2/26/2023

A Rainha dos Gelos (A Virgem dos Geleiros), de Hans Christian Andersen

 

A RAINHA DOS GELOS


Adaptação e adequação ortográfica de Iba Mendes (2023)
Ilustrações de Yan Dargent. Tradução de 1901. H. Garnier Livreiro-Editor

***


CAPÍTULO 1: O PEQUENO RUDY

Acompanha-me, caros leitores, à Suíça. Olhem todos para as florestas sombrias que surgem nos despenhadeiros; subam aos campos de neve de um brilho resplandecentes e desçam às planícies verdejantes, onde magníficos rios e tantas cachoeiras correm mugindo, como se receassem não chegar a tempo para desaparecerem no mar.

O sol espalha os seus raios ardentes nos vales profundos, derretendo os montões de neve, que, à noite, tornam a gelar, formando pedaços de gelo, massas de neve, geleiros, colocados uns sobre os outros.

Dois desses montes de gelo enchem as vastas aberturas dos rochedos, debaixo do Schreckhorn e do Wetterhorn, junto da pequena cidade de Grindelwald. Estão singularmente dispostos; e, no verão, viajantes de todos os países fazem desse lugar uma parada. Chegam do vale, sobem durante horas e chegando às alturas avistam a planície, como se estivessem num balão, em viagem pelos ares.

Nuvens amontoam-se frequentemente nessas alturas espalhando eflúvios; raios de sol iluminam o vale, fazendo a verdura brilhar, como se fosse, transparente. Na base as águas correm e roncam com estrepito.

Nas colinas elas murmuram e sussurram brandamente, passando ligeiras sobre rochedos e desenrolando-se como fitas prateadas.

Dos dois lados do caminho que conduz aos geleiros surgem chalés cercados, cada um, de pequeno campo de batatas, alimento das crianças que pululam nessas casinhas e cujas boquinhas são insaciáveis.

Essas criaturinhas precipitam-se, em bandos, ao encontro dos viajantes, aos quais oferecem logo miniaturas delicadas de chalés esculpidos na madeira, trabalho que fazem os pais. Com qualquer tempo, mesmo chovendo a cântaros, esse rancho de meninos aparece nas estradas, oferecendo aos que chegam a sua mercadoria.

Há uns vinte anos, os viajantes viam chegar com as outras crianças, mas conservando-se sempre a certa distância, um menino, que também vendia. Tinha um ar de seriedade deveras encantador e segurava a caixa de madeira com tanta força, que parecia não querer largá-la. Os outros importunavam os transeuntes; ele nada dizia. Mas a gravidade do rapazinho agradava tanto que chamavam-no de preferência aos mais apressados; ele, sem saber como, vendia muito mais do que os seus camaradas. 

Era seu avô quem esculpia os bonitos quebra-avelãs, as figuras grotescas, os ursos, as colheres e os garfos, e as caixas ornadas de folhagem delicada. O velho morava bem alto na montanha. Tinha um armário cheio desses brinquedos, que tanto fascinam as crianças. O menino, porém, que se chamava Rudy, não fazia grande caso deles. O que ele olhava com prazer e cobiça e desejava muito possuir, era uma velha espingarda, pendurada numa viga. Seu avô lha prometera, mas para quando crescesse e tivesse força para servir-se dela. 

Embora pequenino, também tomava conta das cabras. Se para ser bom guardador de cabras fosse apenas preciso trepar com elas nos rochedos, Rudy era um bom guardador; subia mesmo mais alto do que elas. Gostava de apanhar ninhos de pássaros nos galhos extremos das árvores. Era corajoso, temerário mesmo. Só ria-se quando se achava perto de uma cachoeira barulhenta ou quando ouvia o ruído surdo de uma massa de neve. 

Nunca brincava com as outras crianças. Só estava com elas quando seu avô mandava-o vender os seus trabalhos de madeira esculpida. Rudy não gostava desse encargo. Preferia ou andar a trepar nos rochedos ou ficar sentado ao lado de seu avô, ouvindo histórias de tempos passados e as tradições do país de Meiringen, onde o velho nascera, país invadido antigamente por um povo vindo do extremo norte e de raça dos Suecos. 

Rudy aprendia desse modo muitas coisas. Ouvindo com atenção as narrações do velho escultor, adquiriu uma dose de conhecimentos, que as crianças da sua idade não tinham. Mais despertou-se ainda o seu espírito com a frequência dos animais, que habitavam o chalé: Ajola, enorme cão, que pertencera a seu pai e um gato, pelo qual Rudy tinha particular inclinação. 

— Vem comigo para o telhado — dissera-lhe um dia o gato, e Rudy compreendera-o perfeitamente. As crianças, quando apenas começam a falar, compreendem muito bem a linguagem das galinhas, dos patos, dos cães e dos gatos, que falam tão distintamente como o papá e a mamã. Fazem até relinchar a bengala do vovô, que é transformada em cavalo com cabeça, pernas e cauda. Mas crescendo... perde-se essa faculdade. Há, porém, crianças, que conservam-na por mais tempo do que outras. Diz-se então que elas são patetas. Mas diz-se tanta coisa neste mundo! 

— Vem comigo para o telhado — dissera, pois, o gato. 

— É pura imaginação acreditar no perigo. Quando não se tem medo não se cai. Vamos. Põe-se uma pata aqui, a outra acolá. Muita firmeza nas patas da frente. Muita atenção e corpo muito leve. Quando estiveres perto de um abismo podes saltar sem receio. Vê só como eu faço. 

E Rudy compreendeu perfeitamente todo esse discurso. Acompanhou o gato ao telhado e aos galhos das árvores. Subia também à ponta dos rochedos onde os gatos não vão. 

Rudy subia frequentemente à montanha antes do nascer do sol e ali respirava um ar fresco e reconstituinte. É um néctar que só o Deus bondoso sabe preparar. Eis a receita: misturar o perfume de todas as ervas frescas da montanha com a hortelã, o timo, as rosas e as outras flores do vale; tomar apenas superficialmente o aroma, deixar as nuvens absorver as fortes exalações, deixar os ventos impelir tudo isso através das florestas de pinheiros; teremos então um ar de um perfume delicioso e de uma frescura agradabilíssima. 

Era esse ar que Rudy ia saborear todas as manhãs nas montanhas. Os raios do sol acariciavam as suas bochechas. A vertigem — terrível demônio — espreitava-o, mas não podia, por ordem superior, aproximar-se do pequeno. As andorinhas dos sete ninhos, que estavam no teto da casa de seu avô, iam unir-se a ele nas alturas, para onde levava as cabras, e cantavam o misterioso estribilho: vi og i og i og vi.

Elas lhe levavam lembranças de todos de casa e mesmo das duas galinhas, os únicos animais que Rudy não frequentava.

Embora pequenino, já tinha viajado muito. Nascera no Cantão do Valais, de onde levaram-no muito criança para o Oberland, através dos Alpes. Mais tarde foi a pé até ao Stauback, onde contemplou a magnífica cascata, que, diante do Jungfrau, monte todo branco de neve e de gelo, parece uma "gaze" de prata imensamente longa.

Também esteve perto dos grandes geleiros de Grindelwald. História essa bem triste. Sua mãe aí faleceu, carregando consigo a alegria infantil de Rudy.

— Quando Rudy tinha dois anos — dizia o avô — ria-se quase sempre. As cartas, que sua mãe me escrevia, contavam-me as suas alegrias infantis, mas depois que esteve na caverna de gelo, ficou mais grave do que um velho.

O avô não gostava muito de falar nessas coisas que eram conhecidas em todos os arredores.

Eis o que se passara:

O pai de Rudy era condutor de diligência, ao que parece. O seu grande cão Ajola acompanhava-o sempre quando guiava o veículo de Genebra à Itália pelo Simplon.

Tinha um irmão no vale do Rhodano, no Valais. Era um caçador ousado de cabras monteses e servia de guia aos viajantes.

Rudy tinha dois anos quando perdeu seu pai. Sua mãe resolveu voltar ao Oberland Bernês, seu país natal, junto de seu pai, que vivia a uma légua de Grindelwald. O velho esculpia lindos objetos de madeira e ganhava desse modo a sua vida.

A mãe de Rudy partiu no mês de junho, levando ao colo seu filho, em companhia de dois caçadores de cabras. Tinham passado pela subida do Gemi e já viam ao longe os chalés do vale para onde iam. faltava-lhes ainda atravessar um grande geleiro. O caminho era difícil. A neve tinha caído, havia pouco tempo, e ocultava uma fenda, que era mais profunda do que a altura de um homem. A jovem senhora escorregou, afundou na neve e desapareceu com Rudy.

Não foram ouvidos nem gritos nem suspiros. A criança, porém, começou pouco depois a chorar. Os caçadores levaram mais de uma hora à procura de estacas e de cordas. Depois de muitos esforços conseguiram trazer à luz do dia os corpos da mãe e da criança, que pareciam sem vida. O pequeno voltou a si mas a pobre mãe estava morta. A criança foi levada para a casa do avô, que educou-a do melhor modo que pôde. O velho não encontrou o seu netinho alegre e contente, como a mãe lho havia pintado. O menino quase não ria-se mais! Tal fora o efeito que lhe causara a lúgubre e imensa camada de gelo onde fora precipitado. Era um verdadeiro mundo composto de pedaços enormes de gelo branco ou verde, de todas as formas, amontoados uns sobre os outros; segundo as crenças dos montanheses suíços as almas dos réprobos estão ali encerradas até ao último julgamento.

No interior do geleiro há cavernas imensas, fendas que penetram até ao fundo dos Alpes. É um palácio maravilhoso, onde reside a Rainha dos Gelos, rainha desse sítio lúgubre. Ela compraz-se em destruir, esmagar, triturar. O Ar é seu pai. O seu poder estende-se aos rios, que nascem no seu reino. Ela atira-se, mais rápida do que a cabra montês, ao cume das neves eternas, onde o homem mais temerário não ousa nem pode chegar senão depois de ter feito uma escadaria no gelo. Outras vezes, ela desce aos ramos de pinheiros, sobre catadupas impetuosas, para depois saltar de um rochedo a outro; a sua longa cabeleira branca é constantemente ondeada pelo vento; um manto de um verde azulado, da cor dos lagos da Helvécia, cobre o seu corpo.

— Alto lá! deixem-no! É meu! —- exclamou ela, quando tiraram Rudy do abismo. E disse quando o carregaram:

— Eles roubaram-me uma criança encantadora; eu abracei-a e ia dar-lhe o beijo mortal. Ei-la de novo entre os homens, guardando cabras na montanha. Sobe sempre e cada vez mais alto. Afasta-se de todos, mas não de mim. É minha, hei de possuí-la.

E ela pedia à Vertigem que fosse buscar o menino. Era no verão, em época quente demais para ela, Rainha dos Gelos, nos Alpes verdes, onde cresce a hortelã.

A Vertigem, dando um voo, mergulhou no fundo dos lagos, de onde saiu um dos seus irmãos, depois dois, depois três, uma multidão, enfim, pois muitos são eles, Uns ficam nas escadas, outros nas torres, sinos, picos de montanha. Nadam, como peixes, nos ares e atraem as suas vítimas para precipitá-las no abismo. A Vertigem e a Rainha dos Gelos espreitam o homem, e agarram-no quando se aproxima, do mesmo modo pelo qual o polvo agarra o que está ao seu alcance, sem mais deixá-lo.

A Rainha dos Gelos escolheu o mais forte e o mais hábil desses irmãos da Vertigem, e ordenou-lhe que fosse buscar Rudy.

— Não posso agarrar aquele menino — disse o escolhido. — Armei-lhe muitas vezes os laços mais pérfidos! O gato, esse miserável, ensinou lhe todas as suas manhas. Além disso essa criança parece protegida por uma força que me afasta dela. Mesmo quando a vejo num galho de árvore por cima de um abismo, que lhe faço cócegas na planta dos pés ou sopro-lhe no rosto o meu hálito atordoador, ela não se move e ri-se de mim.

— Não faz mal — disse a Rainha — havemos de apanhá-la. Se não fores tu, serei eu, eu, eu!

 — Não,não! — Ouviu-se um som como se fosse o eco dos sinos da capela. Era, porém, um canto verdadeiro. Era o coro dos suaves, amáveis e bons Espíritos da natureza. — Não, não! — ouviu-se de novo. Eram as filhas dos raios do sol.

Todas as noites elas fazem roda no alto das montanhas, estendendo as suas asas, que vão se avermelhando cada vez mais à medida que o sol desce para o horizonte, e cercam os Alpes de uma auréola de chamas. Posto o sol elas entram na neve dos picos e dos rochedos e dormitam até que o astro torne a aparecer. Elas tem particular afeição pelas flores, pelas borboletas e pelos homens, mas o favorito é o pequeno Rudy.

— A Rainha não o agarrará — cantaram elas. — Ela não o possuirá.

— Já agarrei maiores e mais fortes — dizia a Rainha dos Gelos.

