Um filho mais
Na
casa, que o vento atravessa sem cerimônias nem vênias, há um filho mais…
ANTÔNIO DE NAVARRO
Aquilo começara ao
entardecer.
Já foi com custo
que Maria do Carmo terminou os preparativos do jantar. Encontrava-se, como
sempre, sozinha com os pequenos. Entretanto, o marido, mais tarde ou mais cedo,
apareceria para comer.
Há meses que Maria
do Carmo se sentia desanimada e combalida; de tal maneira fraca que pensara,
desta vez, em ir ter a criança a uma maternidade.
Surgiram porém
dificuldades. Não tinha com quem deixasse os dois pequenos e precisava de
dinheiro para pagar a sua permanência ali. Embora fosse pobríssima, não lhe
seria fácil conseguir um atestado com que pudesse prová-lo. O marido estava
empregado e não ganhava mal.
Todavia, não foram
estas nem outras dificuldades que pudessem surgir o que impediu Maria do Carmo
de levar a cabo o seu intento. Ali em casa, também não lhe era fácil
arranjar-se, agora que já não existia a avó. O que a impediu foi antes o
desânimo, a incapacidade que sentia de ocupar-se fosse lá do que fosse.
Levava a sua vida
habitual, por ramerrão, por movimento adquirido e, nos últimos tempos, mesmo
isso com grande custo. Era-lhe impossível tratar do que quer que fosse, além da
penosa lida do dia-a-dia.
Nunca, até então,
passara tão mal. Quando da gravidez da pequena, quase não sentira coisa alguma.
Na do pequeno, já fora pior; entretanto, não se podia comparar.
Desta vez, a
doença e morte da avó haviam agravado muito as coisas. Nem aquele filho teria
nascido nunca, se não fosse a balbúrdia, a aflição, que não deixaram tempo para
pensar em mais nada.
Quando levaram de casa
o corpo da avó, Maria do Carmo encontrou-se extenuada, grávida, já de muitos
meses, e absolutamente só.
O marido andava de
um para o outro lado, entrava e saía sem ela quase dar por ele. Há tempos já
durava esse mortiço viver. Ele mantinha-se rapaz bem-disposto, dava para a casa
o menos que podia, e aproximava-se de Maria do Carmo quando não tinha melhor,
ou seria hábito, nem ela sabia. A falar verdade, isso já não a preocupava.
Entretanto, sentia-se amachucada, espezinhada, quando ele vinha procurá-la; não
sabia porém resistir. Maria do Carmo não seria inteligente mas era sofredora,
afetuosa e sensível.
Não estavam
casados há muitos anos e tudo quanto até ali se passara fora perfeitamente
banal.
Maria do Carmo
recebera pouca instrução. Ficara cedo sem pai, e da mãe ninguém falava; desde
criança vivia com a avó. Beneficiavam de uma pensãozita qualquer que lhes
permitia vegetar. A pobre velha assentara todas as suas esperanças de uma
melhoria de situação no casamento da neta. Onde podia a triste assentá-las?
Nunca chegara a reparar que os tempos haviam mudado.
Contudo, Maria do
Carmo sempre desejara obter um emprego qualquer. Não era exigente; fosse
empregada de balcão, datilógrafa, costureira, qualquer coisa lhe serviria desde
que a tirasse dali. No entanto não soube nunca procurar; faltava-lhe
iniciativa; não tinha preparação.
Aos dezessete anos
fora uma rapariguinha alta e bonita. O seu atual marido era, nesse tempo, um
rapaz aí de uns vinte anos, que gostava de se dar ares. Iniciaram um namorico
de janela, mas não tardou muito que a avó desejasse conhecê-lo e o convidasse a
entrar.
Ele andava sempre
bem vestido, notavelmente cuidado, gostando de falar de si. No entanto, dava
poucas explicações sobre os seus ganhos e ocupações. Não seria esperteza, talvez
atabalhoamento, vaidade, otimismo, amor do vago ou da confusão.
Um belo dia,
tiveram de casar. Ele não se furtou a isso, e continuou, como até ali, a sua
vida, sempre com igual leveza e exterior boa disposição.
A pequena nasceu
passado pouco; ele não ganhava bastante, viviam pobremente; depois… depois,
decorreu tempo, o desinteresse aumentou; rapidamente, chegaram àquele viver. A
vida da Maria do Carmo tornou-se penosa, cada vez mais.
