e as venturas!
Não venham cuspir o insulto
de uma ironia sangrenta
sobre a face macilenta
desta formosa criança!
Não venham falar agora
de um deus de paz e esperança!

 

OSÓRIO

Ele tinha no olhar a luz da Glória,
montava no ginete da Vitória,
das lutas no fragor,
e a deusa das pelejas condenada
seguia-o pelos campos, deslumbrada,
a suplicar-lhe amor.

Das batalhas fatais entre o tumulto,
quando ele erguia o majestoso vulto,
as bocas dos canhões
soltavam, da batalha nos embates,
entre os rugidos roucos do combates,
gritos e saudações!

E as bandeiras, tremendo desfraldadas
dos ventos do Triunfo nas rajadas,
pareciam saudar
o destemido semideus da guerra,
que passava, lutando, sobre a terra
as hostes a calcar.

Era o titã soberbo da peleja... 
Quando o furor das lutas esbraveja,
quando retine audaz,
erguia, altivo e forte, o largo peito
e tombavam-lhe aos pés — singelo preito
as metralhas fatais!

Às vezes, a Vitória, descuidosa,
de bandeira em bandeira, duvidosa,
não sabia escolher.
Mas ele via perpassar distante
seu país humilhado e agonizante
e a fazia deter.

Morreu... Cinto de louros luminosos,
nos estandartes nossos gloriosos
envolvido rolou... 
Pátria, — mulher formosa, americana —
diz-lhe que sua glória soberana
dentro de nós ficou.

De geração em geração passando,
nós iremos seu nome venerando
repetindo ao porvir... 
No coração dos novos lutadores
nunca seus verdes louros vencedores
hão de, murchos, cair!

 

PASSANDO... 

Por entre a louca multidão ruidosa,
que a seus pés se agitava doidamente,
erguia a calma fronte majestosa
a altiva estátua do guerreiro ingente.
Um dia veio a guerra... ímpia, sacrílega,
mão estrangeira num furor infando
fê-la rolar partida, enquanto as turbas
riam, passando... 

O ipê robusto sacudia os galhos,
onde cantava a música dos ninhos;
dos céus bebia os matinais orvalhos
ensombrando as alfombras dos caminhos.
Um lenhador chegou. Os ramos da árvore
caíram todos a seu forte mando... 
Hoje, no chão deserto, as feras rudes
seguem, passando... 

Tudo passa no Mundo, no Universo...
Tudo segue seu rumo inevitável... 
No mar, na terra, na amplidão, disperso,
nada perdura eternamente estável.
Prantos de dor, invocações ou súplicas,
quem pode desviar a Sorte, quando, —
quando a roda fatal nos toma e leva,
leve, passando!

Não! Ninguém nos detém... Lábios de virgem,
sonhos nobres de louros e de glória
nada detém na intérmina vertigem
o turbilhão da vida transitória.
Ó crianças que amais! ó almas cândidas,
que acreditais no afeto amigo e brando,
não busqueis ilusões... O amor mais forte
morre, passando... 

 

CARMEN

Où passent, en chantant, des réves de baisers.

Jean Richepin.

Que deus te argamassou numa argila divina,
ó mulher, que és da Forma a encarnação radiosa,
mulher, de cujo olhar na chama peregrina
queimas as asas da alma a doidejar ansiosa?!

Que deus, que deus cruel, ó mulher assassina,
te deu a sedução sublime e vitoriosa,
para nos dar a nós a tantálica sina
de não poder cingir-te a carne perfumosa?!

Tu resumes o Aroma, a Luz, a Forma, o Encanto,
tudo quanto há de bom, tudo quanto há de santo,
tudo que para o céu nos pode levantar!

E no teu corpo excelso, ó diva triunfante,
eu sinto a vibração estranha e provocante
da volúpia sublime, esplêndida, a cantar... 

 

CREPÚSCULO

Quando o sol avermelhado
d’água imerge na planura,
e precede a noite obscura
o crepúsculo avermelhado,


paira um clarão desmaiado
lutando com a sombra escura
que desce da curvatura
do firmamento azulado.

Assim, dentro em mim, da Crença
resta um clarão quase frio,
que inda combate a Descrença,

e, nas ânsias desta luta,
— qual crepúsculo sombrio,
hoje a Duvida me enluta... 

 

SOMBRAS

E tarde. Passa alguém nas sombras da campina... 
a rajada do vento as árvores inclina,
a nevoa estende o véu... 
É a hora da calma, a hora do repouso... 
Um servo sonolento acende vagaroso
as lâmpadas do céu... 

Através da neblina, incerta, desmaiada
desliza uma figura enorme, agigantada.
Na dúbia escuridão
tem o imenso perfil a flutuar enorme... 
Perpassa colossal, fantástica, disforme:
— sinistra aparição!

Um caçador audaz, sem medo, sem receio,
apontou friamente... A bala deu em cheio
no sinistro animal.
A visão, que na nevoa as linhas aumentara,
que às almas sem vigor nas sombras assustara,
era um cão trivial!

