1/15/2023

Um filho mais (Conto), de Manuela Porto

 

Um filho mais

Na casa, que o vento atravessa sem cerimônias nem vênias, há um filho mais…

ANTÔNIO DE NAVARRO

Aquilo começara ao entardecer.

Já foi com custo que Maria do Carmo terminou os preparativos do jantar. Encontrava-se, como sempre, sozinha com os pequenos. Entretanto, o marido, mais tarde ou mais cedo, apareceria para comer.

Há meses que Maria do Carmo se sentia desanimada e combalida; de tal maneira fraca que pensara, desta vez, em ir ter a criança a uma maternidade.

Surgiram porém dificuldades. Não tinha com quem deixasse os dois pequenos e precisava de dinheiro para pagar a sua permanência ali. Embora fosse pobríssima, não lhe seria fácil conseguir um atestado com que pudesse prová-lo. O marido estava empregado e não ganhava mal.

Todavia, não foram estas nem outras dificuldades que pudessem surgir o que impediu Maria do Carmo de levar a cabo o seu intento. Ali em casa, também não lhe era fácil arranjar-se, agora que já não existia a avó. O que a impediu foi antes o desânimo, a incapacidade que sentia de ocupar-se fosse lá do que fosse.

Levava a sua vida habitual, por ramerrão, por movimento adquirido e, nos últimos tempos, mesmo isso com grande custo. Era-lhe impossível tratar do que quer que fosse, além da penosa lida do dia-a-dia.

Nunca, até então, passara tão mal. Quando da gravidez da pequena, quase não sentira coisa alguma. Na do pequeno, já fora pior; entretanto, não se podia comparar.

Desta vez, a doença e morte da avó haviam agravado muito as coisas. Nem aquele filho teria nascido nunca, se não fosse a balbúrdia, a aflição, que não deixaram tempo para pensar em mais nada.

Quando levaram de casa o corpo da avó, Maria do Carmo encontrou-se extenuada, grávida, já de muitos meses, e absolutamente só.

O marido andava de um para o outro lado, entrava e saía sem ela quase dar por ele. Há tempos já durava esse mortiço viver. Ele mantinha-se rapaz bem-disposto, dava para a casa o menos que podia, e aproximava-se de Maria do Carmo quando não tinha melhor, ou seria hábito, nem ela sabia. A falar verdade, isso já não a preocupava. Entretanto, sentia-se amachucada, espezinhada, quando ele vinha procurá-la; não sabia porém resistir. Maria do Carmo não seria inteligente mas era sofredora, afetuosa e sensível.

Não estavam casados há muitos anos e tudo quanto até ali se passara fora perfeitamente banal.

Maria do Carmo recebera pouca instrução. Ficara cedo sem pai, e da mãe ninguém falava; desde criança vivia com a avó. Beneficiavam de uma pensãozita qualquer que lhes permitia vegetar. A pobre velha assentara todas as suas esperanças de uma melhoria de situação no casamento da neta. Onde podia a triste assentá-las? Nunca chegara a reparar que os tempos haviam mudado.

Contudo, Maria do Carmo sempre desejara obter um emprego qualquer. Não era exigente; fosse empregada de balcão, datilógrafa, costureira, qualquer coisa lhe serviria desde que a tirasse dali. No entanto não soube nunca procurar; faltava-lhe iniciativa; não tinha preparação.

Aos dezessete anos fora uma rapariguinha alta e bonita. O seu atual marido era, nesse tempo, um rapaz aí de uns vinte anos, que gostava de se dar ares. Iniciaram um namorico de janela, mas não tardou muito que a avó desejasse conhecê-lo e o convidasse a entrar.

Ele andava sempre bem vestido, notavelmente cuidado, gostando de falar de si. No entanto, dava poucas explicações sobre os seus ganhos e ocupações. Não seria esperteza, talvez atabalhoamento, vaidade, otimismo, amor do vago ou da confusão.

Um belo dia, tiveram de casar. Ele não se furtou a isso, e continuou, como até ali, a sua vida, sempre com igual leveza e exterior boa disposição.

