1/15/2023

Diário duma criança (Conto), de Ana de Castro Osório



DIÁRIO DUMA CRIANÇA

Creio que não é bem exato o título que escrevi no alto da página. Isto não é verdadeiramente o Diário duma Criança, não é, mas sim a minha vida toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de fatos e sensações de que o Chico muito se admira.

Decerto não sou muito velha — fiz em Março vinte e dois anos — mas, assim mesmo, ele acha extraordinário como os episódios da minha infância se me fixaram na memória tão vivamente, e os posso recordar com tanta nitidez, como se a minha alma tivesse a receptibilidade mecânica de um fonógrafo.

Não pensei nunca em escrever; sei, tão-pouco, que nenhuma novidade pode trazer ao mundo a minha prosa descuidada e frouxa.

Fui sempre pouco estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O Chico, que é um sábio, é que me disse, uma tarde, resumindo toda uma longa palestra em que eu lhe contei os mil incidentes de vida estranha em que o meu pobre espírito se debateu até chegar à doce paz da nossa felicidade de hoje:

— Se tu escrevesses isso tal qual o contas, faríamos um belo estudo de psicologia infantil!…

Eu, que adoro o meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo quanto sentia, tudo quanto me lembrava ter sofrido, parecia-me tão difícil!… Vida toda feita de sensações e estranhezas de carácter, quem poderá ter interesse em conhecê-la?!

Oh que coisa tão custosa de realizar, este desejo, quase imposição, do Chico!…

As minhas memórias são leves fios de aranha que não servem para urdir e tecer utilmente uma sólida obra caseira.

Escrever o Diário da minha infância, eu que nunca tive paciência de rabiscar cartas muito grandes — a não ser para o Chico!…

Depois, sei unicamente escrever o que sinto, e os escritores — dizem — não fazem assim. O Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse… oh esse é outra coisa!

Por muito tempo discutimos, mas, como o senhor meu marido é adoravelmente teimoso e eu não sei ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma noite destas ao teatro, recusando-me a acompanhá-lo a pretexto de ter sono, e quando voltou, eram duas horas da manhã, entreguei-lhe o manuscrito, que leu sem descansar, tal qual o mandou imprimir logo no dia seguinte.

Isso é que me custou!… Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem hesitar diante duma única palavra que não correspondesse ao meu pensamento, deixando correr a pena nervosamente, em galopada doida, quando as recordações vinham em montão, chamadas umas pelas outras, numa lufada de quase vertigem, sempre imaginei que ele emendaria aquilo e lhe daria uma forma mais correta.

Mas — qual história! — o querido infame teve o descaramento de se rir na minha cara e de me responder:

— Que se o emendasse estragaria tudo!

Foi assim que saiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre.

Chamo-me Raquel. Creio que este nome é hereditário na minha família, porque a minha avó e a mãe da minha avó eram também Raquel. Não sei. De genealogias, como de tudo mais, entendo pouco.

O mais longe que posso recordar na minha existência humana, vejo-me feliz.

Era uma grande casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode desejar uma criança acostumada à simplicidade da vida campestre.

Os pátios eram habitados por uma multidão de animais domésticos, que nos conheciam bem, de tanto milho que às escondidas lhes deitávamos.

Eu era a mais velha, e os meus quatro irmãozitos seguiam-me alegremente pelos campos fora, como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defeso, nem parede que não tivéssemos escalado, nem árvore que não conhecêssemos como os nossos dedos. Os frutos eram vigiados desde que as árvores se cobriam de prometedoras flores, e antes, muito antes de a família os ver em casa, já nós tínhamos feito a nossa primeira escolha. Quando a nossa pobre burrica descansava do fatigante trabalho da nora, íamos desamarrá-la da manjedoura, saltávamos-lhe para cima, e fazíamo-la trotar pelos caminhos pedregosos da aldeia como um pur-sang trotaria nas avenidas areadas dum luxuoso parque.

Felizes tempos!… Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; às vezes lembrava-me disso, e nem sempre estava disposta a fazer de general no exército fraternal.

Muitas vezes mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais sossegadas: queria governar casa, ser a mãe, exercer a minha atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu lugar. Chamava então as pequenas da minha idade e brincávamos às donas de casa: improvisando os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo de baixela fragmentos de louça, cozinhando pétalas de flores e ervas que tínhamos mais à mão; indo ao tanque lavar a roupa das bonecas, as nossas filhas; carregando a água com a cantarinha em equilíbrio sobre a rodilha, no alto da cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como víamos às senhoras vizinhas, lá no povo. Ralhávamos com os homens, os meus irmãozitos — porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos…

Na aldeia não havia meninas finas, e então arranjara as minhas amigas e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais.

Tinha os seus modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar disso, não me parecia com elas!

Sempre me há de lembrar o que escandalizava meus pais quando afirmava peremptoriamente: que de todas as casas da vila próxima, onde as havia muito boas, era a mais humilde de todas a que mais me agradava.

Cuidaram que era uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a há pouco, já depois de mulher, confesso que não mudei de opinião. É que sentia intuitivamente o pitoresco que os nossos artistas andam hoje procurando com tanto afã…

Na verdade, a casinha térrea, construída sobre a rocha onde tinham cavado os degraus, com seu alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era duma originalidade, na sua singeleza primitiva, que me encantava.

Nunca, como tantas crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã, as tias, ou as senhoras das nossas relações. Nada! Só procurava ser aquilo que nunca conseguiria, por mais esforços que empregasse.

Melhor fora que tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras raparigas da minha aldeia: uma perfeita camponesa, cheia de saúde e de alegria, sem mais cultura do que a delas!…

Meu Deus! A delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos passados, abre-me um caminho largo a uma existência toda inundada de sol; mas, quando penso em quatro anos da minha existência, sinto em mim uma tão grande repercussão de dores passadas, que não sei quanta bondade lhe será precisa para mas fazer esquecer!…

Enquanto eu suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode sofrer, sequestrada de tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros anos; enquanto o meu espírito, sacudido pelas lutas mais violentas, angustiado pelas mais sombrias dúvidas, se abria à compreensão duma vida que dizem superior; enquanto o meu coração aprendia na dor os infinitos cambiantes dos sentimentos complicados; a Rosita, a Maricas, e a Aninhas da mestra — as queridas companheiras da minha infância — cresciam e faziam-se boas e laboriosas mulheres, cheias de vida e saúde, sem incompreensões mortificantes do seu próprio coração.

Quando elas me viram voltar à aldeia, tristemente grave, empalidecida pela dor, adelgaçada pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece os preceitos da elegância, não compreenderam as lágrimas que bruscamente me vieram aos olhos e correram impetuosas pelas faces, como vaga interior vencendo todos os diques.

Imaginaram — as pobres! — que eu tinha saudades das amigas de Lisboa e as desprezava a elas. Oh não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do tempo em que o meu espírito, não fatigado, se comprazia nas suas conversas simples, e em que os seus gostos naturais eram também o meu gosto.

Chorava desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal incurável; tinha desprezo — e muito — por essa educação que me roubara quatro anos de vida feliz e proveitosa, dando-me em troca uma ignorância mais completa do que a sua! Porque as minhas amigas e companheiras de infância sabiam muita coisa útil, e eu apenas me pudera convencer de que não sabia nada — o que é altamente desconsolador.

Como já disse, durante a infância considerei-me feliz. A minha mãe era bondosa, como muita gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma fatalidade psicológica que a podia ter feito nascer uma criminosa. Mas juntava a essa inconsciente bondade muita justiça e bom senso.

Cuidava escrupulosamente do amanho interior da nossa casa, não deixando as criadas levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam muitos instrutores de recrutas. Rezava as orações obrigatórias de cada dia; cabeceava à boca da noite, antes de se acender o candeeiro para o serão; e depois de espertar era a última a deitar-se em casa, depois de ver todas as portas e apagar todas as luzes — não fosse o inimigo sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou as raparigas se descuidassem com o lume! De manhã era a primeira a madrugar, para a mesma labuta de todo o ano — que era afinal a de toda a sua vida.

De sabedorias para si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que no seu entender devia tornar-me uma verdadeira menina educada: tocando piano, ataviando-me com jeito de quem sabe, que não privasse com as raparigas da rua, que lesse romances para ter umas luzes de história, que bordasse a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha, cantasse ao piano em francês ou italiano, soubesse, enfim, estar numa sala…

Duma tão grande infelicidade que a única filha tinha modos de rapaz, detestava o piano, adormecia a ler os mais patéticos romances, e fazia a cabeça doida ao padre José, que nos dizia a missa na capela da casa e toda a semana carregava com a pesada cruz de nos iniciar nos mistérios da língua portuguesa.

Ralhavam comigo, mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me compreender a possibilidade de estar perfilada numa cadeira a receber as visitas na sala, como via as filhas do recebedor e as do médico da vila quando vinham à nossa casa. Francamente, abominava as adoráveis meninas, que ficavam com sorrisos murchos ao cimo da escada, recusando-se a seguir-nos à quinta com medo de estragar os lindos vestidos à moda, esses vestidos aparatosos, cheios de fitas e rendas, que usam na província as meninas ricas.

Eu, que era uma selvagem incapaz de tolerar um colete justo ou umas botas apertadas, que pedia para que me cortassem o cabelo para não sofrer os penteados, que só gostava dos vestidos depois de afeitos ao corpo pelo uso, olhava com verdadeiro assombro aquelas meninas modelos.

Às vezes, a minha boa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões do colete — "para me tornar elegante" —, mas eu protestava tão energicamente que tinha de desistir logo, dizendo-me, arreliada:

— Ó menina, é preciso sofrer para ser formosa!

— Pois sim, espera por essa… Eu nem quero sofrer nem quero ser formosa!

Uma vez levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de Inverno, deste Inverno tão nosso, em que o azul do céu é limpo, puro e transparente como se fabricado fosse pelo mais escrupuloso dos artistas e da mais preciosa das porcelanas.

Em casa, apenas as criadas traquinavam na cozinha, encetando a labuta do dia, e a Maria Augusta abria janelas e portas para a limpeza do rés-do-chão.

Acordara cedo; a chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador.

O Sol começava a aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava ao cimo dum vale, depressa me inundou o quarto duma luz rósea que enchia de alegria os meus olhos e me fazia cantarolar e rir sozinha, como se estivesse no maior divertimento.

E vesti-me à pressa, com grande abundância de gestos, batendo na água fria, que atirava para a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz como se uma alma nova despontasse em mim.

Em baixo, a Maria Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso jubiloso, a minha madrugada feliz.

Correndo para o pátio, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que ainda permanecia fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham acorrentado à sua grilheta diurna, e fui à estrebaria ver a nossa boa Cacilda, a burra, que me cumprimentou com um zurrar festivo.

Iniciando assim o que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série dos meus disparates, não parei no princípio, o que seria prova de pouca independência de caráter… Desprender a Cacilda e trazê-la para a horta, para que ela pudesse saborear à vontade as couves que o velho hortelão guardava avaramente dos seus dentes de apreciadora, pareceu-me a coisa mais natural do mundo.

Depois, ela bem almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o Tigre, que a seguíamos satisfeitos de a ver escolher uma a uma as mais tenras folhas da horta, achei também natural, como um simples remate de tal festa, que fôssemos dar um passeio até à mata.

Chamando a Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta à corda na mão, e dum pulo fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz.

Um pequeno assobio ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e aí vamos nós todos três, alegres e felizes, porque o céu estava límpido e o Sol brilhava, porque o ar era puro e os campos reverdeciam numa jovialidade de Primavera próxima.

A meio da carreira sobreveio-nos um obstáculo inesperado, na vera pessoa do bom padre Zé, que já voltava das suas árvores em cata do almoço, e fez estacar a Cacilda com os seus gestos e gritos indignados.

— Para onde vai a menina assim montada?!

— Dar um passeio à mata. É para abrir a memória e o apetite — respondi-lhe a rir.

— Mas isso não são modos de menina bem-educada! — apostrofou-me aflito.

— Eu não sou menina, nem bem-educada! — retorqui-lhe numa gargalhada.