As filhas do sol entoaram um canto em que contavam como o vento, com os seus redemoinhos, tinha arrancado ao viajante o seu manto e o carregara para os ares; mas tinha carregado apenas a capa e não o homem.

— Pudestes agarrá-lo, vós, filhos da força bruta; mas não pudestes guardá-lo. Ele é mais forte do que nós. Está acima do poder da natureza. Há nele um espírito divino. É até superior ao sol, nosso pai: conhece as palavras mágicas que obrigam os ventos e as águas a obedecer-lhe e a servi-lo.

Eis o que os Espíritos suaves cantaram em coro. E todas as manhãs os raios do sol brilhavam, através da única janelinha da casa do avô, sobre o menino, que dormia; e as filhas do sol o acariciavam, abraçando-o repetidas vezes para tirar-lhe o último vestígio do beijo glacial, que lhe dera a Rainha dos Gelos, quando, dormindo no seio de sua mãe morta, foi salvo por um milagre.



CAPÍTULO 2: A VIAGEM PARA A NOVA PÁTRIA
 

Rudy tinha oito anos quando seu tio, um irmão de seu pai, que morava além dos montes, no vale Rhodano, lembrou-se dele para ensinar-lhe o seu caminho no mundo. O avó reconheceu que a lembrança era vantajosa para Rudy e consentiu nela.

Rudy ia, pois, partir. Duras despedidas entre outras a de Ajola, o velho cão.

 — Teu pai — disse Ajola — era condutor e eu era o cão da diligência. Subimos às montanhas e delas descemos milhares e milhares de vezes. Não admira, pois, que eu conheça homens e cães de além montes. Já não converso muito; mas como por muito tempo não nos tornaremos a ver, vou falar um pouco mais do que de costume.

— Te perguntarei, pois, por que tive eu tantas vezes de galopar ao lado do carro, não tendo para roer senão as minhas mágoas? Não podia compreendê-lo; nem tu tão pouco, penso eu. Hoje com a experiência, sei qual o motivo: as coisas neste mundo não são razoavelmente dispostas nem para os cães, nem para os homens,

 — Não fomos todos criados nem viemos todos ao mundo para sermos amimados ou beber bom leite. Não fui habituado a isso. Mas vi às vezes na diligência cãezinhos maus ocupando o lugar do viajante. A dona dava-lhes leite e biscoito. Eles já nem caso faziam dessas iguarias. Apenas lambiam um pouco, e a dona comia o biscoito. Eu corria na lama, ao lado da diligência e tinha uma fome canina. Só podia mastigar... as minhas reflexões. Absurdo estado de coisas. Mas não era tudo. Em vão bocejava, ladrava para denunciar o meu cansaço: ninguém me dava lugar na diligência nem tomava-me nos seus joelhos. Digo-te tudo isso para que aprendas a conhecer o mundo no qual vais entrar.

 Foi esse o discurso do bom Ajola. Rudy abraçou-o e beijou-lhe o focinho. Quis fazer o mesmo com o gato, mas este zangou-se.

— Estás forte demais para mim e não quero usar as minhas unhas contra um velho amigo como tu. Vais subir pelos montes. Lembra-te das lições que te dei. Quando andares assim pelos ares, não deves pensar no perigo de cair.

E o gato fugiu para não deixar ver no brilho dos seus olhos quanto estava comovido com a partida do seu companheiro de brincadeiras.

As duas galinhas corriam pelo quarto. Uma não tinha mais cauda. Um viajante, que se julgava caçador, tomou-a por uma ave de rapina; disparou um tiro sobre ela abatendo-lhe a cauda.

 — Rudy vai para o outro lado dos Alpes — disse ela.

— Eu não gosto de despedidas — disse a outra. E as duas retiraram-se aos saltinhos.

Em compensação as cabras que Rudy teve por companheiras durante tanto tempo, fizeram lhe os mais ternos adeuses: prorromperam em mé-é-é e mé-é-é cheios de melancolia.

Havia na aldeia dois guias alertas, que deviam justamente atravessar o "Gemmi", com destino ao outro lado das montanhas. Rudy partiu com eles a pé. Era uma marcha pesada para um menino, mas ele era forte e a sua coragem vencia o cansaço.

As cotovias acompanharam-no durante algum tempo, cantando sempre: vi og i og i og vi.

O caminho atravessava a cachoeira Lutchine, que nasce nos rochedos escuros do geleiro de Grindelwald. Passaram sobre troncos de árvores bamboleantes e chegaram ao geleiro, no meio de montões de gelo. Rudy estava radiante de alegria, os seus olhos brilhavam de prazer todas as vezes que ele afundava no gelo os seus sapatos de gancho.

Tendo trepado em montões de gelo, que lhe impediam a marcha, chegou a um lago, cuja volta tinha de dar, tomando as precauções necessárias para não cair nas fendas. Na ponta de uma delas estava uma grande pedra, como que suspensa sobre o abismo. Rudy empurrou-a; ela desprendeu-se e rolou no abismo. A sua queda nas escavações profundas foi acompanhada de um barulho formidável, cujo eco foi ouvido bem longe.

Nessa ocasião Rudy lembrou-se do que lhe contaram, que tinha caído com sua mãe numa dessas horríveis fendas, onde o frio é mortal. Mas era tão intrépido que essa lembrança, em vez de fazê-lo tremer de medo, desapareceu logo do seu espírito. Ele acompanhava com passo ligeiro os dois homens que, de vez em quando, queriam dar-lhe a mão para ajudá-lo a subir nos caminhos difíceis. Mas preferia ir só e era, no gelo, tão firme quanto uma cabra montês.

Chegaram depois a rochedos nus, sem terra nem musgo, tornaram a descer um pouco a um pequeno bosque de pinheiros enguiçados, para atingirem enfim as neves eternas.

Nunca o menino tinha subido tão alto. Via na sua frente vasto mar de neve, cujas ondas eram imóveis. De vez em quando o vento fazia esvoaçar turbilhões de flocos, do mesmo modo que, nas margens do Oceano, ele levanta a espuma branca das ondas. Ao redor viam-se o Jungfrau, o Monge, o Eiger, esses picos cheios de neve, mais altos do que as nuvens.

Os geleiros sucediam-se. Eram os palácios de verão da Rainha, que não aspira senão a apanhar e sepultar os entes humanos. Todavia o sol estava quente. A neve batida pelos seus raios, encantava o olhar; fazia brilhar milhares de diamantes com reflexos brancos e azuis. Estava cheia de restos numerosos de insetos: borboletas, abelhas, que o vento levara àquelas alturas e que o frio matara.

Acima de Wetterhorn apareceu uma nuvem, como se fosse um montão de lã fina e preta. Avolumou-se rapidamente e desceu pesada. Era a precursora do terrível Foehn, o furacão, que derruba tudo o que encontra pelo seu caminho. Rudy não se importava com isso: estava todo entregue à contemplação desse espetáculo grandioso, que para sempre ficou gravado no seu espírito. Mas os seus dois companheiros tinham visto o perigo e apressaram-se em chegar a uma velha construção de pedra, feita para servir de abrigo ao viajante perdido. Encontraram ali carvão e pedaços de madeira. Acenderam o fogo e prepararam uma bebida forte, remédio excelente contra o cansaço. Rudy teve seu quinhão. Os dois homens sentaram-se perto do fogo e, fumando, começaram a falar da gente misteriosa, que habita essas regiões alpestres: cabras enormes residindo no fundo dos lagos, bandos de almas do outro mundo, que carregam para os ares o viajante adormecido; o pastor selvagem, que leva as suas ovelhas pretas ao pasto nas maiores alturas. Nunca houve quem visse essas ovelhas, mas quantas vezes ouviu-se os seus guizos e os seus gritos funestos!

Rudy ouvia essas histórias medonhas com grande prazer e sem ficar com medo. Ele ignorava o que era o medo. Não estremeceu sequer quando ouviu um rugido, que julgou ter sido dado pelo rebanho preto de que falaram os guias. O barulho aumentava cada vez mais forte. Os dois homens calaram-se, dizendo apenas a Rudy que não adormecesse, para estar pronto a tudo.

Era o Foehn, a grande tempestade, que atira-se do alto das montanhas sobre os vales, quebrando as árvores mais fortes como se fossem pequenas varas e transportando chalés de um para o outro lado do rio, como se se tratasse de deslocar uma peça no jogo do xadrez.

O barulho durou uma hora e depois foi diminuindo pouco a pouco. Os montanheses disseram a Rudy que o perigo estava passado e que ele podia dormir, o que fez de bom grado, pois estava muito cansado.

No dia seguinte, pela manhã, continuaram a viagem. Atravessaram novos montes, novos geleiros, novos campos de neve. Chegaram ao Cantão de Vaiais, do outro lado dos Alpes. Tornaram a ver o verdor das florestas e a encontrar seres humanos. Mas que gente! Espécies de monstros pequenos, de rosto cheio, de cor amarelada, todos com medonha papeira.

Eram pobres imbecis, que arrastam vida errante e miserável, olhando para os transeuntes com um ar bestificado. O aspecto das mulheres era ainda mais terrível.

Seriam assim todos os habitantes da nova pátria de Rudy?

 

CAPÍTULO 3: O TIO

Graças a Deus Rudy não encontrou na casa de seu tio senão pessoas feitas como as que ele estava acostumado a ver. Apenas havia ali um único imbecil, um pobre idiota, uma dessas miseráveis criaturas abandonadas que, no Vaiais, são agasalhadas durante dois ou três meses por uma família; estão depois o mesmo tempo em outra casa generosa e assim por diante. Essa pobre criatura chamava-se Saperli.

O tio era ainda um caçador vigoroso. Conhecia também a profissão de tanoeiro. Sua mulher, de baixa estatura, mas viva, com o que se chama "figura de pássaro"; tinha dois olhos penetrantes como os de uma águia, e um pescoço comprido todo cheio de penugem.

Tudo era novo para Rudy: os costumes, os vestuários e a própria linguagem. Quanto à ultima, depressa se familiarizaria com ela. A moradia do tio tinha um aspecto opulento, comparada com a do avô. Os quartos eram muito maiores. Chifres de cabras monteses e espingardas bem luzentes guarneciam as paredes. Por cima da porta via-se a imagem da Madona, diante da qual ardia uma lamparina, cercada de uma moita de rosas dos Alpes.

O tio era não somente um dos mais hábeis caçadores de cabras monteses como também o melhor guia de toda a região.

Rudy ia ser depressa o querido da casa. Gostaram dele pelo menos tanto quanto do velho cão de caça, surdo e cego, que não prestava mais serviços, mas que tantos havia prestado que era considerado como fazendo parte da família e todos cuidavam muito dele. Rudy começou logo a acariciá-lo. Mas o velho cão não estava disposto a novos conhecimentos.

Rudy não tardou a criar raiz na casa e no coração de todos. — Não estamos mal aqui, no Vaiais, dizia o tio. Temos sempre cabras monteses; a raça não desaparece como a dos bodes. Sim, tudo vai melhor hoje do que nos tempos antigos. Dizem-nos que eram mais gloriosos; mas a nossa época é melhor. Outrora os nossos vales eram como que separados do mundo inteiro, mas abriram as muralhas que nos isolavam, e uma corrente de ar fresco veio tudo reanimar entre nós.

E quando estava disposto a conversar o tio falava dos seus anos da infância, do tempo em que tudo no Vaiais cheirava a "fechado"; o país era povoado em parte por imbecis e outros enfermos.

— Mas — continuava ele — sobrevieram de repente os soldados franceses. Eram os médicos de que precisávamos. Eles mataram os homens e também a doença. Brigavam como gente e eram rapagões soberbos. E as mulheres de França nada lhes ficam a dever.

E, assim falando, olhava para sua mulher que era francesa, e ria-se a bandeiras despregadas.

— Quando eles acabaram de brigar com os homens continuou ele — atacaram os rochedos. Foram eles que construíram o caminho do Simplon, através dos montes mais despenhados e hoje basta dizer a uma criança de três anos: "Vá a Itália pelo grande caminho", a criança chegará sem dificuldade à Itália, se não sair desse caminho.

E, assim falando, o tio entoava uma canção francesa e dava um "viva" a Napoleão o Imperador.

Foi então que Rudy ouviu pela primeira vez falar da França e de Lion, a grande cidade nas margens do Rhodano; o tio tinha ali estado.

 — Parece-me — dizia ele a Rudy — que dentro de poucos anos poderás ficar hábil caçador; tens, na verdade, excelentes disposições.

Ensinou-lhe a pegar numa espingarda, a fazer pontaria e a disparar. Levou-o consigo à caça nas montanhas e deu-lhe para beber sangue quente de cabra montês, que fortifica contra a vertigem. Ensinou-lhe a reconhecer a época em que as massas de neve rolam, ao meio-dia ou à tarde, conforme a direção dos raios do sol. Mostrou-lhe como devia imitar as cabras, e saltar como elas. Ensinou-lhe ainda como, caindo-se na cavidade de um rochedo, daí se pode sair. É preciso servir-se dos cotovelos, dos músculos da curva da perna e até dos da nuca, para resistir às menores asperidades.