A pequena nasceu passado pouco; ele não ganhava bastante, viviam pobremente; depois… depois, decorreu tempo, o desinteresse aumentou; rapidamente, chegaram àquele viver. A vida da Maria do Carmo tornou-se penosa, cada vez mais.

Na tarde em que se começou a sentir indisposta, fora tomada de um desânimo, de um desconsolo infinitos.

Seguiu a sua lida conforme pôde e, com muito esforço, deu o jantar aos dois pequenos e deitou-os.

Em seguida arrastou-se até à cozinha, mas não conseguiu comer. Pensou em estender-se. O marido, quando chegasse, iria chamar qualquer pessoa — a parteira, talvez a própria mãe. Agora já não existia a avó para acudir-lhe, para tratá-la, para acalentá-la na sua solidão.

Anoitecera há muito. A casa estava fria e, lá fora, caía uma chuva miudinha que empapava tudo. Maria do Carmo esperava, esperava e ninguém vinha, enquanto o seu mal-estar crescia sempre.

Deram nove, deram dez. Teve ideia de ir ela própria chamar alguém. Enfiou um casaco, abriu a porta da escada, desceu dois degraus. Não; já não se encontrava em estado de caminhar. Retrocedeu. Fechou a porta e ficou aí encostada muito tempo, sem poder dar um passo, sem coragem para fazer um movimento sequer. De repente sentiu-se tomada de pavor. Ia morrer; ia morrer para ali sem ninguém. A casa estava inteiramente escura e Maria do Carmo ouvia os próprios dentes a bater. Quando pôde caminhar, avançou até ao quarto dos filhos e espreitou. Dormiam tranquilamente. Quase atirou a porta com violência. Não; não era de olhar para os filhos que ela precisava. Naquele momento quase os odiou. O que ela necessitava era de alguém que a ajudasse. Não gostava dos filhos; decididamente não gostava deles. Não queria, não desejava ter mais filhos. Estava farta de sofrimento, de solidão. Não viessem dizer-lhe que as crianças acompanham, são um conforto, um fim na existência, que tornam aprazível o viver. Não é verdade, não é verdade!

Maria do Carmo sente-se extenuada de trabalho, de solidão, de miséria. Sim, de miséria. Tudo aquilo é miséria, miséria a valer. Miséria a sua vida toda. Está farta de lavar fraldas, de perder noites, de amamentar. Sente-se velha, fatigada e tem apenas vinte e poucos anos.

Não suporta já o choro de uma criança; nem as suas exigências. Quase não suporta o seu riso. E agora vai nascer mais uma, e ela está para ali sozinha, às escuras, no corredor lúgubre de uma casa estranha. Não; aquela casa não pode ser a sua. Aquilo é um buraco onde teve a pouca sorte de nascer. A sua casa seria alegre e quente e confortável. Gostou sempre tanto de conforto, de alegria, de calor!

Dirige-se, cambaleando, para o próprio quarto. Aquilo já nem é arrastar-se, menos ainda caminhar; coloca um pé em frente do outro por não poder, e ali fica, no meio do corredor, mesmo defronte do quarto dos filhos, a gemer. Iria acordá-los e é indispensável que não acordem.

E aquele homem que não vinha mais! Como é que Maria do Carmo não se lembrou de que era agora tão frequente não aparecer para jantar? Por que não correu a meter-se em casa da sogra, visto não ter mais ninguém?

Toda a tarde chovera e desde pela manhã se sentira fatigada; nunca gostara porém de incomodar pessoa alguma.

Por que não tinha entrado numa maternidade sem querer saber dos mais? Que se arranjassem como pudessem.

Uma dor mais intensa. Novo pânico. Irá para as escadas e por-se-á a gritar até que lhe acudam, até que a levem para um sítio qualquer. O que não é possível é continuar assim.

Pensa tudo isto, mas sabe que nada disso fará. Entra no quarto e atira consigo para cima da cama.

