2/23/2023

Cravos de papel (Poesia), de Eugênio de Castro


CRAVOS DE PAPEL


A MEUS IRMÃOS
MARIA LUÍSA, AIRES, EUGENIA, LUÍS E ERMELINDA
E A MEMÓRIA DE MEUS IRMÃOS 
FREDERICO E AFONSO
E DA MINHA GÊMEA, QUE,
MORRENDO AO NASCER,
NÃO CHEGOU A TER NOME NA TERRA,
CONSAGRO
ESTES VERSOS FEITOS EM HONRA E LOUVOR
DA NOSSA LINDA PÁTRIA DOLORIDA E RISONHA.

E. DE C. 


Cravos de papel, com trovas,
Sois portugueses de lei:
Viajando por longes terras.
Nunca por lá vos topei. 



O CRAVO DE PAPEL

Cravo de papel de seda,
Com delgado pé de arame,
Nenhuma abelha o beijou
Fugida do alado enxame.

Fina serrilha acairela
Suas pétalas de lume:
Vermelho, pela cor, engana,
Mas, falso, não tem perfume.

Feito por mão feminina,
Quem o fez com tal primor,
Talvez nele se pintasse,
Dizendo amar sem amor...

À laia de bandeirola,
Ostenta, acordando fados.
Uma quadrinha com versos
Cheios d'amor, mas errados.

Nesse trajo, a arder se vê
Em ardente romaria.
Um Manoel o compra e oferece
A sua noiva, Maria.

Mas a mãe da noiva observa
Em seu materno temor:
— “Quem um cravo falso dá,
Dá decerto um falso amor!”

Manoel, que ama deveras,
Responde com ansiedade:
— “Se este cravo é de mentira,
Meu amor é de verdade!

Não seja assim, tia Rosa,
Tão rabugenta e cruel:
Tenha confiança em mim
E no cravo de papel.

Ainda que seja d'ouro,
A oferta de quem quer bem
Vale mais pelo que diz
Do que pelo peso que tem.

Este cravo, sendo falso,
Vence os cravos verdadeiros,
Cuja cor, cujo perfume
São doces mas passageiros.

Não diga mal, tia Rosa,
“Deste cravo que é honrado:
 Se ele nasceu sem perfume,
Tem o do amor com que é dado!”

Ouvindo Manoel, Maria
Desfalecia d'amor,
E, sobre o seu seio, o cravo
Parecia um santo no andor.

Manoel cumpriu a palavra,
Foi firme nos seus afetos;
Casou, e morreu velhinho,
Deixando filhos e netos.

E Maria também velha,
Viúva do Manoel,
Levou para a cova, ainda fresco,
O seu cravo de papel.

 

TRISTE HISTÓRIA DE UMA ROSA

Rosa... Rosinha... Rosita,
Nomes que eram flores cheirosas,
Tinha-os todos certa moça
De pele de nardos e rosas.

'Sua pele rosada e branca,
Que altos reis fizera escravos,
Parecia um rio de leite
Refletindo acesos cravos.

Fogo coado por gelo,
Tal pele, de causar delírios,
Era um desmaio de rosas,
E um róseo pudor de lírios.

Pele de fruto rescendente,
Pele de estrela e pele de flor,
Era uma chama com frio,
Neve a morrer de calor.

Donzela, Rosa era rósea....
Mas quando enfim foi beijada
Pela boca dum noivo terno,
Ficou rosinha encarnada.

Encarnadinha, vencia
Todas as rosas da terra!
Mas veio a guerra.... e o seu noivo
Lá foi, fardado, para a guerra!

Na hora da despedida
(Há horas bem dolorosas!)
Floriu-lhe a testa com beijos
E a carabina com rosas...

Vendo-o partir finalmente,
Em manhã serena e bela,
Rosa fez-se rosa-chá,
Rosinha d'ouro, amarela.

Amarelinha e saudosa,
Bem mostrava o seu desgosto
Era o ouro das saudades
Que lhe amarelava o rosto.

Ai... Mas um dia o carteiro,
Vindo triste pela estrada,
Trás-lhe uma carta de França,
De luto negro tarjada!

Antes de ler, adivinha
A tremenda dor que a espera
Sendo noiva, era viúva,
Seu lindo noivo morrera!

Nem uma lágrima verte,
Nem um só ai se lhe arranca:
Rosa é rosa.... mas agora,
Para sempre.... rosa branca!

 

O SUÃO

Em tarde quente, de agosto,
Do sol na agonia flava,
Soprou, de súbito, um vento
Soturno, que amolentava.

O Serafim, conversando
No cruzeiro com a comadre,
Clama: — “Cá temos o suão,
Que queima a vinha do padre!”

— “Que é isso?” pregunta a velha,
Que foi bem bonita em moça;
Volve logo o Serafim:
— “Não sabe? Pois então ouça!”

E assentado num degrau
Da cruz dourada pelo ocaso,
Limpando o suor com o lenço,
Contou o seguinte caso.

O Damião das Casas-Novas,
Sem ter altar, era um santo;
Era no dar um mãos-rotas.
Ninguém dava mais, nem tanto!

Adivinhava as misérias,
Para logo as socorrer;
E, para amparar famílias,
Nunca família quis ter.

Rotinho, vestia os outros
Com mão de pai, muito amiga...
Certa manhã, na Quaresma,
Lá vai ele à desobriga.

Velhinho, na sacristia,
Dobra os joelhos emperrados....
Rebusna o padre, e enfim clama
— “Diga lá os seus pecados!”

Damião busca e rebusca,
Mas nada tem que dizer....
Grita o prior: — “Desembuche,
Que eu tenho mais que fazer!”

Mas Damião nada diz....
Que há de dizer? Só faz bem....
Porém, o padre é frenético,
E afinal não se contém:

— “Veja lá! Grande ou pequena,
Na alma há sempre uma chaga!
Não pecou por pensamentos?
Não rogou alguma praga?”

— “Roguei! Roguei!” diz, submisso
E a soluçar, Damião:
“Roguei uma praga feia,
Pelo que peço a Deus perdão!”

Do prior a voz espessa
Então, colérica, troa:
— “Praguejar é grave falta,
Que o próprio Deus mal perdoa!

“A praga é uma bofetada
Que se dá na Caridade!
Quem o mal deseja aos outros
Acha o mal na Eternidade.”

