1/15/2023

O conspirador (Conto), de Lutegarda Guimarães de Caires


 O CONSPIRADOR

I

Através das grades da prisão, Miguel via uma nesga do Tejo. Era bonita e melancólica essa faixa de rio, por onde o pobre rapaz espraiava o seu olhar. Mas sempre a mesma, tornava-se monótona, enervante, eterna.

No entanto, devorava-a com os olhos, era a sua companheira, bebia-lhe as auras que das suas águas serenas e azuladas se evolavam até ele e o acariciavam brandamente, agitando-lhe os cabelos, beijando-lhe as faces, através daqueles grossos varões de ferro, que o separavam do mundo.

Como fora aquilo? Pobre Miguel!

Ele, tão modesto, tão pacato, tão inofensivo, como pôde ir parar ao Limoeiro?

Parecia-lhe um pesadelo infindável!

— Venha comigo — disseram-lhe um dia ao sair da repartição.

Parou interdito, e naturalmente perguntou:

— Mas para onde?

— Vamos, nada de perguntas, acompanhe-me — tornou a criatura embirrante e de má catadura. — Está preso!

E levaram-no para a cadeia.

Ali estava, em princípio, sem saber porquê. Depois fizeram-no descer à secretaria e submeteram-no a um interrogatório confuso, quase incoerente, que o deixava cada vez mais surpreendido.

Perguntas cheias de mistério, divisando em cada olhar uma ameaça, em cada palavra a convicção duma culpa, por ele incompreendida. E às suas respondiam-lhe com um sorriso de incredulidade e desprezo, mandando-o retirar.

Conspirador! Tiveram de lho dizer para que enfim compreendesse.

Então ele tinha lá pensado nunca em política?

Fora decerto a vingança dalgum desalmado inimigo que falsamente o denunciara. Mas quem? E como puderam acreditar tal aleivosia!

Tudo que significava luta lhe causou sempre um horror invencível, e, contanto que houvesse paz, qualquer Governo lhe servia. Sentia-se até incomodado quando diante dele se discutia a mudança de regime, e, verdade, verdade, lá no íntimo, estava contente com a República que lhe trouxera aumento de músicas regimentais pelas ruas, o que lhe dava a impressão de mais festa e alegria. Cantarolava constantemente A Portuguesa e era o primeiro a descobrir-se reverente quando a ouvia na Avenida, Rossio ou Terreiro do Paço, onde nunca faltava aos concertos grátis.

Que cousa tão surpreendente e incompreensível!

A sua vida tinha sido sempre duma pacatez rara. Vivia com duas tias velhas, porque os pais, mal os conhecera. Esta orfandade não tinha verdadeiramente constituído uma infelicidade para o nosso Miguel, porque as tias eram tão boas e dedicadas, tinham-no enchido tanto de mimos, que ele nem quase dera pela falta dos pais. Uma, irmã da mãe, outra, irmã do pai. Tinham-se unido, feridas por igual desgosto, dedicando-se ao órfão que de 3 anos o destino lhes atirara aos braços, sendo a sua missão no mundo, desde então, a educação do pequeno Miguel.

Ele era fraquito e bom; dobrado motivo para os cuidados e desvelos das boas criaturas.

Aos 18 anos arrumaram-no como amanuense no Monte Pio Geral.

Que dia aquele de alegria! Era um empregado, entrava na vida do homem que trabalha, que se torna útil e independente. E elas, as boas velhitas, rejuvenesciam de orgulho. Foram convidados parentes e amigos, houve jantar lauto, doces, flores e à noite foram todos para o teatro. Foi uma linda festa aquela.

Daí em diante, o Miguel saía invariavelmente às 9 horas, já almoçadinho e muito barbeado, muito limpo, sempre com lindas gravatas, lá ia alegre e satisfeito para a sua repartição. Voltava às quatro e meia em ponto.

E lá estavam as velhinhas, atentas, se teria apanhado sol, que estava constipado, que devia ter levado chapéu, porque de manhã chuviscara, que talvez fosse melhor não tornar a sair naquele dia… e ele, sorrindo para ambas, dizendo-se sempre óptimo, esplêndido, que a tosse não tinha importância, e fazendo-as rir com as suas facécias, com a sua verve dos 19 anos.