— Se a mamã sabe!….

— Não lhe diga nada, que eu já volto.

E, dando um sinal à Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre no mais profundo pasmo.

Agora são os médicos os primeiros a preconizar às senhoras essa maneira de cavalgar, e não tardará que a moda a imponha como a última palavra do chic. Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligência liberta da criança!

Mas à volta é que foram elas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de protestos e queixas com os meus atos, tão espontâneos e naturais quanto me pareciam humanos e justos…

Pois não seriam eles meritórios: abrir as prisões, soltar os presos, dar de comer aos que tinham fome, e em seguida premiar-me a mim mesma indo passear?!

Não o entenderam assim em casa, lá porque as galinhas, tendo encontrado aberto o portão do quintal, tinham acabado a destruição da horta, que a Cacilda encetara com tanto brio! O hortelão parecia doido e a minha pobre mamã benzia-se assustada, temendo que eu tivesse o diabo no corpo.

Fui chamada ao escritório, àquele escritório de paredes revestidas de velhos livros onde o meu pai recebia os caseiros, fazia a sua escrituração, e lia, a maior parte das vezes, os seus in-fólios mofentos.

O caso era realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim se tivesse apelado para a autoridade paterna…

Assentado na larga cadeira antiga, de couro lavrado e braços abertos num carinhoso afeto, onde ele descansava as suas finas mãos de intelectual, diante do pesado bufete de pau-santo torneado em três cordas, como um juiz austero, o meu pai admoestou-me severamente por tanto disparate e terminou por dizer: — que me tornava o escândalo da família e assim não podia continuar…

E como esta outras muitas fiz, que não acabaria se as fosse a contar todas.

A mamã queixava-se da minha extrema ignorância e incapacidade de ser apresentada diante de gente, o que o meu pai corroborava dizendo por seu turno: — ser absolutamente preciso, e muito urgente, mandar vir uma professora que tomasse conta de mim e me sujeitasse a uma "disciplina de ferro".

— Que não, isso que não! — acudia a minha mãe — não queria estranhas metidas em casa a verem e a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo a saberem mais da nossa vida do que nós próprios. Nem a gente pode falar à sua vontade, nem ter as suas coisas, porque enfim não há casa que as não tenha, sem que tudo se saiba e se comente… Depois, cerimônias, niquices, exigências… nada, isso não!

— Pois é o único meio: — opinava o papá triunfante — uma senhora que lhe fale uma língua estrangeira e que a sujeite a um regime invariável.

— Nada, um colégio é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se livre de cuidados.

Meu pai hesitava — tinha lá as suas ideias contra os internatos —, e estou em crer que me preferia ignorante, como a Zefinha da horta ou a Teresita do barbeiro, a ter que me mandar para um colégio.

Os meus irmãozitos todos se afligiam quando se ventilava a magna questão, que os ameaçava da minha ausência, e eu, sem bem saber o que preferia, ia gozando alegremente os dias na bela paz da minha aldeia florida e ensoalhada.

Mal suspeitava que a desgraça estava a bater-me à porta — e mais terrível do que podia imaginar! Parece-me estar a ver entrar na cozinha de grande chaminé, onde se enxugava o enchido e as castanhas secavam no caniço, a mulher dos recados que fora à vila buscar o correio, e me dizia, alvissareira:

— Olhe, menina, aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manuel; já lhe conheço a letra.

Muito alegre, arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fora a gritar pela mamã até dar com ela no celeiro a receber uma pensão. Lembro-me bem — cinquenta e sete! — gritava o caseiro, e a mamã, muito serena, ia apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava na tulha. Quando entramos — eu e os meus quatro irmãozitos — como se fôssemos uma revoada de pardais bulhentos, ela toda se agastou… — Como isto me ficou nítido na memória! — Quando viu de quem era e o que dizia a carta, correu toda satisfeita em busca do marido, enquanto nós aproveitávamos a falta de vigilância para saltarmos todos para dentro do milho. Eu, que era a maior, enterrava-me até à cinta nos grãos amornados e enchia os bolsos do meu bibe branco, para levar uma lembrança ao pombal. Um dos pequenos gritava que as suas botas, de canos muito largos por terem pertencido ao mais velho, levariam mais dum saco de milho, para a ração suplementar da Cacilda.

Ríamos perdidamente, atirando uns aos outros aquela chuva de grãos muito secos, ainda cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara e brunira!

O caseiro achava muita graça aos meninos — pudera não! — e na sua cabeça lanzuda esboçava-se, talvez, o pensamento finório de se enganar na conta com alguns alqueires a menos. É provável que assim sucedesse, porque a carta do tio Manuel tinha transtornado por tal forma a mamã, que até se riu quando nos veio encontrar a todos aninhados dentro do milho, e não passou revista às nossas algibeiras quando saltamos para fora e nos safamos com presteza — não fosse ainda cerceada a merenda que levávamos aos nossos protegidos da capoeira, do pombal e da estrebaria!

Já fora e ainda ouvíamos a contagem dos alqueires que entravam para a tulha, arrastada e monótona. Os bois, jungidos ao pesado e primitivo carro de duas rodas, estacionavam no quintal, ainda carregados com os sacos cheios com o resto da pensão, guardados por uma criancita vestida de jaqueta, calças compridas e grande chapéu, como um pequeno homem de caricatura. O que nós rimos! Era o filho do caseiro, o Tonito, mais novo do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já útil como uma pessoa crescida.

São assim os filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os predispõe para uma longa existência paciente, sofredora e produtiva.

Como esse foi o último dia feliz da minha infância, não me esqueceram nenhuns destes detalhes, nem o cheiro à poeira do milho e aos queijos da serra da Estrela, que secavam em tábuas presas ao teto do celeiro por cordas isoladas com testos de barro, por causa dos ratos, providências caseiras da minha mãe.

Desde essa luminosa tarde de Outono, ainda quente como se o sol caísse a prumo, num estiramento inesperado de Estio, e já perfumada pelos frutos maduros, que se recolhiam à pressa, e pelo mosto de cheiro forte que ferve nas dornas ainda antes de recolher ao lagar, a nossa casa transformou-se completamente. Eram só conferências sobre o que se daria aos manos, e mais os lençóis bordados, a coberta de damasco para a cama, as toalhas de linho com ricas franjas de renda de Peniche… Tudo quanto havia de melhor se levava para o quarto da laranjeira, o mais vasto e cômodo da casa, o próprio quarto de meus pais, que tudo achavam pouco para receber condignamente o mano Manuel, que voltara havia pouco tempo do ultramar, casado com uma estrangeira. E assim passaram oito dias em que se não pensou nem falou noutra coisa.

A minha mãe fazia esforços de memória por se recordar bem nitidamente dos traços fisionômicos do irmão, como se volvidos tantos anos gastos em trabalhos e fadigas, ele pudesse ter ainda o rosto levemente rosado, o buço mal lhe sombreando o lábio superior, a cabeleira negra ondeada que lhe davam um tão gentil aspeto no retrato em daguerreótipo, tirado quando assentara praça em cadete, e que nós não nos cansávamos de ir ver à sala de visitas, no seu estojo forrado de veludo granada.

Até o padre José afrouxava a sua vigilância pelo nosso estudo e punha-se ao dispor da mamã — para o que fosse necessário. A minha mãe sorria benévola e agradecia, mas não o ocupava em coisa alguma, porque ele, muito forte no português e no latim e mesmo um tanto no francês, tirado disso só à mesa, diante duma travessa cheia de açorda, ou no pomar podando e cuidando das suas queridas árvores, era homem de alguma utilidade.

Um santo, o nosso bom professor! Que saudades dele eu tive depois, quando comparava a sua maneira tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade de bom, respondendo meio comprometido às nossas curiosidades extemporâneas, e quando se atrapalhava à nossa pergunta atrevida:

— Ó padre Zé, para que está sempre a falar no diabo?

Era o costume dele, o seu bordão.

— É verdade — respondia-nos muito ingênuo —, é um diabo duma mania que eu tenho de estar sempre a falar no diabo!…

Um bom homem, afinal de contas; um santo velho, nada fanático, de bolsa franca para todas as misérias, palavras de consolação para todas as lágrimas, espírito bem equilibrado e muito lógico, um filósofo sob a aparência dum sólido camponês. Conseguira que eu aprendesse da minha língua aquilo que ainda hoje sei; conseguiria — era capaz! — ensinar-me talvez o latim e até a ajudar-lhe à missa. O que não faria desta sua rebelde discípula a paciência beneditina do bom padre José!

O tio Manuel era irmão mais velho da minha mãe. Saíra de casa muito novo; a última vez que empreendera a incômoda viagem à aldeia, era apenas cadete, como tirara o retrato. Depois fora para a África, na ânsia de ganhar honras e postos. De lá percorrera quase todas as possessões ultramarinas, sem mais se lembrar de escrever à família. Só havia pouco tempo mandara notícias participando ter casado, e dizendo a sua resolução de voltar em breve ao reino.

Alguns meses mais tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisboa, onde estava tratando de se instalar, e convidava a irmã e cunhado para irem fazer-lhes uma visita. Na última carta, aquela que tanta impressão causara em todos nós, dizia: — que, em vista da dificuldade que os meus pais opunham em deixar a casa, viria ele visitá-los e apresentar a sua senhora.

No dia em que deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos domingueiros, recomendando-nos muita cautela — não fossem os tios julgar-nos uns besuntões!

Nesse dia era escusado o lembrete, pois nenhum de nós pensava em diabruras, ansiosos como estávamos por ver chegar os hóspedes.

O Papá partira cedo para a vila, para esperar a diligência que traria os viajantes, e nós subimos às janelas mais altas a ver se descobríamos o carro por entre as faias da estrada real.

Lá para o meio-dia descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe — tal qual como no Barba Azul — e, logo depois, ouvimos o guizalhar da diligência que já se avistava numa volta da estrada. Corremos alvoroçados a prevenir a mamã, que na cozinha dava as últimas instruções à criada sobre a cozedura do peru e o assado de leitão.

Um quarto de hora depois apeava-se à nossa porta, entre o povo curioso, a mais extraordinária pessoa que até esse tempo eu tinha conhecido.

Depois disso, no caminho da vida, que já não é curto pelo muito que tenho sentido e sofrido, tenho visto bastas figuras caricaturais: gente de todos os modos e feitios, tipos de comédia e tipos dolorosos de tragédia, riscados em dois traços por Gavarny, risos disformes em pálidos abortos, exageros de vestuário igualmente ridículos, ou pela extrema elegância ou pelo extremo desleixo… Tenho visto de tudo, e jamais senti o pasmo que essa primeira pessoa estranha causou no meu espírito desprevenido.

Os meus irmãos, em frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o Miguelzinho, que era o mais velho, abaixo de mim, puxava-me pela manga sublinhando risos muito irônicos.

Eu, não sei porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá dentro de mim que era para pranto, e não para riso, a entrada daquela gente na minha vida.

Primeiro apeou-se o meu tio, um velhote bastante alquebrado, mas alegre por se ver na terra natal. Abraçava toda a gente, e tratava por tu velhas que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos lagrimejando por o verem tão acabadinho… E ele ria — raparigada do seu tempo, todas essas velhinhas, e queriam que ele estivesse um rapaz, e mais que não tinham andado por trabalhos e canseiras de climas inóspitos!…

E achava extraordinário que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando ele partira, estivesse já mãe de filhos…

— E já de cabelos brancos — visse bem o mano!…

Atrás dele, saiu do carro uma pequena de cinco anos, parecendo ter o dobro, nem bonita nem feia, extravagantemente vestida à inglesa de torna-viagem, e toda doutoral nas suas frases. Fora a última a nascer, depois de bastantes anos de casamento, em que todos os filhos lhes tinham morrido; por isso era respeitada como milagre vivo.