Na tarde em que se
começou a sentir indisposta, fora tomada de um desânimo, de um desconsolo
infinitos.
Seguiu a sua lida
conforme pôde e, com muito esforço, deu o jantar aos dois pequenos e deitou-os.
Em seguida
arrastou-se até à cozinha, mas não conseguiu comer. Pensou em estender-se. O
marido, quando chegasse, iria chamar qualquer pessoa — a parteira, talvez a
própria mãe. Agora já não existia a avó para acudir-lhe, para tratá-la, para
acalentá-la na sua solidão.
Anoitecera há
muito. A casa estava fria e, lá fora, caía uma chuva miudinha que empapava
tudo. Maria do Carmo esperava, esperava e ninguém vinha, enquanto o seu
mal-estar crescia sempre.
Deram nove, deram
dez. Teve ideia de ir ela própria chamar alguém. Enfiou um casaco, abriu a
porta da escada, desceu dois degraus. Não; já não se encontrava em estado de
caminhar. Retrocedeu. Fechou a porta e ficou aí encostada muito tempo, sem
poder dar um passo, sem coragem para fazer um movimento sequer. De repente
sentiu-se tomada de pavor. Ia morrer; ia morrer para ali sem ninguém. A casa
estava inteiramente escura e Maria do Carmo ouvia os próprios dentes a bater.
Quando pôde caminhar, avançou até ao quarto dos filhos e espreitou. Dormiam
tranquilamente. Quase atirou a porta com violência. Não; não era de olhar para
os filhos que ela precisava. Naquele momento quase os odiou. O que ela
necessitava era de alguém que a ajudasse. Não gostava dos filhos; decididamente
não gostava deles. Não queria, não desejava ter mais filhos. Estava farta de
sofrimento, de solidão. Não viessem dizer-lhe que as crianças acompanham, são
um conforto, um fim na existência, que tornam aprazível o viver. Não é verdade,
não é verdade!
Maria do Carmo
sente-se extenuada de trabalho, de solidão, de miséria. Sim, de miséria. Tudo
aquilo é miséria, miséria a valer. Miséria a sua vida toda. Está farta de lavar
fraldas, de perder noites, de amamentar. Sente-se velha, fatigada e tem apenas
vinte e poucos anos.
Não suporta já o
choro de uma criança; nem as suas exigências. Quase não suporta o seu riso. E
agora vai nascer mais uma, e ela está para ali sozinha, às escuras, no corredor
lúgubre de uma casa estranha. Não; aquela casa não pode ser a sua. Aquilo é um
buraco onde teve a pouca sorte de nascer. A sua casa seria alegre e quente e
confortável. Gostou sempre tanto de conforto, de alegria, de calor!
Dirige-se, cambaleando,
para o próprio quarto. Aquilo já nem é arrastar-se, menos ainda caminhar;
coloca um pé em frente do outro por não poder, e ali fica, no meio do corredor,
mesmo defronte do quarto dos filhos, a gemer. Iria acordá-los e é indispensável
que não acordem.
E aquele homem que
não vinha mais! Como é que Maria do Carmo não se lembrou de que era agora tão
frequente não aparecer para jantar? Por que não correu a meter-se em casa da
sogra, visto não ter mais ninguém?
Toda a tarde
chovera e desde pela manhã se sentira fatigada; nunca gostara porém de
incomodar pessoa alguma.
Por que não tinha
entrado numa maternidade sem querer saber dos mais? Que se arranjassem como
pudessem.
Uma dor mais
intensa. Novo pânico. Irá para as escadas e por-se-á a gritar até que lhe
acudam, até que a levem para um sítio qualquer. O que não é possível é
continuar assim.
Pensa tudo isto,
mas sabe que nada disso fará. Entra no quarto e atira consigo para cima da
cama.
A dor passou.
Sente-se mais sossegada. Não lhe doer já é muito, já é muitíssimo… Fecha os
olhos. Ao entrar no aposento pode acender a luz. Agora que não está às escuras
não tem medo de fechar os olhos. Adentro das pálpebras cerradas, as imagens
sucedem-se claras, vindas nem ela sabe donde, nem compreende porquê… Um dia quente
de sol, à beira-mar. Maria do Carmo tem doze anos e foi passar uns dias a casa
de uns parentes. Sente-se tão feliz!… O mar e o Sol esvaem-se e Maria do Carmo
ouve o próprio coração palpitar descompassado. No entanto, não abre os olhos.