Às noites, quase sempre, ia ao animatógrafo, era a sua extravagância. Uma hora aprazível que ele passava. Recolhia às 11 horas, e ainda até à meia-noite, a hora do chá, tinha de contar às velhotas as fitas que tinha visto, recreando-as imenso com aquelas narrativas.

Ao domingo levantava-se mais tarde. Não, que eram os únicos dias que tinha para descansar! Ao meio-dia, o banho pronto e perfumado, em água morna para se não constipar. À uma hora, o almoço e depois tudo ia passear. A criada tinha licença para o resto do dia, e eles lá iam jantar ao Estoril, outras vezes a Sintra.

Podia afirmar-se que o Miguel era um rapaz feliz. Amabilíssimo com as raparigas, adorando-as a todas, um pouco tímido talvez, mas os namoricos sucediam-se ainda que, até então, paixão, não havia por nenhuma. Era preciso que ele não escutasse os conselhos das velhas tias, que o cumulavam de desconfiança contra a mulher moderna! Nada! Passar o tempo sim, casar, isso não; pelo menos por enquanto. Estava tão novo ainda!

Pobre Miguel! Quem havia de dizer que este bom rapaz iria assim parar àquele imundo Limoeiro! E então assim, de repente, como se fosse a cousa mais natural do mundo…

Ainda poderia ter sido por uma pegadilha com qualquer atrevido, um mau encontro com alguma destas criaturas que só vêm ao mundo para implicar com os outros, que armam conflitos a cada passo, e a quem se lhe tornasse necessário dar algum corretivo, mas não, não foi nada disso. Foi preso justamente por uma cousa que o pacífico Miguel nunca faria, nem que vivesse 100 anos! por conspirador!


II

Deus nos livre de maus vizinhos ao pé da porta! Parece que o Miguel nunca se importou com esse terrível flagelo, porque se esqueceu de pedir, nas suas orações, para que Deus o livrasse desse mal. Pois não foi porque as tias lho não tivessem ensinado! Isso é que é verdade.

Mas contemos o caso: no 3º andar da escada de Miguel morava um cocheiro da casa real; tratava-se bem e conquanto se mostrasse orgulhoso com a privança — aliás bem reduzida — com os grandes do paço, passava por boa pessoa, embora se embriagasse bastas vezes, o que o tornava reinadio, segundo a opinião dos vizinhos, para quem se tornava mais familiar, deixando de parte os modos altivos de uma pessoa que sempre tinha a honra de guiar os carros onde iam quase sempre os criados do rei.

O que este ilustre varão não podia, em todo o caso, suportar, eram os republicanos. — Isso é que não — dizia ele a quem o queria ouvir, batendo grandes murros sobre as mesas da taberna, onde em geral abancava, e, mais ou menos, frequentada por serviçais e moços das cavalariças da casa real —; o que o nosso Governo devia fazer era mandar enforcar a todos. Corja!

Ora o conhecimento desta importante criatura com o nosso Miguel era muito superficial, porque o rapaz, por uma repugnância instintiva, evitava-o sempre que podia. Mas algumas vezes se encontravam à porta, e então falavam-se cordialmente e subiam juntos até à porta do Miguel, que era no 2º andar, e aí se despediam, subindo o cocheiro ao 3º, onde morava.

Um dia chegou-lhe lá abaixo a mulher do vizinho, muito aflita e chorosa.

O cocheiro fora preso por ter atirado com os cavalos para cima dum homem que deixara estendido na rua.

— Coitadinho! — diziam as tias. — O pobre homem é que ficou pior! como fez ele isso?

— Ora — dizia a mulher — não foi por querer. Ele estava embriagado, e depois o homem era um republicano e chamou-lhe lacaio real, e como ele tem um ódio enorme a essa canalha, atirou-lhe com os cavalos para cima.

— Mas isso é infame! — exclamou o Miguel. — Bem sei que a senhora não tem culpa, mas um republicano é um homem como outro qualquer.

E passeava pela casa muito agitado.

Então a mulher voltou-se para as velhitas e disse-lhes, entre soluços, que aquilo fora uma desgraça, que ele gastava tudo na taverna e agora nem sequer tinha dinheiro para lhe pagar a fiança. Se as suas boas vizinhas lhe emprestassem essa quantia, se lhe valessem naquela aflição, servi-las-ia de joelhos toda a vida.

Elas desculpavam-se que não podiam valer-lhe, que também viviam com dificuldades.

