A TRILOGIA DE JOÃO FERNANDES
Ele tinha a
candidez lorpa dos provincianos, que ainda não cravaram os dentes no fruto
proibido.
O verso perpetrado
pelo Sr. Tomás Ribeiro:
"Eu nunca vi Lisboa e tenho pena"
arrastara-o um dia, do fundo da Beira, para as
olímpicas cumeadas de um terceiro andar no Hotel Central.
João Fernandes
escondia a alma de um poeta no hercúleo tronco de um lavrador nutrido a broa e
vinho verde.
As elegantes
mundanas da capital desorientaram-no: os menus do Hotel
Central assustaram-no quase tanto como as mulheres.
Jamais ele ousaria
dirigir a palavra a essas leves e franzinas bonequinhas da moda, que saltitavam
pelos asfaltos do Chiado, envolvidas em uma nuvem de rendas e de veloutine, cabeça erguida, pé arqueado, sorriso desdenhoso e
olhar úmido…
Nunca ele se
atreveria a comer, deliberadamente, os esquisitos e complicados manjares,
servidos à francesa por sujeitos muito corretos, de casaca, gravata branca e
sapato de laço.
Gostava de ver as
mulheres, de longe, pendido no peitoril da janela que abria para o Cais do
Sodré, fumando extático, um charuto de vintém, que o saturava brandamente de um
forte e pronunciado cheiro a couve torrada…
O pai escrevia-lhe
três vezes por semana, noticiando que a azeitona começava a pintar, que o lagar
rendera mais uma dúzia de pipas de vinho, que a vaca malhada tivera uma cria,
que a ruiva estava ameaçada de pulmoeira.
Ele respondia-lhe
de cá, deslembrado dos assuntos caseiros:
"Pai: Não sei
como hei de agradecer-lhe a lembrança que vossemecê teve em mandar-me à
capital.
Lisboa não me saía
da cabeça desde que li aquele verso que o pai sabe. É ainda melhor do que eu
pensava. Os criados aqui vestem-se como os filhos do rei, e as mulheres têm
asas nos pés como os cupidos do quadro que o tio nos mandou de Paris, o ano
passado. À noite, vou girar pelo Chiado, e é só então que me atrevo a levantar
os olhos para essas maravilhas de carne e osso, embrulhadas em cetins e rendas,
que exalam o aroma das rosas de Maio, e têm ao mesmo tempo o voo gracioso e
transparente das borboletas…"
Como se vê, João
Fernandes tinha queda para o lirismo. Aprendera o latim com um egresso e
estudara o português com o professor régio, muito lido nos clássicos e muito
versado no manuseamento de poetas antigos e modernos, desde Filinto Elísio até
ao Sr. Florêncio Ferreira.
Nas horas vagas, o
pedagogo habilitava-se para lavrador microscópico, amanhando, ainda com os
dedos pingados de tinta roxa, uma courelazita, que trazia arrendada ao
Fernandes Sênior.
Os laços de interesse
que se estreitam, por via de regra, entre um rendeiro e um proprietário,
instigaram o professor a dedicar-se em corpo e alma à tarefa, não muito fácil,
de fazer luz no cérebro de João Fernandes.
Às tardes, o
discípulo ia ver semear a batata e ouvir recitar Camões e Tomás Ribeiro.
Naquele trato das musas e das sementeiras se lhe foi enflorando a alma de
incipientes devaneios e o lábio de cabelos doirados, desenhando um bigode,
apto, como poucos, para sublimar um madrigal.
No momento da
partida, o professor abraçou-se ao discípulo, descreveu-lhe sumariamente as
variadas seduções das lisbonenses, e, chupando um cigarro repassado do amarelo
sujo do tabaco ordinário, recitou-lhe, com os olhos em alvo e um barrete preto
enterrado até à nuca, os versos de João de Deus:
Um mês depois,
João Fernandes recebia da mestra da vida — a experiência — o exemplo prático,
comprovativo da verdade adstrita à palavra do poeta.
A poesia,
alcunhada de mentirosa, vinga-se, às vezes, nobremente, demonstrando ser ela a
única verdade bonita, neste pobre mundo eivado de tantas mentiras feias.
Encontraram-se à
mesa redonda, ombro com ombro, na atmosfera excitante dos molhos aromáticos e
dos vinhos generosos.
Ela tinha a alvura
lirial, e o louro vago das virgens góticas, pintadas nos frescos medievais.
Comia depressa, limpava admiravelmente um prato, sempre com os olhos baixos, o
perfil recortado em alabastro, falando devagar, como que a medo.