A dor passou. Sente-se mais sossegada. Não lhe doer já é muito, já é muitíssimo… Fecha os olhos. Ao entrar no aposento pode acender a luz. Agora que não está às escuras não tem medo de fechar os olhos. Adentro das pálpebras cerradas, as imagens sucedem-se claras, vindas nem ela sabe donde, nem compreende porquê… Um dia quente de sol, à beira-mar. Maria do Carmo tem doze anos e foi passar uns dias a casa de uns parentes. Sente-se tão feliz!… O mar e o Sol esvaem-se e Maria do Carmo ouve o próprio coração palpitar descompassado. No entanto, não abre os olhos. Não quer ver onde está. Deseja esquecer a realidade… Por uma rua adiante segue uma rapariga de dezessete anos, animada e ágil. Respondeu a um anúncio. Maria do Carmo respondera a um anúncio sem a avó saber. Respondeu a tantos outros, depois! — Outra imagem se sobrepõe àquela. Está vestida de branco e vai a um baile; ao baile onde o conheceu. Conheceu quem? Ele… ele… um ele que Maria do Carmo não sabe quem seja mas que quisera ter encontrado… O vestido branco, afinal, é o vestido com que casou. Sim, levou realmente um vestido branco e flor de laranjeira, embora a sua filha já estivesse para nascer. Foi uma palermice, foi ridículo? Pois foi. Mas também foi o dia mais feliz da sua vida!… A avó mostrava-se muito contente. De todo o sempre lhe repetira que o dia do casamento é o mais lindo dia que uma rapariga pode ter. Maria do Carmo sentia-se tão bem dentro do seu vestido! Gostava tanto do seu véu e dos botõezinhos de flor de laranjeira entreabertos!… Não; não é o corpo que importa. O corpo é uma caixa onde a gente anda metida sem querer. Maria do Carmo sentia-se tão branca e tão pura como o vestido que a cingia, considerando-se imensamente ditosa por ir vestida dessa cor. E, quando se lembrava de que a sua menina ia nascer em breve, isso não lhe pesava, não lhe causara pena. Pelo contrário, sentia até alegria, orgulho, gratidão para com o destino. Que lhe importavam os outros afinal? Quando a menina nascesse diriam uma coisa qualquer. E gastaram o que tinham e o que não tinham, e convidaram parentes, amigos e indiferentes, e fizeram-se brindes e foi um dia maravilhoso que passou rápido como um sonho…

Maria do Carmo sente que, se se abandona um instante que seja, vai gritar, e ela não quer que ninguém a ouça. Nunca ninguém a ouviu. Ao menos, conseguiu sempre sofrer em silêncio. Não levantou nunca a voz, nem quando os filhos nasceram, nem quando a avó morreu, nem quando deu pelo seu irremediável viver. — Procura levantar-se. Não pode manter-se deitada, não consegue sentar-se, não lhe é possível permanecer de pé. Passa tempo imenso; as dores voltam e não mais se interrompem. Maria do Carmo passeia, passeia e ouve dar horas, muitas horas. Serão onze, será meia-noite? Quanto tempo decorreu? Por onde anda esse homem a quem ela um dia teve a idiota pretensão de confiar-se?… Anda com a outra. Foi certamente com ela que jantou… A outra? Mas existe uma outra na realidade? Ou foi naquele instante que Maria do Carmo a inventou? Não; não foi. Ela sabe que a outra existe. Conhece-a. Já a viu uma vez. É a colega dele no trabalho. Sabe, tem a certeza de que é. Não foi naquele momento que arquitetou um romance. Maria do Carmo está perfeitamente lúcida e não vai gritar… ela nunca gritou!…

Encontra-se a bater com a cabeça contra a barra da cama. Está prostrada no chão. Há quanto tempo? Apoia a testa no braço magro e branco e vê nele marcas de dentes. De quem são aqueles dentes? Não foi ela quem mordeu o próprio braço! Mas se não se encontra ali mais ninguém!… Sente-se gelada, embora o suor lhe corra em bagas pela testa, e tão fraca, tão fraca! Vai morrer sozinha. Tal ideia porém já lhe não causa pavor nem desespero. É bem melhor assim, é melhor morrer antes que veja a luz esse filho que ela ainda não conhece. Para que há de nascer a criança? Maria do Carmo sempre fez pelos filhos quanto pôde. Mas que fazer agora com três crianças tão pequeninas? Já não tem forças, nem coragem, nem energia para tratar de mais ninguém. E se nasce uma rapariga? Para quê pôr no mundo entes só destinados a sofrer, só a sofrer?…