Ela então abraçou-se aos pés do Miguel, dizendo-lhe que ficaria sem pão, pois se o marido não saísse logo e lá no paço o viessem a saber, seria imediatamente despedido.

O Miguel sentiu um dó imenso pela pobre criatura que lhe chorava aos pés, e como tinha algumas economias, porque do seu ordenado pouco ou nada gastava, foi buscar 20$000 e deu-os à mulher, exclamando: — Olhe que faço isto só por si, porque o seu homem não merece nada.

As tias comoveram-se com o bom coração do sobrinho e não ralharam.

A mulher partiu radiante, e o cocheiro, à noite, foi dar-lhe um abraço mostrando-se muito grato e prometendo pagar logo que tivesse dinheiro.

Veio a República. O cocheiro dançou na rua, de regozijo. Por covardia, ou por bebedeira? Talvez por ambos os motivos. A verdade é que, com pasmo de toda a vizinhança, deu morras à monarquia, de quem tinha vivido, e deu vivas aos republicanos, que o seu ódio dantes esmagava.

Dentro em poucos meses tinha um lugar qualquer de confiança do Governo, onde auferia bons lucros.

É claro que o Miguel ainda não estava pago dos seus 20$000 réis, embora por mais duma vez, timidamente, lhos tivesse lembrado, ao que o outro sempre lhe respondia com evasivas ou desculpas.

Agora, porém, que o ex-cocheiro estava um figurão, o rapaz apertava mais com ele, porque enfim, não era rico e estava a juntar para uma viagenzita a Paris. Mas qual! o grato vizinho, agora, já lhe respondia altivamente.

— Que esperasse, que diabo! uma porcaria daquelas, nem valia a pena falar-se nisso.

Ultimamente, quando lhe passava por pé da porta, escarrava com força, e a mulher, a que se abraçara a chorar aos joelhos de Miguel, tinha risos irônicos e trocistas quando encontrava a criada do 2º andar no talho, a comprar meio quilo de carne para coser.

— Que pelintrice! — dizia ela, levando sobraçada uma perna de carneiro.

Quando alguma das velhinhas punha à janela a secar umas camisas do rapaz, muito bem engomadas, a antiga monárquica deitava-lhes água, ou cuspia-lhes em cima, o que afligia imenso as pobres criaturas, principalmente a mais nova, que era quem as engomava, tinha 65 anos e sofria do coração.

Um dia o Miguel, já farto de ouvir queixas, encontrando-se com o recente republicano, disse-lhe que ainda iam ter um desgosto, se as coisas continuassem assim.

Terminou acusando-o de ingrato.

— Que me não pague — exclamava o rapaz — vá, já nem penso nisso, mas que, ainda por cima, insulte as minhas pobres tias, é repugnante e reles; e eu, com risco de ir preso, ainda lhe parto a cara. Entendeu bem? E olhe que se não o fiz já, é por amor delas, para não lhes dar mais desgostos.

O outro era covarde, olhou-o torvo e casquinou num riso mau:

— Tudo isto por uns porcos 20$000 réis… até mete nojo! deixe estar que os não perde!

— Sabe que mais? — volta o Miguel, com uma pronunciada expressão de desprezo. — Afinal, nem me posso admirar que isto suceda. Que diabo lhe fiz eu comparativamente com os favores que recebeu dos seus amos? A ingratidão foi sempre apanágio das almas baixas; guarde o dinheiro e faça de conta que nunca me conheceu. Já é favor.

E voltou-lhe as costas.

O outro ameaçou-o já de longe, de punho cerrado, e gritou-lhe:

— Deixa estar!… Talassa!


III

Agora, ali sozinho, quando as velhinhas saíam de o visitar e ele via afastarem-se aquelas figurinhas, vestidas de preto, muito pálidas e lacrimosas, que lhe haviam contado quanto as fazia sofrer a atmosfera de ódio em que os vizinhos malditos do 3º andar ainda as envolviam, ao pobre rapaz levantava-se-lhe o peito em ânsias sufocantes de represálias contidas, sentindo todo o horror da sua fraqueza e impotência.

Uma noite, encostado à pequena mesa de pinho que guarnecia o seu exíguo quarto, numa trapeira do sujo casarão que se chama Cadeia Central de Lisboa, rememorando as cenas doces e harmoniosas da sua vida passada, com os olhos úmidos de lágrimas, na recordação desses anos tranquilos, decorridos entre os dois afetos que o acalentavam, tempos ainda tão próximos, mas que a situação presente lhos afigurava tão longínquos, quando foi despertado daquela espécie de sonho, por um barulho inesperado e confuso.