Não quer ver onde está. Deseja esquecer a realidade… Por uma rua adiante segue
uma rapariga de dezessete anos, animada e ágil. Respondeu a um anúncio. Maria
do Carmo respondera a um anúncio sem a avó saber. Respondeu a tantos outros,
depois! — Outra imagem se sobrepõe àquela. Está vestida de branco e vai a um
baile; ao baile onde o conheceu. Conheceu quem? Ele… ele… um ele que Maria do
Carmo não sabe quem seja mas que quisera ter encontrado… O vestido branco,
afinal, é o vestido com que casou. Sim, levou realmente um vestido branco e
flor de laranjeira, embora a sua filha já estivesse para nascer. Foi uma
palermice, foi ridículo? Pois foi. Mas também foi o dia mais feliz da sua
vida!… A avó mostrava-se muito contente. De todo o sempre lhe repetira que o
dia do casamento é o mais lindo dia que uma rapariga pode ter. Maria do Carmo
sentia-se tão bem dentro do seu vestido! Gostava tanto do seu véu e dos
botõezinhos de flor de laranjeira entreabertos!… Não; não é o corpo que
importa. O corpo é uma caixa onde a gente anda metida sem querer. Maria do
Carmo sentia-se tão branca e tão pura como o vestido que a cingia,
considerando-se imensamente ditosa por ir vestida dessa cor. E, quando se
lembrava de que a sua menina ia nascer em breve, isso não lhe pesava, não lhe
causara pena. Pelo contrário, sentia até alegria, orgulho, gratidão para com o
destino. Que lhe importavam os outros afinal? Quando a menina nascesse diriam
uma coisa qualquer. E gastaram o que tinham e o que não tinham, e convidaram
parentes, amigos e indiferentes, e fizeram-se brindes e foi um dia maravilhoso
que passou rápido como um sonho…
Maria do Carmo
sente que, se se abandona um instante que seja, vai gritar, e ela não quer que
ninguém a ouça. Nunca ninguém a ouviu. Ao menos, conseguiu sempre sofrer em
silêncio. Não levantou nunca a voz, nem quando os filhos nasceram, nem quando a
avó morreu, nem quando deu pelo seu irremediável viver. — Procura levantar-se.
Não pode manter-se deitada, não consegue sentar-se, não lhe é possível
permanecer de pé. Passa tempo imenso; as dores voltam e não mais se
interrompem. Maria do Carmo passeia, passeia e ouve dar horas, muitas horas.
Serão onze, será meia-noite? Quanto tempo decorreu? Por onde anda esse homem a
quem ela um dia teve a idiota pretensão de confiar-se?… Anda com a outra. Foi
certamente com ela que jantou… A outra? Mas existe uma outra na realidade? Ou
foi naquele instante que Maria do Carmo a inventou? Não; não foi. Ela sabe que
a outra existe. Conhece-a. Já a viu uma vez. É a colega dele no trabalho. Sabe,
tem a certeza de que é. Não foi naquele momento que arquitetou um romance.
Maria do Carmo está perfeitamente lúcida e não vai gritar… ela nunca gritou!…
Encontra-se a
bater com a cabeça contra a barra da cama. Está prostrada no chão. Há quanto
tempo? Apoia a testa no braço magro e branco e vê nele marcas de dentes. De
quem são aqueles dentes? Não foi ela quem mordeu o próprio braço! Mas se não se
encontra ali mais ninguém!… Sente-se gelada, embora o suor lhe corra em bagas
pela testa, e tão fraca, tão fraca! Vai morrer sozinha. Tal ideia porém já lhe
não causa pavor nem desespero. É bem melhor assim, é melhor morrer antes que
veja a luz esse filho que ela ainda não conhece. Para que há de nascer a
criança? Maria do Carmo sempre fez pelos filhos quanto pôde. Mas que fazer
agora com três crianças tão pequeninas? Já não tem forças, nem coragem, nem
energia para tratar de mais ninguém. E se nasce uma rapariga? Para quê pôr no
mundo entes só destinados a sofrer, só a sofrer?…
Do marido nada há
a esperar. Ela já nem lhe quer mal. Não sabe ser de outra maneira. Estima gozar
e não se lembra nunca dos mais. Nunca gostou dela e desde sempre a enganou.