Por fim, quando os criados tinham carregado uma aluvião de malas, necessários, sacas de linho bordadas, e tanta coisa que nos fazia arregalar os olhos de espanto, a nós pobres pequenos selvagens, que, a respeito de viajar, íamos às quintas próximas pelo tempo da vindima e até ao rio em folgada pescaria uma vez por festa. Depois começou a sair um prodigioso chapéu de palha envolto em gaze cor de castanha, e, a seguir, um corpo enorme vestido com um guarda-pó de xadrez em largas mangas perdidas.

Era monstruosa a minha tia! Nunca lhe pude dar este nome porque o meu espírito se recusou sempre ao convencimento desse parentesco, que repugnava à minha afetividade.

Alta como um carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais exótica entre gente miúda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia, mas as feições estavam enterradas em tecido adiposo, e só naquele deserto de cara branca brilhavam uns olhos metálicos e frios que nenhum sentimento conseguia adoçar. Quando os pousava na miudinha figura de morenita que eu era então, toda a minha carne se arrepiava numa tremura e os meus nervos vibravam desagradavelmente.

Trazia o cabelo, já a embranquecer, cortado pelo pescoço — à estudanta, diziam por lá as pequenas da aldeia —, modos autoritários, voz de comando, andar de granadeiro, e uma língua-de-trapos que ninguém entendia.

Mãos e pés não tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania que tinha de fazer tudo e melhor do que ninguém, de falar alto e atirar os braços para a frente num gesto resoluto de jogador de box.

Meu pobre tio admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oráculo, nada fazendo sem a consultar.

Sobretudo nenhuma delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua superioridade e senhora da sua pessoa, dizendo mal — de pórtuguês, e tudo quanto é pórtuguês, muito estúpidos!

Dizia-se filha dum banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais riquezas — como as de Pedro Cem — perdiam-se na sombra da lenda.

Contava coisas estupendas de seu papá, descendente em linha reta de grandes de Espanha, pelos vistos, dos soberbos companheiros de Colombo… A sua mamã, essa era uma aristocrática lady, viúva dum membro da aristocracia britânica, que não se dignara de aliar o seu puro sangue azul ao de descendente dos audazes conquistadores…

A fortuna de seu papá pesara por muito tempo nos destinos do vizinho reino, como o luxo da mamã dera brado na corte de Madrid e na vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a metrópole.

Coisas que ela dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa gente, retalhos desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?!

Apreendi depois, no decorrer da nossa convivência, por meias palavras escapadas a uns e a outros e por inconfidências de pessoas das relações e que os tinham conhecido lá fora, que o banqueiro caíra vergonhosamente numa falência que fizera estrondo e a lady não passava duma aventureira, dessas que a Inglaterra exporta, sob a capa angelical de sérias institutrices, e que por todos os meios querem arranjar uma existência mais cômoda.

Orgulhava-se extremamente dessa sua origem britânica, como de ter nascido na América, como se fosse uma legítima filha dos Estados Unidos…

Oh, a livre América, sonho de todos nós os que nos sufocamos sob a pressão do convencionalismo europeu, como essa mulher no-la mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de puritanismo fanático!

Oh! Amérricana, grande coisa!… Eurrópa, muito desmoralizada!… Pórtuguês, muito estúpida!…

Igual ao seu orgulho de ter nascido numa ilha da América e de pais tão ilustres, só o desprezo, e a ignorância propositada, por nós, pelos nossos gostos e aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente, embora inculto, pelo nosso país tão belo, o nosso clima tão doce no Sul e tão soberbo junto às montanhas que a neve cobre nas invernias grandes…

Desconhecia a nossa história, não sabia ler os nossos poetas, não se entusiasmava com os nossos prosadores. Os nossos costumes, tão pitorescos, eram, aos seus olhos, de selvagens; as canções do nosso povo achava-as sem brilho nem graça, melopeias só próprias para adormentar crianças.

Oh, o horror que nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo quanto nos era querido, achando sempre que dizer das superioridades dos outros países! Nós, os pequenos, que não tínhamos adquirido com o decorrer da vida a fleuma risonha com que meu pai a escutava, a indiferença com que a minha mãe ia tratando da sua vida sem lhe prestar atenção, nem a paciência do padre Zé, que abanava a cabeça embranquecida como única resposta; nós desesperávamo-nos por não nos permitirem contrariar a hóspeda. E o Miguel, que já pensava muito bem e tinha observações muito a propósito, dizia-me baixinho, de cada vez que a ouvia denegrir as nossas coisas: — Não sei como, sendo tão mau o nosso país e a gente tão estúpida, ela casou com um português e veio para cá maçar-nos!…

Mas o que eu não compreendo é como essa criatura, que para nós era tão desagradável, conseguiu convencer meus pais da sua inteligência, chegando a dar-lhe razão nos seus grossos dislates.

Principalmente na minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante — ela que dirigia a sua casa com tanto critério e olhava providencialmente por nós todos —, fizera profundo sulco a torrente de sabedoria enciclopédica que jorrava enfaticamente da sua boca.

Logo que chegou, desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com altivez. Depois tomou-me à sua conta, por ser eu a mais velha e por ser rapariga. Um dia sujeitou-me a um interrogatório em forma:

— Menina sabe francês?

— Não, menina não sabia francês.

— Oh!… vergonha!

Estive para lhe responder: — E a senhora sabe português?!

Chamaram-me sempre atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me arrependo sempre das poucas que tenho deixado de dar tal qual as penso.

— Menina sabe inglês?

— Não.

— Oh! sabe desenha?

— Não.

— Oh! muito linda! Aquelas sombras!… Na Amérrica toda a gente sabe desenha!… Sabe piana?

— Não.

— Oh! vergonha, vergonha, uma menina não tocar nem cantar!…

E seguiu-se uma preleção sobre tudo quanto enumerava e que eu, pertinazmente, ignorava. Na verdade, eu sabia pouquíssimo, mas estou certa de que ela não conhecia senão de nome a maior parte do que dizia. Aquilo tudo era papagueado, elementos de coisas que aprendera no decorrer movimentado da sua vida.

O meu querido padre José pasmava: — Como podia uma senhora saber tanto?!…

E a minha mãe desculpava: — Oh, a mana não imagina a falta de professores que há por estes sítios! Temos pensado em mandar a pequena para um colégio, mas o pai prefere uma professora… Eu, professoras em casa — tenho-lhes um medo!

Demoraram-se, apesar de todos os incômodos a que se sujeitavam naquele selvático país, um longo mês em nossa casa. Depois…

Quando penso, ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferências e segredos com os meus pais, combinaram que eu iria com eles para Lisboa e ficaria em sua casa para me educar.

Quando nós, os pequenos, soubemos o que significavam tais mistérios, já tudo estava resolvido. Eu desanimei; os meus irmãozitos choravam pelos cantos, e chegavam-se a mim para os animar. O Miguelzinho, que era o preferido da mãe, tentou discutir tal resolução e pedir para que me não entregassem à estrangeira, mas ficou desiludido da sua influência porque o chamaram pateta e proibiram-lhe terminantemente de se meter onde não era chamado.

Cá por mim, nada pedi nem objetei; fechei-me num mutismo que exprimia já, mais do que as palavras, a onda de revolta que se me ia formando no coração.

Sucumbi. Já não tinha gosto para nada: não voltei à quinta nem procurei mais a Cacilda, para a cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos tão conhecidos e amados. Os meus amigos do pombal sentiram por certo a minha falta, como os da capoeira a tinham já sofrido…

Nunca mais procurei as pequenas minhas companheiras, mas via-as por detrás dos vidros da janela dançarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas joviais, percebia que jogavam a laranjinha ou faziam de senhoras vizinhas… E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria, afastada para sempre do seu convívio, desprezando inconscientemente a sua humildade. Era como aquelas pessoas, quase na agonia, que já não são deste mundo nem o que nele passa lhes interessa — e ainda não entraram no supremo descanso da morte.

Decerto que muitas vezes pensara em sair da aldeia, percorrer novos caminhos, ver paisagens inéditas, terras lindas de encantar como as sonhava por esse mundo fora!… Invejara, não poucas também, os vagabundos que passavam pela aldeia e nos contavam coisas estranhas para os nossos espíritos, e de que eles traziam nos olhos um vago assombro… Devaneando, o Miguelzinho e eu, quantas vezes não conversamos sobre a divertida existência dos ciganos, que andam de terra em terra com os ursos e os macacos e sob a sua esfarrapada tenda têm todo o seu afeto e interesse no mundo?!

Sair dali… ir viajar… ver paisagens novas em folha para a minha retina, terras desconhecidas, gentes exóticas, seria uma libertação, mas ir na companhia duma pessoa que nos era tão particularmente antipática, confiada à sua guarda, colocada sob a sua autoridade, isso nunca o podia ter sonhado, nem como pesadelo me assaltara jamais o espírito.

Não chorava, porque a profundeza do golpe me revoltou até quase à loucura. Desde o dia em que me deram a notícia do meu destino, deixei de ser a criança que fora até aí para me tornar numa sombria criatura, raro abrindo em risos a sua alma ingênua.

Tinha doze anos, cheios de saúde e alegria; era uma perfeita criança, sem sombra de malícia a macular-me o espírito — uma pequena criatura muito humana e muito bondosa. Fui depois uma pobre alma torturada, contorcida em ódios, desprezando e desconfiando de tudo e de todos.

O mundo deixou de ser para mim uma festa cheia de sol para se tornar num álgido subterrâneo.

Hão de dizer que exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de meu tio merecia o repulsivo ódio que lhe votei… Mas que querem?! Não há animais que odeiam uma determinada criatura, numa repugnância instintiva, sem aparente razão?

Tal o meu sentimento por ela: instintivo, invencível, fatal.

Meus irmãos choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me soluçando convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que nunca sentira rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu desprendi-me dos seus braços, de olhos enxutos, pálida e sombria, concentrada na convicção íntima de que não me estimava verdadeiramente quem assim me expulsava do seu lar, para me colocar sob a autoridade despótica duma quase desconhecida e já detestada criatura.

Antes o colégio! — pensava com amargura. Ao menos teria amigas que sofreriam comigo o cativeiro, teria talvez professoras que estimasse…

Toda a gente da aldeia acorrera para me dizer adeus; assim eu andava de braços para braços, levando beijos que me repugnavam mas aos quais não tinha coragem de me negar. As criadas, uma por uma, vieram ainda à porta do carro dizer-me os últimos adeuses, e quando a Maria Augusta me abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó se me deu na garganta, e teria fraquejado ali, diante da estrangeira, se a não visse no fundo do carro sorrir com ironia da cena, que aos meus olhos nada tinha de ridícula.

Quando na vila, ao partir da diligência, meu pai se voltou para limpar as lágrimas furtivamente, toda a minha alma explodiu num adeus — que mais era um grito de protesto… Até ele! Todos, todos, me abandonavam. Era demais!

Aninhei-me a um canto da carruagem, estupidificada pelo assombroso do caso, e deixei-me transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa; era mais um volume a acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que abarrotavam a diligência alugada por conta da minha enorme tia.

De pouco me recordo dessa jornada triste que me levou a Lisboa. Dias chuvosos de princípio de Outono, estradas desertas, campos desnudando-se numa paisagem uniforme, tristezas da alma e tristezas da boa natureza, que se despedia dos meus olhos num compungimento de simpatia.

Ainda bem que chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos campos, e os carros de bois arrastassem pelos caminhos a fartura da colheita, quanto isso seria infinitamente mais desolador para a minha pobre alma confrangida!

Assim cheguei a Lisboa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me ter admirado do caminho-de-ferro que pela primeira vez vira no Entroncamento, onde o fomos tomar. O que podia interessar e comover o meu espírito atordoado por esse repelão da vida, que tão cedo começava a magoar-me?!

Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguém respeita a nossa dor e a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos títeres animados por maquinismo industrial!

Lisboa não me deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus encantos e fausto no meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as suas altas casarias alinhadas e uniformes, que a rigidez pombalina decretou, faziam-me uma terrível saudade dos campos largos por onde a vista passeia e cabriola como cabritinho montês. Apertava-se-me o coração recordando os horizontes que se esbatem ao longe, nas serranias violetas; e o marulhar da multidão irritava-me os nervos, mal me podendo recordar o rumorejar embalante dos pinheirais atravessados pelos ventos em livres carreiras de tardes outonais…

O meu pobre tio mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a capital, eu pobre serrana que nunca vira nada, mas a faculdade admirativa tinha-se embotado em mim. Era um corpo sem alma — que essa por lá me ficara, errando pelos campos da minha risonha terriola.