Rudy aprendia tudo isso bem depressa. Soube também de todos os estratagemas empregados para enganar as cabras monteses, por mais finas que sejam. Ele viu o caçador deixar o paletó e o chapéu pendurados num pau, esquivar-se e passar para outro lado, enquanto a pobre cabra, com a atenção destruída para a roupa, não notara a direção que tinha tomado.

Indo um dia Rudy acompanhar seu tio, este empregou um estratagema. O caminho era estreito ou, antes, existia apenas; era um pequeno espaço à beira de um precipício. A neve estava meio derretida. As pedras se destacavam do solo e rolavam no abismo. O caçador deitou-se no chão, andando de rastos e devagar, o que não impedia que de vez em quando uma pedra se deslocasse sob seu peso e rolasse de rochedo em rochedo, antes de chegar ao fundo do precipício.

Rudy estava a uns cem passos de seu tio, sentado no último rochedo sólido. Um enorme abutre voava na direção do caçador; a ave queria com uma pancada da asa matar o homem para devorar o cadáver. O tio não a via, a sua atenção estava toda dirigida sobre a cabra e uma cabritinha, que avistara do outro lado da cavidade.

Rudy viu a ave e adivinhou a sua intenção. Levantou a sua espingarda e ia disparar. Nessa ocasião a cabra deu um pulo para fugir, o tio fez fogo: o animal caiu mortalmente ferido enquanto a cabritinha fugia através dos rochedos, saltando sobre precipícios como se tivesse muitos anos.

O abutre, espantado pelo barulho da espingarda, fugiu. O caçador só soube pelo pequeno Rudy do perigo a que esteve exposto.

Foi buscar a cabra. Retiraram se alegres para casa. O tio entoava uma canção dos seus tenros anos. De repente ouviram a pouca distância um barulho singular. Levantaram os olhos: uma massa de neve agitava-se no alto da montanha, como um pano estendido, ondulado pelo vento. A superfície de gelo fendia se com um barulho semelhante ao mármore quando se quebra. De repente tudo quebrou-se, deslocou-se, e a massa, como uma corrente de espuma branca, precipitou-se roncando como a trovoada surda. Era uma terrível bola de neve. Não vinha diretamente sobre eles, mas passava perto, perto demais.

— Segura-te bem — gritou o tio. Rudy agarrou-se a um tronco de árvore. O caçador subiu aos galhos e agarrou-se a eles. A bola de neve passou a uma distância de alguns metros. Mas o vento, o furacão que a acompanhava quebrou árvores, como se fossem simples varas. Rudy ficou estendido no chão. A árvore em que se agarrava foi arrancada pela base; a parte superior fora atirada para longe. Entre os galhos estava o tio com a cabeça fraturada. A sua mão ainda estava quente. O seu rosto ficou logo desfigurado. Diante de tão medonho espetáculo Rudy ficou imóvel, pálido, trêmulo; pela primeira vez sentiu o medo.

A noite, bem tarde, chegou à casa, portador da terrível notícia. Sua tia não proferiu uma palavra, não derramou uma lágrima. A sua dor só fez explosão quando o corpo foi transportado ao domicílio.

O pobre imbecil foi esconder-se na cama. No dia seguinte ninguém o viu. À noite foi ter com Rudy e disse-lhe:

— Peço-te que escrevas uma carta por mim. Saperli não sabe escrever, mas irá levar a carta ao correio.

— Uma carta — disse Rudy — dirigida a quem?

— A Nosso Senhor Jesus Cristo.

 — O que dizes?

O pobre imbecil, olhando comovido para Rudy, juntou as mãos e murmurou, com tanta gravidade quanta piedade.

 — Jesus Cristo, Saperli quer escrever-lhe para pedir-lhe que seja Saperli o morto, e não o chefe da casa.

Rudy apertou-lhe a mão e explicou-lhe, não sem dificuldade, que a carta não chegaria ao céu nem restituiria a vida ao finado.

— Agora — disse-lhe sua tia depois das exéquias — és tu o sustentáculo da casa.

E, com efeito, Rudy o foi.

 

CAPÍTULO 4: BABETTE 

Qual o melhor atirador do Cantão do Valais? Bem o sabiam as cabras monteses, que diziam umas às outras:

— Cuidado quando avistares Rudy!

— Qual o mais belo caçador do país?

— É Rudy! — exclamavam as moças, mas não acrescentavam: "Cuidado com ele". E as mães mais sérias também não o diziam, tanto ele era polido com elas, alegre, serviçal e condescendente! Era um belo rapagão de 20 anos, com as faces queimadas pelo sol, com os dentes de uma alvura brilhante e os olhos pretos como o carvão.

A água gelada não o molestava quando nadava nos rios ou lagos dos Alpes. Movia-se para um lado e para outro como um peixe. Não havia quem trepasse com tanta agilidade como ele. Era capaz de andar como o caracol em redor dos rochedos a prumo; os seus músculos tinham a solidez e a flexibilidade do aço. E como sabia saltar! Fazia, na verdade, honra aos seus mestres, o gato e a cabra montês.

Rudy passava por ser o melhor guia de toda a região. Poderia ganhar uma fortuna exercendo essa profissão. Não tinha o menor gosto para o ofício de tanoeiro, que seu tio lhe tinha ensinado. O seu prazer e a sua alegria consistiam em ir à caça da cabra montês, o que também dava dinheiro. Rudy era, pois, um bom partido. As moças com as quais dançava no baile sonhavam com ele e mais de uma tinha sempre presente a sua imagem.

 — Ele beijou-me quando dançava comigo — disse Anette, a filha do mestre de escola, à sua melhor amiga. Mas não deveria ter confiado esse segredo, nem mesmo a essa amiga íntima. Esses segredos não são facilmente guardados; são como grãos de areia numa bolsa furada: fogem por todos os lados. Não tardou, pois, que se dissesse de Rudy, apesar de ser um excelente rapaz, que ele beijava as moças com as quais dançava. Todos esses beijos se reduziam a um único que dera, com efeito, em Anette e todavia não era essa a preferida do seu coração.

Na parte baixa do país, perto de Bex, no meio de um bouquê de grandes nogueiras, e nas margens de rápida corrente, habitava um rico moleiro. A sua casa era uma grande e bela construção de três andares, com pequenas torres cobertas de chumbo, que brilhavam quer ao contato dos raios do sol, quer aos da lua; na maior estava desfraldada uma bandeirola, representando uma maçã atravessada por uma flecha, em memória de Guilherme Tell.

O moinho tinha muito bom aspecto e até um aspecto de opulência. Os artistas gostavam de desenhá-lo. Mas não havia desenho que pudesse reproduzir a graça e a beleza da filha do moleiro. Era a opinião de Rudy, que tinha burilada e gravada no seu coração a imagem da moça.

Um olhar da gentil Babette bastara para abrasar subitamente a sua alma, como o tição depressa provoca o incêndio. E o curioso era que a filha do moleiro de nada desconfiara. Ela e Rudy nunca tinham trocado uma palavra.

O pai era rico e a moça muito altamente colocada pela sua fortuna para que se pudesse chegar a ela. — Mas — dizia consigo Rudy — ninguém está colocado tão alto que não possa ser atingido; trata-se somente de saber subir, e pode a subida ser difícil que nunca se cai quando se julga não dever cair. Lembrava-se ele das lições do gato de seu avô.

Um dia Rudy teve que fazer em Bex. Era uma viagem, pois o caminho de ferro nessa época estava longe de estar terminado. Rudy pôs-se a seguir o longo vale por onde volteia o Rhodano, que aí tem uma corrente perigosa, sempre pronta a sair fora do leito e a devastar campos e habitações. Depois de Sion o vale faz um ângulo e estreita se cada vez mais; junto de São Maurício não há mais espaço senão para o rio e a estrada. Um pouco mais longe ergue-se uma velha torre; parece uma sentinela de guarda na fronteira de Vaiais, que termina ali. Atravessa-se uma ponte e entra-se no Cantão de Vaud. A primeira cidade, que aí se encontra é Bex. O vale alarga-se de novo, fértil e soberbo; parece um pomar contínuo de nogueiras e de castanheiras; aqui e acolá bosques de ciprestes e de romeiras. O clima é quente e delicioso. Julgar-se-ia na Itália.

Rudy chegou a Bex e fez o seu negócio. Passeou depois nos arredores do moinho; desejaria fazer certas perguntas a algum criado, mas não viu ninguém. Não descobriu o menor vestígio de Babette; parecia de propósito.

Veio a noite; o ar estava impregnado do perfume de tomilho e da tília em flor. Sobre as montanhas verdejantes estendia-se, como um véu de gaze vaporosa, a claridade da lua que parecia carregada das emanações da primavera. Reinava por toda a parte o silêncio, mas não era nem o do sono, nem o da morte. Parecia antes que a natureza estava acordando e retinha a sua respiração para deixar-se retratar fielmente por um pintor que quisesse traçar a sua imagem no fundo azul do céu. Aqui e acolá, no meio dos campos, viam-se grandes postes, sustentando os fios do telégrafo que atravessavam o vale tranquilo.

Encostado a um desses postes estava um vulto imóvel que de longe parecia um tronco de árvore seca. Era Rudy: tão silencioso quanto a natureza, ele não dormia e ainda menos estava morto.

Do mesmo modo que o anúncio dos grandes acontecimentos, a notícia da queda dos impérios atravessavam o fio telegráfico, sem provocar aí nem movimento nem barulho, enérgicos pensamentos atravessavam o cérebro de Rudy, sem que, na sua aparência, nada se pudesse suspeitar. Aquilo em que estava pensando era a única coisa que podia fazer a felicidade da sua vida e ia ser a preocupação de todos os instantes.

Os seus olhos estavam fitos num só ponto, numa luz, que brilhava através da folhagem: era a luz do quarto da casa do moleiro, onde dormia Babette. Pensar-se- ia, vendo-se a imobilidade e a atenção de Rudy, que ele estava espreitando uma cabra montês; mas nessa ocasião ele era antes a caça do que o caçador: parecia-se com a cabra que, durante muitos minutos, permanece na ponta de um rochedo, sem fazer o menor movimento, como se estivesse esculpida na pedra, até que, de repente, com o menor barulho, dá um salto e desaparece.

Foi precisamente o que fez Rudy. Uma ideia atravessou o seu espírito. Tomou rápida resolução e disse consigo: "Vai, entra com coragem no moinho. Boa tarde, moleiro; boa tarde, senhora Babette"; não é coisa muito terrível de dizer-se! Não se cai quando se tem a convicção de não cair. E, todavia, necessário que Babette me veja, se devo ser seu marido.

Cheio de coragem, pôs-se a caminho. Sabia distintamente o que queria: queria Babette.

Acompanhando o rio, cujas águas amareladas corriam com estrondo, tomou o caminho, orlado de salgueiros, cujos galhos mergulhavam na água e chegou à casa do moleiro.

Mas aconteceu como na velha canção: 'Todos tinham sabido, só o gato tinha ficado em casa".

O gato estava, com efeito, nos degraus da escada, diante da porta; repimpou-se todo, dando o seu "miau". Rudy não compreendia mais a linguagem dos animais. Bateu; ninguém respondeu nem veio abrir a porta. O gato continuou com o seu "miau, miau". Em outro tempo Rudy teria compreendido que isso queria dizer: "Ninguém está em casa". Hoje foi necessário ir ao moinho para saber o que se passava. Ali soube que o moleiro tinha partido para uma viagem bem longe, em Interlaken, e que Babette tinha ido com ele. Foram ver as festas do tiro, que deviam começar no dia seguinte e durar oito dias.

Os atiradores de todos os cantões alemães estavam ali reunidos.

Pobre Rudy! não escolheste bem o momento para ir a Bex, só te restava voltar.

Foi o que ele fez como rapaz prudente. Andou toda a noite e chegou finalmente à casa. Mas vejam só! Não estava aflito nem aborrecido. No dia seguinte mostrava o mesmo bom humor da véspera.

— Babette  pensava ele — está em Interlaken, a muitos dias de marcha daqui, sim, mas isso é quando se vai pelo grande caminho; mas se se tomar os atalhos através da montanha, chegar-se-á muito mais depressa. É justamente caminho necessário a um caçador de cabra montês. Já o percorri uma vez quando, pequenino, vim parar aqui, tendo deixado meu avô. Ah! há festa de tiro em Interlaken. Pois bem serei eu aí e bravo e valoroso, e o serei também no coração de Babette, quando tivermos travado conhecimento.

Tomou o seu saco de viagem com as suas roupas de domingo, a sua espingarda e a sua bolsa de caça. Subiu a montanha e partiu pelo caminho mais curto, que, ainda assim, era bem longo.