O pai, um major
reformado, tratava-a por mademoiselle, um chic que ela se permitia, sugerido pelo louro parisiense do
cabelo e pelos high-lifes dos jornais, entrados desde
certo tempo na moda de chamarem toda a gente madame e mademoiselle.
João Fernandes
informara-se pelos criados. Soube que se chamava Virgínia, que chegara de
Portalegre, onde o major tinha uma quinta, com a competente casa de habitação.
O major e a filha
ocupavam dois quartos do 3º andar, no mesmo corredor, ao longo do qual João
Fernandes espalhava gemidos e baforadas de charuto de vintém, recordando, com
um sentimentalismo coevo de Dirceu, os célebres versos, recitados pelo
professor…
Um dia, ao jantar,
o beirão encheu-se de coragem, e rompendo pela timidez que lhe pregava a língua
ao céu da boca, voltou-se para a menina dos cabelos louros, e, com voz trêmula,
disse-lhe:
— Mademoiselle serve-se de rabanetes?
Virgínia corou,
sorriu-se, e cravando os dentinhos brancos na polpa do rabanete, respondeu um
quase imperceptível: "Obrigada."
Aqueles rabanetes
foram o ponto de partida de um diálogo, mais ou menos animado, em que o major
falava sempre das campanhas da liberdade, mostrando a medalha, em que João
Fernandes discursava acerca da lavoura paterna, e em que Virgínia não falava
quase nunca, limitando-se a trincar amêndoas torradas e a beber copinhos de
curaçau, amavelmente oferecidos pelo beirão.
Animado pelo bom
acolhimento que lhe dispensavam, João Fernandes passou a oferecer camarotes,
carruagens, rebuçados de ovos e pastilhas com versos coxos, impregnados de
intenções amorosas, que ambos liam, rindo às gargalhadas.
Fernandes Sênior
teve um belo dia, no meio do varejar da azeitona, a desagradável surpresa de
receber uma missiva, concebida nestes termos:
"O senhor seu
filho caiu nas mãos de uma sanguessuga que lhe chupa os olhos da cara. Mande-o
recolher ao aprisco, se não quer que a ovelha lhe apareça tosquiada até aos
ossos."
Fernandes Júnior,
chamado a rebate, retorquiu encarecendo as virtudes do seu anjo louro e pedindo
vênia ao pai para atar nó cego.
Depois de
escrever, foi convidar o major e a filha para irem juntos, em partie fine, ao jardim zoológico.
Regressaram ao
cair da noite, na serenidade melancólica de um crepúsculo do Outono, salpicado
de estrelas que feriam o ar, como agudas flechas cravando-se no alvo.
João deu o braço à
filha e dispôs-se a ouvir, pela vigésima vez, ao pai a épica resenha das
batalhas, em que o major praticara a nunca assaz celebrada gentileza de
desfeitear o inimigo voltando-lhe as costas.
Virgínia
recolhia-se em um silêncio místico, apenas interrompido pelo tasquinhar da sua
boquinha vermelha e fresca, onde os rebuçados de ovos se derretiam, inundando-a
de doçuras.
Pouco depois, um coupé, alugado por João Fernandes, conduzia-os a trote largo
para o Hotel Central.
As mãos dos
namorados encontraram-se na penumbra do coupé: o
major, amortecido pelas libações do Porto, dormitava; João Fernandes, excitado,
atreveu-se, não sem o terror que precede os grandes cometimentos, a beijar as
pontas dos dedos da mademoiselle.
Ela estremeceu,
vibrando sob a carícia do namorado, e lânguida, quebrada pela violência da
comoção, abandonou-lhe sem reserva a mão esguia e branca, calçada em mitene de
retrós, onde os diamantes fuzilavam, como pequeninos pirilampos.
O amor, a música do sangue, como lhe chamou Calderon, executava no
coração de João Fernandes um glorioso hino triunfal. A terra parecia-lhe
pequena para conter o infinito.
A sua robusta
natureza de Hércules montanhês, criado ao ar livre, na intimidade dos vegetais,
habituado a correr pelas largas clareiras batidas do sol, a trepar a crista
denticulada das serras, que recortam a sua linha ondeante e azul no fundo casto
e vagamente narcotizante do céu estival, revoltava-se contra o regime claustral
dos quartos de hospedaria, numerados, cingidos por quatro paredes de uma
monotonia simétrica, odiosa à força de irrepreensível.
Nessa crise
psíquica do seu temperamento cristalizado — segundo a
pitoresca fórmula inventada por Stendhal e hoje expulsa da circulação pelo
método experimental de Zola —, João Fernandes protestava inconscientemente, com
todas as exuberâncias do seu organismo, ainda não contaminado, contra o absurdo
convencionalismo das civilizações refinadas.