Só quando o mar se descobriu diante dos meus olhos, eles se abriram numa atenção de velha simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas sonhava-o e amava-o desde muito, com o afeto entranhado e atávico que todos nós lhe temos. O mar, a nossa estrada movediça e terrível!… O mar, essa nossa segunda pátria, foi a única coisa onde descansei a vista com enlevo e que durante os quatro anos de cativeiro me deu algum prazer à vista. Quando, entre duas ruas, o descobria lá ao fundo, numa nesga rutilante de sol, toda a minha alma se refrescava e florejava de sorrisos.

Felizmente que a casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro chegavam os pregões berrados das ruas e só de longe em longe o rodar duma carruagem fazia estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna, tinha atrás um jardinzito, entalado entre casas é verdade, mas enfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais puro para os robustos pulmões desenvolvidos pelo ar forte da montanha.

A cubana tinha formas dogmáticas sobre a educação, que serviam para os cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga núbil.

Era preciso que me levantasse cedo — vá! Isso não me custava, acostumada desde criança às madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não podia correr pela quinta, abrindo o apetite ao almoço suculento que me esperava na mesa; tinha que fazer a cama, arrumar o quarto, e estudar.

Em casa, para ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira das suas pobres mãos encarquilhadas, e varria, cantando festiva, auxiliando-a no fazer das camas e mais arranjos domésticos; ali, obrigada, mandada por aquela monstruosa criatura, sentia um tal desespero, um tal rancor a referver-me na alma, que todas as minhas ideias eram negras como fuligem, todos os meus sentimentos eram maus a roçarem pela perversidade.

Encostada aos vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia o seu caminho, apressada ou vagarosa, alegre ou triste, pobre ou rica — e a todos eu invejava com verdes invejas de réptil!…

Era preciso que estudasse três horas antes do almoço, e o meu espírito vagabundeava pelos caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na ribeira onde os salgueiros refletiam a folhagem leve e as margaridas rosadas, as pervincas azuis e os miosótis da cor do céu espreitam entre a verdura da erva tenra…. Era preciso que inclinasse sobre os livros a minha pobre cabeça pesada de sono, e os meus olhos fechados reviam os milharais regados de fresco, as cerejas vermelhas suspensas como pingos de lacre das árvores amigas, as amendoeiras em flor, as encostas cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros esguios, os castanheiros arreganhando a boca dos seus ouriços para nos darem o fruto saboroso. O meu espírito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se estiolava num quarto fechado, diante de estéreis livros que não compreendia; não! Ele assistia, lá ao longe, à ininterrupta festa da natureza; alegrava-se com os divertimentos do campo; procurava os magustos, onde se comem as castanhas assadas na fogueira; ia aos serões, onde as velhas avós contam lindas histórias às raparigas, fiando à mortiça luz da candeia suspensa do velador de pau enegrecido pelos anos; evocava as ranchadas que vão às romarias, cantando e tocando a viola e os ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre festivos e afadigados, na policromia do trajar das mulheres e na gravidade interesseira do comerciante que oferece ou compra a mercadoria e discute largamente o seu negócio…

A fuga era o único deleitoso pensamento que se esboçava no meu cérebro. Fugir! Ser livre! Não ter mais diante dos meus olhos a figura estupenda da mulher de meu tio, nem a face simiesca da petiza!… Era o ideal supremo que acariciava, um sonho redentor que se me fixava na cabeça por mil pontos delicados e imperceptíveis. Formava com esta única e obsessiva ideia projetos sem conto, e se não fosse a covardia ante o escândalo, que é ainda uma servidão do nosso espírito, se não fosse o receio atroz de ser apanhada pela polícia, vir o meu caso por miúdos nos jornais, e ser finalmente trazida de novo ali, certamente teria feito alguma!… Faltava-me a energia determinante dos fortes caracteres. A revolta traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia, pela oposição passiva dos fracos e dos ignorantes.

Fechada no quarto todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a cama, e afiguravam-se-me as tábuas alinhadas e estreitas do teto como se fossem as tábuas do meu caixão.

Lá fora era a vida: os pregões que atravessavam a rua solitária numa festa ruidosa de cores, revoadas de andorinhas riscando o azul em ziguezagues caprichosos, a chilreada estúrdia dos pardais pelos telhados…

Morria de aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais consolador que nesse tempo se alojou no meu cérebro.

Não estudava, o que era em mim um velho hábito, mas com as lições do padre Zé tinha chegado a compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem nenhuma inteligência, sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade intelectual.

Tinha uns poucos de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por sinal que eram bem generosos com o dinheiro dos outros…

O inglês ensinava-mo ela, mas eu odiava-a tanto e o meu espírito começava a achar um tal prazer em contrariar os outros, que me sublevava contra mim mesma quando começava a compreender essa língua que ela tinha como sua.

Farta já de a saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir intimamente dos seus cômicos disparates.

Estava assim.

Pouco saí durante os quatro anos que durou o meu cativeiro — porque a sua companhia me desagradava cordialmente, porque os passeios por ela escolhidos eram odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me ensacar em verdadeiros horrores, que ela alcunhava de vestidos à inglesa, me causava um asco invencível.

Sem ter nunca apreciado os laçarotes e as rendas esbanjadas nos vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a elegância casquilha das meninas lisboetas, o meu espírito era demasiadamente meridional, demasiado artista, para se não prender com a forma e não se encantar pela cor e pela beleza do trajo, como de tudo quanto me pertencia e rodeava.

Assim, achava meio de me esquivar sempre que saíam, o que era raro, pretextando estudos que nunca fazia.

De meses a meses, a visita ao cônsul inglês era o único parêntesis de luz na tristeza da minha vida. Tinha umas filhas encantadoras, algumas já senhoras, e, entre elas, a Maud era muito gentil para mim, consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes em que nos avistávamos, das muitas horas de incomportável tédio que passava naquela casa.

Maud era muito inglesa na sua educação para censurar uma pessoa das relações da casa, mas o simples sorriso dos seus lábios finos, a ligeira carícia dos seus olhos puros, era quanto bastava para me encher o coração de reconhecimento e ter na sua amizade toda a confiança.

Pobre Maud! Levada pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida pela morte dum pai afetuoso e inteligente, em que país, em que terra, em que família, o seu sorriso honesto, a sua graça séria, serão consolo e júbilo para alguma criança infeliz, como eu era?!

Outra qualquer pessoa, por menos melindrosa e susceptível que fosse, não se sentiria feliz num meio em que tudo era violento e desagradável.

A cubana ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de manhã à noite lamentava ter vindo para um país de que dizia indelicadamente, grosseironamente, os últimos horrores: — a vida era caríssima, os criados eram mandriões e inábeis, era preciso olhar por tudo, ver tudo, desde a roupa da lavadeira até à limpeza da casa…

Tornava desgraçada toda a gente, e não consentia que ninguém se considerasse infeliz — possuindo a rara fortuna de a ter ao lado!

Ao meu pobre tio impunha uma felicidade que ele estava longe, bem longe, de sentir. Não podia formular uma opinião sua; era obrigado a confirmar tudo quanto ela dizia, e ainda dizer-se o mais ditoso dos maridos e fazer elogios à sua alta inteligência, bom senso e sábia economia.

Meu pobre tio! Verdadeiramente, aquela pressão moral em que conservava o bom do velho, revoltava-me. Nunca pensei em impor a minha vontade a ninguém, e tudo quanto seja coagir a dos outros, tirar ao ser humano a liberdade de sentir e pensar por si mesmo, exaspera-me como violência contra mim própria exercida.

Depois, a pequena tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo quanto se dizia e fazia em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se sonhava dizer ou fazer. Um amor de criança!

As criadas entravam e saíam com uma velocidade de comboio expresso.

Quando mal-humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia fugir espavoridas; mas, se por outro lado lhe desse na cabeça, enchia-as de presentes e favores. Era conforme elas sabiam ou não lisonjear-lhe a vaidade.

A última que lá conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube cativá-la, e fazia quanto queria sem que ouvisse uma simples reprimenda. Adiante falarei na menina Eulália, que entrou para muito na minha vida.

Meu tio é que escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que, francamente, não eram nenhuns. Às notícias dos meus pais, tão carinhosas e prolixas, eu respondia com aquelas cartas incolores que todas as crianças prisioneiras nos internatos, ou onde quer que lhes ponham sentinela ao pensamento, têm escrito. Cartas em que nem um vislumbre da alma infantil entreluz; cartas feitas só de palavras ouvidas, e que são o primeiro passo para a mentira social a que nos querem sujeitar, como a cães sábios sob o chicote domesticador e o medo… A criança, que sabe que as suas cartas serão maculadas pelos olhares indiferentes, e os seus verdadeiros sentimentos procurados nas linhas em branco da sua pobre correspondência, perde a sinceridade, não se expande com lisura, não diz o que sente…

Os bilhetes que metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco mais ou menos o que me diziam que era dever escrever: — que estava bem, que era bem tratada, que me sentia feliz… Nada do que, em verdade, eu teria desejo de dizer!

É certo que a minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamor com que me tinham expulso de casa para me atirar para o poder daquela mulher, que para mim resumia tudo quanto eu podia odiar mais.

Nesse tempo não gostava de ninguém — nem de mim mesma. Era injusta, mas era humana. O animal criado em toda a expansão da sua vida material e forte, não se subjuga sem rebelião, não se obriga sem muito custo a entrar no regime de servidões a que se convencionou chamar deveres sociais.

Assim, quando meu pai empreendia a longa viagem da aldeia à capital para me ver, eu não correspondia de modo algum ao seu afeto e interesse.

Sem compreender o enorme sacrifício que faziam para me dotarem com uma educação que supunham ser um precioso instrumento de felicidade para toda a minha vida, achava que era desamor o que me consagravam e tão somente desejo de me verem longe da sua casa, porque o meu feitio moral os desconcertava e lhes era talvez odienta a minha presença…

Às perguntas insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste, o meu orgulho fazia-me responder com sistemática negativa.

Se ele se demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais forte do que a revolta contra o sofrimento, tão natural ao ser humano quando novo e saudável.

Mas o meu pai não supunha encontrar tais meandros e sutilezas no sentir duma criança que conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro lado, os negócios da casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou dois, o que não era muito para fundir o gelo que se formara no meu coração contrariado e amarfanhado.

Ora de estudos ia eu muito mal. Os meus professores classificavam de estupidez a minha incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que o era.

Não estudava, e mesmo que estudasse não compreendia.

A cabeça parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro antigo. Não faziam nada de mim, pela certa!

A professora de desenho era a única que tinha dó dos meus traços indecisos e me dirigia com boas palavras, por isso fiquei sabendo um pouco mais dessa arte, que das outras, e com imensa pena de não poder fazer tudo quanto ela me dizia que seria capaz de realizar, com a minha paixão pela correção das linhas clássicas, a minha expansiva busca das cores, que ousava procurar inéditas e brilhantes na paleta de principiante…

Sentia-me infeliz, e, se verdadeiramente me quisesse queixar, não saberia bem precisar o que me magoava naquela casa. Talvez porque era tudo, desde a gente até à comida. Chegava a ser um suplício; acostumada em casa a encher abundantemente o meu pequeno estômago voraz, ali tinha até medo de meter na boca um pedaço a mais, porque via todos os olhos a pesarem e a medirem tudo o que a minha garganta oprimida conseguia deixar passar.

Por economia e por hábito, eram todos frugais, e eu, por cerimônia, quando os via recusar o roast-beef, que se comeria frio no almoço do dia seguinte, recusava-o também, embora às vezes sentisse um bom apetite de animalzinho carnívoro, que não se sente satisfeito.