Do marido nada há a esperar. Ela já nem lhe quer mal. Não sabe ser de outra maneira. Estima gozar e não se lembra nunca dos mais. Nunca gostou dela e desde sempre a enganou. Não; não enganou. Ela soube sempre, sempre adivinhou que existiam, para ele, outras mulheres. E isso que importa, afinal? Nem ela quer saber. O que desejava era poder encostar a cabeça em alguém e repousar. O que precisava era que lhe não pedissem esforços porque não tem forças para dar, que não a obrigassem a mais lutas, e lhe não impusessem mais dores. Que a miséria acabasse de vez, que a levassem dali para fora e a não obrigassem a arrastar, por mais tempo, a complicada cadeia que se lhe prendera aos pobres pés, sem ela saber como. Sim, que tudo acabe, que tudo acabe de vez!…

O relógio voltou a badalar.

Horas, horas e mais horas!… Que tudo acabe de vez!…

Sente-se despedaçar. Oh! aquele filho que não desiste de nascer! Ela não quer, ela não pode mais. Ela não gosta dele, ela não gosta dos seus filhos, não pode gostar…

Como se um abismo se cavasse a seus pés, sente-se despenhar na escuridão. Imagens muito rápidas correm agora diante dela sem que lhes compreenda o sentido. Imagens, imagens, fragmentos de imagens… Um berço branco coberto com um véu de noiva… é o seu véu… Sim, é o seu véu de noivado, feito em farrapos, que perpassa como se acenasse um adeus… Dentro do berço está uma criança, ela sabe… É a sua menina… Quis-lhe tanto, tanto, e até já disso se esqueceu!…

Quer levantar-se, quer levantar-se, levantar-se… e permanece estendida no chão…

Alguém se encontra agora junto dela. Entretanto não ouviu meter a chave à porta nem se recorda de ter notado que esse alguém entrara.

Quem quer que é ajoelha no chão e curva-se sobre ela.

Maria do Carmo diz: "É preciso ir chamar a mãe…" Tem contudo a noção de que não moveu os lábios nem chegou a proferir qualquer som.

Tem os olhos abertos ou fechados? Não saberia dizer.

Afigura-se ver o rosto do marido através de uma espessa névoa e a léguas de distância. Encontra-se realmente ali ou num outro mundo diferente, tendo uma mulher bonita e forte a seu lado?

Maria do Carmo ouve murmurar — disso tem a certeza, isso ouviu mesmo, ouviu com nitidez: "Era só o que me faltava, às três da manhã!"

E então, ela que não chorava há meses, há anos, há séculos, ela que, durante a tremenda noite infindável se sentira árida como quem desaprendeu há muito de chorar, percebeu que duas gotas pesadas, lentas, grossas e quentes lhe corriam pelas faces. Eram tão pesadas e tão ásperas que Maria do Carmo teve a impressão de que abriam dois sulcos fundos no seu rosto desfeito.

Escorriam com uma lentidão enorme, essas duas lágrimas. Maria do Carmo, contudo, ainda lhes sentiu nos lábios o inesperado amargor. Depois, teve muito vagamente a noção de que a sua boca se abria e de que alguém gritou, gritou, gritou.

Ouvia gritar sem compreender a significação de tais gritos. Sabia apenas que eram intensos e que a incomodavam. Quem gritaria assim? Quem teria forças para gritar assim?

Quando Maria do Carmo acordou tinha a impressão de que decorrera muito tempo e não sabia onde se encontrava. Parecia-lhe que não estava só e a luz mortiça que banhava o aposento não era a do seu quarto com certeza. Encontrava-se estendida numa cama, um nada dura, mas confortável, no entanto. Abrindo os olhos divisou o teto branco de um quarto que nunca avistara mas que devia ser grande. Não podia ver mais na posição em que se encontrava e não tinha forças, nem curiosidade, nem coragem para desejar saber o que quer que fosse. Tinham-lhe colocado a cabeça muito baixo, diretamente sobre o colchão, segundo lhe pareceu.