Não era bem assim
que o beirão discorria, ao sentir o impetuoso desejo de apertar nos braços
musculosos esse flexível e delicado corpo, branco como os lírios que rebentam
nos cabeços das colinas, desabrochando no meio de uma vegetação intensa e
abrindo no restolho, entre os cardos espinhosos, o trevo e o rosmaninho, o
sorriso de uma virgem, coroando-se de flor de laranja.
João Fernandes não
conhecia Stendhal nem Zola.
Mas o amor
dispensa a lição dos livros e supre pela intensidade da sensação o que lhe
faltar em profundidade científica.
A bondade nativa,
e sobretudo a inteligência limitada do provinciano, livrava-o de maus
pensamentos; — com isso exultará a moral, muito embora gema a escola
naturalista.
Desde aquele caso
dos rabanetes, João Fernandes não tinha senão uma única ambição no mundo: —
levar à igreja a escolhida do seu coração.
Esta ambição
devorava-o nessa noite de um luar frio, em que ele corria ao acaso pelas ruas,
fazendo ressoar no asfalto dos passeios os seus grossos sapatos de três solas,
agitando os braços, dialogando de longe com Fernandes Sênior, que a tal hora
ressonava embrulhado em um cobertor de papa, saindo-lhe da boca aberta, onde os
sonhos adejavam, entremostrando pitorescos quadros de lagares afogados em vinho
e azeite, e campos ajoujados de trigo louro, uma variada orquestração de
complexos sons, desde a nota do clarim até ao ronco da trompa.
Batiam três horas
da madrugada quando João Fernandes recolheu ao hotel. Vinha derreado, mas
trazia no coração, que lhe saltava aos pulos, um radioso paraíso de
bem-aventuranças.
Subiu, cautelosamente:
ao chegar ao terceiro andar, empalideceu, lembrando-se que poderia, talvez,
perturbar o angélico sono e afugentar os divinos sonhos da sua adorada
Virgínia; tímido, parou na sombra do corredor, e descalçou os sapatos.
Nessa ocasião, a
porta do quarto 23 abriu-se de mansinho, a sombra de um homem desenhou-se em
uma faixa de luz, o frêmito de um beijo passou no corredor como o fugitivo
aroma de uma rosa desfolhada…
João Fernandes,
assombrado, ferido por uma dessas brutais amputações morais que rasgam no
coração uma chaga incurável, coseu-se com a parede.
— Casas com o
brutamontes, é negócio decidido? perguntou o homem, acendendo um cigarro.
Uma cabeça loira
pendeu-lhe no ombro, e uma voz musical segredou-lhe quase ao ouvido:
— Caso, porque
quero que tu sejas rico.
— Queridinha!
respondeu o homem, risonho, palpitante de ternura, prostrando-se mentalmente
aos pés da burra do lavrador beirão.
João Fernandes,
cambaleante, deu um passo para a frente e estendeu os braços, dispondo-se a
estrangular o ladrão da sua felicidade. Confusamente, viu um sargento
aspirante, que jantava à mesa ao seu lado esquerdo; uma onda de sangue
turvou-lhe a vista, uma dor aguda mordeu-lhe o coração, estrebuchou no vácuo,
batendo com as mãos, na extrema angústia do afogado que procura,
instintivamente, um ponto de apoio, e caiu redondo.
Na diligência que
reconduzia ao aprisco a ovelha desgarrada, João Fernandes lembrou-se de repente
da carta do pai, chegada na manhã do fatal dia e guardada intacta na algibeira
do jaquetão.
Fernandes Sênior
exortava-o a fugir às garras do anjo… despenhado em uma hospedaria, para
perdição dos pobres de espírito, a que aludiu Jesus, e oferecia-lhe a arca do
peito para desafogar mágoas e esconder suspiros.
João Fernandes,
designado pela Providência para reviver em Portugal o dramático lance do 3º ato
da Dama das Camélias, teve a convulsão histérica de
Armand Duval, ao ler a despedida de Marie Duplessis, vulgo Marguerite Gautier.
Depois veremos de
que cinzas fumegantes renasceu para o amor esta Fênix, ferida na asa.
MADEMOISELLE FAUVETTE
Goethe, o
inacessível, abriu banca de letrado para os infelizes, aconselhando-lhes,
oficiosamente, que diluíssem a sua dor na água de rosas de um poema.
João Fernandes,
caindo do sétimo céu na prosa trivial e reles do lar beirão, teria decerto
aproveitado o conselho, se acaso o seu cérebro, resistente e espesso, não fosse
incapaz de dobrar-se à dúctil brandura e à flexível elasticidade do metro e da
rima.