“Ouça bem o que lhe digo
Nesta cadeira onde estou!
E contra quem foi, confesse,
Que essa tal praga rogou?”

Arrependido, a tremer,
O pobre do Damião
Responde com voz humilde:
— “Foi contra o vento suão!”

— “Foi contra o vento suão?”
Diz o prior admirado:
“Andou você muito bem!
Isso é um vento estuporado!

Esse vento merecia
Rodado ser por mil rodas!
Há de haver uns oito meses,
Queimou-me as videiras todas”

De contrição diga o ato,
Vou dar-lhe a absolvição...
Raios partam esse vento!
Leve o Diabo tal suão!”

 

NA CABEÇA DA COMARCA

O filho do boticário
Namora a filha do juiz:
A rapariga é feiota
Mas tem seus bens de raiz...

O íntegro magistrado
Afina com a brincadeira:
Já um dia disse à filha:
— “Ou tento na bola... ou freira!”

Tem razão! A rapariga,
Que é muito atreita a paixões,
Sendo quem é, bem podia
Ter outras aspirações.

Rica, é, pelo pai, descendente
De gente humilde, mas boa,
E, pela banda da mãe,
Vai a Albuquerque e a Gamboa.

O rapaz, quando estudante
Em Coimbra, foi um vadio
Matriculado em Direito,
Perdeu três anos a fio.

Passados esses três anos
Voltou à vila natal;
Canta à guitarra, faz versos
E bebe-lhe menos mal.

Vai o diabo há três meses
Na residência do juiz:
Branquinha chora e não come,
E já não borda a matiz.

Há dias, pelo fim da tarde,
Quis ir deitar-se no poço!
A pobre mãe teve um ataque....
Valha-nos Deus, que é pai nosso!

O juiz masca em silêncio
O seu furor represado,
E pensa: — Se o rapazola
Fosse ao menos delegado!

Ontem, quando os astros d'ouro
Cintilavam nos seus giros,
Acorda o pai, que roncava:
Era Branquinha aos suspiros...
.
Lá se levanta o juiz,
Que não é pai.... mas banana
Branca, aos suspiros, declara
Que vai ser dominicana.

Novo fanico na mãe!
E o pai, de calma sedento,
Para evitar mais desgraças,
Consente no casamento.

Branquinha já come e borda,
Já canta como um pardal,
E hoje vai com a mãe ao Porto,
Para comprar o enxoval.

 

MISSA DAS ALMAS

A minha Mãe, no dia em que
fez os seus 78 anos, 22 de janeiro de 1922.


Quatro horas da manhã....
As estrelas brilham calmas....
Sai de casa o sacristão,
Vai para a missa das almas.

Surdo torpor cobre a aldeia,
E em meio desse torpor,
Os passos do sacristão
São passos d'imperador...

Entra na igreja às escuras
E espevita o lampadário,
Cuja luzinha d'azeite
Agoniza ante o sacrário.

Na luz rejuvenescida,
Que desafia as estrelas,
Acende ele o apagador,
Para ir acender as velas.

Para acender a primeira,
Quase que leva uma vida:
Tremelicando, o pavio
Não acerta com a torcida.

Lá a acende finalmente,
E depois dela a segunda...
O relógio dá um quarto....
Fora, a treva ainda é profunda.

De repente, o sacristão
Olha para cima e descora:
No altar-mor faltava a imagem
Da Virgem Nossa Senhora!

Quase que cai com um ataque
O pobre do sacristão:
É um cavalo a galope,
No seu peito, o coração.

Mas, de súbito, ouve passos:
Olha e vê, com a vista absorta,
Vê entrar Nossa Senhora
Por uma greta da porta!

— “Donde vindes vós, Senhora?”
Diz o sacristão pasmado:
A Virgem Mãe baixa es olhos,
Com um arzinho enfiado...

O que há de ela responder?
Ao mesmo tempo arde e gela:
Apesar de ser quem é,
Não quer que pensem mal dela.

E o que é que pensará
O sacristão a essa hora,
Vendo-a vir, sendo ainda noite,
Às ocultas, lá de fora?

Mas eis que responde enfim
De amor num trasnporte estranho
— “Vais saber toda a verdade,
Vais saber donde é que venho,

Mas não o digas, não quero
Que aí o saibam e contem:
Fui dar de mamar a um órfão,
“A quem morreu a mãe ontem!”

 

O ENTERRO DE INÊS DE CASTRO
(A Afonso Lopes Vieira)

Quando saiu de Coimbra
O enterro de Inês de Castro,
Ficou o céu às escuras,
Sem um anjo e sem um astro.

De Coimbra até Alcobaça
Eram dois renques de velas:
Entre os homens com brandões
Marchavam anjos com estrelas...

No ar, de treva absoluta,
Pálidas mãos misteriosas,
 Sobre o caixão, desfolhavam
Contínua chuva de rosas...

E, atrás do caixão, a Dama
Que chorava, estrada fora,
Desconfia-se que fosse
A Virgem Nossa Senhora...

El-rei Dom Pedro seguia
Sem chorar, sombrio e seco,
Rilhando em mente, com raiva,
O coração do Pacheco.

Quando o saimento passava
Nas silenciosas aldeias,
Vinham à porta as mulheres
Alçando acesas candeias.

Crianças que lá nasceram
Então e durante meses,
Sendo varões, eram Pedros,
E sendo fêmeas, Ineses.

Inda o caixão ia perto
Da igreja donde saía,
Já o princípio do enterro
Em Alcobaça luzia.

Passaram horas e horas,
E o enterro sempre a passar...
Luzes atrás doutras luzes,
Ninguém as pôde contar!

Eram pespontos de luz
As duas linhas de velas;
Atrás, do caixão em volta,
Zumbia um enxame de estrelas.

Quando o coice do cortejo
Chegou à Cruz de Murouços,
Surgiu a lua no céu
Em argênteos alvoroços.

Argêntea porta era a lua,
E cá de longe parecia
Que o caixão no céu entrava,
No esplendor do eterno dia...

 

CHOCALHOS, ÀS AVE-MARIAS

Da serra do Caramulo,
Por um barrocal castanho,
Com seus cães e seus pastores,
Desce, à noitinha, um rebanho...