O meu único desafogo era o jardinzito, que tratava com todo o cuidado. As sementeiras iam a horas para a terra, e não lhes faltavam as regas, com a água que eu mesmo tirava da bomba, nem a cobertura de palha, mais tarde, por causa das geadas.

Andava sempre a espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal despontavam na terra pobre de adubos vitalizadores; e quando, na Primavera, as árvores que mal se desenvolviam na sombra daquele jardinzito entalado entre prédios altos, se enfloravam, toda a minha alma florescia com elas, recordando as que lá ao longe perfumavam os campos onde a minha saudade me levava errante…

Ora o jardim era dividido do que pertencia ao rés-do-chão da esquerda por uma sebe de madeira, que eu pensara em disfarçar sob a verdura abundante duma trepadeira de folha permanente. Passava horas desembaraçando as finas hastes para as ir guiando e atando. Quantas vezes, de tanto as querer estender e espaldar, não parti grandes pedaços, que depois lamentava muito contristada! O mal de quem tem muita pressa… em contrafazer a natureza.

Ao fundo, era limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a curiosidade de procurar ver, embora por lá sentisse as risadas de crianças mais felizes do que eu…

A tristeza até embota a curiosidade, essa forma, embora inferior, da vivacidade intelectual. Concentrava-me no meu próprio sentir, e todo o mundo me era estranho.

Ora isto foi assim até que num dia veio para o rés-do-chão vizinho uma nova família: pai, mãe, e filha, uma pequena encantadora, que começou a sorrir-me e a cumprimentar-me quando me via na minha faina de jardineira.

A Mariquinhas, com a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez, a propósito de nada, só para encetar conversa. Respondi-lhe acanhadamente de princípio, mas em breve toda a minha timidez desaparecera diante da sua ampla cordialidade. Conversamos, e logo à despedida nos beijamos, por cima da sebe que já conseguira vestir duma folhagem de lindo verde brunido.

Em poucos dias ficamos as maiores amigas do mundo. Pela minha parte entreguei-me com ardor ao estranho prazer dessa amizade; agarrei-me a essa ventura com o desespero de quem se vê só, num meio irritante e hostil, sem um único afeto a confortar um pobre coração feito para o sentimento.

A Mariquinhas era a única e amimada filha duns pais, que a tinham só a ela, duns poucos que no seu ninho tinham batido asas palpitantes de alegria e esperança e a morte lhes levara numa impiedosa e cega colheita.

Era em casa uma pequenina rainha, que não abusava é certo da sua autoridade, antes punha uma suprema graça nas suas ordens e caprichos.

Hoje, recordando bem as suas feições, que o tempo já quase deliu na minha memória, acho que não devia ser, talvez, uma formosura, mas nesse tempo era para mim tudo quanto conhecia de mais puro enlevo.

Magrinha, elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida beleza das camélias delicadas, que as fortes chuvas do Inverno desfolham rapidamente.

Era muito instruída, uma pequena e encantadora sabiazinha, que sorria, maternalmente conselheira, da minha supina ignorância.

Já quase mulher, um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos vestidos da sua escolha, ela materializou no meu espírito o ideal duma santa ou dum anjo salvador, que Deus tivesse mandado ao meu purgatório.

Porque… esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante, mas da última hora. Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrível mania de impor as suas ideias e de pregar as suas convicções, todos os dias me ensinava e explicava o evangelho, à sua moda, isto é: analisando-o e adaptando-o à vida quotidiana, com uma banalidade desesperadora.

Na minha aldeia nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do padre Zé, à missa, quando a minha mãe nos dava a consolação de nos pormos de pé. Mas estava acostumada a conversar com o Anjo da guarda como se fosse um irmão, e no rosto delicado das esbeltas Santas góticas, que ornavam as paredes da nossa velha igreja, lia enlevadoras histórias que elas me sorriam…

Arrancar a uma pobre alma de meridional, apaixonada pela cor e pela forma, o olor dos incensos subindo em dolentes preces para um céu recamado de ouro e pedrarias, onde lindas crianças cantam e tocam flautas e guitarras maravilhosas, onde florescem jardins ideais, e correm fontes inesgotáveis de perfumes suaves; tirar-lhe a ilusão magnífica duma vida embalada pela esperança do milagre, e dar-lhe em troca a frieza do raciocínio, a clara e positiva significação das palavras, a simplicidade da forma despida do encanto da arte, será por certo de muito bons resultados futuros — e foi-o para o meu espírito, que se habituou ao rigoroso cumprimento da verdade — mas nesse tempo constituía um sacrifício a mais a juntar aos muitos outros.

Pois a Mariquinhas encarnou, para a minha imaginação mortificada, o anjo meu companheiro e protetor. Pela sua mão seguiria por sobre a frágil ponte que representa o difícil caminho da virtude, nas imagens popularizadas pela oleografia barata, em que o guarda angélico guia uma criancinha, com a sua mala de viagem a tiracolo, pela áspera senda do bem…

Foram os dias bons da minha permanência naquela casa.

Não sei como a terrível cubana se não opôs à nossa convivência, embora distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a medo por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matizando com uma floração policroma.

Lembro-me agora que a Mariquinhas, com a sua viva inteligência cultivada no convívio da sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e orgulho se enchia a enorme criatura, e sabia lisonjeá-la com leves delicadezas, das quais eu nem sequer compreendia o alcance, na minha inteireza selvagem.

Hoje, era uma linda flor mandada pela pequena para a mamã pôr no seu lugar, à mesa; amanhã, notícias lidas por acaso nos jornais sobre coisas passadas em Inglaterra ou nos Estados Unidos; depois, uma correta atenção aos discursos que lhes algaraviava, quando acontecia vê-la da janela.

Com tão pouco, a Mariquinhas vencera a resistência feroz daquela fortaleza e achava-se senhora da situação. Nunca pensei que eu teria, talvez, conseguido o mesmo se o orgulho — que é uma virtude que nos nobilita, mas torna difícil a vida social — não me fizesse olhar com desprezo para esses processos que me punham numa dependência moral que me irritava. Decididamente a Mariquinhas era muito melhor política; onde o meu temperamento voluntarioso punha energia revoltosa, a doçura do seu espírito, tão levemente irônico quanto profundamente conhecedor das fraquezas alheias, usava o suborno da lisonja, que a todos conquista e agrada.

Apesar de as famílias não terem nunca encetado relações que as tornassem do mesmo convívio — porque a mãe da Mariquinhas detestava a espanhola, como lhe chamava —, conseguira a criança, com as suas blandícias de lisboeta amável, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa.

Era um banho dulcíssimo de calma para o meu espírito, que fermentava em sublevações concentradas mas nem por isso menos violentas.

A D. Emília era uma destas almas boas e sãs, tal qual a da minha mãe, modestas no cumprimento religioso duma existência que nunca teve dúvidas nem sobressaltos de consciência. O seu espírito era simples, e os seus olhos diziam na clara expressão o que às vezes os lábios não se atreviam a proferir, com receio de ir infelicitar os outros com uma observação menos resignada… ou mais verdadeira.

Conversar com a boníssima criatura era abrir o coração e deixar correr as palavras livremente, numa fluência de ribeira múrmura e límpida deslizando por campo sem obstáculos; ouvi-la era escutar o carinhoso conselho duma rara alma humana que nunca se tinha poluído numa mentira.

Ah, como o meu coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava, contando-lhe a minha vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente o mal de viver, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei, a modesta e nobre missão da minha pobre mamã!…

O pai da Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas criaturas, que eram todo o seu cuidado e amor. Aposentado do seu lugar de lente duma escola superior, passava os dias estudando e lendo no seu gabinete cheio de livros, que já lhe invadiam a secretária, que a filha todas as manhãs lhe ia enflorar com lindos ramilhetes que ela mesma cortava e ajeitava nas jarras.

Que suave e dúlcida existência! E como a vida corria sem se sentir entre aquelas três criaturas, tão estreitamente unidas pelo amor, sem violências nem coações… Que diferença da nossa casa, onde a mulher de meu tio queria impor não só a sua autoridade absoluta, o que já seria abominável, como os seus gostos e sentir e toda a sua maneira particularíssima de ver as coisas!

Aquela atmosfera pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração que se tinha tornado feroz no ódio e na desconfiança.

A única receita eficaz para se ser amado sinceramente é amar; era a que usavam os meus amigos, e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com que os amasse com todo o entusiasmo da minha alma apaixonada.

Com o refrigério daquele contato a vida tornou-se-me menos pesada; suportava melhor a desgraça desde que tinha quem me compreendesse e lamentasse. Pobre criança expatriada, que eu era — naquele meio tão estranho e adverso!

Passado o sofrimento que nos crucifica, tirados do lugar em que fomos martirizados, olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que verdadeiramente compreendemos e sentimos a dor, mas com um sentir retrospectivo que se torna tanto mais agudo quanto maior é a convicção do que foi a nossa miséria.

Durante o sofrimento a sua própria veemência nos atordoa e dá um anestésico moral, que é a única compensação para os que têm sentido pesar sobre si a infinita maldade humana.

Quantas vezes, lendo a história do passado, não nos atravessa o espírito a dúvida de que fosse possível ao frágil organismo humano resistir aos ferozes martírios físicos e morais que as páginas ensanguentadas de todos os povos nos mostram; mas, olhando em roda de nós, sabendo o que se faz ainda hoje e que a tirania já não pode esconder ao nosso conhecimento, porque os protestos dos condenados ressoam mais alto na consciência humana ou os nossos ouvidos se apuram mais para os escutar, convencemo-nos de que é um fato esse embrutecimento sensacional que pela própria violência da dor atenua a mesma dor, que quase nos insensibiliza à força de sofrer.

É o motivo por que hoje pasmo da resistência passiva que eu fiz ao martírio daqueles quatro anos de educação inquisitorial. Ou não fosse a minha tia uma legítima descendente dos hidalgos inquisidores que civilizaram a ferro e a fogo os infelizes seus conquistados!

Ora na casa a que pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos nossos, vivia uma família das relações dos meus amigos — fora até a causa de eles virem morar para o nosso lado, soube-o depois.

A Mariquinhas falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado do muro e era filho da grande amiga de infância da sua mamã. Dizia-me que nessa ocasião passava ele as férias no campo, e que quando voltasse eu veria como era gentil e bom companheiro de brinquedos.

E falava com tal entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já quase a terminar o curso do liceu, que o meu afeto — confesso — se sobressaltou, e um dia perguntei-lhe ansiosa:

— Ó Mariquinhas, tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!…

Teve um fino sorriso incompreensível para a minha ingenuidade lorpa e respondeu-me com o ar irônico duma verdadeira mulher:

— Ele é um rapaz, e tu uma rapariga.

— E isso que tem para seres mais sua amiga?

— Tem tudo. Não é a mesma coisa.

Não percebi como pudesse existir tal diferença nos afetos, mas resignei-me a ficar sem mais explicações para que o sorriso de desdém com que a Mariquinhas acolheu a minha evidente tolice não lhe aflorasse de novo aos lábios finos.

Bastas vezes me ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim mesma se nova complicação não viria por aquele lado entenebrecer a minha pobre existência, onde se abrira uma nesga de céu azul.

Felizmente não foi assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois anos, foi um ótimo companheiro das nossas tardes de recreio.

A Mariquinhas ao pé dele tornava-se mais senhora, mais cheia de gravidade e importância, sorrindo-se para o Chico quando eu dizia alguma infantilidade, como uma mãe que acha encantadora a ingenuidade do seu filhinho.

E bem criança que eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da Mariquinhas, refletida, instruída e séria como o não são muitas mulheres feitas.

O Chico, que já então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita coisa, lia-me lindas histórias de viagens e descobertas, que era o que mais o interessava, e explicava-me cheio de paciência as minhas lições.

Saltava pelo muro para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não fosse visto de minha casa, com receio de sobressaltar a estrangeira, e vinha ter conosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humor que nos encantava.