O mestre-escola,
escolhido para confidente daquela saudade sem reflorir de esperança, compôs
três sextilhas, ao mesmo tempo que ia enxofrando umas cepas doentes,
maldizendo, com muitas rimas em ão, o sexo fraco, e
instigando o forte a blindar-se contra as pérfidas frechadas do deus Cupido.
João Fernandes
decorou os versos, e ia cantá-los à noite para o alto das serras, cravando os
olhos nas estrelas, como os pastores dos Alpes, acompanhando-se do gemer
dolente da guitarra, na toada melancólica e vagamente desolada do fado
nacional.
Em vão o lavrador
chamava o João para a grande e absorvente preocupação de toda a sua vida
laboriosa e simples: — a agricultura.
Interessava-o nos
lucros, consultava-o antes de realizar qualquer transação, tomava-o para
árbitro nas questões com os rendeiros, fingia-se ignorante nos processos da lavoura,
só para dar ao filho o prazer de ensinar-lhe o que a sua velha experiência há
muito sabia.
Fernandes Sênior
resumira todas as suas afeições nesse único filho, que custara a vida de sua
mãe. Desde que ele nascera não tivera senão uma ideia fixa, que iluminava e
como que afinava o seu espírito rude e inculto: trabalhar, trabalhar
incessantemente e honestamente, para deixar ao seu João um cabedal sólido e um
nome honrado.
Ao vê-lo cair na
tristeza indolente e inativa, que inutiliza o homem e o coloca, na escala dos
seres, abaixo do irracional; ao reconhecer que eram baldados todos os esforços
que empenhara para reconduzir o filho ao bom caminho; ao encarar, aterrado, a
possibilidade de ver morrer-lhe nos braços esse lunático, que não comia nem
dormia, que falava só, que emagrecia a olhos vistos, deixando-se devorar pela
dor que lentamente o consumia, Fernandes Sênior não hesitou por mais tempo.
Envergou o seu
fato duplex, que durante longos meses permanecia deitado e imóvel no fundo da
arca, sobre um perfumado leito de trevo e rosmaninho, e estugando o passo,
partiu direito à quinta das Olaias, residência do seu compadre e inspirador, o
morgado Trancoso.
As raras visitas
de Fernandes Sênior às Olaias tinham sido sempre motivadas por circunstâncias
solenes, que demandavam a opinião conceituosa e autorizada do morgado, ouvida
como a de um oráculo: o seu casamento, o batizado do filho, a venda dos
montados do azinhal, etc., e agora…
O resultado da
conversa havida entre sua excelência, o morgado, e Fernandes Sênior, conversa
regada por um delicioso vinho abafado, foi João Fernandes partir em viagem de
recreio para Espanha e França.
Iremos encontrá-lo em Paris, onde ninguém entra levando no coração a Dor, como uma víbora enroscada, senão para sair curado… ou morto, de uma morte idêntica à dos gladiadores que rolavam no pó da arena, bradando ao sol imperial:
"Ave, César, os que vão morrer te saúdam!"
***
Foi no café dos
embaixadores, à sombra balsâmica dos lilases, em flor, que João Fernandes viu
pela primeira vez mademoiselle Fauvette.
Era com uma graça
picante e intencionalmente provocadora que mademoiselle
segurava nas pontas dos dedos esguios e torneados uma écrevisse,
descascando-a metodicamente e chupando-a lentamente, absorta em uma espécie de
êxtase sibarita…
Nas mesas do café,
espalhadas ao acaso no jardim, entre os tabuleiros de relva e os alegretes de
flores, Paris jantava alegremente, banqueteando-se com menus
ligeiros e caros, saboreando talhadas de melão anêmico, pagas a 4 francos.
João Fernandes,
aturdido, acanhado, despaisado, recordava, mentalmente, os diálogos que
aprendera na gramática Monteverde, para o ato de solicitar a um dos criados que
lhe fizesse a mercê de servir-lhe o jantar.
No varandim
fronteiro ao palco, onde Paulus exibe o seu variado repertório de caretas, as
mesas, alugadas com a devida antecedência, povoavam-se de cocottes
e gomosos.
Os criados,
atarefados, corriam de um lado para o outro, distribuindo lagosta à americana,
o predileto acepipe do parisiense-boêmio, que janta, por invariável costume, no
Café-Concerto.
O beirão
afundava-se, como um grão de areia, nessa onda movimentada e alegre, acima da
qual se cruzavam as risadas, as frases pitorescas, o tinir dos copos, a
efervescência ruidosa de uma multidão criada expressamente para o prazer.