Voltou a fechar os olhos e só os abriu novamente quando teve a sensação de que alguém viera postar-se junto da cama.

Ao descerrar as pálpebras encontrou um rosto inteiramente desconhecido, curvado sobre o seu.

Era uma cara de mulher ainda nova, mas fatigada. Não se lhe viam os cabelos, encobertos por uma touca ou por um lenço branco bem apertado.

Maria do Carmo não conseguiu fixar nitidamente esse rosto, embora estivesse muito perto. Não ficou mesmo com a certeza de que não se tratasse apenas de uma visão.

Procurou mover os lábios, mas não articulou som algum. A figura de branco curvou-se mais como se desejasse entender.

Com um esforço enorme, Maria do Carmo recompôs no seu pensamento esta frase: "É preciso ir chamar alguém" — embora sem a certeza de havê-la pronunciado.

A outra respondeu qualquer coisa que Maria do Carmo levou imenso tempo a entender. Foi como se perguntasse: "Chamar alguém, para quê?"

Maria do Carmo não pôde replicar. Nem mesmo saberia responder para quê. Aquilo fora apenas uma frase que tinha a impressão de ser forçoso pronunciar.

Fechou os olhos, extenuada, e recaiu num sono fundo.

Quando recuperou a consciência, era manhã alta e havia sol.

Continuava a ignorar onde se encontrava; agora, porém, recordava-se perfeitamente de que caíra no chão e de que se ouvira gritar.

Deviam tê-la trazido para um hospital e o seu filho nascera sem que pudesse recordar-se onde, nem quando.

Talvez que a tivessem anestesiado, talvez tivesse muito simplesmente a consciência perdida.

Notava agora que, pelo aposento, se ouviam várias vozes. Percebeu mesmo que outras camas se seguiam àquela onde estava estendida.

Voltou a cabeça para a parede e ficou-se imóvel, a contemplar uma mancha de umidade, tentando recordar-se como ali viera dar. Na sua memória existia uma lacuna que não lhe era possível preencher. Como se encontrava ela ali, como viera ali ter?…

Recordava-se agora de tudo até ao momento em que principiara a gritar. Mas depois?

O filho nascera e ela não poderia dizer se viera vivo ou morto, se era rapaz ou rapariga. Não; uma rapariga não. E se fosse um monstro, um monstro horrível?

Maria do Carmo sente a testa cobrir-se-lhe de suor gelado.

E se tivesse nascido morto? Oh! Que sorte, que sorte tamanha!

Não se atrevia a perguntar isso, mesmo que tivesse a quem.

"Que ia ela agora fazer com mais uma criancinha? Com mais uma criancinha?…", ouvia-se repetir.

Não estava ainda suficientemente lúcida para saber claramente porque a atormentava tanto semelhante ideia. Sabia que se tratava de uma coisa terrível, mas não poderia dizer exatamente porquê. Recordou-se, então, de que, durante a noite, alguém se curvara sobre ela — a enfermeira, provavelmente — e de que, apesar de vê-la de olhos abertos, lhe não falara da criança.

Então é que teria morrido. Sim, a criança tinha nascido morta, por certo.

Sentiu-se de repente tomada de uma alegria frenética, de uma alegria singular que doía e amargava cruelmente. Dir-se-ia uma dor intensa, de tal maneira intensa que, por fazê-la esquecer de si própria, se tornasse num inesperado e agudo prazer.

A doente deve ter feito qualquer movimento brusco, porque, da cama ao lado, uma voz exclama:

— Senhora enfermeira, a 27 deve precisar de qualquer coisa.

É uma frase que não tem sentido para Maria do Carmo; no entanto, compreende que se lhe refere.

Percebe que alguém se aproxima e vê, ao abrir os olhos, o mesmo rosto bondoso, fatigado, que lhe aparecera no decorrer da noite. Uma voz que lhe parece muito longínqua e imensamente meiga, murmura:

— Então, como está?

Ao ouvir aquela voz, Maria do Carmo sente-se mais calma e procura sorrir. Consegue mesmo que os lábios se lhe contraiam no tênue esboço de um sorriso triste.

A outra continua:

— Vejo que está melhor.