Que a Mariquinhas e o Chico esboçassem já então um destes idílios deliciosos de infantilidade que são às vezes o princípio de grandes e puros afetos, que se enroscam na alma e influem para sempre na sua modalidade, pode ser, mas que eu não compreendia nada dessas precocidades sentimentais, é também certo!

Foi nesta altura da minha vida que entrou para criada da nossa casa a menina Eulália. Não sei de que terra ignorada de província teria vindo aquele espécime bem acabado da criada alfacinha, mas é certo que ela já trazia o cunho particular, os vícios e o jeito dessa peste que entra nas casas como a traça na roupa. Que diferença entre essas criaturas falsas, interesseiras e intrigantes e as nossas criadas da província, à moda antiga, um pouco boçais e confiadas, é certo, vivendo com os amos numa certa igualdade familiar, mas tão fiéis, tão amigas e carinhosas para nós! A Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu pensava na boa mulher que nos criara com extremos de mãe, e tanto chorara a última vez que me fora vestir, para a jornada!

E a cozinheira solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na fornada semanal do pão de milho, para os criados, os bolos para os meninos?! E a paqueta, a pequena criada que se vai avezando de criança aos usos da casa, e é, às vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de fora, encarregada da criação e dos porcos, que nos trazia abadas de fruta quando ia às propriedades distantes?! E os criados, desde o rapaz dos recados ao feitor, como toda essa gente era sincera julgando-se na sua própria casa — dizendo as nossas casas, as nossas matas, as nossas rendas!…

Quanto melhores, apesar dos defeitos de educação que lhes notava a mulher de meu tio, do que essa turba avarenta e mal-educada que vi desfilar por sua casa durante os quatro intermináveis anos que lá vivi!

Eulália era baixa e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os cabelos frisados, e uns olhos pequenos e inquietos que nunca se fixavam em nós com franqueza.

Não gostava dela intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos meus sentimentos e nada, pois, lhe disse que a fizesse supor tal antipatia.

No entanto, ela compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e ria-se de mim com a Loló (o nome familiar da pequena de meu tio), que enchia de falsas carícias. Tinha grandes demonstrações de afeto pela sua rica senhora, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade, que percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar.

Com o meu tio, cada vez mais doente e enfraquecido, ninguém se dava mal.

Portanto, ia a menina Eulália ser a primeira que por lá se conservasse mais de um mês ou dois.

Era mais uma criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma boca a denegrir o meu procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um pensamento alerta que se exerceria contra mim.

Apesar disso, as minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a mulher de meu tio não se opunha a elas porque encontrara enfim o meio infalível de domar o meu orgulho e fazer-me dócil e estudiosa. À simples ameaça de me proibirem esses momentos de desafogo, não havia nada que eu não fizesse! Se era a única felicidade para o meu coração — e o ser humano tem dela tanta necessidade! Nem os professores já se queixavam de mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quase estudiosa, com os seus conselhos e com os seus exemplos.

O tempo nunca pára e por pior que estejamos corre do mesmo modo veloz, ainda que tal nos não pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já ia para quatro anos que ali estava e, relativamente, os últimos dois, desde que conhecera a Mariquinhas, tinham sido de relevado encanto para mim. Não pensava nem queria pensar no que me rodeava, para só ver os meus amigos e com eles viver, mesmo quando ausente.

Foi então, quando nós íamos já contar dezesseis anos, que a Mariquinhas entrou a adoecer.

A toda a hora se sentia mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer mostrar, envolvia-a de carinhos, procurava satisfazer-lhe todos os desejos. Enchia-se de apreensões, e toda a sua alma se enregelava e tremia num pavor de dores já sentidas a prognosticarem amarguras ainda inéditas.

Pobre mãe! Era bem certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior desgosto da sua vida.

O Outono vinha chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se na alma, todo doirado nos poentes tépidos a esmorecerem em lentas agonias, como nas árvores que se cobriam do ouro das folhas mortas para mais depressa se despirem e esperarem arrepiadas e friorentas o triste Inverno.

O jardim constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o sugestivo nome de despedidas de Verão, brancos como flocos de neve, rubros, amarelos, dum roxo desmaiado como leves aguadas, outros de cores intensas, mesclados e rajados, variando na cor como na forma, desde o desgrenhado da cabeleira boêmia ao recorte regular da máquina de fazer flores de papel.

Debaixo do caramanchão, que também se ia despindo, primeiro das flores, depois das folhas, a Mariquinhas, quase deitada na cadeira de verga que a mãe lhe almofadava desveladamente, olhava melancólica os seus queridos crisântemos, que todas as manhãs desabrochavam de novo e vinham preencher a falta dos que se cortavam ou pendiam emurchecidos.

Com as suas mãos translúcidas, que eram uma das suas grandes vaidades, entretinha-se por vezes a juntar em ramalhete as flores que eu lhe ia levando. E mandava-me ir dispô-las no gabinete do pai, como outrora ela fazia. Mas o triste velho é que não lhe achava o mesmo encanto, e com a cabeça entre os braços cruzados sobre a secretária, mal me via desatava num soluçar de criança, que me compungia extraordinariamente.

Às vezes mandava-mas cortar duma só cor, e juntando-as num ramo, dizia-me, sorrindo enigmática:

— Vês? Gosto mais assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda mais pálidas. É como os doentes ao pé dos que têm saúde.

Tinha então manias esquisitas, caprichos inconcebíveis, maus humores, que me faziam sofrer enormemente. Impacientava-se quando me via chorar com as suas maldades, mas chamava-me daí a pouco para me beijar, numa solicitude, numa súplica, de quem deseja ser perdoado.

Às tardes, quando o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que fosse ler-lhe histórias, lindos romances, que ele ia escolher à estante clara, de érable, do seu lindo quarto de donzela.

Foi assim que ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aqueles adoráveis romances de Júlio Dinis, que ficaram sagrados como livro de rezas para o meu coração de rapariga.

Depois, nem já mesmo isso; às horas a que costumava entrar o Chico, mandava-me embora, com uma crueldade, um desamor, que me enchia de desespero e me fazia chorar horas seguidas, com a cabeça enterrada nas almofadas da minha cama para que ninguém suspeitasse do motivo da minha pena.

Voltavam todos os meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por um pouco afugentados pela alegria.

Dizia adeus às tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha consolado de viver!…

Algumas vezes, mas sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas mandava-me chamar com muito empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e encontrava-a então carinhosa como nunca, num redobramento de afeto e ternura que me fazia esquecer todos os agravos.

Era então a Mariquinhas doutro tempo, a boa fada que transformara a minha dura existência, o doce e querido anjo da guarda dos meus sonhos.

Uma tarde, em que estava melhor, olhou fixamente para mim, com um estranho olhar que nunca lhe vira, e disse-me, como quem faz uma descoberta:

— Ó Raquel, tu és bonita, sabes?

Eu ri-me francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o assunto.

— Não… sério! — acrescentou convincente — tens uma cara estranha, que não é bonita à primeira vista, mas que, pensando bem, te há de fazer uma simpática mulher.

E quis que a acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o rés-do-chão, para que não se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com todos os seus enfeites e jóias, penteou-me de muitas formas, e batia as palmas satisfeita, queria que todos me vissem, perguntava à mãe: se realmente eu não tinha o tipo daquela mulher que o Chico lhe trouxera o outro dia numa magnífica gravura tirada duma revista e era a cópia dum quadro que obtivera o prêmio na última exposição do Salon.

A pobre mãe sorria, um pouco animada por aquele entusiasmo que lhe parecia prenúncio de melhoras.

Mas não, aquilo foi como descanso da doença, como que para retomar força e voltar ao assalto com redobrada violência.

Sofria muito, a pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer que se arrastava, encostada às pessoas que a acompanhavam. Tinha gestos tão cansados, sorrisos tão murchos, carícias tão frouxas, que eu chorava sem saber porquê, só de olhar para ela.

Queria consolar-me e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lágrimas e descobria-lhe os dentes descarnados numa boca exangue.

Nunca mais os nossos encontros foram a horas em que estivesse o Chico. Também, pouco me lembrava dele, triste como andava com a doença da Mariquinhas; mas, quando às vezes perguntava notícias do nosso amigo, respondia-me tão secamente que cheguei a imaginar que estavam mal.

A D. Emília metia dó, e ela também olhava para mim fixamente e tinha uma frase de profundo desconsolo, de quase inveja, que revelava o estado do seu espírito:

— Como a Raquel tem saúde!…

O mal agravava-se de dia para dia, sem remédio possível para a pobre querida que suportava heroicamente todos os martírios que a medicina tem inventado para prolongar a vida dos condenados. E ela que queria tanto viver! Tinha tanto amor à vida que nunca tivera senão carícias para os seus adoráveis dezesseis anos!…

Os pais já sabiam: todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham ido da mesma maneira, com os pobres pulmões esfacelados, deitando pela boca todo o sangue dos seus corpinhos exauridos, sem que a opinião dos médicos chegasse a ser uniforme sobre o verdadeiro mal.

Quando o tempo piorou e ela também já se não podia arrastar até ao caramanchão, ficava por trás dos vidros da janela para que eu a pudesse ver de longe.

Depois, nem isso, deixei de a ver; e, por mais que espiasse no jardim os movimentos da casa, raro conseguia saber notícias.

Vivia num tal desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não consentiam que visitasse a Mariquinhas, com medo de contágios!…

E viver ali, a dois passos da única afeição que me enchia a alma, sabê-la gravemente enferma, vê-la de longe e não poder falar-lhe, era uma verdadeira tortura para o meu temperamento de impulsiva e apaixonada.

Era uma angústia curtida em silêncio, que me despedaçava brutalmente o coração.

Um dia, quando atravessava a cozinha para ir à minha piedosa espionagem, a Eulália voltou-se para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com um ar escarninho que me arrepiou:

— A menina Mariquinhas — sabe? — está a morrer.

E ante a dúvida, claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu:

— É verdade! Disse-mo a criada da cozinha. Até lá ficou o médico esta noite.

Empalideci, e cambaleei como se fosse perder os sentidos. A Eulália, que me dissera a novidade mais por espírito alvissareiro do que por verdadeira maldade, ao ver a minha dor teve realmente pena. Chegou-me uma cadeira, foi a correr buscar água, que me obrigou a beber, e tentou consolar-me. Era tarde. O médico em casa da Mariquinhas a passar a noite… tinha-me soado como um dobre a finados. Sempre, para o meu espírito de criança, a sua presença assídua fora presságio de desgraça próxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes chamara para mim, andava perto, a bater à porta da Mariquinhas…

Uma tremura convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a tiritar de frio — era todo o frio da alma que me enregelava o sangue.

A Eulália consolava-me, apiedada — talvez que no fundo ela não fosse verdadeiramente má. A vida, com as suas exigências e cruezas, torna tão diferentes as criaturas que não têm a alma temperada para as grandes resistências! — Porque não pedia eu licença para ir visitar a minha amiga? Talvez não fosse verdade!…

— Pedir à tia?! Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulália sabia. Era esse o meu orgulho, a única coisa que me tornava, aos meus próprios olhos, num ser independente e respeitável.

E a criada, muito conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a natural bondade da nossa raça de sentimentais pelo apiedamento que a minha mágoa lhe causava, ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a devida licença, se eu quisesse…

Eu quis, é claro. Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa convivência com a criada, o que me amarrotava e inferiorizava à minha própria consciência, que foi sempre o único julgador que temi.

A licença não veio logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a dependência, mas a rapariga não desistiu e tanto disse que à tarde me entrou no quarto, triunfante, com a autorização para ir fazer a visita tão ambicionada.

A noite caía num agonizar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais velavam.

Ao entrar distingui apenas formas indecisas, movendo-se silenciosamente no quarto mal alumiado. Logo a seguir, não sei quem colocou uma lamparina de vidro coalhado sobre uma mesa, aos pés da cama onde a Mariquinhas agonizava.

Olhei com dolorida surpresa: ela, que fora tão linda, duma graciosidade que dourava toda uma mocidade que se abria em flor, tornara-se com a doença pavorosamente feia.