Os chocalhos das ovelhas
Tinem plangentes no ar;
Suas Vozes gotejantes
São saudades a chorar...

Saudades dos altos cumes,
Onde o homem não ergueu casas,
E onde só, d'aves e d'anjos,
Se ouve o murmúrio das asas...

Parece humana a lamúria,
Que enternece e mete dó....
Na estrada, agora, o rebanho
Levanta nuvens de pó.

E no coice um cordeirinho,
A mancar, quase a cair,
Leva num guizo, ao pescoço,
Saudadezinhas a rir...



A TRUTA
(A Antero de Figueiredo)

Uma trutinha prateada,
Com lindas pintas vermelhas,
Vivia em sereno rio
Com outras trutas mais velhas.

Prateada e com tais pintinhas,
Sempre a mexer, azougada,
Parecia um punhal com sangue
Depois duma punhalada.

Ao vê-la tão desinquieta,
Diziam-lhe as outras trutas:
— “Cautela! não vás para longe,
Tonta, que não nos escutas!”

“Aqui, na serra, onde o rio
Não afoga uma criança,
Vive-se em paz e sossego,
A vida é fresquinha e mansa;

Mas à proporção que o rio
Alarga, o perigo é maior,
A cada passo, na margem,
Se levanta um pescador.

O homem para nos pescar,
Inventou coisas diversas:
São nassas feitas de vime,
Anzóis e redes diversas.

Aqui, na serra, onde a paz
A natureza sorri.
Aqui os homens são poucos:
Não nos tiremos daqui!”

Caía num cesto roto
Esse pensar tão profundo
A truta era ambiciosa
E queria ver o mundo.

Com essa ideia na cabeça,
Guiada por falsa estrela,
Em linda manhã d'abril,
Rio abaixo, lá vai ela!

Para se divertir à grande,
À partida, abocetara
Num refeguinho da guelra
O património que herdara.

Foi tudo bem a princípio,
Tudo foi sem novidade;
Viu outras margens e aldeias,
Uma ponte e uma cidade!

Ao cair, porém, da noite,
Ao raiar da lua bela,
Meteu-se com outro peixe,
Que era tão doido como ela.

Uma piscadela d'olhos,
Um sorrisinho, um rubor,
E lá vão de braço dado,
A arder, na água, de amor...

Foram ao teatro dos peixes
Ver uma farsa, A Lampreia,
E depois, no mesmo prato,
Comeram mimosa ceia.

Carregaram nas bebidas
A que o luar dava lampejos;
Doidinhos um pelo outro,
Trocaram beijos e beijos...

Bem fizera a jovem truta,
Deixando o serrano lar:
Aquilo é que era viver!
Aquilo é que era gozar!

Mas, pela manhã, os dois peixes,
Ambos com sono e com sede,
Marcharam para a certa
Levados na mesma rede!

 

O CORAÇÃO DE FILIGRANA
(A Vasco de Quevedo)

Caminho da romaria,
Maria da Conceição
Leva três arráteis d'ouro,
Do seio na ondulação.

Cordões são seis, cruzes quatro
Mas do que ela mais se ufana
É dum coração enorme,
Todo ele de filigrana.

Coração de tal grandeza,
Tão cintilante e jucundo,
Se d'amor estivesse cheio,
Dava amor para todo o mundo.

Há corações pobrezinhos
Ricos da amorosa chama;
Este, porém, sendo d'ouro,
Vazio de amor, não ama.

Mas de Conceição no seio,
Sem amar, amar parece:
Sobre esse seio ofegante
Ora se alteia, ora desce.

Conceição, que é abastada,
Para caminhar mais lesta,
Vai pela estrada, descalça,
Leva as chinelas na cesta.

Em terras de Portugal
São poupadas as donzelas
Que se magoam descalças
Para alívio das chinelas.

Na sua cesta coberta
Com uma toalha de renda,
Leva, ao pé das chinelinhas,
Mimosa e farta merenda.

No seu rancho, é Conceição
Das moças a que mais ri,
Ri desde os pés à cabeça,
Leva o noivo ao pé de si!

Seu noivo, o Simão da Ínsua,
É um rapaz desempenado:
Cinta azul, jaleca nova,
E marmeleiro ferrado.

À romaria chegados,
Param defronte das tendas,
Onde Simão a Maria
Oferece prendas e prendas:

São rosários de pinhões,
Ladrilhos de marmelada.
Uma seirinha com figos
E um copo de limonada.

E por fim, num largo assomo
Do seu ânimo bizarro,
Dá-lhe mais uma regueifa,
Que é como a roda dum carro.

Em seguida entram na dança,
Ao som do harmônio plangente:
A poeira é de abafar,
Mas quem dança não a sente.

Depois da dança, a merenda,
Ali comida, no chão:
Galinha assada, azeitonas,
Peixe frito e um salpicão.

Para ajudar, da borracha
Jorram purpúreas golfadas:
Ele já está como um odre,
E ela ri às gargalhadas.

No coreto com bandeiras
Toca a banda militar,
E os foguetes estralejam,
Um após outro, no ar.

Em raivoso desafio.
De repente, eis que Simão
Crava o olhar num atrevido,
Que o seu crava em Conceição.

A moça sobressaltada
Diz então: — “Vamos embora,
Anda comigo à capela
Rasar a Nossa Senhora”.

Mas Simão com os olhos doidos,
O pau brandindo no ar,
Num salto de tigre, cresce
Contra o rival para o matar!

Arma-se uma rixa louca,
Multiplicam-se as baralhas,
Silvam paus, cruzam-se gritos
E relampejam navalhas.

No mais aceso da briga,
Entre as gentes desvairadas,
Simão baqueia por terra
Cosido com seis facadas.

E a pobre da Conceição,
Que nas pernas não se tem,
Com essas seis facadas n'alma,
No chão baqueia também.

Corre gente que a levanta
E que à capela a transporta;
Sem falar, de olhos fechados,
Conceição parece morta...

Mas o seu coração d'ouro,
De filigrana, a pular,
Parece um barquinho doido
Nas ondas doidas do mar... 



PORTUGAL
(A Alberto Félix de Carvalho)

Um alemão, meu amigo,
Veio visitar-me um dia:
Sendo inverno, em Portugal
O inverno, maio parecia.

O alemão andava doido
Com o que via em redor:
Céu azul, rosas aos centos.
Tudo verde e tudo em flor!