A festa começava nesse mesmo dia e devia durar uma semana. O moleiro, ao que lhe disseram, ficaria esses oito dias em casa de parentes, que tinha em Interlaken. Não havia, pois, tempo perdido.

Rudy passou o Gemmi para ir a Grindelwald. Caminhava animado e alegre; o ar puro e vivo dos Alpes dava-lhe forças. Via o vale abaixar atrás de si cada vez mais e o horizonte estender-se na sua frente: aqui e acolá picos e montes diversos, cobertos de neve; teve finalmente diante de si toda a cadeia dos altos montes dos Alpes, toda ela de uma alvura resplandecente. Conhecia todos os picos, dirigiu-separa o lado do de Schreckhorn, que aponta para o céu o seu dedo gigantesco, salpicado de neve.

Atravessou os pontos culminantes do caminho e aproximou-se dos pastos do vale, onde se passara a sua infância. O ar estava agradável, como agradáveis eram os seus pensamentos. Montanhas e vales resplandeciam de verdura e de flores. O coração de Rudy sentia todos os enlevos da mocidade; vozes internas lhe diziam: "Nunca se envelhece. Goza alegremente da vida. Sê livre como o pássaro nos ares. Voa para onde te chama o prazer."

Tornou a ver as suas queridas andorinhas, que cantavam sempre: vi og i og i og vi. Tudo era alegria e animação.

Ao longe estendia-se o campo como um tapete de veludo verde. Aqui e acolá chalés de um aspecto carregado. Ouvia-se o sussurro estridente das águas da Lutschine. Rudy tornou a ver os geleiros, com os seus montões de gelo da cor da esmeralda, as suas fendas escancaradas. Os sinos da capela repicavam como se repicassem para festejar o seu regresso. O seu coração batia. O rapaz estava todo entregue às doces recordações da sua infância. Por alguns instantes a imagem de Babette desapareceu do seu espírito. Passava pelo mesmo caminho, onde, quando pequenino, oferecera aos viajantes as miniaturas de chalés esculpidos por seu avô. Pobre vovô! Via-se a sua casinha, nas alturas, entre os pinheiros; outros a habitavam.

Crianças vieram ao seu encontro oferecendo-lhe seus graciosos brinquedos. Uma delas apresentou-lhe uma rosa dos Alpes. Tomou-a por ser de bom agouro; estava de novo pensando em Babette.

Tornou a descer rapidamente, atravessou a ponte no confluente das duas Lutschine. Tinha deixado a região dos pinheiros. Por toda a parte árvores frutíferas; o caminho estava bordado de nogueiras copadas. Avistou, afinal, bandeiras que o vento desfraldava: cruz brancas sobre fundo vermelho, as cores dos suíços, como as dos dinamarqueses. Interlaken estava diante dele.

Pareceu-lhe uma cidade soberba como nenhuma outra no mundo. Estava ornada para a festa. Não se viam mais multidões de coisas escuras, pesadas, maciças e solenes. Eram chalés alegres, dispostos caprichosamente. Uma dupla fila dos mais belos formava uma rua; eram todos construídos recentemente. Na última vez que Rudy esteve em Interlaken eles ainda não existiam.

Cada uma dessas belas casas tinha um balcão que dava a volta dos quatro lados. A madeira era esculpida, talhada e recortada graciosamente. Dava-se o mesmo com o contorno das janelas e com a borda do telhado que dava para o pequeno jardim, todo florido, que separava o chalé da rua. Detrás estendiam-se vastos prados verdejantes onde pastavam rebanhos de vacas, cujos chocalhos se ouviam ao longe. O vale estava fechado de todos os lados entre altas montanhas, com exceção do meio, que estava aberto e que deixava ver no horizonte a Jungfrau, a rainha dos Alpes, em todo o seu esplendor.  

Que multidão de homens e de mulheres de todos os países! Que belas toaletes! E esse povo de suíços dos diferentes rincões, com os costumes tão pitorescos quão variados, que belo quadro! As casas estavam embandeiradas de alto a baixo, ornadas de emblemas e de inscrições alegres. Que animação havia no país! Por toda a parte música, cantos, realejos, bandos de músicos ambulantes. Acrescente-se a isso os gritos de alegria, os "vivas!" de pessoas que chamavam umas às outras na multidão.

No meio de todo esse barulho ouvia-se o tiro regular das espingardas. Essa era, para os ouvidos de Rudy, a mais agradável de todas as músicas. Ela lhe fez esquecer Babette; e era, todavia, por causa dela que ele tinha vindo.

Os atiradores estavam reunidos perto dos alvos, cada um com uma coroa de folhas de carvalho em volta do chapéu e o número de ordem no centro. Rudy meteu-se logo no meio deles. Era o mais hábil, o mais feliz; não falhava o alvo uma só vez.

— Quem é esse jovem caçador estrangeiro? — perguntavam todos. — Ele fala francês, parece ser do Cantão de Valais — diziam uns.

— Fala também muito bem o nosso alemão — diziam outros e acrescentavam: — Dizem que ele habitou na sua infância o país, em Grindelwald.

Quanta vida havia nesse rapaz! os seus olhos cintilavam; o seu olhar era tão seguro quão firme o seu braço. A felicidade dá coragem, e Rudy tinha grande provisão dessa última. Não tardou em ficar cercado de admiradores. Era louvado em voz alta. Babette tinha, com eleito, quase inteiramente desaparecido do seu pensamento.

De repente mão pesada bateu-lhe no ombro e Rudy ouviu então a voz rude de um homem, que lhe disse em francês: — Sois do Cantão de Valais, não é assim?

O rapaz virou-se e viu um homem gordo, de rosto alegre: era o rico moleiro de Bex. Com o volume do seu corpo ocultava a gentil Babette, que teve, porém, o cuidado de sair dessa sombra e de aparecer diante de Rudy, olhando-o com os seus belos olhos pretos e vivos.

O rico campônio estava contente por ver que um caçador do seu país era o melhor atirador e alcançava os melhores prêmios. Triunfava como se lhe coubesse uma parte da honra.

Decididamente Rudy era um menino querido da fortuna. Aqueles que o tinham feito ir a Interlaken e que já havia quase esquecido, vinham em pessoa procurá-lo. Travou-se entre os três conversação cordial. Rudy era, na verdade, o herói da festa. Em Bex o moleiro era o homem mais considerado pelo seu dinheiro e pelo seu belo moinho. Os dois homens apertaram reciprocamente a mão. Babette também estendeu a sua a Rudy, que a apertou, olhando de tal modo para a moça que esta ficou corada e confusa.

O moleiro contou a grande viagem que tinha feito com sua filha; falou das grandes cidades que tinham visto. Viajaram em diligência, em caminho de ferro e em navio a vapor.

 — Eu tomei caminho mais curto, disse Rudy; passei por cima dos montes. Não os há tão altos que não se possa subir quando se quer.

— Mas pode-se também quebrar a cabeça ou uma perna disse o moleiro; e o senhor parece-me homem exposto a isso por ser temerário.

— Não se cai quando não se pensa em cair — retorquiu Rudy.

Os parentes do moleiro, que lhe deram hospitalidade, eram do mesmo Cantão de Valais; pediram a Rudy que entrasse na sua casa e se sentasse à sua mesa. Esse convite agradou particularmente a Rudy. A fortuna favorecia-o como faz sempre para os que confiam em si mesmos e dizem: "Deus nos deu nozes mas não é ele quem as abre para nós." Rudy sentou-se como se fosse da família. Beberam à sua saúde, em homenagem às suas proezas; Babette também tocou o seu copo no dele. Rudy sentia-se inteiramente feliz. A tarde todos foram passear na avenida, debaixo das grandes nogueiras, diante dos grandes edifícios. A multidão era tal que Rudy ofereceu o seu braço a Babette, que o aceitou. A sua alegria não tinha limite e, para poder francamente manifestar-se, disse que estava de tão bom humor porque tinha encontrado muitos dos seus melhores camaradas. Tinha o aspecto tão ingênuo, tão completamente satisfeito que Babette julgou dever apertar-lhe a mão para felicitá-lo.

Caminhavam os dois como se fossem conhecidos antigos. Ela estava alegre e divertida. Encantava Rudy quando fazia lhe observar a exageração e o ridículo das toaletes das grandes damas estrangeiras e imitava os seus modos afetados de andar. "E, todavia, não devemos nos rirmos muito delas, pois são criaturas excelentes, bem amáveis e generosas." Ela contou que sua madrinha era uma grande dama inglesa, que estava em Bex havia dezoito anos passados, quando Babette nasceu. Fora ela quem dera o belo broche de ouro que Babette trazia consigo. Duas vezes a madrinha lhe escrevera e devia vê-la nesse ano em Interlaken, com suas filhas, "filhas já velhas", dizia Babette. Tinham apenas trinta anos as filhas da madrinha, mas Babette só tinha dezoito!

E aquela boquinha não parava um só instante e tudo o que ela tagarelava parecia ser coisa da maior importância para Rudy.

Chegou por fim a vez de Rudy de dizer o que ele tinha que dizer: quantas vezes estivera ele em Bex, como conhecia bem o moinho; quantas vezes vira Babette, que naturalmente não o tinha notado; como ele viera ultimamente à sua casa com uma multidão de pensamentos, que devia calar. Soube enfim que o moleiro e sua filha tinham partido para longe, mas não de modo que não pudesse ir ter com eles saltando por cima dos Alpes.

Rudy disse-lhe tudo isso e muitas coisas ainda. Descreveu-lhe o encanto em que se via por achar-se ao lado dela, pois fora exclusivamente por causa dela que viera a Interlaken e não por causa da festa.

Babette ficou silenciosa. A confidência foi talvez além do que ela podia compreender. O sol deitava-se na ocasião em que os dois assim conversavam e desapareceu detrás das altas montanhas. A Jungfrau estava resplandecente no meio de um céu de púrpura; ao lado dela estavam como que espontados os cimos verdejantes. Todos paravam para admirar esse espetáculo.

— Em parte nenhuma do mundo vê-se semelhante maravilha — disse Babette, olhando para esse quadro da natureza.

— Em parte nenhuma — respondeu Rudy, não tirando os olhos da moça.

— E amanhã deverei partir — acrescentou ele suspirando.

— Venha ver-nos em Bex — murmurou Babette. — A sua visita agradará a meu pai.

 

CAPÍTULO 5: A VOLTA

Quantas coisas tinha Rudy para levar consigo quando, no dia seguinte, tomou o caminho das altas montanhas! Recebera como prêmios três taças de prata, duas excelentes espingardas e um serviço de prata. Essas riquezas nada eram para ele, comparadas com as últimas palavras de Babette. Nelas pensava continuadamente; pareciam dar-lhe asas para transpor as alturas escarpadas.

O tempo estava carregado, o frio úmido, o céu escuro. As nuvens corriam baixo, estendendo um véu de luto nos cimos das montanhas e ocultando os picos cobertos de neve. Não havia o menor rumor de alegria, nem o canto dos pássaros, nem o tinido das campainhas. Ouviam-se as pancadas regulares da machadinha dos lenhadores e o barulho que faziam os pinheiros, rolando pela montanha abaixo, o ronco surdo e monótono do Lutschine a o assobio lastimoso do vento.

De repente uma moça apareceu ao lado do caçador. Ele não a vira chegar. Ela subia também a montanha. Os seus olhos tinham uma fascinação singular, e atraíam o olhar do transeunte; eram claros como o cristal e estranhos.

— Tens um apaixonado? — perguntou-lhe Rudy, que estava com a cabeça toda cheia de Babette e não pensava senão no amor.

— Não tenho — respondeu ela rindo-se, como alguém que não estava dizendo a verdade.

— Mas não demos esta volta, passemos para a esquerda, é mais curto.

— Sim, para cairmos no precipício — disse ele. — Tu não conheces melhor o caminho e queres guiar os outros?

Conheço perfeitamente o caminho que devo tomar, replicou ela. Sou senhora dos meus pensamentos, enquanto que os teus estão ainda lá embaixo no vale. Aqui é preciso pensar na Rainha dos Gelos. Os homens pretendem que ela lhes é funesta.

— Não tenho medo dela — replicou Rudy. — Já uma vez ela teve de deixar-me, quando eu era pequenino. Hoje, que sou homem, saberei evitá-la.

A escuridão aumentou, a chuva caía; vieram depois rajadas de neve, que, por momentos, pareciam cegar o caçador.

— Dá-me a tua mão — dizia a moça — eu te ajudarei a subir.

— Tu queres ajudar-me! — respondeu Rudy. — Obrigado, ainda não preciso do auxílio de uma mulher para transpor os rochedos.

Apartando-se da sua companheira, ele caminhou mais depressa. Foi surpreendido por uma tempestade de neve, acompanhada de vento rijo. Atrás de si Rudy ouviu a moça rir e cantar coisas estranhas. Era, pensou ele, alguma mistificação da Rainha dos Gelos. Achava-se justamente junto do lugar onde sua pobre mãe caíra com ele em poder dessa Rainha cruel.