De princípio apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu corpinho mumificado, e uma frouxa mão muito pálida, que apanhava, inconsciente, a roupa da cama. Depois, com os olhos afeitos à quase obscuridade em que me encontrava, fitei-a com terror e não podia, por mais que quisesse, deixar de olhá-la, num crescendo de angústia que me apertava a garganta e me comprimia o coração.

Chorei então silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê afundar-se todo um passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de esperança.

A Mariquinhas ali estendida, a sofrer, a morrer, ela tão linda, tão gentil, a gárrula, algum tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como desejei sinceramente e como formulei no silêncio da minha consciência o desejo de que a morte me levasse antes a mim e a deixasse a ela, à boa fada dos meus sonhos, ao anjo da guarda que descera até à minha miséria desdobrando as suas brancas asas acalmadoras!

Mas a luz, avivada num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquele pálido rosto tão completamente mudado; a impressão foi por tal forma brutal que as lágrimas secaram-se de súbito nos meus olhos e um grito de terror veio expirar nos meus lábios.

Endireitei-me sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, à miséria do meu ideal despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado ver, e guardasse na memória a linda imagem do que fora — dizia no íntimo da minha alma aquela voz egoísta, e tão fundamente humana, que faz a felicidade dos que a podem escutar a tempo.

Não sei quem me ciciou ao ouvido: — Vai morrer!

E, não sei por que estranha percepção daquela inteligência prestes a desaparecer, ela me pressentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns olhos enormes já postos noutro fito; levantou a mão, já quase entorpecida; e soltou uns sons inarticulados, que mal pareciam de voz humana.

— Chamou-a, quer-lhe dizer alguma coisa — murmuraram-me ao ouvido, empurrando-me para a cama.

Fui cair, desorientada, de joelhos, junto desse corpinho débil que tanto sofria para ser arrancado à vida.

E nunca, nunca mais poderei riscar da memória o olhar fundíssimo de amargura, quase odiento, com que a Mariquinhas me envolveu toda, como que sondando-me…

Meu Deus! eu não compreendi, não podia compreender então o desespero da pobre alma ao ver-me cheia de saúde e de vida, enquanto ela — que tanto amava e desejava viver! — ia desaparecer, para todo o sempre!

Ai pobre querida, que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante, fixada por esse seu doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que subiu do mais íntimo da minha alma e me invadiu completamente o espírito. Toda a animalidade saudável e forte do meu ser se insurgia contra a inveja expressa nesse olhar de moribunda — que não queria ser vencida…

E que tinha ela que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha vida, toda a minha saúde, o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe daria de boa vontade?!…

A mãe, de joelhos, do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa para que os soluços não amargurassem a doente que tudo ouvia e compreendia.

O pai, enterrado numa poltrona, parecia paralisado pela violência extrema da dor.

Daí para diante não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito práticas em idênticas cenas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma velha, principalmente, apoderou-se da minha pessoa e foi-me indicando, com uma intimativa que não admitia tergiversações — o que é costume fazer uma menina na morte de uma amiguinha.

— Ela quer falar — segredava-me —, pergunte-lhe se quer alguma coisa.

E tocava-me nos ombros, para que me inclinasse sobre a face cadavérica da Mariquinhas.

Queria fechar os olhos ao ríctus de quase caveira que tinha nos seus dentes descarnados, e cada vez os abria mais, até que a sua imagem me ficou tão profundamente vincada na memória, que me vem sobre todas, que é superior a todas, às mais ridentes como às mais dolorosamente trágicas.

Um som qualquer escapou desses lábios que inutilmente se moviam num esforço para falar, e a velha murmurou, traduzindo o que ninguém poderia ter compreendido: — Coitadinha, falou no menino Chico!

Depois, tive que apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza plácida desse corpo que vinha morrendo aos poucos, não sei que onda de sangue me subiu ardente do coração confrangido, que perdi a compreensão nítida das coisas e fugi desastradamente, empurrando todos, sentindo atrás de mim mãos de moribundos agarrarem-me nas costas, leves mãos feitas de sombra que não tinham força já para segurar-me…

Ninguém deu pela minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar ruidoso dos que já não tinham que conter a explosão da sua dor diante do pobre corpo que umas tênues radículas de vida prendiam à terra. Voltei atrás. A mãe da Mariquinhas, abraçada ao corpo inanimado da filha, chorava tão angustiadamente que eu sentia ao ouvi-la uma dor física tão aguda, tão sangrenta, como se me estivessem esfaqueando o corpo.

O pai estava sucumbido — era como se o seu espírito tivesse acompanhado o da filha estremecida.

Não sei como saí dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emília, que chorava beijando-me com uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não sei dizer, também, quem me levou para casa e me fez deitar essa noite no meu quarto onde fiquei transida de pavor, esperando o dia como se com a luz terminasse aquele terrível pesadelo, que me recusava a aceitar como a verdade irremediável!

Com a morte da Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais voltei ao jardim, a olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas.

O Chico, quando voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a mão um cumprimento amigo.

A vida tornou-se-me insuportável: despida de interesse, vazia de desejo. Voltei a não estudar, e pior do que nunca tolerava as repreensões, conselhos e imposições da inevitável estrangeira. Com o sofrimento voltava-me a revolta; e, como com os meus dezesseis anos já raciocinava mais, via melhor as coisas, compreendia que meus pais não me tinham abandonado…

Sim… eu confesso que me tornei alguma coisa difícil de aturar. A tia queixava-se, queria domar a selvagenzinha — como me tratava — e convencia-se que havia de vencer o meu espírito rebelde.

Mas isso, já o devia saber, era menos fácil do que sujeitar uma águia a viver numa capoeira.

Uma tarde, encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua vi passar o Chico.

Sorriu-se para mim e perguntou-me se estava doente, tão demudada e triste eu lhe parecia. Mal o vi, uma onda de lágrimas me subiu aos olhos e retirei-me soluçando da janela, sem atinar com palavras com que respondesse à sua surpresa.

Nesse dia chorei sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da cama, acendi a vela, e assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever ao Chico a contar a minha dor, dizendo-lhe o meu desespero, e pedindo-lhe que me livrasse daquela prisão onde em breve morreria, como a Mariquinhas — estava certa! Escrevia, pela primeira vez, tudo quanto sentia, vertiginosamente, sem pesar as palavras, surpreendendo-me a escrever melhor do que se falasse…

Depois de a carta escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu pus-me a imaginar o que faria o Chico. Certamente não me abandonaria à minha sorte, correria em meu auxílio como paladino doutras eras…

O que uma cabeça de rapariga arquiteta aos dezesseis anos na sua primeira noite de insônia!…

Toda a minha esperança era o Chico — se ele me faltasse, o mundo acabaria para mim!

De manhã reli a carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e tentei escrever outra — que me saiu pior. Meti-a no bolso e fui ao jardim com ideia de a entregar ao meu amigo, mas um invencível acanhamento fez-me voltar para casa.

A Eulália, na cozinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me, maliciosa, muito habituada a fazer de capa às meninas que servira: — O menino Chico está aqui em casa da Sra. D. Emília, entrou há pouco para lá.

E eu, fingindo uma grande serenidade, que ela bem conheceu ser falsa: — Ah, sim?! Eu queria entregar-lhe uns papéis… uma carta… que a Mariquinhas deixou para ele.

A mentira fez-me corar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma.

— Se a menina quer, eu levo-lha lá…

E quis. E ela levou a carta, enquanto eu ficava ansiada, mal contendo o coração, que parecia saltar-me no peito.

— Ele disse que respondia já — veio a Eulália, toda prazenteira, anunciar-me.

Recolhi ao meu quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a carta do Chico viesse trazer-me a esperança ou a morte.

Como aos dezesseis anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não admite a resignação nem a tolerância!…

Não tardou muito sem que a Eulália viesse, com um ar de camaradagem e cumplicidade que me irritou, trazendo a resposta do Chico debaixo do avental.

Recebi-a simulando indiferença, e pu-la de lado, sem a querer abrir enquanto os seus olhos maliciosos ali estivessem a perscrutar os meus sentimentos, como que a assoalhar-me a alma…

Desconcertada pela minha atitude, saiu; e então, tremendo como quem comete uma ação criminosa, rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes, com os olhos turvados, as poucas linhas que o Chico me escrevia:

"Raquel:

Obrigado pela sua carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva aos seus pais contando-lhes a sua tristeza e mande-me a carta que eu me encarrego de lha fazer chegar às mãos. A Senhora D. Emília e a mamã acrescentarão algumas palavras para dar força às suas queixas. Todos nos interessamos pela nossa amiguinha Raquel e temos muita pena de a ver sofrer. Creia na dedicação e afeto do seu amigo — Chico."

Não era muito para o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o apoio moral que me faltava.

Sentia-me protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz. Relia ainda a carta, que ia meter no seio, quando a porta do quarto se abriu de improviso e a cara detestada da minha prima apareceu perguntando-me, trocista:

— Então a menina recebe cartas de namorados e não diz nada à gente?!…

— Vai-te daqui para fora! — gritei desesperada.

— Ah, estás assim soberba com o teu Chico?! Pois eu direi à mamã, deixa estar!

— Importa-me pouco a tua mãe, dou-lhe tanta importância como a ti — e, empurrando-a com violência para o corredor, fechei a porta por dentro.

A rapariga vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que tudo contou à mãe. E não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a abominável criatura não estivesse a bater com violência à porta, gritando como possessa para que lha abrisse.

Com uma serenidade de que ainda hoje me surpreendo, fui abrir, e ficando entre portas perguntei, sem me alterar, o que desejava.

— Oh! Não ter vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum maroto e pergunta o que mim quer! Ver esse carta já! Vergonhas, vergonhas, dar maus exemplos a meninas! Quando vier seu tio mim dizer tudo!…

E a torrente de destemperos parecia não se estancar.

No meio daquela gritaria pude apenas levantar a voz para lhe dizer resolutamente:

— Não lhe dou a carta, pode berrar à vontade.

Perdeu então de todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou.

— Dá-me carta já!

À sua violência respondeu a minha violência. O meu carácter altivo, o meu temperamento indomável, a minha educação livre, o meu próprio sangue, que vinha de heróis, tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e persistente de todos os dias; assim brutalmente, pela violência, dava-se a reação que produz a revolta.

Ergui-me duma só vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba de energia desesperada.

— Dar-lhe esta carta?! — E passei-lha insolentemente por diante dos olhos. — Nunca! Fique sabendo, nunca! Prefiro engoli-la.

As palavras vinham-me aos lábios tumultuosamente, numa abundância que me espantava.

Então, a terrível criatura vomitou coisas abomináveis que me insultaram infamemente e das quais — tenho hoje quase a certeza —, na sua ignorância do português, ela não sabia o verdadeiro sentido.

Uma onda de sangue me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a candura da minha alma, todo o pudor do meu corpo de virgindade absoluta, se insurrecionou. Fitava-a, desvairada; sim, creio que, se não recuasse e não baixasse as mãos que tentavam prender-me, a teria estrangulado. Saí do quarto violentamente, empurrando a Eulália, que observava sardônica a cena que preparara com a sua baixa intriga. Ao contato do seu corpo a minha raiva explodiu com mais furor:

— Vá, sua canalha! — gritei-lhe alucinada —, vá chamar gente para ler as cartas que me traz!

Estava cega, como um touro de boa pinta longamente encurralado, quando lhe abrem a porta do curro e entra na praça louco de fúria, correndo para um e outro lado, fazendo saltar para a trincheira, como bonecos, os toureiros que de longe o irritam agitando as capas vermelhas.

A pequena agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão com uma bofetada; e a porta da cozinha aberta, com um pontapé, que fez cair um vidro que se estilhaçou no chão, enfiei por ela, sem bem saber o que fazer, e achei-me no jardim.

Dum pulo saltei a sebe florida que separava o nosso jardinzinho, agora abandonado, do da D. Emília, e entrei-lhe como doida pela casa dentro.

Então caí-lhe nos braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero desfeito em lágrimas.