Dizia: — “De Hamburgo ao Porto
Dura a viagem cinco dias,
Mas desta vez, Deus me salve!
Houve bruxa e bruxarias:

Sendo a viagem tão breve,
De tão curta duração,
Parti nas zinas do inverno,
Chego nas zinas do verão!

Em Berlim, neve e neblina
E um frio de inteiriçar:
Aqui, macios veludos,
Tépidas rosas no ar....

Quem há que me explique um caso,
Que é tão sobrenatural?
Ou eu estou doido ou o tempo
Anda doido em Portugal!”

Respondi rapidamente
A pergunta curiosa:
— “Portugal tem sempre sol,
O que lhe falta é outra coisa!

Tem sol vivo no futuro
E no passado esplendente;
Tem sol, parecendo mentira,
Na escuridão do presente!

Nesta hora de fraqueza,
Em que tudo o abafa e cansa,
Se não tem um sol de glória,
Tem ainda um sol de esperança!

Tem sol no céu e na terra,
Nos frutos e nas canções:
Tem sol nos feitos do Gama,
E nos versos de Camões!

Em Portugal, meu amigo,
Tudo em clarões se traduz:
Até a treva ilumina!
Até as campas dão luz!

Portugal é um céu aberto,
Portugal é um paraíso:
Só lhe faltam duas coisas,
Que são.... dinheiro e juízo...”

 

OS TRÊS CHINÓS DE GARRETT

Sendo bem encabelado,
Não o digo para meu proveito:
Não é vergonha a calvície,
Até infunde respeito.

O pobre Verlaine e Sócrates
Ninguém os ouviu queixar
Por serem carecas, sendo-o
Como as bolas do bilhar.

Mas Garrett, um peralvilho,
Careca como uma noz,
Com inveja de Sansão,
Mandou fazer três chinós.

Tinha um o pelo curto
(Já se verá a razão!),
O outro mais longo, e o terceiro
Era a trunfa de Absalão.

Pondo o primeiro, Garrett
Dizia a quem ia vê-lo:
— “Venho agora do barbeiro,
Fui lá cortar o cabelo.”

Quando trazia o segundo.
Sempre com distintos ares,
Falava de tudo.... menos
De operações capilares

Pondo o terceiro, exclamava,
Fingindo enfados mortais:
— “Vou cortar a gaforina,
Que está comprida demais”.

Assim, glabro como um ovo,
Com simples hipocrisia,
Simulava ter cabelo,
E cabelo que crescia!

Doce embuste de poeta.
Que a ninguém prejudicava!
Querendo enganar os outros,
A si próprio se enganava.
Julgava iludir o sábio
E o inocente papalvo;
Mas, calvo, com a cabeleira
Inda parecia mais calvo!

De olhos direitos ou tortos,
De morena ou branca tez,
Que ninguém tenha vergonha
De ser como Deus o fez.

Defeitos da natureza
Para Deus tem formosura;
Do que ele não gosta nada
É de mentira e impostura.

Vendo um homem de chino,
O povo irônico diz:
— " Este homem tem muitos bens.
Mas nenhum é de raiz.”

 

O AMOLADOR
(Ao Marquês de Figueroa)

Vinte e quatro de dezembro,
Gretam-se os pés na geada:
Mas o sol já surge alegre,
E hoje é dia de consoada.

Vão para o pascigo os rebanhos,
Cada um com seu pastor...
De repente, ouve-se ao longe
A gaita do amolador...

No passal, o padre-cura
Mata o porco esta manhã:
Grunhe a vítima, coitada,
Como uma alminha cristã.

No quintal do brasileiro
Também vai bom e bonito:
A moça esfola um coelho,
E ele, outro Creso, um cabrito.

Canta emproado num muro
Um galo de bico aberto:
A gaita do amolador
Ouve-se agora mais perto...

O amolador, que é moreno,
Quinze anos deve contar;
Natural de Redondela,
Parece um órfão no olhar.

É toda de remendinhos
A roupa do amolador,
Lembrando da escola os mapas
Com as províncias de cor.

Lá vem ele! Curvadinho,
Impele a roda pelo chão,
E apregoa com voz fina,
Que até corta o coração.

Apregoa com voz fina,
Que é uma voz de rouxinol;
Às costas traz uma trouxa
E armações de guarda-sol.

Bem apregoa! Ninguém
Lhe paga as tristes canseiras...
Mas lá se abre um postiguinho
Com um vaso de sardinheiras.

Sai do postigo a cabeça
Duma velha que foi loira:
— “Para aí, ó rapazinho,
Amola-me esta tesoura.”

Para o rapaz sorridente,
Abre a porta a boa velha:
A boca da velha é branca,
E a do rapaz é vermelha.

Pelo pé do rapaz movida.
Gira a pedra de amolar:
Sentindo a tesoura, chia,
E lança chispas no ar...

Findo o trabalho, a velhinha
Com um ar afável, de mãe,
Pergunta ao pobre: — “Quanto é?”
E ele responde: — “Um vintém!”

Remexendo na algibeira,
A velha pensa com dor
Num filho que lhe morreu
Da idade do amolador...

A sorte do galeguito
Arranca-lhe então dois ais;
E diz: — “Pobre rapazinho,
Longe da terra e dos pais!”

Mas depois, num rasgo, exclama.
Tendo nos olhos clarões:
— “Foi um vintém que disseste?
“Pois pega lá dois tostões!”

Velhinha que tal fizeste.
Quando fores para a eterna luz,
Que a tua alma seja aceite
Pelo Menino Jesus!

E o galeguito lá segue,
Mais contente, a apregoar:
O rouxinol de voz triste
Parece um melro a cantar!

 

DIA DE ANO BOM

Hoje, dia d'Ano-Bom,
Foi o jantar melhorado:
Canja d'ouro, cabidela
E um rico leitão assado.

Não contente de o assar bem,
A cozinheira briosa
Pôs na boca do leitão
Uma linda e grande rosa.

Além dessas vitualhas,
Outras mais o olhar divisa:
Mexilhões frescos d' Aveiro
E um paio, róseo, de Niza;

Sobremesas são às dúzias,
Na mesa, ao pé da floreira:
Manjar branco, ovos de fio,
E uma “barriga de freira”.