— Pois estou — replica a enferma muito baixinho.

— Então, pergunte pelo seu filho que é um lindo moço.

Maria do Carmo tem a certeza de que todo o sangue lhe afluiu ao coração e o queixo treme-lhe como se fosse chorar.

A enfermeira fita-a um instante, num esforço de compreender, depois, acrescenta:

— Vou buscá-lo; há de querer vê-lo.

A doente consegue dizer com firmeza, embora com voz débil:

— Não; não quero vê-lo.

"Três criancinhas… três criancinhas… três criancinhas… Que vou fazer com três criancinhas?", ouve Maria do Carmo matraquear.

— Não quer vê-lo? — interroga a enfermeira sem compreender.

Uma voz da cama vizinha comenta:

— O quê, não deseja ver o menino? Oh, estas raparigas de agora! Só pensam em divertir-se, esquecendo todos os deveres!

A enfermeira faz qualquer sinal para que a intrusa se cale e afasta-se resoluta.

"Três crianças pequeninas… três… três… três…"

Vai endoidecer. Vai endoidecer com certeza. Maria do Carmo pretende levar as mãos aos ouvidos para não ouvir mais.

"Três… três… três…", insiste o seu pulso a cavalgar.

A enfermeira regressa, trazendo na mão uma espécie de embrulho branco, que coloca sobre o leito, ao lado da doente.

Esta volta a cabeça para o lado oposto.

Com brandura, dir-se-ia que penalizada, a enfermeira insiste:

— Tem de vê-lo. Tem de vê-lo ao menos; dentro em pouco o pobrezito terá de mamar.

Maria do Carmo desejaria revoltar-se, vêm-lhe em tropel à imaginação muitas coisas que precisaria de explicar. Não tem porém força nem clareza bastantes para poder fazê-lo. Sente que a enfermeira a olha penalizada e fecha os olhos; depois de uma pausa, ouve murmurar com brandura:

— Seja lá o que for que se tenha passado, o inocentinho que culpa pode ter?

A doente sente que vai chorar. Por que a atormentam? Por que se reuniram todos para atormentá-la? Não compreendem quanto lhe custa, quanto sofre e quanto penou até chegar àquilo? Como há de ela olhar para aquela criança? Desejaria falar, explicar, mas não pode, não pode…

A enfermeira aconchega mais o pequenito junto da mãe, insistindo:

— Olhe para ele; olhe só para ele. Se depois o não quiser, levá-lo-ei.

Na cama ao lado ouve-se exclamar:

— Parece incrível! Nem querer ver o filho! Não há coisa mais bonita para uma mulher do que ser mãe!

A enfermeira afasta-se, mas, ao passar, diz para a intrometida:

— Que sabe a senhora da vida dela para poder falar?

— Não sei da vida dela, mas sei da minha. Não há coisa que me dê maior alegria nem ao meu Alberto, do que ter um filho, ora essa!

Maria do Carmo nem as ouve. A seu lado qualquer coisa buliu e escuta um respirar muito brando. Então, quase sem querer, contra vontade, estende uma das mãos e palpa uma bolinha redonda, coberta de penugem fina. É como se o coração se lhe fosse delir dentro do peito.

Aconchega instintivamente o seu rosto a essa penugem macia; lágrimas pesadas rolam-lhe pelas faces, mas sente-se mais calma. O seu grande desespero passou, sem que pudesse dizer porquê.

Abre os olhos muito a medo. A seu lado encontra-se uma criança vermelha e tenra, igual a todas mas que lhe parece lindíssima, completamente diferente das mais. Sente os seus dedos acariciarem a penugem loira e, em seguida, descer até às minúsculas mãozinhas, como para aquecê-las…

***

Os olhos fitos no teto, Maria do Carmo sonha. Quando melhorar e sair dali irá trabalhar. Há de arranjar um emprego que dê o suficiente. Não lhe repetiram tantas vezes que uma pessoa que deseja trabalhar encontra sempre em quê?… Sim, encontra — responde uma vozinha envenenada dentro dela —, encontra com dificuldade um emprego onde lhe pagam trezentos escudos por mês.