Uma figura assim, na nevoa da ignorância
dos povos, perpassou na prolongada infância,
da penumbra nos véus.
Quando caiu enfim... era singelamente
humana aparição a deslizar, silente,
e que julgavam Deus... 

 

FORGET ME NOT

Não te esqueças de mim! Não te esqueças,
quer tu sintas sorrir a ventura,
quer em prantos acerbos padeças
da Desgraça na negra tortura!

Não te esqueças de mim! Na minh’alma
brilha sempre o retrato da tua,
como brilha de um lago na calma
a serena beleza da lua.

Não te esqueças de mim! Se na vida
me faltasse teu nome um momento,
da existência na luta renhida,
quem pudera me dar novo alento?

Não te esqueças de mim! É contigo
que minh’alma sonhando se deita.
É teu nome em que eu acho um abrigo
quando sinto a tormenta desfeita

Não te esqueças de mim! És a crença
que no peito somente levanto... 
É em ti que minh’alma só pensa... 
És meu sol! meu amor! meu encanto!

 

ESTRELAS APAGADAS

Elle vous servira, la foi dans cette fable,
D’etoile à votre chemin.

Jean Richepin.

Cândida estrela, que no etéreo espaço
brilhas com luz encantadora e viva
e atrás da qual minh’alma pensativa
do céu se lança pelo azul regaço,

quando, às vezes, te fito, em mim se aviva
um pensamento nebuloso e baço
e eu cismo que talvez o último passo
nas órbitas do azul deste, cativa,

e hoje essa luz, a luz que nos envias
— astro apagado do correr dos dias —
teu morto foco nem sequer a tem!

Então minh’alma, desprendida, pensa
que inda perdura o rutilar da Crença
e Deus — seu foco — se extinguiu também!

 

DO LIVRO DE LAURA

Fui ter à alcova deserta
dos nossos doidos amores...
Achei fanadas as flores
que tu deixaste ao sair.
Uma saudade profunda,
vibrava cheia de encanto:
sentia-se em cada canto
uma lembrança surgir.

Eram — deixados à toa —
teus mimosos sapatinhos
como dois cândidos ninhos,
sem das aves ao calor.
Vagos, em torno, no espaço,
como invisíveis cardumes,
vagavam doidos perfumes,
lembrando teu doce olor... 

Fino, o tapete felpudo,
junto ao leito abandonado,
inda lembrava, calcado,
rastos sutis de teus pés... 
Do colchão as fofas penas
as leves, lúcidas mornas
das tuas nítidas formas
tinham guardado, fiéis... 

Teu alto espelho, de rubra,
de velutínea moldura,
onde a tua formosura
se mirava escultural,
— baço, sem brilho, nas sombras,
lembrando a dita perdida,
queria ver-te esculpida
de novo no seu cristal... 

E eu, então?! Eu, que conheço
teu mago encanto sublime,
que meu lábio não exprime,
que não sabe de outro assim;
eu, que vi todas as linhas
do teu corpo: — estátua d’arte —
que vivo para adorar-te,
p’ra sentir-te ao pé de mim;

ah! Laura! jamais pudera
contar-te toda a tristeza
que me prendeu na incerteza
de uma ausência tão cruel!
Não fujas mais! Por castigo
não me deixes mais sozinho!
Serei teu servo mesquinho... 
Serei teu servo fiel... 

 


PELICANO

Cest la chair de ta chair, c'es
l’âme de ton âme.

Jean Richepin.

Onde a vaga se quebra em ríspidos lamentos,
junto à costa, onde a rocha é dura e penetrante,
habita, exposta ao sopro aspérrimo dos ventos,
uma ave que é do amor o exemplo culminante.

Por isto ela, que afronta a voz dos elementos,
impassível, sem dor, estoica e triunfante,
vendo o filhinho exausto, em presa a mil tormentos,
rasga p’ra alimentá-lo o seio palpitante.

Assim deveis também, ó loucos cismadores,
que na trilha sem fim das lutas e rancores
andais buscando a luz que vos conduza à História,

sentindo palpitar esse fatal anseio,
rasgar sem medo algum vosso possante seio
p’ra alimentar da campa a vossa filha: — a Glória.

 

ASPIRAÇÃO

Il demeure, quand même, à jamais
implacable.

Jean Richepin.

Eu perguntei do mar à vastidão gigante
se ela esperava aos céus poder chegar um dia
para juntar do azul à vívida ardentia
a ardentia fugaz da vaga murmurante.

E o mar me respondeu que há muito que sabia
ser-lhe vedado alçar-se ao páramo brilhante
do espaço, — mas que tinha a força palpitante
de um desejo fatal que aos céus o suspendia.

Olhei... ouvi na praia o proceloso embate
das ondas no ulular das ânsias do combate
em que a terra do mar a aspiração quebranta.

E eu cismei que também numa eterna loucura,
— certa de não poder tocar-lhe na luz pura —
minh’alma para a Glória, ardente, se levanta!



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Iba Mendes Editor Digital
www.poeteiro.com
São Paulo, 2023.

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