Não; não enganou. Ela soube sempre, sempre adivinhou que existiam, para ele,
outras mulheres. E isso que importa, afinal? Nem ela quer saber. O que desejava
era poder encostar a cabeça em alguém e repousar. O que precisava era que lhe
não pedissem esforços porque não tem forças para dar, que não a obrigassem a
mais lutas, e lhe não impusessem mais dores. Que a miséria acabasse de vez, que
a levassem dali para fora e a não obrigassem a arrastar, por mais tempo, a
complicada cadeia que se lhe prendera aos pobres pés, sem ela saber como. Sim,
que tudo acabe, que tudo acabe de vez!…
O relógio voltou a
badalar.
Horas, horas e
mais horas!… Que tudo acabe de vez!…
Sente-se
despedaçar. Oh! aquele filho que não desiste de nascer! Ela não quer, ela não
pode mais. Ela não gosta dele, ela não gosta dos seus filhos, não pode gostar…
Como se um abismo
se cavasse a seus pés, sente-se despenhar na escuridão. Imagens muito rápidas
correm agora diante dela sem que lhes compreenda o sentido. Imagens, imagens,
fragmentos de imagens… Um berço branco coberto com um véu de noiva… é o seu
véu… Sim, é o seu véu de noivado, feito em farrapos, que perpassa como se
acenasse um adeus… Dentro do berço está uma criança, ela sabe… É a sua menina…
Quis-lhe tanto, tanto, e até já disso se esqueceu!…
Quer levantar-se,
quer levantar-se, levantar-se… e permanece estendida no chão…
Alguém se encontra
agora junto dela. Entretanto não ouviu meter a chave à porta nem se recorda de
ter notado que esse alguém entrara.
Quem quer que é
ajoelha no chão e curva-se sobre ela.
Maria do Carmo
diz: "É preciso ir chamar a mãe…" Tem contudo a noção de que não
moveu os lábios nem chegou a proferir qualquer som.
Tem os olhos
abertos ou fechados? Não saberia dizer.
Afigura-se ver o
rosto do marido através de uma espessa névoa e a léguas de distância.
Encontra-se realmente ali ou num outro mundo diferente, tendo uma mulher bonita
e forte a seu lado?
Maria do Carmo
ouve murmurar — disso tem a certeza, isso ouviu mesmo, ouviu com nitidez: "Era
só o que me faltava, às três da manhã!"
E então, ela que
não chorava há meses, há anos, há séculos, ela que, durante a tremenda noite
infindável se sentira árida como quem desaprendeu há muito de chorar, percebeu
que duas gotas pesadas, lentas, grossas e quentes lhe corriam pelas faces. Eram
tão pesadas e tão ásperas que Maria do Carmo teve a impressão de que abriam
dois sulcos fundos no seu rosto desfeito.
Escorriam com uma
lentidão enorme, essas duas lágrimas. Maria do Carmo, contudo, ainda lhes
sentiu nos lábios o inesperado amargor. Depois, teve muito vagamente a noção de
que a sua boca se abria e de que alguém gritou, gritou, gritou.
Ouvia gritar sem
compreender a significação de tais gritos. Sabia apenas que eram intensos e que
a incomodavam. Quem gritaria assim? Quem teria forças para gritar assim?
Quando Maria do
Carmo acordou tinha a impressão de que decorrera muito tempo e não sabia onde
se encontrava. Parecia-lhe que não estava só e a luz mortiça que banhava o
aposento não era a do seu quarto com certeza. Encontrava-se estendida numa
cama, um nada dura, mas confortável, no entanto. Abrindo os olhos divisou o teto
branco de um quarto que nunca avistara mas que devia ser grande. Não podia ver
mais na posição em que se encontrava e não tinha forças, nem curiosidade, nem
coragem para desejar saber o que quer que fosse. Tinham-lhe colocado a cabeça
muito baixo, diretamente sobre o colchão, segundo lhe pareceu.