De fato novo, os pequenos
Riem bem e melhor comem:
O Martim, que é o mais novinho,
A comer parece um homem!

Na braseira, sob a cinza,
Dormem brasas resplendentes:
Fazem-se alegres saúdes
Aos amigos e aos parentes.

Nisto, uma lembrança amarga
Me ensombra com negro véu:
Tenho à volta os cinco filhos,
Mas.... falta-me o que morreu!

 

DOMINGO DE PÁSCOA

Hoje, domingo de Páscoa,
Tudo é sol, beleza clara!
Em casa do ferrador,
Giram todos, ninguém para.

Deram três horas na torre,
Passaram pombas no ar...
Não deve tardar o prior,
A receber o folar.

O ferrador esmerou-se,
Pôs colarinho engomado,
E a mulher, sécia, vestiu-se
Com as roupinhas do noivado.

Sua filha, a Palmirinha,
Em passos curtos, subtis,
Toda risonha e frisada,
Traz sapatos de verniz.

Gastou um frasco de essência
No lenço que tem na mão:
Até parece mais linda
Que a filha do cirurgião!

Lembra um altar de novena
A casa do ferrador:
Cortininhas na janela,
E em cada jarra uma flor.

Canta o melro na gaiola,
E sobre o chão lavadinho
Fofos tapetes cheirosos
De alfazema e rosmaninho.

Na saleta o folar pingue,
Fulgindo, até arrebata:
Sobre uma laranja d'ouro
Cinco tostões d'alva prata.

Lindo dia! O sol entrando
Pela janela, dourado,
Doura no aquário de vidro
Um lindo peixe encarnado.

Palmirinha vai e vem
Da janela ao corredor,
Até que diz aos pulinhos:
— “Aí chega o senhor prior!”

Entra o sacristão com a cruz,
Caldeirinha e opa vermelha,
E o velho prior, que traz
Sobrepeliz também velha.

Tudo se põe de joelhos,
Em atitudes modestas,
E o prior sorri para todos:
— “Aleluia! Boas festas!”

Copos de vinho do Porto
Passam nas mãos, ourescentes,
E o prior recusa amêndoas....
— Coitado! faltam-lhe os dentes...

Foi-se o prior.... Tudo acaba
Nesta existência mesquinha...
O ferrador vai tirar
O casaco.... e Palmirinha

Pensa que daí a um ano,
Bem feliz no amor que a abrasa,
Receberá o prior
Já na sua própria casa...

 

AS DUAS CASAS

Às ilhargas da capela,
No chão do mesmo terreiro,
Vira-se uma casa nova
Para um enorme pardieiro.

Vive um conde arruinado
No sombrio casarão,
Em cuja fachada avulta
Uma pedra com um brasão.

Na casa dos azulejos
Quem mora é um pedreiro, o Gil,
Cujo filho, um felizão,
Enriqueceu no Brasil.

As janelas do palácio,
Sem vidros, estão ceguinhas,
Mas sob os seus beirais velhos
Fiem ternas andorinhas.

No prédio dos azulejos,
Com janelas verde-gaio,
A andorinha não faz ninho,
Mas há lá um papagaio.

De negro, o conde só vive
De amargas recordações...
Gil, de tamancos, só pensa
Em serrabulho e leilões.

À porta do conde, a sombra
Duns ciprestes se dilata...
Gil no portal tem dois vasos
Com palmeirinhas de lata.

Nos seus salões sem mobília,
O velho conde caduco
Pensa no seu nobre herdeiro,
Que é.... caixeiro em Pernambuco.

E Gil, o pai venturoso
Dum banqueiro do Pará,
Em mente, desconta o cheque,
Que amanhã receberá.

Entre a casa nova e a velha,
Na capela adormecida,
Cristo, pregado na cruz,
Pensa nos vaivéns da vida...

Os destinos desvairados,
Nesta vida enganadora,
São irmãos dos alcatruzes,
Dos alcatruzes da nora.

Cada um declina ou sobe
Conforme a sorte que o anima;
Os de cima vão para baixo,
E os de baixo vão para cima.

 

SOMBRAS QUE PASSARAM

Quantas saudosas figuras
Dos meus tempos de menino,
Não as varreu a vassoura,
Que anda nas mãos do Destino!

Na nossa casa, entre pátios
Com aves cantando à lua,
Entre dúzias de janelas,
Só uma olhava para a rua.

Mas, para a gente miúda,
Essa janela era então
Como o balcão dum teatro
Em permanente função.

De capa rota, e mostrando
Rotos calções e japona,
Aí pela volta das dez,
Vinha o Pedro da sanfona.

— “Toca!” gritávamos nós,
E ele, humilde, sem demora,
Começava.... e por dez reis
Tocara ali meia hora...

Mais tarde, ao dar do meio-dia,
Infalível, sempre exato,
Um alto pregão vibrava
Assim: — “Barato! Barato!”

Era um mouro de Marrocos,
De oleosa e bronzeada tez,
Que tinha um gilvaz na cara
E andava sempre de fez.

Numa caixa envidraçada,
Suspensa em forte correia,
Trazia botões, lunetas,
Jogos d'agulhas de meia.

Pulseiras de pechisbeque,
Sabonetes a vintém,
E lindos rosários bentos,
Vindos de Jerusalém.

Tal caixa, que também tinha
Canivetes e boquilhas,
Era para nós, pequenos,
Um jardim de maravilhas!

E nós, suspensos, alheados,
Num deslumbramento mudo,
Cubicávamos riquezas,
Para comprar aquilo tudo!

Outras vezes (e a loucura
Punha-nos todos num sino!),
Vinha uma família de húngaros,
Com um urso dançarino.

O pai, feroz de guedelha,
Butifarras, chapeirão,
E a mãe com um pequeno às costas
E meia dúzia pela mão.

Seminus, de grenha hirsuta,
Tinham todos o ar bravio;
O urso enorme, enlameado,
Marchava lento e sombrio.

Mas à voz do rude chefe,
Praguejando em língua estranha,
Lá se erguia o urso, aos urros,
Mais alto que uma montanha;

E, com um pelo, que lembrava
O burel dum anacoreta,
Dançava em pé, como um homem,
Ao rufo da pandeireta.

Outras vezes, pela tarde
(Parece que ainda o vejo!),
Vinha um velho italiano,
Que tocava realejo.