A neve diminuiu enfim. Olhando para traz, não viu mais ninguém; mas ouvia a distância risadas e cânticos, que não pareciam proceder de voz humana. Quando chegou ao alto da montanha e tomou o caminho, que desce para o vale do Rhodano, viu, do lado do Monte Branco, duas belas estrelas que brilhavam no azul do céu. Pensou nos belos olhos de Babette e na sua felicidade, e essas ideias confortativas fizeram-no esquecer-se do cansaço e do frio que sofrera.

 

CAPÍTULO 6: VISITA AO MOINHO

— Que bonitas coisas tu trazes? — exclamou a velha tia; — são coisas como se veem em casa dos grandes senhores!

Os seus olhos de águia brilharam olhando para os objetos de prata. Estava deveras comovida.

— A fortuna protege-te, Rudy — acrescentou ela. — Deixa-me que te beije, meu filho.

— Rudy deixou-se beijar, sem ligar grande interesse. — Mas como estás belo, meu rapaz! — disse ainda a velha.

— Não me dê dessas ideias — respondeu Rudy, rindo-se, mas contente desta vez com o que lhe dissera a tia. — Repito-o — disse a tia — a fortuna te sorri.

— Acredito quanto a isso — respondeu Rudy que pensava em Babette. O rapaz estava impaciente por descer ao vale.

 — Já devem estar de volta — disse ele consigo algum tempo depois. — Já se passaram dois dias depois daquele que eles tinham marcado para a volta. Não posso mais esperar. Vou a Bex.

Para ali dirigiu-se e encontrou de volta o moleiro e sua filha. Foi muito bem acolhido. Recebeu felicitações da parte dos parentes de Interlaken. Contra o seu costume Babette pouco conversou, mas os seus olhos falavam e isso bastava a Rudy. Ordinariamente o moleiro gostava de tagarelar. Estava habituado a provocar gargalhadas com os seus trocadilhos e jogo de palavras. Não fosse ele o rico moleiro? Mas desta vez ele preteriu ouvir as histórias de caça de Rudy. Este contou-lhe as lutas, os perigos que correm os caçadores de cabras monteses nos picos dos Alpes, quando são obrigados a escorregar no parapeito de neve, que o gelo deixou colado no rochedo, ou a atravessar um precipício sobre um pinheiro cambaleante, que a tempestade atirou entre dois rochedos.

Rudy animava-se fazendo essa narração. A sua fisionomia tinha uma expressão de intrepidez; os seus olhos pareciam encher-se de chamas quando falava da vida do caçador, das espertezas da cabra montês, dos seus saltos perigosos, das terríveis tempestades de neve ou do furacão, o Foehn que derruba tudo o que encontra na sua passagem. Rudy compreendeu que se insinuava cada vez mais no espírito do moleiro com todas essas descrições. O moleiro gostava principalmente quando lhe falavam nas águias e nos abutres.

— Não longe daqui, no Vaiais — continuou Rudy — há um ninho de águia, feito muito adestradamente num rochedo em ponta. Lá está uma pequena águia; mas é impossível apanhá-la. Um inglês ofereceu-me há dias um punhado de ouro se eu lhe apanhasse e lhe desse vivo o pássaro; mas tudo tem limites: seria loucura tentar essa empresa.

Nesse ínterim o vinho corria como corriam as palavras do caçador. Meia-noite bateu quando ele deixou a casa e achava que ainda era cedo para partir. Olhou para a traz até que pudesse avistar luz através da folhagem.

Poucos momentos depois o gato do salão foi ao telhado pela trapeira e encontrou-se com o gato da cozinha, que passara pela goteira.

— Sabes da notícia? — disse o primeiro — ficaram noivos secretamente. O pai de nada sabe. Rudy e Babette deram a mão debaixo da mesa. Três vezes ele pôs o pé nas minhas patas de frente, mas eu não miei para não chamar a atenção.

— Eu não me teria sacrificado a esse ponto ­— disse o segundo.

— O que é permitido na cozinha — retorquiu o primeiro — não é conveniente no salão. É preciso conhecer-se a gente com a qual se lida. Eu desejaria saber o que dirá o moleiro quando souber da coisa.

Era justamente o que Rudy também desejava conhecer.

Quanto a ficar muito tempo à espera era bom nem pensar nisso. Poucos dias depois, na pesada diligência que ia de Sion a Bex, passava, pela ponte do Rhodano, o belo Rudy, cheio de coragem como sempre, e jubilando de antemão pelo consentimento que o moleiro ia dar-lhe nessa mesma tarde.

Nessa mesma tarde a diligência tomou o caminho de Sion e Rudy também era do número dos viajantes; nesse ínterim o gato do salão corria ligeiríssimo à procura do seu companheiro para dar-lhe notícias.

— Escuta — disse lhe ele. — O moleiro sabe de tudo. Rudy veio há pouco. Ele e Babette estiveram cochichando durante muito tempo no corredor, diante do quarto do pai. De vez em quando eu metia-me por entre os seus pés, mas qual! eles estavam preocupados e não pensavam em fazer-me carinhos.

— Eu vou já — disse Rudy— ter com teu pai; é desse modo que deve proceder um homem honrado.

— Queres que eu vá contigo? disse Babette. — A minha presença te dará coragem.

— Não me falta coragem — retorquiu Rudy; — vem, todavia comigo; na tua presença teu pai será amável e dará ou não o seu consentimento.

— E entraram. Rudy nessa ocasião pisou-me forte na cauda. Entre nós digo-te que acho muito desastrado esse campônio. Pus-me a miar, mas, nem ele nem Babette tinham ouvidos para ouvir-me. Abriram a porta e entraram os dois, eu na frente. Pulo para uma cadeira, não querendo mais expor-me a ser pisado e não sabendo como Rudy ia sair do negócio. Mas foi o moleiro que deu por paus e por pedras? Batia, furioso, com o pé no soalho e dizia: — Vai-te daqui, volta para as tuas montanhas, para as tuas cabras monteses!

— Ele tem razão; Rudy pode caçar a vontade as cabras, mas não a nossa Babette.

— Mas enfim o que disseram eles? — perguntou o gato da cozinha.

— O que eles disseram? O que é costume dizer quando se pede a mão de uma moça: eu amo-a, ela me ama; quando há leite para um, há também para dois etc. etc. — A minha filha está em outra posição que não a tua, respondeu o nosso patrão. — Como pensas tu atingir à cadeira de ouro, em que ela está sentada?

— Nada é tão alto, a que não se possa atingir quando se quer.

— É deveras teimoso esse rapaz... todavia — disse o moleiro — não pudeste no outro dia apanhar a pequena águia e Babette ainda está mais altamente colocada do que ela.

— Eu as terei ambas.

 — Pois bem! eu dou-te Babette, se me trouxeres viva a águia.

E o moleiro pôs-se a rir como uma criança. — A espera, Rudy, obrigado pela tua visita; se voltares amanhã, ninguém estará em casa. Boa viagem, Rudy.

Babette também disse adeus ao seu Rudy, com um ar lamurioso.

— A palavra é a palavra — retorquiu Rudy. — Um homem não se desdiz. Não chores Babette eu te trarei a águia.

 — Eu espero que quebrarás a cabeça e que levarás a breca — disse o moleiro — e ficaremos assim livres de ti.

— Foi o que se chama pôr alguém a pontapés pela porta fora — concluiu o gato do salão. — Rudy partiu. Babette não sai da sua cadeira e chora constantemente. O moleiro canta uma canção alemã que aprendeu durante a viagem. Eu vejo tudo isso sena me incomodar. E de que serviria incomodar-me?

— Isso te ocuparia, pelo menos — disse o gato da cozinha — enquanto fazes de preguiçoso, estendido em boa cadeira.

 

CAPÍTULO 7: O NINHO DA ÁGUIA

Ouvia-se na montanha uma voz retumbante cantar ária alegre; devia ser alguém de bom humor e cheio de coragem: eia Rudy.

Foi ter com o seu amigo Vesinand.

— Quero que me ajudes Ragli — disse-lhe ele — a apanhar a águia, cujo ninho está no cume daquele rochedo.

 — Não quererás antes ir arrancar os olhos à lua? — replicou o seu camarada. — És com efeito bom gracejador.

— Sou um homem alegre, não há duvida, principalmente depois que penso em casar-me, mas seriamente preciso daquela águia e eis a razão.

E contou aos seus amigos o que se passava.

— És um rapagão muito temerário — disseram eles — o que queres fazer é coisa impossível; levarás a breca.

— Não se cai — disse Rudy — quando não se quer cair.

Cerca de meio-dia, puseram-se a caminho, munidos de paus enormes, escadas e cordas; atravessaram bosques e passaram de rochedo a rochedo. Subiram, subiram até que caísse a noite. Ouvia-se o barulho da catadupa no vale e das cascatas na montanha. Os caçadores aproximaram-se do rochedo a pique onde se achava o ninho.

 A noite estava escura, o céu coberto de nuvens. Meteram-se numa cavidade entre as duas paredes do rochedo. Apenas recebiam um filete de luz.

Finalmente, depois de muito trabalho, pararam à beira de um precipício, no fundo do qual estrondeava uma catarata. Estavam todos silenciosos. Esperaram que o dia nascesse. Era nessa ocasião que a mãe da pequena águia deixava o ninho para ir à caça. Era necessário matá-la antes de pensar em apanhar a filha. Rudy pôs-se imóvel de encontro ao rochedo, com um joelho em terra; tinha a sua espingarda apontada para a cavidade do rochedo, onde se achava o ninho; os seus olhos não cessavam de fitar esse ponto.

Os caçadores esperaram muito tempo. Por fim um grito estridente, um assobio agudo fez-se ouvir acima deles. O pouco de luz, que recebiam do alto, foi escurecido por um objeto que voara. Era a águia que ia à procura de alimento para a filha. Um tiro foi disparado. As grandes asas do pássaro bateram por momentos convulsivamente ficando depois imóveis,

O pássaro, ferido mortalmente, descia devagar, como que seguro por um paraquedas, no precipício. Ouvia-se o barulho dos galhos de árvore que quebrava na sua queda.

Puseram-se então alertamente à obra. Ligaram as três longas escadas, pensando que elas iriam até ao alto. Fixaram-nas na extremidade da reborda, a alguns passos do precipício, em lugar onde o pé pudesse ainda apoiar-se com segurança. Mas elas não chegavam até ao alto. Do lugar até onde iam ao ninho, o rochedo era liso como a parede. O que fazer? Depois de terem refletido e discutido, os caçadores resolveram amarrar juntas mais duas escadas e ir, por cima do rochedo, uni-las às três outras. Levaram-nas ao pico com muita dificuldade e amarraram-nas fortemente com cordas grossas. Ei-los balouçando-se em cima do precipício, ao lado do rochedo que abrigava o ninho. Rudy desceu lentamente e pouco depois achava-se no último degrau. A manhã estava fria, glacial; do negro abismo sabiam camadas de nevoeiro intenso. Rudy parecia uma mosca, balouçando-se num fio de palha, agitada pelo vento, ou um pássaro que fazia o seu ninho à beira de uma alta chaminé; mas a mosca e o pássaro podem voar e Rudy não podia senão quebrar a cabeça.

Sem se perturbar Rudy deu às duas escadas um movimento de vai-e-vem. Imitava a aranha, que, suspensa na extremidade de um fio longo, balança-se antes de pular sobre o inimigo. Na terceira oscilação, apanhou a extremidade das escadas fixas na parte baixa, e, com mçao robusta e firme, ligou-as às duas outras.

Ei-las pois ligadas todas as cinco, ajustadas de encontro ao rochedo, mas não parecendo mais sólidas do que a vara que dobra com o vento.

Restava cumprir a parte mais perigosa da empresa: era necessário trepar nos degraus e sentir-se bambolear por cima de um abismo de muitos milhares de pés de profundidade. Mas Rudy não se esquecera das lições do gato, seu primeiro mestre. A vertigem que adejava nos ares atrás dele, em vão estendeu os braços, como um pólipo, para agarrá-lo. Rudy nem sequer sentiu a sua presença. Chegou ao alto da escada, perto do ninho. Pôde avistá-lo e quase tocou-o com a mão e nada mais.

Sem hesitar apalpou os galhos dos arbustos espessos, que formam o ninho da águia. Achou um resistente e solido: agarrou-se a ele e atirou se no espaço. Ei-lo com a metade do corpo metida na cavidade do rochedo.

Um cheiro nauseabundo de animais mortos parecia sufocá-lo. Eram restos apodrecidos de cordeiros, cabras e pássaros de toda a espécie. A vertigem atirava-lhe essa fedentina para atordoá-lo. No fundo do abismo, a Rainha dos Gelos em pessoa fitava sobe ele os seus olhos ardentes. Parecia a antiga cabeça de Medusa.

— Estás confiante — disse ela com uma alegria feroz.