Voltou a fechar os
olhos e só os abriu novamente quando teve a sensação de que alguém viera
postar-se junto da cama.
Ao descerrar as
pálpebras encontrou um rosto inteiramente desconhecido, curvado sobre o seu.
Era uma cara de
mulher ainda nova, mas fatigada. Não se lhe viam os cabelos, encobertos por uma
touca ou por um lenço branco bem apertado.
Maria do Carmo não
conseguiu fixar nitidamente esse rosto, embora estivesse muito perto. Não ficou
mesmo com a certeza de que não se tratasse apenas de uma visão.
Procurou mover os
lábios, mas não articulou som algum. A figura de branco curvou-se mais como se
desejasse entender.
Com um esforço
enorme, Maria do Carmo recompôs no seu pensamento esta frase: "É preciso
ir chamar alguém" — embora sem a certeza de havê-la pronunciado.
A outra respondeu
qualquer coisa que Maria do Carmo levou imenso tempo a entender. Foi como se perguntasse:
"Chamar alguém, para quê?"
Maria do Carmo não
pôde replicar. Nem mesmo saberia responder para quê. Aquilo fora apenas uma
frase que tinha a impressão de ser forçoso pronunciar.
Fechou os olhos,
extenuada, e recaiu num sono fundo.
Quando recuperou a
consciência, era manhã alta e havia sol.
Continuava a
ignorar onde se encontrava; agora, porém, recordava-se perfeitamente de que
caíra no chão e de que se ouvira gritar.
Deviam tê-la
trazido para um hospital e o seu filho nascera sem que pudesse recordar-se
onde, nem quando.
Talvez que a
tivessem anestesiado, talvez tivesse muito simplesmente a consciência perdida.
Notava agora que,
pelo aposento, se ouviam várias vozes. Percebeu mesmo que outras camas se
seguiam àquela onde estava estendida.
Voltou a cabeça
para a parede e ficou-se imóvel, a contemplar uma mancha de umidade, tentando
recordar-se como ali viera dar. Na sua memória existia uma lacuna que não lhe
era possível preencher. Como se encontrava ela ali, como viera ali ter?…
Recordava-se agora
de tudo até ao momento em que principiara a gritar. Mas depois?
O filho nascera e
ela não poderia dizer se viera vivo ou morto, se era rapaz ou rapariga. Não;
uma rapariga não. E se fosse um monstro, um monstro horrível?
Maria do Carmo
sente a testa cobrir-se-lhe de suor gelado.
E se tivesse
nascido morto? Oh! Que sorte, que sorte tamanha!
Não se atrevia a perguntar
isso, mesmo que tivesse a quem.
"Que ia ela
agora fazer com mais uma criancinha? Com mais uma criancinha?…", ouvia-se
repetir.
Não estava ainda
suficientemente lúcida para saber claramente porque a atormentava tanto
semelhante ideia. Sabia que se tratava de uma coisa terrível, mas não poderia
dizer exatamente porquê. Recordou-se, então, de que, durante a noite, alguém se
curvara sobre ela — a enfermeira, provavelmente — e de que, apesar de vê-la de
olhos abertos, lhe não falara da criança.
Então é que teria
morrido. Sim, a criança tinha nascido morta, por certo.
Sentiu-se de
repente tomada de uma alegria frenética, de uma alegria singular que doía e
amargava cruelmente. Dir-se-ia uma dor intensa, de tal maneira intensa que, por
fazê-la esquecer de si própria, se tornasse num inesperado e agudo prazer.
A doente deve ter
feito qualquer movimento brusco, porque, da cama ao lado, uma voz exclama:
— Senhora
enfermeira, a 27 deve precisar de qualquer coisa.
É uma frase que
não tem sentido para Maria do Carmo; no entanto, compreende que se lhe refere.
Percebe que alguém
se aproxima e vê, ao abrir os olhos, o mesmo rosto bondoso, fatigado, que lhe
aparecera no decorrer da noite. Uma voz que lhe parece muito longínqua e
imensamente meiga, murmura:
— Então, como
está?
Ao ouvir aquela
voz, Maria do Carmo sente-se mais calma e procura sorrir. Consegue mesmo que os
lábios se lhe contraiam no tênue esboço de um sorriso triste.
A outra continua:
— Vejo que está
melhor.