Vestido de bombazina,
Com chapéu mole, desabado,
Tinha umas calças mais fartas
Que as dum major reformado.

Oh! que música tão triste,
Que voz tão cheia de espinhos!
Um moinho a moer almas
De viúvas e de orfãozinhos!

O pobre do italiano
Trazia sempre a seu lado
Uma macaquinha triste
Com seu saiote encarnado.

E a macaquinha, ao findar
A gemebunda canção,
Aos pulos, pedia esmola,
Com uma bandeja na mão.

Velho mouro barateiro,
Sanfona de acordes tristes,
Tristes ursos dançarinos,
Onde estais, que vos sumistes?

Onde estás tu enterrada,
Macaca do realejo?
Que é feito do italiano?
Há muito que vos não vejo...

Na rua, agora, nem sombra
Das apagadas delícias!
Desta janela, só vejo
Automóveis e polícias.

 

O VELHO BERÇO

Tenho, entre outras coisas velhas,
Um berço em cujo espaldar
Se vê, feito de embutidos,
Um passarinho a cantar.

Casei num dia de maio...
Meses depois, uma vez,
Ouviu-se um anjo a chorar:
Sendo dois, ficámos três...

Veio o berço para o quarto,
Mil vezes o abanei eu...
Berço que era uma janela
Pela qual eu via o céu!

Nesse berço pequenino,
Em tempo que já lá vai,
Dormira soninhos d'anjo,
Sendo outro anjo, meu pai!

Nesse bercinho, mais tarde,
Morreu-me um filho também
Mas não quero falar nisto:
Anda ali a pobre mãe...

Dormiram nele outros filhos
Ao cantar dos meus afetos...
Velho estou; vazio, o berço
Ficará para os meus netos.

 

O COLÉGIO DAS URSULINAS

Em Portugal onde os ventos
Correm tão desaforados,
Os velhos conventos, hoje,
São casernas de soldados.

Onde a oração agitava
Asas de neve, impolutas,
Quer de noite, quer de dia,
Silvam pragas de recrutas;

E onde o incenso embriagava
Os Santos, que a Graça nimba,
Passa um fartum empestado
De acampamento e tarimba.

Calou-se o sino, que enviava
Ao céu saudades da terra:
Só se ouvem clarins agudos
Com ameaças de guerra;

E nos claustros empedrados
Por velhas, gastas lisonjas,
Gemem guitarras lascivas
Sobre os jazigos das monjas...

Dessas casas profanadas
Pelo rigor de ásperas sinas,
Uma relembro: o Colégio
Chamado das Ursulinas.

De Coimbra à beira, no sítio
Mais assoalhado e mais belo,
Sendo uma casa de paz,
Parecia ao longe um castelo.

E era um castelo, em verdade,
Um castelo de virtude:
Cidadela da inocência
Com torres de beatitude!

Tive lá três tias freiras,
Por quem minh'alma ainda chora,
E uma das quais, sendo cega,
Foi das demais Superiora.

Seu olhar, não tendo luz,
Luz da alma recebia:
Sendo cega entre videntes,
Era ela a que mais via.

Três irmãs, que ainda tenho,
E que tão discretas são,
Lá se fizeram doutoras
Em prendas e mansidão.

A mulher, que Deus me deu,
Também lá foi educada:
Casa, que deu tal mulher,
Seja pelos anjos cantada!

De lá, no Natal e Páscoa,
Nos vinham fartas oferendas,
Grandes bandejas de doce
Com toalhas de finas rendas;

E de lá vinham também,
Em horas de provação,
Com mimos de condolência
Beijos de resignação.

Mas as três tias morreram,
Soprou um vento cruel...
E o colégio das freirinhas
É hoje em dia um quartel!

 

O ESPADIM DO MEU AVÔ

A minha casa em Coimbra,
Ao pé da Universidade,
E um museu onde as coisas
Falam com voz de saudade.

Cá tenho a caneta d'ouro
Com a qual foi assinada
A escritura nupcial
Duma avó minha, morgada.

E a Senhora dos Remédios,
Que ali vês, leitor querido,
Resplandeceu no oratório
Doutro morgado sumido...

Ali está o último prato
Dum serviço do Japão,
Que viu mais dum casamento
Dos da minha geração.

Tenho, entre tanta antiqualha,
Que o meu coração atrai,
Muitas miudezas que foram
Do pai do meu santo pai.

Esse avô discreto e sábio,
Sendo em Coimbra doutor,
Foi do Mondego para o Tejo,
Feito desembargador.

No Desembargo, seguindo
As partes de Dom Miguel,
De Dom Miguel foi compadre,
Compadre e amigo fiel.

Desse avô, como já disse,
Tenho ainda muitas coisas:
A luneta dum só vidro.
Um anel de diamantes-rosas;

Tenho uma carteira sua,
Que parece um cofre-forte,
O seu hábito de Cristo
E o espadim com que ia à corte.

Esse espadim leveirinho
Tem, com a bainha de couro,
Punho de prata dourada,
Que em tempos fingiu ser d'ouro.

Mas tudo o tempo desdoura,
Pelos decretos do céu,
E hoje é tal punho a cabeça
Dum louro que encaneceu.

Velho espadim de três palmos,
Velho e triste, já não luz
Gomo luziu algum dia
Nos serenins de Queluz.

Chegou-me há tempos um livro
Dum poeta de alto porvir:
Quis abri-lo, era fechado,
Não tinha faca para o abrir...

Peguei no espadim do avô,
Com ele as folhas cortei:
O poema era divino,
Li-o enlevado e sonhei...

Espadim de puro aço,
Sendo arma, em vez de dar morte,
Deliciaste uma vida:
Foi feliz a tua sorte!

Espadim de aço luzente,
Sendo uma arma homicida,
Em vez de encher uma cova,
Deste um par d'asas à vida!

Em vez de fechar a porta
Aos leves sonhos risonhos,
Num relâmpago celeste,
Abriste a porta dos sonhos

 

MARIA FRANCISCA DA GRAÇA

Esta Maria Francisca,
Criada da nossa casa,
Com vocação para diamante,
Não passou de humilde brasa.

Velhinha, com reumatismo,
Já mal se pode arrastar;
Andou mais que um almocreve,
Sempre, em casa, a moirejar,

Veio para cá pequena,
E cá se tornou mulher,
Cá lhe embranqueceu a trança,
Cá, um dia, há de morrer.