Rudy não a via. Avistou no fundo do ninho a filha da águia, que já era forte e terrível, embora não soubesse ainda voar. Rudy, fitanda-a, agarrou-se com uma das mãos ao galho, com a outra atirou sobre animal um laço que preparara. A corda enrolou-se nas patas da águia. Rudy puxou depois o laço e atirou por cima dos ombros a corda e o animal, de modo que o jovem pássaro estava separado dele por um bom pedaço de corda, que amarrou em volta do corpo. Em seguida agarrando o galho com as duas mãos tanto fez que os seus pés encontraram a escada, à qual se segurou com um movimento firme e brusco. — Segura-te e se não pensares em cair não cairás. Era o que o gato lhe tinha ensinado; lembrou-se disso, não deixou-se atordoar e desceu sem receio.

Ouviu-se então um canto de vitória entoado por voz forte e alegre. Rudy estava de volta ao rochedo com a águia segura e bem viva.


CAPÍTULO 8: O QUE CONTA O GATO DO SALÃO

— Eis o que desejais — disse Rudy, ao entrar em casa do moleiro de Bex e pondo no chão um grande cesto. Descobriu-o, deixando logo à vista dois brilhantes olhos amarelos com um círculo preto que pareciam atirar chamas. Era um olhar violento, cheio de furor mortal. O bico do animal estava aberto, pronto a dar um golpe terrível. No pescoço as suas veias estavam inchadas de sangue agitado pela raiva

— A pequena águia! — exclamou o moleiro. Babette deu um grito e, na sua emoção, deu um pulo para o lado. Fitava os seus olhos ora sobre a águia, ora sobre Rudy.

— És um valente que não sabe o que é o medo — disse o moleiro.

— E vós sois um homem conhecido por não ter senão uma palavra — respondeu Rudy; cada qual tem o seu caráter.

— Mas como foi que não quebraste a cabeça, as pernas, os braços? — replicou o moleiro.

— — Agarrei-me com vontade — disse o rapaz — como tenho agora segura Babette.

— Antes é preciso que ta deixem agarrar — disse o moleiro. Mas ria-se ao mesmo tempo, o que era de bom agouro. Babette bem o sabia.

— Tiremos — continuou ele — o animal desse cesto; incomoda-me vê-lo tão cheio de cólera. Como foi que o agarraste?

Rudy contou todos os pormenores da sua expedição. O moleiro ouvia com atenção, fitando o rapaz com olhos cada vez mais admirados.

— Com tal coragem e tal felicidade — disse ele — poderás sustentar três mulheres.

— Obrigado pelo elogio — respondeu Rudy — tomo nota dele.

— Oh! bem sei o que tu queres, mas tu ainda não tens Babette — disse o moleiro, batendo familiarmente no ombro do jovem caçador.

 — Adivinha tu só o que acaba de se passar — disse o gato do salão. — Rudy trouxe a pequena águia e trocou-a por Babette. Os dois beijaram-se na presença do pai, como se fossem noivos. O velho não bateu mais com o pé; esteve manso como um cordeiro. Foi fazer o seu sono habitual da tarde e deixou o casal conversando. Eles têm tanta coisa a dizer, um ao outro, que creio não terão acabado no dia de Natal.

 Com efeito Natal chegou; Rudy e Babette conversavam sempre horas inteiras.

O vento fazia rodopiar as folhas mortas e os flocos de neve.

A Rainha dos Gelos estava no seu soberbo palácio, sentada no seu trono, com os seus mais belos atavios. Dos rochedos pendiam enormes massas de gelo, grandes como elefantes. Dos pinheiros salpicados de neve estendiam-se grinaldas que brilhavam como se fossem imensos colares de diamantes.

A Rainha dos Gelos atirou-se às asas do vento e estabeleceu o seu domínio até aos vales mais abrigados. Bex estava toda coberta de neve. Ao passar, a Rainha viu, na casa do moleiro, Rudy apertando a mão de Babette. Parou e escutou; ouviu dizer que o casamento se realizaria no verão. Ela ouviu-o não uma vez, mas cem vezes; pois os noivos não falavam senão nisso.

O sol tornou a aparecer; e com ele voltou a rosa dos Alpes. Babette estava alegre, risonha, encantadora como a fresca primavera.

— Meu Deus! — dizia a gato do salão — como podem essas duas jovens criaturas ficar continuadamente sentadas ao lado uma da outra? Os miados eternos desses namorados acabariam na verdade por me aborrecer.

 

CAPÍTULO 9: A RAINHA DOS GELOS

Com a primavera tinha brotado a folhagem espessa e frondosa das belas ruas de castanheiros e de nogueiras, que se estendem da ponte de São Maurício até às margens do lago Lehmann, em toda a extensão do Rhodano. O rio tem ali uma corrente impetuosa; ferve tanto quanto no lugar de onde sai do vasto geleiro, residência favorita da Rainha dos Gelos.

Esta deixa-se levar pelos ventos às maiores alturas dos Alpes, onde senta-se sobre um leito de neve em pleno sol e atira pelos vales os seus olhares penetrantes; deleita-se em ver os entes humanos, semelhantes a um formigueiro, laboriosamente ocupados na base do monte carrancudo.

— As filhas do sol — disse ela com ar de desprezo — vos chamam inteligências! Nada mais sois do que vermezinhos. Uma simples massa de neve basta para vos esmagar e destruir as vossas casas, as vossas aldeias.

Ergueu altiva a sua cabeça. Os seus olhos que atiram a morte abraçaram o vasto horizonte. No vale ouviam se saltar as pedras com as explosões de pólvora. Máquinas rolavam pesadamente. Estavam sendo assentados trilhos de ferro. Abria-se um túnel nos Alpes

— Ei-los fazendo o que fazem as toupeiras — disse a Rainha altiva — fazem trincheiras subterrâneas. Com o barulho das minas pulam de medo, e no entretanto não é muito mais forte do que o de um tiro de espingarda. Eu, quando guarneço os meus palácios, faço barulho igual ao da trovoada.

Do fundo do vale eleva se uma fumaça branca, que aproxima-se cada vez mais: é o vapor de uma locomotiva.Parece imenso penacho, ornando a cabeça de comprida cobra. O trem com os seus vagões passa mais depressa do que uma flech—a.

— Eles julgam-se os senhores da terra — retorquiu a Rainha dos Gelos. — Estão cheios de orgulho por serem inteligências. Mas o poder pertence às forças da natureza.

Riu-se quando pronunciou essas palavras. O eco fez-se ouvir ao longe, abalando o ar.

Eis uma massa de neve que rola! " disse a gente do vale.

As Filhas do Céu entoam uma canção, que celebra o espírito do homem: esse espírito domina o mar, desloca as montanhas, enche os precipícios e torna-se senhor das forças da natureza.

Enquanto elas cantam um trem percorre o espaço à distância.

A Rainha dos Alpes olha para ele, com ar sarcástico.

 — Eis essas inteligências! — diz ela — estão a mercê da força que os arrasta. A frente o condutor está de pé, altivo como um rei. Os outros vão empilhados nos carros. Quase todos dormem tranquilamente, tal é a confiança que têm de que o dragão do vapor não os leva à ruína.

Ela riu-se de novo.

— Eis ainda uma bola de neve! — disse a gente do vale.

— A cruel Rainha dos Gelos pode fazer o que entender; ela não nos separará um do outro — diziam Rudy e Babette, que viajavam nesse mesmo trem.

 — E aquele casal! — exclamou a Rainha. — Destrói rebanhos de cabras monteses, milhares de pinheiros, rochedos mais altos do que as torres de igrejas; como não acabarei também com essas pretensas inteligências! Saberei esmagar principalmente esse casal, que ousa afrontar-me.

Riu-se uma terceira vez.

— Sempre a neve! o que se passa lá por cima? — repetia a gente de vale, olhando para a tempestade.

 

CAPÍTULO 10: A MADRINHA

Em Montreux, perto de Clavens, nas margens encantadas do lago Lemann, residia a madrinha de Babette, a senhora inglesa, com suas filhas e um jovem parente. Tinha chegado recentemente da Inglaterra; e já o moleiro tinha ido visitá-la, anunciando-lhe o casamento de Babette. O velho falara-lhe com entusiasmo de Rudy, da festa do tiro, da pequena águia. Em resumo, contara-lhe toda a história desse noivado, que tinha vivamente interessado o auditório. Todos ficaram simpatizando com Babette, com Rudy e até com o moleiro. Os três foram convidados a passar um dia em Montreux.

Toda essa costa do lago foi cantada pelos poetas. Ali, nas margens dessas águas de um azul límpido, Byron costumava sentar-se debaixo das nogueiras, onde escrevia os seus magníficos versos sobre o prisioneiro, outrora encerrado no castelo tenebroso de Chillon. Um pouco mais longe, nos altos caminhos umbrosos de Clasens, Jean-Jacques Rousseau dava os seus passeios, pensando em Heloísa.

Mais atrás, a pouca distância do lugar em que o Rhodano se precipita no lago, acha-se um ilhéu tão pequeno que da costa parece uma barca. Há cem anos passados era apenas um rochedo. Uma bela dama desse tempo mandou levar para ali grande quantidade de terra e plantou três acácias, que, com as suas folhas, cobrem hoje todo o ilhéu.

Babette achou esse local encantador. Na sua opinião era o ponto mais belo dessa paisagem magnífica. — Como se deve viver bem neste pequeno paraíso! — dizia ela. — Quis ir a terra mas a barca não parou e deixou os viajantes em Virnex.

Andaram por entre paredes embranquecidas, queimadas pelo sol, que se estendem na direção das vinhas de Montreux. Diante das choupanas dos camponeses elevam-se maciços de figueiras, de louros e de ciprestes. A casa da madrinha estava situada no meio da costa.

Foram ali recebidos com a maior cordialidade. A madrinha era uma senhora alta com o ar sorridente e gracioso. Na sua infância devia ter-se parecido com um anjo de Rafael; hoje, com os seus cabelos prateados fazia o efeito de uma santa. As suas filhas eram moças esbeltas, elegantes, vestidas à última moda. O jovem primo estava vestido de branco da cabeça aos pés; tinha cabelos louros avermelhados e uma longa barba da mesma cor; desde logo mostrou-se cheio de atenções para com a pequena Babette.

No salão, sobre uma grande mesa, achavam-se gravuras, belos álbuns ricamente encadernados, mas ninguém pensava em olhar para eles. As janelas que davam para a varanda estavam abertas, e via-se o magnífico lago em toda a sua extensão. A massa d'água estava tão tranquila que as montanhas da Saboia, com as suas aldeias, os seus bosques, os seus cimos cobertos de neve, ali refletiam, como se fosse um espelho.

Rudy, que sempre era vivo e alegre, sentiu-se pela primeira vez na sua vida fora do seu natural. Pisava no chão encerado como sobre ovos! Quanto o aborreciam essas maneiras inglesas, elegantes e compassadas!

Suspirou quando saíram para passear. Mas novo aborrecimento: andavam tão devagar que ele podia dar três passos para frente e dois para trás, que não chegaria atrasado.

Foram visitar o velho e tenebroso castelo de Chillon, todo ele cercado pelas águas do lago. Viram a prisão, o aparato de tortura, o cepo para as execuções, o alçapão, onde os condenados eram atirados, ao que se diz, sobre espinhos de ferro, no meio da água. Byron celebrou esses lugares no mundo da poesia; mas Rudy sentia-se ali quase tão infeliz quanto se estivesse preso. Encostou-se a uma janela e olhou para o ilhéu solitário, onde foram plantadas as três acácias. Ali desejaria ele estar, longe da sociedade que o importunava, com o palavrório e os modos dos campônios.

Babette, pelo contrário, divertia-se a valer. Ela disse-o a Rudy, na volta, acrescentando que o jovem inglês lhe dissera que ela era uma moça sem imperfeição.

— E ele é um tolo e presumido — replicou Rudy bruscamente. Era a primeira vez que pronunciava uma palavra que desagradasse a Babette. O jovem gentleman lhe tinha dado uma lembrança, um belo volumezinho, o Prisioneiro de Chillon, de Byron, traduzido em francês.

— Poderá ser um livro interessante — disse Rudi; quanto no pelintra que to deu, não posso suportá-lo.

— Parece-se, com efeito, com um saco de farinha sem farinha — disse o moleiro — rindo-se a bom rir da caçoada. Rudy riu-se ainda mais forte e achou que o moleiro tinha muitíssimo espírito.

 

CAPÍTULO 11: O PRIMO

Quando Rudy, alguns dias depois, foi ao moinho, encontrou se com o jovem inglês. Tinham-no convidado para jantar. Babette preparara as trutas, cobrindo-as de salsa, para que tivessem melhor aparência.

— Era desnecessário — pensou Rudy... — O que faz aqui esse estranho e por que Babette dá-lhe tanta honra?