— Pois estou —
replica a enferma muito baixinho.
— Então, pergunte
pelo seu filho que é um lindo moço.
Maria do Carmo tem
a certeza de que todo o sangue lhe afluiu ao coração e o queixo treme-lhe como
se fosse chorar.
A enfermeira
fita-a um instante, num esforço de compreender, depois, acrescenta:
— Vou buscá-lo; há
de querer vê-lo.
A doente consegue
dizer com firmeza, embora com voz débil:
— Não; não quero
vê-lo.
"Três
criancinhas… três criancinhas… três criancinhas… Que vou fazer com três
criancinhas?", ouve Maria do Carmo matraquear.
— Não quer vê-lo?
— interroga a enfermeira sem compreender.
Uma voz da cama
vizinha comenta:
— O quê, não
deseja ver o menino? Oh, estas raparigas de agora! Só pensam em divertir-se,
esquecendo todos os deveres!
A enfermeira faz
qualquer sinal para que a intrusa se cale e afasta-se resoluta.
"Três
crianças pequeninas… três… três… três…"
Vai endoidecer.
Vai endoidecer com certeza. Maria do Carmo pretende levar as mãos aos ouvidos
para não ouvir mais.
"Três… três…
três…", insiste o seu pulso a cavalgar.
A enfermeira
regressa, trazendo na mão uma espécie de embrulho branco, que coloca sobre o
leito, ao lado da doente.
Esta volta a
cabeça para o lado oposto.
Com brandura,
dir-se-ia que penalizada, a enfermeira insiste:
— Tem de vê-lo.
Tem de vê-lo ao menos; dentro em pouco o pobrezito terá de mamar.
Maria do Carmo
desejaria revoltar-se, vêm-lhe em tropel à imaginação muitas coisas que
precisaria de explicar. Não tem porém força nem clareza bastantes para poder
fazê-lo. Sente que a enfermeira a olha penalizada e fecha os olhos; depois de
uma pausa, ouve murmurar com brandura:
— Seja lá o que
for que se tenha passado, o inocentinho que culpa pode ter?
A doente sente que
vai chorar. Por que a atormentam? Por que se reuniram todos para atormentá-la?
Não compreendem quanto lhe custa, quanto sofre e quanto penou até chegar
àquilo? Como há de ela olhar para aquela criança? Desejaria falar, explicar,
mas não pode, não pode…
A enfermeira
aconchega mais o pequenito junto da mãe, insistindo:
— Olhe para ele;
olhe só para ele. Se depois o não quiser, levá-lo-ei.
Na cama ao lado
ouve-se exclamar:
— Parece incrível!
Nem querer ver o filho! Não há coisa mais bonita para uma mulher do que ser
mãe!
A enfermeira
afasta-se, mas, ao passar, diz para a intrometida:
— Que sabe a
senhora da vida dela para poder falar?
— Não sei da vida
dela, mas sei da minha. Não há coisa que me dê maior alegria nem ao meu
Alberto, do que ter um filho, ora essa!
Maria do Carmo nem
as ouve. A seu lado qualquer coisa buliu e escuta um respirar muito brando.
Então, quase sem querer, contra vontade, estende uma das mãos e palpa uma
bolinha redonda, coberta de penugem fina. É como se o coração se lhe fosse
delir dentro do peito.
Aconchega
instintivamente o seu rosto a essa penugem macia; lágrimas pesadas rolam-lhe
pelas faces, mas sente-se mais calma. O seu grande desespero passou, sem que
pudesse dizer porquê.
Abre os olhos
muito a medo. A seu lado encontra-se uma criança vermelha e tenra, igual a
todas mas que lhe parece lindíssima, completamente diferente das mais. Sente os
seus dedos acariciarem a penugem loira e, em seguida, descer até às minúsculas
mãozinhas, como para aquecê-las…
***
Os olhos fitos no
teto, Maria do Carmo sonha. Quando melhorar e sair dali irá trabalhar. Há de
arranjar um emprego que dê o suficiente. Não lhe repetiram tantas vezes que uma
pessoa que deseja trabalhar encontra sempre em quê?… Sim, encontra — responde
uma vozinha envenenada dentro dela —, encontra com dificuldade um emprego onde
lhe pagam trezentos escudos por mês.