Mandada, nunca mandou,
Nunca foi flor, foi sempre erva;
Dócil e humilde, foi sempre
Dos amos submissa serva.

Os nove irmãos que nós fomos,
Todos lhe andámos no colo:
Ver-nos todos consolados
Foi e é o seu consolo.

Todos lhe andámos no colo.
Tão quentinho e tão amigo;
E ela que pôde com todos,
Mal pode agora consigo!

Todos nós adormecemos
No bercinho, ao seu cantar:
Quanta vez, como na trova,
Não cantaria a chorar!

Mulher de fé, verdadeira,
Jamais gostou de imposturas;
Se mentiu, foi para encobrir
Nossas velhas diabruras.

Nas horas negras de luto,
Não era criada, não!
Chorando, era da família,
Chorava com o coração.

Com as soldadas que ganhou.
Ela, que é modesta e parca,
Foi comprando alguns ouritos,
Que tem no fundo da arca.

Mas não comprou esses ouros
Com a mira em fumaças vans:
Sem os por, já os legou,
Ficam para as minhas irmãs.

Onde haverá desinteresse
Como o seu foi? digam lá:
Quanto ganhou nesta casa,
Nesta casa ficará.

Boa Maria Francisca,
Safira do meu tesouro,
Tens no céu à tua espera
Uma cadeirinha d'ouro!

Doce Maria Francisca,
Sabes tu o que eu queria,
Sabes o que eu desejava?
Que tu fosses minha tia!

 
ENTRE AMIGOS
(Ao meu amigo Rui de Betencourt da Câmara)

Tenho um amigo no Funchal,
Nobre e leal português,
Que a miúdo vem visitar-me
E a quem escrevo muita vez.

Mando-lhe os versos, que faço
Nos meus serões, à lareira,
E ele remete-me, em troca,
Louro vinho da Madeira.

Nesta permuta amistosa
É ele quem dá melhor:
Os meus versos são palavras,
Seu vinho, luz e calor!

Tendo eu estado um certo tempo
Sem lhe mandar nada meu,
O meu velho e caro amigo
Nestes termos me escreveu:

“Do coração lhe desejo
Saúde paz e venturas;
Seus versos são luminosos,
E olhe que eu estou às escuras!”

Pelo primeiro paquete,
Respondi com mão ligeira:
“Se não tenho feito versos,
E que acabou o Madeira.

Se os meus versos têm luz,
E essa luz lhe dá deleite,
Mande-me em breve mais vinho
Boa luz quer muito azeite!”
 

O LUAR NAS ÁGUAS DO RIO

Nas águas negras do rio
Bate o luar de janeiro:
Nascem luzinhas na água,
Num ferver de formigueiro.

Nascem nas águas montinhos
De pó d'ouro, luzidio,
Como se um caruncho d'ouro
Tivesse dado no rio.

Parece que um anjo doido,
Sobre a água pasmadinha,
Anda a esfolhar os diamantes
Da coroa duma rainha.

Tal ferver de luz acorda
As aves adormecidas,
Que, despertando, supõem
Voltar d'outras altas vidas.

De ramo em ramo saltando,
Uma à outra se interpela:
— “Que fogo incendeia o rio?”
— “Que forja será aquela?”

Volve um tordo rechonchudo
Para os outros passarinhos:
— “Caiu do céu uma estrela,
E partiu-se aos bocadinhos....”

— “Mentes, tordo!” um pardal diz
Com real severidade:
“Tu dormias, nada viste,
Eu é que sei a verdade.

Eu, que tenho o sono leve,
Acordei há meia hora,
Vendo com olhos de espanto
A Virgem Nossa Senhora.

Nossa Senhora viera,
Por trilhos de benta luz,
Fazer compras para a ceia
De São José e Jesus;

Mas ao voltar ao presépio,
Por sobre as águas do rio,
Apesar de Mãe de Deus,
Escorregou e.... caiu 

Um braço erguendo na queda,
Salvou a infusa com leite,
Mas quebrou em mil pedaços
A outra, de louro azeite.

É pois azeite entornado
O ouro que na água luz,
Chorando por não dourar
O caldinho de Jesus....”

 

A ESCADA DA VIDA
(Ao Dr. J. M. de Queirós Veloso)

Encontrou-se a Caridade
Com o Orgulho, certo dia:
Subia o Orgulho uma escada,
E a Caridade descia.

Ela humilde, ele arrogante,
No patamar dessa escada,
Os dois, cruzando-se, viram
Uma rosinha pisada.

Emproado, o Orgulho, vendo-a,
Deu-lhe nova pisadela;
De joelhos, a Caridade
Deitou-se aos beijos a ela.

Mas nobres passos se ouviram
De som divino e tremendo:
O Orgulho seguiu subindo
E a Caridade descendo...

E a voz de Deus entretanto
Disse, bramando e sorrindo:
— “Tu, que sobes, vais descendo!
Tu, que desces, vais subindo!”

 

O RELÓGIO DE SOL

Tenho um relógio de sol,
Que me deu minha madrinha,
Onde as horas são marcadas
Pela sombra duma linha.

Consultava-o raras vezes,
Pensando, em tristonhos dias,
Que horas medidas por sombras
Devem ser horas sombrias.

Mas desde que nos amamos,
Meu amor e meu regalo,
De manhã até à noite
Passo a vida a consultá-lo.

Nele vi, de luz coroado
E com asas no desejo,
Quantas horas eram quando
Me deste o primeiro beijo.

Naquele momento, a sombra
Marcava ao certo meio-dia,
E por marcar tal momento,
Sendo negra, refulgia.

Nele vi que horas eram
Quando, amor, te foste embora;
Dessa vez, sim, era negra
E triste a sombra da hora...

Nele vejo, alegre ou triste,
Alegrias e pesares,
Há quantas horas partiste,
Quantas faltam para voltares.

Tem o relógio uma bússola,
Bem fiel à paixão sua.
Sempre virada para o norte,
Como a minh’alma para a tua.

Por mais voltas que lhe dê,
Não a demovo dali:
Olha sempre para o norte,
Como eu sempre para ti.

Sendo relógio de sol,
Quando é noite não trabalha;
Mas à noite estás tu longe,
E eu a arder numa fornalha!