Tinha ciúmes. Babette ria-se do seu mau humor. Conhecia as suas excelentes qualidades, e sentia-se satisfeita por conhecer também as suas fraquezas. Pôs-se a brincar com o coração de Rudy, que era todavia o ídolo da sua alma. O amor de Rudy fazia a sua única felicidade na terra. No entretanto mais o rosto do caçador se contraía, mais Babette tinha vontade de rir-se. Ela seria capaz de dar um beijo no inglês de barba vermelha, se estivesse certa que Rudy partiria cheio de raiva, pois desse modo teria visto quanto ele a amava!

Esse procedimento de Babette não era o de uma moça prudente; mas ela tinha 19 anos e não refletia que essas maneiras não condiziam com a noiva de Rudy.

O gentleman foi-se, mas voltou à tarde passear em volta do moinho. Chegou ao rápido riacho, que fazia a roda girar. Vendo na sua frente uma luz que brilhava no quarto de Babette, caminhou nessa direção. Saltou o riacho e quase caiu dentro d'água: levantou-se todo molhado e sujo. Continuou o seu caminho e chegou a um velho pé de tília, perto das janelas de Babette. Não sabia trepar como Rudy numa árvore, mas sempre se arranjou e encostou-se a um galho. Pôs-se a cantar uma canção de amor. Julgava a sua voz melodiosa como a do rouxinol, quando não era mais agradável do que a da coruja.

Babette ouviu o e levantou a cortina da janela para ver quem era. Viu no galho da árvore um homem vestido de branco. Suspeitou que fosse o seu admirador, o jovem inglês. Estremeceu de medo e de cólera, apagou a vela e fechou violentamente a janela, deixando o louco no seu gorjeio.

— Seria terrível — pensou ela — se Rudy estivesse no moinho. Mas a coisa foi pior. Ele tinha ficado nas imediações. Ouvira a voz do inglês, correra até à árvore a ali começou a dar gritos de cólera.

— Eles vão bater-se, matar-se! — disse Babette consigo. Abriu a janela, chamou Rudy e pediu-lhe que se retirasse. Ele não quis.

— Exijo-o — disse ela.

 — Ah! Tu queres que eu parta! Era então um encontro que tinhas marcado! Isso é uma vergonha, Babette.

— O que dizes é indigno e eu te detesto! Vai-te! vai-te! —exclamou ela e prorrompeu em pranto.

— Não merecia esse tratamento — disse ele irritado e partiu. As suas faces pareciam inchadas e aparentava ter brasa no seu coração.

Babette atirou-se na cama soluçando: — Eu, que tanto te amo Rudy — murmurou ela — como podes tu acreditar que eu seja capaz de semelhante coisa?

Pensando nisso sentiu-se ofendida e teve um momento de cólera. Foi melhor assim, porque senão ficaria abatida pela tristeza.



CAPÍTULO 12: O PODER FUNESTO

Rudy deixou Bex e regressou à casa. Tomou o caminho das montanhas pelos campos de neve, onde impera a Rainha dos Gelos. Subia sempre. O ar tornava-se cada vez mais vivo e fresco. Isso, porém, não acalmava o caçador. Passou perto de uma bela moita de rosas dos Alpes, cercadas de gencianas azuis; com a coronha da espingarda abateu, esmigalhou as pobres flores.

De repente viu duas cabras monteses. Os seus olhos brilharam, os seus pensamentos tomavam uma nova direção. Trepou de modo a que as cabras ficassem ao alcance da espingarda; caminhava com precaução e sem fazer barulho. As cabras andavam por aqui e por acolá na neve. Rudy preparou a sua espingarda. De repente viu-se cercado por nevoeiro espesso; nada mais podia enxergar. Deu alguns passos e achou se diante de uma muralha de rochedos. A chuva começava a cair abundantemente.

Estava agitado por febre violenta, tinha a cabaça em fogo e o corpo gelado! Procurou o seu cântaro: eslava vazio. Esquecera-se de enchê-lo antes de partir do moinho. Ele que nunca estivera doente sentia-se desta vez abalado. Abatido pelo cansaço, a sua vontade era atirar-se ao chão e dormir, mas a água caía do céu a jorros.

Procurou criar forças para continuar o caminho. Os objetos dançavam diante dos seus olhos. De repente viu sobre o rochedo um lindo chalé, que parecia construído recentemente; não se lembrava de tê-lo jamais visto. Na porta estava uma moça; parecia-se com Anette, a filha do mestre de escola, que ele abraçara uma vez numa dança de valsa; mas não, não era Anette. Entretanto ele a vira em qualquer parte, talvez perto de Grindelwald, na noite em que voltou da festa dos atiradores.

— De onde vens tu? — perguntou-lhe ele.

— De parte alguma — respondeu ela — estou aqui em minha casa, tomando conta do meu rebanho.

— Teu rebanho? — replicou Rudy. — Não há aqui pasto, não vejo senão neve e rochedos.

— Achas isso! Como conheces o país! — disse a moça rindo-se. Pois bem, lá naquele lado existe um belo campo, onde pastam as nossas cabras. Não se perde uma só. O que é meu fica sendo meu.

— Tens expressão de valente — disse Rudy.

— E tu também — respondeu a moça.

— Tenho uma sede devoradora; me darás tu um pouco de leite?

— Dou-te coisa melhor. Ontem alguns viajantes passaram por aqui; esqueceram-se de uma garrafa de vinho, como talvez tu ainda nunca bebeste. Eu não bebo; dou-ta.

Com efeito, encheu uma tigela de vinho e deu-a a Rudy.

— Como é bom — disse o caçador, depois de ter bebido alguns tragos. — Nunca bebi, com efeito vinho tão delicioso e tão animador.

Rudy tinha chamas nos olhos; o sangue circulava como fogo nas suas veias; a sua tristeza e a sua cólera tinham desaparecido; voltara-lhe a alegria, como sempre exuberante e engraçado.

— És bem bonita Anette! — exclamou ele. — Dá-me um beijo.

— Dou sim, mas quero que me faças presente do anel que tens no dedo.

— O meu anel de noivado!

— Justamente, é o que desejo possuir.

Ela encheu de novo a tigela de vinho e levou-a aos lábios do caçador. Rudy bebeu. Uma vitalidade intensa espalhou-se em todo o seu ser. Parecia-lhe que o universo lhe pertencia.

— De que serve-me entregar-me a preocupações? Gozemos, sejamos felizes. O prazer é a verdadeira felicidade.

Essas foram as palavras do jovem caçador.

Ele olhou de novo para a moça. Era Anette, momentos depois já não era Anette, não era mais o fantasma, que lhe aparecera perto de Grindelwald. Era uma criatura fresca e alva como a neve que caía do céu, graciosa como um ramo de rosas dos Alpes; esbelta e leve como uma pequena cabra montês.

Ele enlaçou-a com os seus braços; mergulhou os seus olhos nos olhos maravilhosamente claros da dama. Não sabia o que lhe acontecia, deixando-se levar por uma sensação inexprimível! Sentia que descia sempre e sempre mais para a profundidade do abismo de gelo, onde reina a morte. Imensas paredes, que pareciam feitas de cristal esverdeado, refletiam uma luz azul. Milhares de gotas d'água faziam, ao caírem, uma música sinistra. A Rainha dos Gelos estava ali. Deu um beijo na testa de Rudy; o moço sentiu, dos pés à cabeça, um frio mortal.

Deu um grito de dor, cambaleou e caiu.

Tudo escureceu. As trevas eram completas.

Voltou, todavia, a si. Compreendeu que tinha sido iludido pelo Poder funesto. A moça tinha desaparecido e com ela o chalé. Só havia neve em redor dele. Estava molhado até aos ossos, tremia de frio. Já não tinha o anel de noivo, que Babette lhe dera.

Procurou o seu caminho; nevoeiro úmido e intenso cobria a montanha. Rochedos, rolando com impetuosidade, passavam ao seu lado. A vertigem espreitava-o, julgando-o exausto e sem forças. Se ele tivesse caído a sua sorte estava decidida. Mas desta vez ainda devia escapar do perigo.

No moinho Babette estava sentada, triste e desolada, sempre banhada em lágrimas. Havia seis dias que Rudy não viera, ele que tinha culpas a reparar, que devia implorar o seu perdão e a quem ela consagrava sempre o mais puro amor.


CAPÍTULO 13: EM CASA DO MOLEIRO

— Que embrulhada desses humanos! — disse o gato do salão ao gato da cozinha. — Está tudo acabado entre Rudy e Babette.

Ela só vive a chorar e ele provavelmente não pensa mais nela.

— É mau procedimento o dele — disse o gato da cozinha.

— Concordo — disse o outro — mas nada tenho com isso. Babette poderá, se quiser, casar-se com o homem das suíças ruivas. É verdade que ele também não voltou ao moinho, desde a tarde em que quis, como nós, subir aos telhados.

Durante longos dias Rudy refletiu no que lhe acontecera na montanha. A febre trouxe-lhe o delírio. Teria ele sonhado? Não podia ter uma ideia exata do que sentira.

Continuava a condenar Babette. Fizera, todavia, o seu exame de consciência. Lembrava-se da tormenta horrível que agitara o seu coração. Devia ele confessar à sua noiva os pensamentos horríveis que teve e que teriam podido transformar-se em atos? De fato, ele perdera o seu anel. O teria ele atirado para longe de si num acesso de cólera? Nisso pensava constantemente e era isso o que levava o seu coração para o lado da moça.

Poderia ela, por sua vez, confessar os seus erros? Ele sentia despedaçar-se o coração, na lembrança das suaves e deliciosas palavras de amor que ela lhe dissera. A moça aparecia-lhe constantemente no espírito, cheia de graça e de alegria ingênua. Todos esses pensamentos passavam como raios de sol que atravessam uma nuvem carregada.

— Ela deve confessar-me tudo — disse ele. — É preciso que ela se justifique!

Foi ao moinho. Entraram todos em explicações. Estas começaram por um beijo e terminaram deste modo: Rudy foi um mau, um pecador; ousou duvidar da fidelidade de Babette. A sua conduta é abominável. Semelhante desconfiança! violências tais! era tudo quanto bastava para que fossem ambos eternamente infelizes.

Babette fez-lhe severa admoestação. A cândida moça foi graciosa nesse papel. Não deixou, todavia, de dar, até certo ponto, razão a seu noivo: o inglês era um indivíduo realmente arrogante e ridículo. Declarou que atiraria ao fogo o livro que ele lhe dera, a fim de nada guardar que pudesse lembrar-lhe um tal imbecil.

— Tudo arranjou-se — disse o gato do salão ao seu camarada da cozinha. — Rudy está de volta. Houve explicações. Eles se compreendem. E, segundo dizem, nisso vai a felicidade suprema.

— À noite — respondeu o gato de cozinha — quando estou espreitando os ratos, ouço-os dizer que a verdadeira felicidade está em comer vela e ter provisão de carne moída. Devemos nós acreditar nos ratos ou nos namorados?

— Nem em uns nem nos outros — replicou o gato do salão. —Assim é mais seguro.

Rudy e Babette esperavam dentro de pouco tempo a felicidade suprema. O dia do casamento aproximava-se. Não devia celebrar-se nem na igreja de Bex, nem na casa do moleiro. A madrinha pedia que a união fosse celebrada na bela igrejinha de Montreux e depois na sua casa. O moleiro apoiava a proposta; ele sabia dos belos presentes, do dote generoso que a madrinha destinara aos noivos e julgava que a boa madrinha não devia ser contrariada. O jovem primo tinha regressado à Inglaterra.

O dia foi marcado. Na véspera deviam partir para Villeneuve e no dia seguinte, ao amanhecer, tomavam a barca para Montreux. As filhas da madrinha podiam desse modo ajudar Babette a enfeitar-se.

— Tudo isso é muito bom — disse o gato do salão — mas espero também que no dia seguinte haja festa cá em casa; do contrário, não darei um só miau, para dar-lhe os votos de felicidade.

— Julgo que teremos — disse o gato da cozinha — belo festim. Os patos foram depenados, os frangos e o peru já estavam mortos. No porão um vitelo estava suspenso na parede. Não posso conter-me diante de tanta coisa boa. É amanhã que eles partem.

Sim, amanhã. Rudy e Babette ficaram ainda nessa noite conversando sobre coisas mil. Era a última conversa no moinho. Os Alpes resplendeciam, inundados de uma luz cor de rosa. Os sinos da noite repicavam brandamente. As Filhas do Sol cantavam, girando pelos ares: — Que Rudy, nosso favorito, seja feliz como merece.


CAPÍTULO 14: OS ESPECTROS DA NOITE

A noite chegara; nuvens carregadas enchiam todo o vale do Rhodano. Uma ventania terrível, último sopro do vento mediterrâneo, que, depois de ter passado pela Itália vinha exalar os seus últimos esforços nefastos ao pé dos Alpes, desencadeou-se na região. As nuvens rasgaram-se, unindo-se depois e tomando formas de monstros do mundo primitivo e de animais fantásticos dos contos de bruxas.