João Fernandes
esqueceu-se de jantar e quedou-se, contemplativo, em face da mesa onde Fauvette
comia glutonamente — a boca vermelha e fresca gotejante de molhos apimentados,
os grandes olhos garços, avivados a kohl, cerrados de
gozo, os cabelos cor de vinho do Reno, engastando-lhe a carita chiffonné, emaranhando-se-lhe na testa pequena e deprimida e
fazendo-lhe cócegas no nariz arrebitado.
O odor di femmina, excitado pela dilatação de um bom jantar,
exalava-se dessa mesa, aos pés da qual tinha de desfolhar-se, reduzido a um
punhado de cinzas, o primeiro canto da trilogia de João Fernandes.
Ao champagne, já
ambos tinham comunicado um ao outro as suas respetivas sensações.
O beirão nunca se
atreveria, se ela, lendo-lhe no coração… e no estômago, não lhe houvesse
oferecido, no mesmo ímpeto generoso, um sorriso fascinador e uma fatia de
salmão.
João Fernandes
pagou bizarramente o jantar, depois do que foram ambos beber grenadine
e ver rir Paulus.
Nessa noite de
delirante comoção, mademoiselle Fauvette expandiu-se,
contando ao ingênuo adorador que o acaso — o Deus das Fauvettes — lhe deparara
o romanesco capítulo da sua acidentada existência.
***
Era órfã de pai e
mãe — todas as Fauvettes são órfãs. Uma tia chamara-a sua, para presentear com
as incipientes 17 Primaveras da sobrinha um merceeiro gotoso e asmático,
encanecido pelas neves de cinquenta e tantos Janeiros. Um dia, Fauvette,
fatigada de ouvir os assobios da asma e os gemidos da gota, bateu as asas e foi
pousar em um quinto andar do bairro latino, presa ao visco do amor de um
estudante de Medicina.
Certa noite, o
estudante esqueceu-se de subir os cinco andares, no alto dos quais gorjeava a
toutinegra; na manhã seguinte, ela abriu a porta da gaiola e largou o voo.
Veio depois a
miséria, com todos os seus trágicos horrores, a dependência, com todas as suas
imposições humilhantes.
Fauvette
trabalhara, lutara, exercera por muito tempo o lugar de demoiselle
de comptoir, no Printemps; aturara os patrões, as colegas, as freguesas,
sofrera muito, e a sua voz tremia ao aludir a esse doloroso período,
arrastando-se através de jantares arquiespartanos: — um osso de carneiro e meia
dúzia de feijões brancos.
João Fernandes
chorou, ouvindo-a; de bom grado teria caído de joelhos diante desse respeitável
infortúnio. Quisera poder agasalhar no peito, afogado em lágrimas de compaixão,
a queria mártir.
O merceeiro e o
estudante apareciam-lhe sob o hediondo aspeto de dois ursos, quebrando entre as
patas uma pérola.
Vagamente, sentia
ímpetos de estrangular os dois carrascos.
Como é que a
pobreza não recuara diante dessa encantadora rapariga, de um tão delicado chic, rainha pelo porte altivo e pela perfumada distinção?
Quantas vítimas
nesse mundo abominável, onde ele sofrera, logo aos primeiros passos, um
desengano atroz!…
Agora,
envergonhava-se de ter padecido por uma criatura vulgar, uma namoradeira sem
coração, um ente banal e nulo, que lhe explorava a algibeira, uma mulher
mercenária e perdida; quando era aquela, a infeliz, sacrificada em holocausto à
maldade dos homens, que merecia todo o seu amor…
Ao saírem do café,
e ao subirem para um fiacre, na serenidade estrelada de uma noite do mês de
Junho, Virgínia descera à vala comum do esquecimento. Paris triunfara mais uma
vez, na pessoa de mademoiselle Fauvette!
***
Fauvette habitava
um elegante appartement garni, em um 3º andar da Rua
Caumartin.
Vivia
relativamente bem, graças a uma mesada que lhe estabelecera um tio, residente
em Bordéus.
O tio, segundo
Fauvette contara a João Fernandes, para quem não tinha segredos, era
proprietário de um armazém de fazendas, situado em Passy. Estipulara a mesada à
sobrinha, sob condição de ir ela todas as manhãs fazer a escrituração à loja.
Fauvette só podia
receber o apaixonado beirão, das 5 às 7 da tarde.
Algumas vezes,
raras, por causa da maledicência dos vizinhos e em atenção ao tio, que podia
aparecer de um momento para o outro, iam juntos ao teatro, ou os cafés.
Uma noite, no
Éden-Teatro, no entreato em que o beirão saíra, Fauvette desapareceu. No dia
seguinte, explicou a João Fernandes que tinha fugido, evitando encontrar-se com
um correspondente do tio.