Não se deixa porém
desanimar. Ganhará trezentos escudos, se não tiver qualquer preparação
especial. Mas ela aprenderá tudo, tudo quanto for necessário, contanto que
consiga ganhar o suficiente.
"E onde vais
buscar dinheiro para tais aprendizagens?", interroga, irônica, a mesma
voz.
"Onde ir
buscar dinheiro, onde ir buscar dinheiro, onde ir buscar dinheiro?", pergunta
Maria do Carmo sem encontrar resposta nem solução.
Não sabe. No
entanto, uma coisa é certa, indispensável: precisa absolutamente de conseguir
maneira de manter-se mais aos pequenos.
Talvez que de
começo um deles pudesse ir para casa da sogra, ou mesmo dois.
Não; nunca a sogra
aprovará semelhante resolução, nem estará disposta a ajudá-la. É indispensável,
é indispensável que ganhe para si e para os três. Há de, por força, arranjar
maneira de ganhar. E então terá uma casa confortável e alegre, poderá educar os
seus filhos sem miséria e saberá o que é sentir alegria e viver.
Tem vinte e poucos
anos e, até ali, só sofreu.
A avó não tinha
razão, não tinha. O casamento… Senhor Deus!… "O dia do casamento é o dia
mais lindo que uma rapariga pode ter." E depois, e depois? Do que vinha
depois nunca lhe falara a avó nem ninguém. Só lhe tinham dito mentiras. O que
ela precisava, o que ela queria, o que ela desejava ardentemente era trabalhar.
Não conhecer outras misérias que não fossem aquelas que preparasse por suas
próprias mãos… A avó era uma criança, afinal. A avó com setenta anos nada sabia
da vida. A sua filha, que tinha sete, sabia muito mais da realidade das coisas
do que ela e do que a avó tinham sabido alguma vez. Que casa de crianças a sua!
Dentro dela existia apenas um único adulto, mas esse não sabia ajudar ninguém.
Era duro, frívolo, insensível, como só os adultos conseguem ser…
Maria do Carmo
pressente que, se deixa que o pensamento enverede por tal caminho, se vai
afastar daquele sonho onde procura encontrar um nada de coragem, e regressa a
ele: "Quando melhorar e sair dali há de arranjar um emprego que lhe dê o
suficiente…"
Sim; quando sair
dali. Mas sairá ela dali alguma vez?
***
É a hora da
visita. Encostados à parede a sogra e os dois pequenos.
Do lado oposto o
marido conversa com a doente da cama vizinha. A enfermeira dá mostras de
escutar.
Maria do Carmo
olha para os filhos, atormentada.
A sogra vai
falando brandamente, mas a doente não compreende inteiramente o que ela diz.
Ouve uma ou outra frase: "Estou morta por entregar-tos… Ninguém consegue
alegrar esta criança… O pequeno é muito traquinas… Tenho estado a fazer-lhes
uns bibes… Esqueceste-te de que estavam a crescer…"
A enferma não
segue o fio da conversa. Não pode, nem quer. Para chamá-la à realidade bastam
os olhos da filha, que dá a mão ao irmãozito com uma seriedade de mulher que
nunca tivesse conhecido infância.
O marido, ao
entrar, beijou-a carinhosamente na testa — diante de estranhos é sempre assim —
e agora, encantado com o som da própria voz, fala do bebé.
A doente da cama
vizinha comenta:
— Muito gosto eu
de ouvir um homem falar assim! Há mulheres que não sabem o bem que têm.
Maria do Carmo
olha um instante para o marido, ouvindo-o palrar, depois afasta a vista como se
a imagem dele lhe embaciasse por completo a visão do mundo.
A sogra
aproximou-se e diz-lhe em segredo:
— Sabes, minha
filha? Ele levou os pequenos ao cinema e tem vindo vê-los algumas vezes. Tenho
esperança em que, de futuro, tudo se vai arranjar.
A doente fecha os
olhos e não responde.
Para quê
responder? Que pode ela dizer àquela mãe? Para quê fazê-la duvidar do filho, se
o que ela pretende é exatamente acreditar?…
"Levou-os ao
cinema, de futuro tudo se há de arranjar." Tudo quê? O seu casamento? Esse
já se desfez há muito, se é que algum dia existiu. "Tudo se há de
arranjar…" O quê, a vida deles? Mas entre eles nada existe de comum. Sim;
existem filhos, não se sabe porquê… De futuro tudo correrá como sempre correu.