À noite o meu tio veio buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita bondade, desculpou a mulher, pediu, ordenou… Nada conseguiu. Agarrei-me à mãe da Mariquinhas, e de tal maneira me impus ao seu pobre coração de mãe tão dolorosamente experimentado que ela pediu a meu tio que não insistisse. Eu ficaria com ela enquanto os meus pais não resolvessem o incidente.

O meu tio concordou, vencido pela palavra persuasiva e doce da minha protetora, e ao sair bateu-me na cabeça e disse-me com ternura magoada: — Ah, cabecinha, cabecinha louca, que herdaste, por teu mal, todo o sangue rebelde da nossa família!

E saiu, desculpando-me no seu íntimo, ele o rebelde doutro tempo, vencido agora pela doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem que o era, só para não desencadear a tempestade caseira e não aturar o gênio furibundo da mulher. Pobre e querido tio! Ninguém reconheceria nesse velho alquebrado, mas ainda de soberbo e distinto porte, o herói de tanta façanha que deixara nome entre os rapazes da escola, como mais tarde entre os colegas do exército e companheiros de trabalhos e perigos. Era o nosso sangue, na verdade, que o fazia sorrir, quase indulgente, quando me admoestava por tanta loucura; o nosso sangue que o fizera, quando rapaz, desafiar, sozinho, uma companhia de pequenos colegiais como ele, e que o fizera, mais tarde, responder sempre com soberba quando se julgava desrespeitado, mesmo por um superior hierárquico…

Pobre tio! Com quanta saudade recordo hoje o seu bom sorriso quando, longe da companheira, nos contava anedotas e aventuras que nos perdiam de riso. Como teria sido adorável, sem essa servidão dum casamento abominável, a que não soube nem pôde fugir!…

Foi então que escrevi aos meus pais contando-lhes o longo martírio daqueles quatro anos em que me tinham afastado do seu carinho.

Disse-lhes o meu desespero, o meu horror à tia e aos seus métodos educativos, e recordei com pungente saudade a feliz infância que me tinham feito a contrastar com aquele inferno de todos os dias e de todas as horas.

E como os meus nervos sobre-excitados faziam a pena galopar pelo papel desabaladamente, estou certa que nada deixei por contar.

A D. Emília e a mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido; escreveram comigo para desmanchar qualquer má impressão que o meu procedimento pudesse despertar no espírito dos meus pais.

Que doces dias de serena paz eu passei ali enquanto não veio a resposta à minha carta — que foram os meus próprios pais que em pessoa me quiseram vir buscar.

Uma tarde o Chico entrou — vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da janela, num bordado que a D. Emília me dera para fazer, porque entendia que sempre as mãos deviam estar ocupadas e o espírito preso a qualquer trabalho manual que, por insignificante que parecesse, era muito na disciplina moral do nosso ser. Era a esse constante labor das suas habilíssimas mãos, que a boa senhora atribuía o resistir ainda à sua dor.

Estava só; a D. Emília fora dentro chamada pelo marido, quase sempre de cama desde que se dera o grande desastre para o seu coração de pai que na única filha pusera todo o seu afeto e esperança.

— Que trabalhadeira estás! — disse-me o Chico, sorrindo, porque ao entrar eu nem sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e fraternais.

É que as palavras impudicas da estrangeira acudiam-me à memória e tinham maculado para sempre a inocência do meu afeto por ele.

Sorri à sua graça, mas com um sorriso tão magoado, que o Chico, vibrátil e bondoso como é, logo percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso, quis saber se estava doente, se me doía alguma coisa. — Não, não — respondi nervosa e sacudida —, doença não tinha… mas lembrava-me o que tinham dito de ambos, e isso incomodava-me fortemente.

E ele quis saber o que me dissera a tia, o que dera causa à grande cena, de que ainda ria, só em pensar nela.

Cuidava que era ainda a pequena e ingênua Raquel que ele e a Mariquinhas quase amavam como filha, e que o meu ato revoltoso fora apenas um capricho de criança endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha que uma alma de mulher, de súbito despertada, sofria e palpitava dentro em mim.

Subitamente as lágrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem que eu as pudesse estancar no lenço encharcado, que mordia em desespero.

Passara, sem transição, da insensibilidade quase completa de quatro anos à mais disparatada pieguice.

Por nada as lágrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar. Desesperava-me contra mim mesma; queria vencer-me, e não podia!

O Chico, muito comovido, abraçava-me e beijava-me para me sossegar, como fazia sempre, com a simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem suspeitar a confusão em que eu me debatia.

Aproveitando um momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe para mudar de conversa:

— O Chico vai-se amanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu também vou para tão longe!

— Que tolice, nem que em Portugal haja longes!… — respondeu a rir, enquanto eu me afastava um pouco, porque as suas carícias me sobressaltavam e faziam mal.

— Pois sim, Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam não pensam a sério em coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam.

— Quem te disse tal?

— As raparigas da minha aldeia, quando cantavam:

O amor dum estudante
Não dura mais de uma hora
Toca a cabra vão para a aula
Vêm as férias vão-se embora.

Quando isto é o amor, o que fará a amizade!?

As lágrimas tinham-se transformado em riso — ria agora convulsamente.

— Isso são cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Há rapazes loucos, mas também os há sérios, como eu…

— Não acredito! O Chico vai esquecer-se de mim, e quando for para a aldeia nunca mais o verei nem saberei de si! Antes queria morrer!… — tornava a chorar, visionando-me só, sem vontade nem gosto para viver.

— Ó Raquelzinha, não diga isso, não a esquecerei nunca — que tolice! Os amigos de infância nunca se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a Mariquinhas.

— A essa — solucei, num sentimento de mágoa mortificado com uma pontinha de inconsciente ciúme —, a essa não a esquecerá o Chico, não!…

— Mas porque menos a ela do que a si?

— Então o Chico não era namorado da Mariquinhas?! — perguntei numa ansiedade de dúvida que se deseja não ver confirmar.

— Ó Raquel, não diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura dessas?! — perguntou indignado. — Então não éramos como três irmãos, três companheiros de brincadeira?!…

— Ninguém me disse nada. Eu hoje é que pensei, depois do que ouvi lá em casa, que podia ser que o que se lembravam comigo fosse com ela… Às vezes a Mariquinhas parecia que me tinha raiva, e por fim já não queria que brincássemos juntos… lembra-se?

— Sim, é verdade. Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar quando estivesse a Raquel, porque a sua alegria a incomodava…

Pobre Mariquinhas! A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso lado reclamando a sua parte de afeto, mas o seu rosto pacificado pela morte já não exprimia o vago ciúme com que tanto nos mortificara. A sua recordação unia-nos numa afetuosidade e numa saudade igual.

— Mas então — disse o Chico, surpreso — a Mariquinhas supunha que nós éramos namorados?! Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era…

— Eu não percebi nada — respondi ingênua — nem supunha que era tão sua amiga… Nem que esta amizade era diferente… Ontem é que compreendi tudo!…

— Mas ontem, porquê? Disseram-lhe mal de mim?!… — perguntou assomado, numa daquelas fogosas cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu amigo.

— De si, não!… Foi de mim. A estrangeira… disse-me coisas, coisas… que só pensar nelas me faz mal!

Corei e baixei os olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado.

Curvando-se para mim, perguntou-me baixinho, numa carícia que estava toda na doçura da voz:

— Disse-lhe que era minha namorada, não foi?…

Abaixei ainda mais a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma afirmativa que me confundia.

— E não o quer ser, de verdade, Raquel?… Será a minha noiva enquanto andar a estudar, e a minha mulher, a minha companheira, quando eu já ganhar dinheiro para os dois…

Sorria embevecida, olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e saltar-lhe ao pescoço, numa alegria louca; mas ficava-me calada, perturbada, sem saber verdadeiramente distinguir até onde me seria permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as praxes que a tia, dizia, eu há muito tinha desprezado impudentemente.

O Chico compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me docemente na mão que conservou entre as suas enquanto conversávamos a meia voz, sorrindo enlevados, contando coisas, recordando fatos, que reconhecemos nesse momento serem significativos daquele desenlace.

Há muito tempo que eu era a sua mulherzinha — recordou o Chico sorrindo — nas brincadeiras em que a Mariquinhas, já mais consciente, reservava para si sempre os papéis de rainha ou fada, que iam tão bem à sua gentil figurinha de estatueta.

Foi nessa tarde deliciosa de fim de Inverno, com o testemunho das camélias brancas, que a Mariquinhas adorava, e na véspera de ele ir para Coimbra e eu recolher à velha casa paterna, que nós ligamos para sempre as nossas existências, que dissemos essas mil palavras banais que nada dizem para os outros e são, num momento único da vida humana, as verdadeiras palavras sacramentais que ligam duas almas numa comum e deliciosa aspiração.

Foi nessa tarde, que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que traçamos a azul e ouro o futuro ridente que hoje estamos desfrutando.

Com a vinda de meus pais, trocadas explicações e desculpas entre eles e os tios, sem que eu fosse obrigada a ver mais a minha façanhuda inimiga, a tranquilidade e a alegria voltaram de novo ao meu espírito, que em breve se refez e normalizou na serenidade da vida aldeã.

O Miguel, que já então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em breve o amigo inseparável do Chico, que teve sempre meio de repartir as férias entre a antiga família, que o adorava, e a nova, onde não era menos querido.

Até o padre Zé discutia com ele pontos graves de história romana e ficava boquiaberto com a sabedoria dos rapazes de hoje… e da qual nos ríamos a valer, indo depois às escondidas folhear o Larousse onde procurávamos citações e fatos para confundir o santo velho.

A Maria Augusta, essa só pedia a Deus que a deixasse viver até ver na capela da casa, abençoado por Deus e pelos homens, um par que era tanto do seu agrado.

E agora, realizado esse ideal — que reuniu à mesma mesa duas famílias que ficaram sendo só uma, naquele grande jantar de núpcias a que assistiu toda a parentela dos arredores —, ela espera ansiosa por que lhe seja permitido apresentar ao padre Zé, de capa de asperges e estola rica, um menino que há de vir breve de Paris numa condessinha de flores, e para o enxoval do qual trabalhamos dia e noite com a mais rútila e alvoroçada alegria.

— Com o vestido de antiga seda cor-de-rosa e grandes ramos prateados, coberto com o véu de tule bordado, que a mamã guarda na grande arca dos enxovais, eu verei como irá lindo!… — É o que me assegura a Maria Augusta, que recorda outros batizados célebres na família, e o meu principalmente, que, crescidinha já, por doença do padrinho, me desesperei iconoclastamente com o sal da sapiência e arranhei a cara ao padre!

Não se esqueceu de recomendar ao Chico, uma vez que ele foi a Lisboa, que deixasse feita a encomenda dos bolos para a festa e de confeitos para a rapaziada, que assim encherá de bênçãos o batizado…

Isto enquanto a boa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóis e finas bretanhas, e manda ao sótão buscar o lindo bercinho em que nos criou a todos, e que já espera, forrado e engomado de fresco, pelo pequenino dono… — ou dona?!…

E, seja o que for, bem-vindo será ao nosso lar e… já o juramos: só nós o educaremos e guiaremos nos seus estudos, porque, saindo, como poderá ser, à mãe, não será fácil meter-lhe grandes sabedorias na cabeça.

Esquecia-me dizer que o meu pobre tio está enfim descansado, livre da mulher que tão amarga lhe fez a existência, bem encafuado num mausoléu de mármore, onde ela o vai ver amiúde, naturalmente para lhe dar conselhos ou reprimendas. Dizem-me que na sua opinião eu sou o mais execrável dos animais ferozes, e ainda treme de raiva só em pensar na minha negra ingratidão. A filha prepara-se para casar confeccionando o enxoval e aprendendo a ser uma admirável dona de casa, capaz até de ser professora numa escola de mênagères, mas os noivos é que, como sempre assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão tardando um pouco.

O pai da Mariquinhas morreu, e a D. Emília resigna-se a viver para chorar todas as lágrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos, sempre vivos na sua lembrança.

Sente por nós um doce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos nos juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão íntimos e indissolúveis tornou os nossos afetos.



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