A intuitiva
delicadeza de sentimentos da parisiense cativava, de dia para dia, o sensível
provinciano.
Sempre que ele
ousava brindá-la com uma bracelete, uns brincos, um colar, empenhava-se entre
ambos uma verdadeira luta, de que João Fernandes saía sempre vencedor, força é
dizê-lo.
Ela escrupulizava
em aceitar-lhe dádivas; queria ser amada verdadeiramente, eternamente, sem
nenhuma espécie de interesse mercenário, por um coração leal como o dele,
incapaz de mentir aos seus juramentos.
João Fernandes
escrevera ao pai, pedindo-lhe licença para se casar e instando pela brevidade
da resposta, que ele esperava que viesse acompanhada dos indispensáveis papéis.
***
Uma tarde, o
beirão encontrou Fauvette mergulhada em uma tristeza profunda.
O tio
escrevera-lhe — João Fernandes leu a carta —, anunciando que viria buscá-la no
dia imediato, para ir passar com ele uma semana a Bordéus. Não podia negar-se
ao tio, que era o seu ganha-pão; mas por outro lado, como resignar-se a não o
ver durante oito longos dias, ela que já tinha sofrido tanto e para quem a vida
se resumia no amor dele? Em presença dessa dor eloquentemente expressa, na mais
flexível e sedutora de todas as línguas conhecidas, o beirão impôs silêncio à
sua própria dor, e tentou afugentar a melancolia da bem-amada, falando-lhe do
futuro que os esperava, dos seus projetos matrimoniais, da Beira, onde ela iria
reinar como uma soberana autocrata.
À despedida, no
dilaceramento de um longo adeus, vibrante de comoção, os seus braços
enlaçaram-se, e pela vez primeira os lábios de João Fernandes depuseram um
beijo ardente na pequenina boca, deliciosamente carminada pela fraicheur — a inseparável, em Paris, dos lábios femininos —,
que se lhe oferecia como um fresco botão de rosa.
***
Decorridos três
dias, a saudade, o gosto amargo e deleitoso, instigou
João Fernandes a querer, como Trueba, ver "a gaiola
donde a avezinha voou".
Entrou e subiu, trêmulo
de comoção, apertando o coração no peito…
De repente, a voz
de Fauvette mordeu-lhe o ouvido.
Esfregou os olhos
como um sonâmbulo, galgou os degraus a quatro e quatro, e parou um segundo à
porta do seu éden, que, confusamente e ainda inconscientemente, se lhe
afigurou, em um brusco relance, a porta do Inferno.
Um ruído de vozes
de homens, de gargalhadas, acompanhadas do tilintar de copos e talheres,
rebentou como uma explosão.
João Fernandes
curvou-se e espreitou pela fechadura.
Um dos homens
acabava de batizar Fauvette com champagne; os copos chocavam-se. No meio da
casa, ébria, rindo doidamente, Fauvette — a bacante — levantava o evohé pagão.
A VIÚVA
No próprio dia em
que Fernandes Sênior, depois de ter aparado uma pena de pato, tomava a heróica
resolução de escrever uma carta ensopada em tinta e gafa de mazelas
ortográficas, para o ato de perguntar ao filho se lhe fora entregue a papelada,
João entrou-lhe em casa cabisbaixo, o olhar vago, perdido na abstração de um
pensamento acabrunhante, o tronco hercúleo vergado ao meio, como uma árvore
lascada pelo raio…
O lavrador que
esperava, a troco das trezentas libras sacrificadas em holocausto ao amor
paterno, reaver o rapaz escorreito e são, tal qual ele fora antes de se haver
contaminado na atmosfera pestífera das grandes cidades, caiu das nuvens.
O compadre,
chamado a emitir voto acerca da mortal tristeza em que caíra o Joãozinho,
sugerira Paris, como a cura radical para todas as afecções provenientes de mal
de amores.
O lavrador não
demorara nunca o seu pensamento, ocupado em cousas úteis e proveitosas, a cogitar
no quer que fosse Paris.
Paris devia ser,
segundo se lhe representara, depois de ouvir o morgado Trancoso, uma sucursal
do Inferno, com aparentes seduções de Paraíso e grande cópia de mulheres
pintadas, famintas de libras esterlinas, com pés de cabra, boca de sereia e
unha na palma.
Uma abominação,
essa talhada do globo em que tanto falavam os papéis, uma talhada arrancada ao
flanco da Grã-Bretanha, segundo asseverava doutoralmente o mestre-escola, onde
o senhor de Bismarck, conforme lera nos periódicos, cravara um dia os dentes,
glutonamente.