Gritos, imprecações, gente que parecia fugir, corpos rolando no chão, uivos, gemidos, como que um montão de pessoas que se esmagam, esfaqueiam, estrangulam, ou fogem espavoridas ante um perigo qualquer inesperado… um sinistro talvez.

Os cabelos puseram-se-lhe em pé. A ideia dum incêndio acudiu-lhe ao pensamento como um látego a fustigar-lhe o cérebro. Correu para a janela, numa angústia indescritível, os dedos enclavinharam-se-lhe nas grades, ao sentir o contato dessa barreira invencível.

Do Tejo, centos de olhos fosforescentes pareciam olhá-lo com terror!…

Luzinhas oscilando nos barcos como se estremecessem pelo perigo que o ameaçava a ele… O suor inundava-lhe a fronte numa agonia inconfundível. Voltou, cambaleando, para a porta, abriu-a, e logo deparou com uma cena de inqualificável horror:

Guardas levavam criaturas ensanguentadas que se tinham esfaqueado, presos, que numa luta de animais ferozes, liquidavam ódios de momento, questões de ocasião, saldadas ali, a murro e à facada.

Nessa noite não dormiu, numa agitação febril revolvia-se na enxerga de palha, não podendo conciliar o sono. Só quando os pálidos clarões da aurora começavam a invadir o quarto, entrou nesse amargo torpor que precede os sonos pesados do infortúnio.

Mas procedia-se à contagem dos presos: umas pancadas secas à porta avisaram-no que tinha de entrar na forma, como todas as madrugadas. E o mísero Miguel lá foi, nessa manhã, a tiritar num frio nervoso, embrulhado no comprido casaco que as tias lhe tinham mandado para a prisão.

Ao voltar para a cela, atirou-se para cima da cama, prostrado, sem forças quase para pensar. Mas como uma infelicidade nunca vem só, estava escrito que o infeliz conspirador não poderia dormir nessa manhã. Era dia de banho.

— Toca para o banho! — gritou-lhe uma voz grossa e áspera.

Agora é que foram elas. Agulheta em riste, zás! Um esguicho medonho fê-lo dar um grito, e era tão forte e gelado, tão intenso para aquele pobre corpo franzino, espreitado pela tuberculose, que o fez cambalear, gelando-o até aos ossos, obrigando-o a erguer os braços numa sufocação que o punha louco de sofrimento.

Ao chegar ao quarto, desatou a chorar; não podia mais.

Nesse dia, quando as velhinhas, muito pálidas, o abraçavam, naquela visita regulamentar do meio-dia às duas horas, ficaram muito aflitas porque o pobre Miguel ardia em febre e tinha os olhos vermelhos das lágrimas.

À saída ainda as acompanhou até ao fim do corredor, querendo fazer-se forte para as não molestar mais. E elas, todas trêmulas, caminhando entre aquele bando enorme de gente, que tem de sair junta e à mesma hora, empurradas por criaturas asquerosas, que as troçavam e magoavam, que lhes batiam com os cestos nas costas, casquinando facécias ignóbeis, comentando os seus modos receosos e a limpeza do seu vestuário, agarravam-se uma à outra, no balanço daquela onda humana, sentindo, cheias de nojo e angústia, o contato de todas aquelas sujidades, e o bafo fétido e nauseante do vinho azedo e das bocas mal tratadas.

E isto todos os dias, todos os dias! Muito unidas, muito juntinhas, as duas fracas criaturas, que eram, em todo o caso, o único amparo do desgraçado rapaz, respiravam enfim ao chegarem cá fora, quando se abria a última jaula à saída daquela massa de gente; mas voltando os olhos para o tenebroso edifício, soltavam o mesmo suspiro doloroso, caminhando ambas chorosas e desalentadas com a lembrança do seu filho, do seu pequeno Miguel, que ali lhes ficava sofrendo.

E todos os dias este calvário inconcebível, mas naquele mais horrível ainda, porque ele lá ficava doente e sem lhe poderem valer.

Os viandantes passavam indiferentes, e alguns riam… Duas velhas a chorar!… que cousa tão ratona! Se fosse numa fita de animatógrafo, talvez despertassem interesse, mas ali, nas ruas, que disparate! E já tinham sorte em não serem apupadas…

No outro dia, lá estava o Miguel na enfermaria; o infeliz delirava na intensidade da febre.