Ele manter-se-á a pessoa animada e frívola que procura viver a seu talante, ela
continuará sofrendo miséria — sim, miséria — e a sentir-se desgraçada, muito
desgraçada. Continuará a resolver penosamente o problema diário que são os
almoços e os jantares, continuará a varrer, a esfregar, a lavar fraldas, a
fazer todo o serviço de uma criada que não recebe soldada, e a ter filhos,
muitos filhos. E nem sequer cairá para o lado sem poder mais; as pessoas
aguentam muitíssimo mais do que imaginam que seriam capazes.
A filha chegou-se
para ela.
Maria do Carmo não
suporta a vista da filha. É de mais. Como é que um perfil de criança consegue
ser de tal maneira pungente?…
A enfermeira, que
saiu, acaba de regressar com o bebé.
A avó aproxima-se
encantada, o pai graceja, a doente da cama pegada comenta:
— Então não é um
amor, não é mesmo um amor?
A enfermeira olha
contristada para a doente; esta pousou uma das suas mãos emagrecidas sobre a
cabecinha da filha e sente-se só, abandonada, perdida num mundo enorme e
indiferente onde para ela não haverá nunca lugar…
A febre subiu ao
entardecer, e a doente revolve-se na cama com a mesma angústia com que revolve
dentro da cabeça pensamentos e problemas sem solução.
A sua amiga enfermeira
não está de serviço. Foi substituída por uma outra que Maria do Carmo não
conhece.
Inquieta, a
enferma já tentou mesmo sentar-se.
A vizinha diz-lhe
várias coisas que ela não escuta e acaba por chamar a nova enfermeira que fala
com aspereza a Maria do Carmo, lhe ordena que se mantenha tranquila, acabando
por lhe emborcar um remédio para a acalmar.
Maria do Carmo
adormeceu e desperta agora, a meio da noite, ouvindo qualquer coisa gotejar.
A começo, não
compreende o que lhe acontece. Sabe apenas que se sente muitíssimo fraca, cada
vez mais fraca. Depois nota que tem o leito encharcado e compreende que as
gotas que caem no sobrado são de sangue seu que empapou e atravessou o colchão.
Tem por um instante a noção nítida de que, se não chama alguém, se vai esvair
em sangue.
Terá ainda força
bastante para chamar, para pedir auxílio?
Talvez que sim,
talvez que não.
Nem sequer
experimenta. Acha preferível não se mover, retomar o seu sonho e esperar.
Sente um grande
sossego, uma tranquilidade sem nome.
Depois, se esperar
um pouco, não precisará mais de cogitar, não precisará mais de procurar a
solução de coisas que a não têm, não se verá forçada a enganar-se a si mesma a
fim de obter um pouco de coragem que lhe permita olhar para aquilo que a
espera. Como num sonho vago e distante, como o eco longínquo de uma voz que há
muito se calou, ouve-se ainda murmurar em pensamentos: "Quando daqui sair
irei trabalhar. Arranjarei um emprego…"
Basta esperar,
basta esperar e o sossego, a felicidade, a paz, nunca conseguidos, virão ao seu
encontro. Basta esperar.
A doente fica-se
queda e os seus lábios entreabrem-se num sorriso esperançoso e muito suave.
Finalmente é-lhe permitido ter esperança em qualquer coisa que vai chegar.
Finalmente vai encontrar um cantinho, onde lhe será possível repousar sem
tormentos.
E sobre ela a
relva crescerá, fresca e tenra, quando vierem as primeiras chuvas e, na
Primavera, desabrocharão flores silvestres e perfumadas sobre o seu corpo.
Nessa altura, a brisa vinda do rio, ao varrer a encosta, há de trazer-lhe
aquele aroma bravio, ao mesmo tempo suave, gostoso e intenso, a água pura, a
giesta e a jasmim que a vida pode e deve ter, mas que Maria do Carmo nunca,
nunca, lhe conheceu.
Basta esperar, basta esperar tranquilamente, como uma
criancinha confiante que sabe seguramente que, dentro em breve, a sua mãe vai
chegar…
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