Mas o morgado
receitara, e na sua passiva obediência aos avisos emanados do oráculo, o
lavrador remetera sem hesitar o filho para Paris, como poderia mandar-lhe aviar
uma receita de quinino.
Mais tarde, quando
ele escrevera a pedir vênia para dar o santo nó, Fernandes Sênior não pudera
ter mão no assombro com que releu e tresleu a epístola, custando-lhe a crer no
testemunho dos olhos.
Lembrando-se do
que poderia suceder ao seu João na grande cidade do Vício: — amores
passageiros, encontros fortuitos, despesas acidentais, conquistas fáceis,
aventuras, casos, histórias — nunca lhe ocorrera aquela!
Tudo era lícito
esperar de Paris, em relação a um doente, carecido dos socorros daquela mundana
farmacopeia, exceto uma tolíssima recaída.
Onde lhe
prometeram a cura, via ele agravar-se a moléstia!
E para isso
ordenhara a burra, mugira 300 libras — o sangue das suas veias! —, apartara-se
do rapaz, mandara-o correr terras, para afinal o crianço embicar na mesma
teima: — o casório!
Casar com uma
francesa, esta não lembrava ao demônio!
E como havia de
conversar com a nora, entregar-lhe o governo da casa, a nora, a mãe dos seus
netos! — falando ela uma língua de trapos, que ninguém na aldeia, ninguém a não
ser o morgado e o mestre-escola, seria capaz de entender.
Chamado a
capítulo, nessa grave conjuntura, Trancoso opinou que não se devia contrariar o
rapaz e que se lhe deviam mandar os papéis.
***
Desta vez, a
paixão de João Fernandes — o amante infeliz — repeliu, injuriada, a flor azul
do devaneio.
Uma violenta
saudade de Paris debuxava-lhe na mente o quadro da ceia báquica, avivado a
cores infernalmente tentadoras.
Nunca Fauvette lhe
parecera mais bonita, desde que lhe aparecera ébria e impudente, no seu
verdadeiro aspeto de cocotte barata, celebrando ágapes
econômicos, em terceiros andares reles.
Envergonhava-se de
ter sido ludibriado, mas experimentava ao mesmo tempo um vago e inconsciente
desejo de tornar a ser iludido.
Se o pai se
condoesse e lhe desse dinheiro — muito embora ele não ousasse pedir-lho —,
voltaria a Paris, àquele divino antro, e passaria pela Rua Caumartin, aquela
infernal rua.
Quem sabe? talvez
ela o amasse, e, com o andar do tempo, viesse a regenerar-se!…
Mas na luta
infrene destes vários pensamentos, na exaltação angustiosa deste querer e não
querer, João Fernandes, em vez de trepar pelas agulhas das serras, para ir,
abraçado à guitarra, dar serenatas às estrelas, desceu à taberna e começou a
ensaiar o sistema, usado em casos análogos, por vários D. Joões alcoólicos, de
assassinar a Paixão a golpes de decilitros.
Fernandes Sênior
começou a ter saudades do tempo em que via o filho taciturno e pálido, cantar
loas à Lua, ao vê-lo agora assomar à porta, vermelho, a face congestionada, o
riso alvar, gingão, altaneiro, a voz, o olhar e o gesto a transluzir a
evidência da balada londrina:
Efetivamente, João
Fernandes, com um grão na asa, tinha a fantasia de um poeta e a hombridade de
um rei: por entre a fumarada alcoólica que lhe toldava o cérebro, Fauvette
aparecia-lhe, desenhando-se em um fundo translúcido, como uma ondina
escandinava; pouco a pouco, a visão acentuava-se em contornos tangíveis, uma
cabeça loira e maliciosa recortava-se em um nimbo de fogo, e súbito, dos braços
musculosos do sátiro pendia a apaixonada ninfa…
Estas miragens
arrastavam João Fernandes para o declive da perpétua bebedeira.
No fundo da
garrafa morava o sonho, com todas as suas deliciosas voluptuosidades. O
acordar, na gelada e áspera realidade, era pavoroso!
***
Foi ainda o das
Olaias que fez face à crise, alvitrando a oportunidade de casar o afilhado.
Só o facho do
himeneu poderia afugentar as trevas daquele espírito narcotizado.
Fernandes Sênior
aprovou, como sempre, muito embora os conselhos do morgado começassem a
parecer-lhe um tudo-nada discutíveis.
Procurou-se a
noiva e achou-se a filha do lavrador da Azoia, uma viúva de saúde florescente e
carnes exuberantes, trinta anos sorridentes de frescor alpestre e sadio aroma a
feno e alegre campo.