Julgava-se então o Paiva Couceiro, sim, era ele, a desfazer soldados da República, a tentar incursões, rodeado de conspiradores e, entrando, por fim, triunfante na capital, a gritar:

— Abaixo os rebeldes! Corramos ao Limoeiro. Abaixo esse maldito antro do vício e da desgraça! Não deixem pedra sobre pedra. Soltem os presos, todos, todos! Que não fique lá o nosso Miguel! Tudo para a rua… A Bastilha também caiu. O Limoeiro cairá enfim!…

Como era possível agora, às pobres velhinhas, que o ouviam aterradas, provarem, com a simplicidade das suas lágrimas e queixumes, que ele não era, depois daquelas palavras subversivas, o mais temível dos conspiradores?

Oh! não, pobres criaturas, não valia a pena cansarem-se! Tudo impossível, tudo inútil. Pois se ele havia confessado! Se a febre o tinha atraiçoado e… mesmo sem querer, tinha dito tudo…


IV

No dia do julgamento lá estava o denunciante: o antigo lacaio da casa real.

Com um sorriso satisfeito, o seu escuro bigode, à semelhança dum rato imundo, sobre uns beiços delgados e lívidos, erriçava-se-lhe de vez em quando, na alegria selvagem e cruel de ver o antigo benfeitor perdido, a pobre criança que o salvara da fome, em troco dos 20$000 réis, agora roubados e que já não lhe seriam exigidos.

É claro que a carga que lhe fez foi medonha.

Em casa das velhas reuniam-se pessoas finas, tudo talassas.

O rapaz recebia cartas dos conspiradores, uma das quais, interceptada pelo ex-cocheiro, era terrivelmente comprometedora. Pudera! Pois fora o próprio Paiva Couceiro quem a escrevera, o imprudente!

Tão parvo e ingênuo que apenas disfarçou a letra e mandou-lha, muito naturalmente, pelo correio de Lisboa, quando uma vez por aqui passou, oculto. Pois então? Era uma revelação importante! O antigo lacaio sabia cousas inauditas!

Era um homem prestimoso!

Estava mais que provado que o Miguel era um dissimulado e, por isso mesmo, um temível conspirador. Tinha 19 anos, é verdade, mas que importava isso?

Essa idade também a tiveram os maiores criminosos.

Não houve meio de o salvar. A carta escrita pelo próprio cocheiro, que fora o seu único autor, era esmagadora.

O advogado, se continuava a defendê-lo com muito calor, seria tosado à saída.

Era preciso cuidado. O júri também não esteve para se meter em trabalhos…

O rapaz foi condenado em dois anos de prisão maior celular, seguidos de oito de degredo.

Miguel, uma sombra do que fora, tão pálido e abatido que mais parecia um velhinho do que um rapaz na flor da vida, cambaleava ao levantar-se do banco maldito, ouvindo a sua sentença de morte…

Olhou para as pobres velhinhas, que soluçavam e levou aos lábios o lenço que ficou tinto de sangue.

Elas tremiam, caminhavam atrás dele, de olhos esgazeados, faces lívidas, as mãozitas, descarnadas, apertando-se convulsamente…

À porta, quando o meteram no carro celular, a mais nova tombou docemente… e a outra, a mais velhinha e enrugada, só encontrou de encontro ao peito o cadáver da irmã, da outra mãe do seu Miguel que com ele lhe desaparecia também, para sempre…

***

Passados dias, nada restava do pobre amanuense, senão mais um número na Penitenciária e uns olhos, quase cegos de chorar, que se divisavam, embaciados, através dos buracos da máscara maldita.

E enquanto a mais nova das velhinhas dormia o seu último sono, à sombra dos ciprestes, ali, no Cemitério dos Prazeres, mais próxima do seu Miguel, a outra, a que sobrevivera, vagueava, mais distante, por aquela casinha solitária e desconfortada, outrora tão feliz, sorrindo vagamente para o retrato do sobrinho que o representava aos 15 anos, todo sorridente e gracioso e ali estava a segui-la com o seu olhar meigo e bom.

Lampejos do passado que surgiam, por vezes, no cérebro adormecido da pobre idiota…

E ele? Ele… que importa saber?… Tinha sido feita justiça e a sociedade estava satisfeita.

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