Os espíritos da natureza, as forças elementares agitavam-se livremente enquanto os homens dormitavam. Com o luar, que fazia brilhar a neve das montanhas, via-se destilar o exército da Rainha dos Gelos. Uma tropa de Vertigens divertia-se nos torvelinhos do Rhodano. Num imenso pinheiro arrancado pelo furacão e boiando no rio estava sentada a Rainha. Ela saíra dos seus palácios de gelo, acompanhada de ondas de um frio mortal.

E por toda a parte nos ares, nas águas, ouvia se o eco destas palavras:

— Eis-nos, gente das bodas!

Nesse ínterim Babette tinha sonhos extravagantes. Via-se casada com Rudy, havia muitos anos. Seu marido tinha ido caçar a cabra montês. Ela ficara em casa, quando apareceu-lhe o jovem inglês com a barba dourada. Fascinada por ele, via-se forçada a acompanhá-lo. Iam os dois juntos, para longe, bem longe.

Sentia o seu coração oprimido por um peso cada vez mais forte. Tinha pecado perante Rudy, perante Deus. De repente via se abandonada, sozinha. Os seus cabelos tinham embranquecido pelo tristeza e pela dor. Levantou os olhos para o céu e viu Rudy no alto de uma montanha. Estendeu para ele os braços sem ousar chamá-lo. Era, aliás, em vão, pois viu logo que não era Rudy, mas simplesmente o seu traje de caça e o seu chapéu, que pendurara num pau para enganar as cabras monteses.

Então Babette, em meio a grande dor, dizia: — Oh! se eu morresse no dia do meu casamento! nesse dia mais feliz da minha vida! Senhor Deus seria a maior graça que poderíeis conceder-me. Seria a melhor coisa para mim e para Rudy. Ninguém conhece o futuro!

E, então, amaldiçoando Deus e a vida, atirara-se num precipício.

Babette levantou-se sobressaltada. Os fantasmas desapareceram. Mas ela lembrava-se de ter imaginado um sonho horrível. Lembrava-se de que o jovem inglês, que não via há tantos meses e no qual nunca pensara, aparecia nesse sonho. Teria ele voltado a Montreux? Assistiria ele ao casamento? Seria um pressentimento!

A moça franziu a testa e tomou uns ares adoráveis de contrariada.

Mas não tardou a sorrir. Viu os raios do sol brilhando com todo o esplendor. — Ainda um dia, um só dia e estaremos casados!

Quando desceu encontrou Rudy pronto. Partiram para Villeneuve. Como sentiam-se felizes os noivos! E o moleiro também tinha a fisionomia de homem contente. Ria-se por qualquer coisa. Nunca esteve de tão bom humor. Era um bom pai, apesar dos seus modos às vezes grosseiros.

— Eis-nos sós e senhores nesta casa, — disse o gato do salão ao seu companheiro. — Podemos talvez apanhar algumas das boas coisas preparadas para o festim.

 

CAPÍTULO 15: O FIM

Chegaram, à tarde, a Villeneuve, sempre alegres e divertidos. Depois do jantar o moleiro sentou-se numa poltrona, expeliu algumas fumaças do cachimbo e tirou uma sesta.

Os noivos foram passear nas margens do lago, cujas águas profundas tinham a cor da safira e da esmeralda. Sentaram-se sobre um pedra, coberta pelos salgueiros, e contemplaram o castelo tenebroso de Chillon, cujas torres maciças refletiam na água. Viam também a pequena ilha das três acácias.

— Como se deve estar bem ali! — disse Babette, que de novo sentiu o desejo de ir sentar-se debaixo daquelas árvores.

Esse desejo podia ser logo contentado. Uma canoa estava amarrada a um tronco de árvore. Procuraram o dono para pedir-lhe licença de se utilizarem dela. Embarcaram. Rudy sabia remar muito bem.

O elemento líquido cede ao menor esforço, e, entretanto, não há quem possa resistir à sua potência formidável; oferece o seu costado para nos carregar, mas tem a sua goela sempre aberta, pronta a devorar-nos; sorri, parece a doçura extrema, e os desastres, as desgraças que causam são as mais terríveis.

Dentro de alguns minutos, os noivos felizes chegaram à pequena ilha, onde desceram.

Estavam tão felizes que começaram a dançar e a saltar de contentamento. Rudy fez Babette dar três vezes a volta do pequeno espaço. Sentaram-se depois num banco debaixo das acácias

De mãos dadas, olhavam um para o outro. Em redor deles a natureza resplandecia com o brilho do sol que surgia no horizonte. As florestas de pinheiros das montanhas tomavam um colorido lilás. Os rochedos brilhavam como metal fundido e pareciam transparentes. As nuvens do céu assemelhavam-se a um vasto incêndio. O lago podia ser comparado a uma imensa folha de rosa. Pouco a pouco desceu uma sombra azulada e atingiu a base das montanhas cobertas de neves, mas as suas alturas tinham sempre a cor de púrpura. Parecia o princípio do mundo, em que as montanhas subiam da terra como lava avermelhada.

Era um espetáculo como Rudy e Babette não se lembravam de lerem ainda visto. O monte Dente do Sul, coberto de neve, brilhava mais do que a lua ao despontar no firmamento.

— Que esplendor e que felicidade! — diziam os dois amantes.

— Nada mais tenho a desejar nesta terra — disse Rudy. — Uma hora como esta vale uma vida inteira. Já senti muitas felicidades e pensava que nada mais tivesse a gozar. Mas apenas o dia acaba que um outro ainda mais belo começa. O Senhor é verdadeiramente de uma bondade infinita!

— O meu coração transborda de gratidão — disse Babette.

— A terra nada pode oferecer-me melhor do que o que sinto agora — replicou Rudy.

Nas montanhas da Saboia, nas montanhas da Suíça, os sinos anunciaram a oração da noite. Do lado do oeste via se nas alturas do Jura um esplendor semelhante ao de um mar de ouro.

 — Que Deus te dê o que se pode desejar de melhor neste mundo! — Disse Babette, com os olhos úmidos de ternura.

— É O que ela fará! — disse Rudy. — Amanha tu serás minha, inteiramente minha, deliciosa mulherzinha!

— A canoa! A canoa! — exclamou Babette.

A canoa tinha-se afastado da margem com o movimento das águas e apartava-se da pequena ilha.

— Vou buscá-la — disse Rudy, e, tirando o paletó e as botinas, saltou na água; hábil nadador, dirigiu-se rapidamente ao encontro do pequeno barco.

Chegou à corrente das águas escuras, azuladas e frias que o Rhodano traz dos geleiros. Fitando um pouco o olhar viu brilhar no fundo delas um belo anel de ouro. Pensou no seu anel de noivo que tinha perdido. Mas aquele anel tornava-se cada vez maior, cada vez mais grosso; de repente formou um largo círculo luminoso. No meio desse círculo abriu-se um vasto geleiro, cheio de precipícios. Milhares de gotas d'água, caindo, faziam um barulho sinistro; era o sino da morte. Muralhas de cristal refletiam chamas brancas e azuis.

No espaço de um segundo, Rudy viu um espetáculo que longo seria descrever.

Achava-se ali uma multidão de jovens caçadores, de moças, de homens e de mulheres que tinham caído nos precipícios dos geleiros e aí morrido. Pareciam vivos, tinham os olhos abertos e sorriam a Rudy.

Mais para o fundo descobria-se uma cidade que o lago tinha devorado. A torrente das montanhas agitava os sinos das igrejas e fazia ressoar os órgãos. Os habitantes estavam ajoelhados no santuário, onde se refugiaram quando deu-se a catástrofe.

Finalmente, mais abaixo, estava sentada a Rainha dos Gelos. Ela levantou-se ao ver Rudy. Beijou os seus pés. O caçador teve como que uma comoção elétrica; um frio mortal apoderou-se dos seus membros, entorpecendo-os.

 — És meu! és meu!

Este grito repercutiu em tomo de si.

— Beijei-te quando eras criança; dei-te então um beijo na boca. Hoje beijo-te o calcanhar. És meu, inteiramente meu!

 E Rudy desapareceu no meio da onda azul e clara.

— És meu!

Essas palavras ecoaram no fundo das águas; ecoaram também no céu.

Na terra o silêncio era completo. Tinham cessado os tinidos dos sinos. As nuvens perderam as suas cores brilhantes.

— És meu!

Essa voz enchia o espaço.

Não será uma felicidade passar assim, de um salto, do amor terrestre para as alegrias do céu? O beijo gelado da morte tinha destruído um invólucro mortal; dele saiu um ente imortal, pronto para a verdadeira vida, que o esperava. A desarmonia da morte transformava-se em harmonia celeste.

Qualificareis vós, leitores, de triste esta história?

Pobre Babette! Sim; para ela foram momentos de cruel angústia. O bote afastava-se cada vez mais. Ninguém sabia que os noivos tinham ido à pequena ilha. A escuridão aumentou. Sobreveio a noite. Só, desolada, em prantos, Babette torcia se no desespero.

Um relâmpago brilhou no alto do Jura; um outro, nas montanhas do Saboia. Dentro do pouco tempo já não podiam ser mais contados, tão rapidamente se sucediam. O barulho da trovoada durava minutos sem interrupção. O raio, com os seus ziguezagues ofuscantes, iluminava a paisagem como a luz do dia. Por momentos podia-se distinguir cada árvore, cada galho. Depois... era a noite escura. O eco das montanhas repetia o estrépito da tempestade.

Os pescadores puxavam para terra os seus barcos. Homens e mulheres procuravam apressadamente um refugio. O céu derramava torrentes d'água.

— Onde estarão Rudy e Babette com esse tempo tão feio? — perguntava a si mesmo o moleiro, não sem ansiedade.

Babette, depois de ter gritado por socorro, de ter chorado e gemido, não tinha mais voz, nem mais lágrimas. Estava ajoelhada, com a cabeça entre as mãos, sem poder rezar.

— Ele está no fundo d'água — pensava ela — bem no fundo. Não voltará mais. O lago é profundo como um geleiro.

Ela lembrou-se do que Rudy lhe contara sobre a morte de sua mãe e como o tinham tirado, frio como um cadáver, do precipício em que caíra. — A Rainha dos Gelos tornou a apanhá-lo! — disse ela consigo.

Um relâmpago, brilhante como o sol dardejando os seus raios em um campo de neve, iluminou o lago. Babette levantou-se sobressaltada. Viu por cima d'água a Rainha, de pé, tendo no seu semblante uma majestade terrível. Aos seus pés estava o corpo de Rudy.

— Ele é meu! — disse ela e desapareceu. Tudo ficou de novo mergulhado na escuridão.

— Cruel! — gritou Babette. — Por que fizeste-o morrer na véspera do dia que devia coroar a nossa felicidade? — Meu Deus — continuou ela — iluminai o meu espírito e o meu coração. Fazei-me a compreender o mistério dos vossos desígnios.

E Deus a ouviu. A sua alma iluminou-se. Ela lembrou-se do sonho da noite precedente e o que ela desejara nesse sonho, como sendo a felicidade suprema para Rudy e para si mesma.

— Ai de mim! — disse ela. — Estaria a semente do pecado no meu coração? Seria o meu destino o que eu senti? E seria melhor, com efeito, que ele morresse!

Os seus gemidos aumentaram. De repente o seu coração, cansado, despedaçado, estremeceu, lembrando-se das ultimas palavras de Rudy.

— A terra não podia oferecer-me felicidade maior!

Passaram-se muitos anos.

O lago parece sorrir. As colinas estão no auge da beleza. Os navios cruzam-se com os seus pavilhões desfraldados pelo vento. Os grandes barcos de vela deslizam no lençol d’água como libélulas gigantes. A estrada de ferro passa por Chillon, dirigindo-se para o vale do Rhodano. Em cada estação descem viajantes. Compram apressadamente os Guias de capa vermelha e verde, para verem o que há neles de mais curioso a visitar-se. E eles encontram nesse livro a história dos noivos que, em 1856, foram à pequena ilha das três acácias; o noivo morreu e só na manhã seguinte foram ouvidos os gritos desesperados da noiva.

Mas o livro não vai mais longe. Não fala da vida retirada que Babette passa ao lado de seu pai, e não mais no moinho, que foi vendido, porque ela não queria habitar lugares que lhe lembravam tanta felicidade destruída. — Habitam uma linda casa, não longe da estação. Ela fica, às vezes, horas inteiras à janela, olhando, por cima dos castanheiros, para as montanhas de neve, onde Rudy costumava a caçar. Quando vê os altos Alpes coroados com o esplêndido colorido do crepúsculo, pensa na última tarde que passou com Rudy. Frequentemente, quando está muito triste, parece-lhe ouvir as Filhas do Sol cantar e explicar como o furacão tira ao viajante o seu manto.

Mas será esse um motivo para afligir-se? Ele não toma senão o invólucro, e não o homem.

E a luz se faz na sua alma com o pensamento que Deus dispõe tudo pelo melhor. Não sabia ela disso, melhor do que ninguém, desde o seu sonho?

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