A viúva habitava
uma herdade, a distância do povoado.
Uma espessa
muralha formada pelos copados ramos dos castanheiros e dos plátanos emboscava a
casa, onde a viúva escondia os copiosos frutos do seu ubérrimo Outono.
Diziam-na muito
entrada em devoções assíduas: missas periódicas, confissões hebdomadárias,
jejuns quinzenais.
O confessor da
viúva, um nédio varatojano, afamado nas missões onde o mulherio vinha cair-lhe
no socalco do púlpito, convulsionado de soluços histéricos, pedindo perdão em
lágrimas, jantava, aos domingos, na farta e suculenta mesa da herdade. Era ele
o único comensal da recolhida senhora.
O amor, que tem
uma queda inata para as Artemisas, muito especialmente se elas juntam aos dotes
físicos os dotes sonantes, já duas ou três vezes tentara escalar aquele
baluarte de virtude, atirando-lhe por cima das frondosas ameias, debruadas, na
Primavera, de flores balsâmicas, missivas apaixonadas, impregnadas de doçuras
capitosas…
A viúva rejeitara,
indignada, esse profano tiroteio: não respondia às cartas, desfeiteava aqueles
que as escreviam, e confessava-se do pecado de as haver lido, castigando o
peito e o porte-monnaie, donde saía para a algibeira
do padre, por cada carta recebida, uma avultada esmola para missas.
Por aquele tempo,
partira o varatojano para uma missão no Minho.
Trancoso soube do
propício ensejo, e invocando a sua velha intimidade com o defunto, mandou pedir
licença à viúva para apresentar-lhe o afilhado.
Realizou-se a
entrevista em um domingo do mês de Junho.
Pelos roseirais em
flor as borboletas batiam as asas; as abelhas engolfavam-se, zumbindo, nos
cachos veludosos da baunina; os campos ondulavam ao sol, recortando a linha
esmeraldina dos cômoros, toucados de musgo luminoso e tenro nos longes
vaporizados. No fundo do vale, afogado em uma pulverização ouro fluido, gemiam
as noras docemente; a água dos açudes cantava no ar, e no alto da colina,
bordada de giestas e tomilho, um moinho desdobrava no azul as suas asas
brancas…
A viúva,
desassombrada da presença do confessor, e talvez secretamente influenciada
pelas sugestões da natureza em festa, convidou para jantar o morgado e o
afilhado.
Um jantar é um
traço de união.
Pela janela aberta
em bougainvillée, heras e roseiras, entravam zumbidos
e gorjeios…
João Fernandes,
aquecendo na intimidade, teve frases de uma eloquência superlativa.
A plástica da
viúva, modelando em cetim preto a sua convexidade escultural, expungiu de golpe
as satânicas reminiscências da Rua Caumartin.
Ao descerem ao
jardim para tomarem café e riga, à sombra perfumada de um quiosque bordado de
jasmins do Cabo, a viúva colheu uma rosa, e risonha, tímida, pudica, como uma
virgem, deixou cair a flor aos pés do enamorado João Fernandes.
***
Na véspera do dia
aprazado para o ditoso enlace, João Fernandes passou a noite na herdade,
prostrado em adoração aos pés do seu novo ídolo.
Falaram ambos do
futuro, da sua recíproca felicidade, e de mãos dadas, profundamente comovidos,
o olhar confundido, os lábios frementes, o coração inundado de ternura, fizeram
projetos, interrompidos a espaços por silêncios expressivos e infantis
puerilidades…
À meia-noite, na
ocasião de se separarem, a viúva recebeu uma carta que guardou à pressa,
retraindo-se à última carícia e ocultando na sombra a palidez cadavérica…
A cerimônia tinha
sido fixada para o meio-dia.
O padrinho do
casamento, o Trancoso, deveria ir buscar a noiva.
Fernandes Sênior
não cabia em si, ao enfiar pela primeira vez a casaca decretada pelo compadre.
Farto de esperar
na igreja, devorado de irreprimível impaciência, pungido pelo secreto
pressentimento de novas desditas, João Fernandes meteu pés ao caminho. Ao
chegar à herdade, avistou de longe o padrinho, parado à porta, hermeticamente
fechada.
A noiva
desaparecera!
Depois de muito
interrogado, o caseiro, única pessoa que ficara de guarda à casa, respondeu,
balbuciante, que a senhora mudara de tenção, que fora recolher-se a um
convento, que era inútil procurá-la.
Algumas horas
depois, soube-se que o varatojano chegara na véspera à noite e partira na manhã
imediata.
E assim terminou,
para os fastos do amor infeliz, a trilogia de João Fernandes.
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