Não se deixa porém desanimar. Ganhará trezentos escudos, se não tiver qualquer preparação especial. Mas ela aprenderá tudo, tudo quanto for necessário, contanto que consiga ganhar o suficiente.

"E onde vais buscar dinheiro para tais aprendizagens?", interroga, irônica, a mesma voz.

"Onde ir buscar dinheiro, onde ir buscar dinheiro, onde ir buscar dinheiro?", pergunta Maria do Carmo sem encontrar resposta nem solução.

Não sabe. No entanto, uma coisa é certa, indispensável: precisa absolutamente de conseguir maneira de manter-se mais aos pequenos.

Talvez que de começo um deles pudesse ir para casa da sogra, ou mesmo dois.

Não; nunca a sogra aprovará semelhante resolução, nem estará disposta a ajudá-la. É indispensável, é indispensável que ganhe para si e para os três. Há de, por força, arranjar maneira de ganhar. E então terá uma casa confortável e alegre, poderá educar os seus filhos sem miséria e saberá o que é sentir alegria e viver.

Tem vinte e poucos anos e, até ali, só sofreu.

A avó não tinha razão, não tinha. O casamento… Senhor Deus!… "O dia do casamento é o dia mais lindo que uma rapariga pode ter." E depois, e depois? Do que vinha depois nunca lhe falara a avó nem ninguém. Só lhe tinham dito mentiras. O que ela precisava, o que ela queria, o que ela desejava ardentemente era trabalhar. Não conhecer outras misérias que não fossem aquelas que preparasse por suas próprias mãos… A avó era uma criança, afinal. A avó com setenta anos nada sabia da vida. A sua filha, que tinha sete, sabia muito mais da realidade das coisas do que ela e do que a avó tinham sabido alguma vez. Que casa de crianças a sua! Dentro dela existia apenas um único adulto, mas esse não sabia ajudar ninguém. Era duro, frívolo, insensível, como só os adultos conseguem ser…

Maria do Carmo pressente que, se deixa que o pensamento enverede por tal caminho, se vai afastar daquele sonho onde procura encontrar um nada de coragem, e regressa a ele: "Quando melhorar e sair dali há de arranjar um emprego que lhe dê o suficiente…"

Sim; quando sair dali. Mas sairá ela dali alguma vez?

***

É a hora da visita. Encostados à parede a sogra e os dois pequenos.

Do lado oposto o marido conversa com a doente da cama vizinha. A enfermeira dá mostras de escutar.

Maria do Carmo olha para os filhos, atormentada.

A sogra vai falando brandamente, mas a doente não compreende inteiramente o que ela diz. Ouve uma ou outra frase: "Estou morta por entregar-tos… Ninguém consegue alegrar esta criança… O pequeno é muito traquinas… Tenho estado a fazer-lhes uns bibes… Esqueceste-te de que estavam a crescer…"

A enferma não segue o fio da conversa. Não pode, nem quer. Para chamá-la à realidade bastam os olhos da filha, que dá a mão ao irmãozito com uma seriedade de mulher que nunca tivesse conhecido infância.

O marido, ao entrar, beijou-a carinhosamente na testa — diante de estranhos é sempre assim — e agora, encantado com o som da própria voz, fala do bebé.

A doente da cama vizinha comenta:

— Muito gosto eu de ouvir um homem falar assim! Há mulheres que não sabem o bem que têm.

Maria do Carmo olha um instante para o marido, ouvindo-o palrar, depois afasta a vista como se a imagem dele lhe embaciasse por completo a visão do mundo.

A sogra aproximou-se e diz-lhe em segredo:

— Sabes, minha filha? Ele levou os pequenos ao cinema e tem vindo vê-los algumas vezes. Tenho esperança em que, de futuro, tudo se vai arranjar.

A doente fecha os olhos e não responde.

Para quê responder? Que pode ela dizer àquela mãe? Para quê fazê-la duvidar do filho, se o que ela pretende é exatamente acreditar?…

"Levou-os ao cinema, de futuro tudo se há de arranjar." Tudo quê? O seu casamento? Esse já se desfez há muito, se é que algum dia existiu. "Tudo se há de arranjar…" O quê, a vida deles? Mas entre eles nada existe de comum. Sim; existem filhos, não se sabe porquê… De futuro tudo correrá como sempre correu. Ele manter-se-á a pessoa animada e frívola que procura viver a seu talante, ela continuará sofrendo miséria — sim, miséria — e a sentir-se desgraçada, muito desgraçada. Continuará a resolver penosamente o problema diário que são os almoços e os jantares, continuará a varrer, a esfregar, a lavar fraldas, a fazer todo o serviço de uma criada que não recebe soldada, e a ter filhos, muitos filhos. E nem sequer cairá para o lado sem poder mais; as pessoas aguentam muitíssimo mais do que imaginam que seriam capazes.

A filha chegou-se para ela.

Maria do Carmo não suporta a vista da filha. É de mais. Como é que um perfil de criança consegue ser de tal maneira pungente?…

A enfermeira, que saiu, acaba de regressar com o bebé.

A avó aproxima-se encantada, o pai graceja, a doente da cama pegada comenta:

— Então não é um amor, não é mesmo um amor?

A enfermeira olha contristada para a doente; esta pousou uma das suas mãos emagrecidas sobre a cabecinha da filha e sente-se só, abandonada, perdida num mundo enorme e indiferente onde para ela não haverá nunca lugar…

***

Desde a hora da visita Maria do Carmo não pôde mais sossegar.

A febre subiu ao entardecer, e a doente revolve-se na cama com a mesma angústia com que revolve dentro da cabeça pensamentos e problemas sem solução.

A sua amiga enfermeira não está de serviço. Foi substituída por uma outra que Maria do Carmo não conhece.

Inquieta, a enferma já tentou mesmo sentar-se.

A vizinha diz-lhe várias coisas que ela não escuta e acaba por chamar a nova enfermeira que fala com aspereza a Maria do Carmo, lhe ordena que se mantenha tranquila, acabando por lhe emborcar um remédio para a acalmar.

Maria do Carmo adormeceu e desperta agora, a meio da noite, ouvindo qualquer coisa gotejar.

A começo, não compreende o que lhe acontece. Sabe apenas que se sente muitíssimo fraca, cada vez mais fraca. Depois nota que tem o leito encharcado e compreende que as gotas que caem no sobrado são de sangue seu que empapou e atravessou o colchão. Tem por um instante a noção nítida de que, se não chama alguém, se vai esvair em sangue.

Terá ainda força bastante para chamar, para pedir auxílio?

Talvez que sim, talvez que não.

Nem sequer experimenta. Acha preferível não se mover, retomar o seu sonho e esperar.

Sente um grande sossego, uma tranquilidade sem nome.

Depois, se esperar um pouco, não precisará mais de cogitar, não precisará mais de procurar a solução de coisas que a não têm, não se verá forçada a enganar-se a si mesma a fim de obter um pouco de coragem que lhe permita olhar para aquilo que a espera. Como num sonho vago e distante, como o eco longínquo de uma voz que há muito se calou, ouve-se ainda murmurar em pensamentos: "Quando daqui sair irei trabalhar. Arranjarei um emprego…"

Basta esperar, basta esperar e o sossego, a felicidade, a paz, nunca conseguidos, virão ao seu encontro. Basta esperar.

A doente fica-se queda e os seus lábios entreabrem-se num sorriso esperançoso e muito suave. Finalmente é-lhe permitido ter esperança em qualquer coisa que vai chegar. Finalmente vai encontrar um cantinho, onde lhe será possível repousar sem tormentos.

E sobre ela a relva crescerá, fresca e tenra, quando vierem as primeiras chuvas e, na Primavera, desabrocharão flores silvestres e perfumadas sobre o seu corpo. Nessa altura, a brisa vinda do rio, ao varrer a encosta, há de trazer-lhe aquele aroma bravio, ao mesmo tempo suave, gostoso e intenso, a água pura, a giesta e a jasmim que a vida pode e deve ter, mas que Maria do Carmo nunca, nunca, lhe conheceu.

Basta esperar, basta esperar tranquilamente, como uma criancinha confiante que sabe seguramente que, dentro em breve, a sua mãe vai chegar…

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