Para medir horas tais
Fora mister que existisse
Um relógio, que, em vez de horas,
Longos séculos medisse.

 

A BILHA DE EXTREMOZ

Grácil bilha de Extremoz,
Que a minha sede acarinhas,
No barro vermelho ostentas
Ornatos d'alvas pedrinhas.

Traz-me esse barro visitas
Duns lábios incandescentes,
E essas pedrinhas, saudades
Duma alvorada de dentes.

Em vez de a acalmar, excitas
A chama dos meus desejos:
Busco juízo ao beijar-te,
E endoideço a dar-te beijos!

 

JASMINS DE OURO, JASMINS DE PRATA

Há jasmins de duas cores,
Os brancos e os amarelos:
Lembram-me uns certa garganta,
E os outros certos cabelos...

Uns são d'ouro, outros de prata,
Metais de oposto valor,
Mas para mim irmanados
Na confraria do amor.

Uns de sol, outros de lua,
Cada um por vencer anseia:
Doura-me todo o que é d'ouro
E o de prata me prateia.

Se os amarelos me falam
Duma trança refulgente,
Trazem-me os alvos lembranças
D'alvo dorso rescendente.

Vendo Jasmins, ouço estático
Coros d'altos serafins:
Flori, flori! jasmineiros,
Coroai-me de jasmins!

Belos são os jasmins brancos,
E os amarelos também:
E no ouro como na prata
Os rubins vão sempre bem.

Jasmins de mel ou de leite
Mostrais um palor exangue;
Que nesse palor palpite
Róseo frêmito de sangue!

Por isso, de fogo ou neve,
Todos de pele cetinosa,
Sem ciúme, deixai que eu ponha
Entre vós corada rosa,

Rosa, que trará notícias
A esta alma, fazendo-a louca,
Do róseo florir duns seios,
Do róseo rir duma boca!

 

PRESENTE DE ANOS

Aí vai o meu presente,
Lindo amor de boca meiga:
Meia dúzia d'ovos frescos
E esse nico de manteiga.

Perdoa à minha pobreza
Mimo tão escasso e vulgar;
Lavrador de fracas terras,
Não tenho mais que te dar.

Oferecer-te quisera,
Com prenda tão desvaliosa,
Alguma frutinha doce
E alguma flor bem cheirosa.

Mas desde que nos deixaste,
Da tua memória escravos,
Nem os pomares dão pomos,
Nem os craveiros dão cravos.

Desde que te foste embora,
Por estes campos maninhos,
Fruta, só há limões verdes,
E flores, só cardos com espinhos!

Quis enviar-te uma rola,
D'além, dos choupos do rio:
Passei lá a noite toda...
Só vi um mocho sombrio!

Sem outras flores, aí te mando
Estes versos, minha vida,
Versos humildes da serra,
Arrancas d’urze florida.

 

DESILUSÃO

Disseste-me que virias,
E eu, a cantar, com presteza
Desfolhei rosas na escada,
Pus mais um talher na mesa.

Pobrezinho, destinei-te
Quanto de mais rico tenho:
No teu lugar, garfo d'ouro,
E no meu, garfo de estanho.

E faltaste! As lindas trutas,
Que eu aqui tinha, de prata,
Nem me atrevi a comê-las,
Deitei-as à minha gata.

 

PRIMEIRO AMOR

Desenhei o teu retrato
Na minh'alma, em terno anseio,
Ficou lindo! Mas um dia,
Não sei porquê.... apaguei-o!

Apaguei-o.... não! tentei
Sumi-lo, cansando os braços;
Mas, por mais voltas que desse.
Lá estavam sempre os seus traços!

Sobre esses traços delidos,
Para os apagar de vez,
Amando Inês, em seguida,
Fiz o retrato de Inês.

Mas esta só breves dias
Meu coração aqueceu:
O seu retrato esvaiu-se:
Por baixo lá estava o teu!

Na minh'alma dolorida,
A arder em febre amorosa,
Desenhei depois as caras
De Júlia, Gracinda e Rosa.

Cada um desses retratos
Durava curtos instantes:
Como a água, era a minh'alma,
Retratando os caminhantes.

Quantos rostos, uns sobre outros,
Desenhei ali, à pressa!
Sob eles sorria sempre
A tua airosa cabeça!

Dos outros ficaram manchas,
Nevoeiros leves e baços...
Porém, do teu, indeléveis,
Subsistem, finos, os traços.

Os outros, fantasmas d'aves,
Voando, doidas, sem rumo,
Duraram breves momentos,
Foram traçados com fumo...

Porém o teu, neste peito,
Perdura, nítido e nobre,
Como gravura a buril
Numa lâmina de cobre!
 

ABUNDÂNCIA D'AMOR

Andarejo me chamaste,
Volúvel do coração:
Não me crimines, escuta,
Do que fiz eis a razão.

O amor, com que fui provido,
Para seis homens chegava:
Se o desse a uma mulher só,
Pobre mulher, rebentava!

Por tal motivo, e seguindo
Doces leis de caridade,
Parti esse amor em dois,
E guardei uma metade.

Com a outra metade, a livre,
Aos bocados dividida,
Comprei risos, comprei beijos
E alegrei a minha vida.

Mas.... acabada a moeda,
Todo o gozo feneceu...
Depois de dourados dias,
Veio a noite.... escureceu...

Foi então que te encontrei
Na rua da Felicidade:
Fui ao cofre, e tirei dele
Do amor a outra metade.

Aí a tens inteirinha
Nas alvas mãozinhas tuas:
É metade.... mas tão grande
Que ainda dava para duas.

 

OS ROMEIROS

Os meus beijos são romeiros
Duma eterna romaria,
Romeiros que nunca dormem,
Que andam de noite e dia.

Desde a prata desses pés
Ao ouro dessa cabeça,
Pelos caminhos do teu corpo
Marcham com fé mas sem pressa.

Sem alforje e sem cabaça,
Riem livres de pesares,
Bebendo em límpidas fontes,
Comendo em belos pomares.

Quanto mais andam, mais sentem
Miraculosos assombros:
Colhem rosas nos teus seios
E açucenas nos teus ombros.

Assim, coroados de flores,
Miram-se nas tuas veias,
Rios azuis que deslizam
Entre prateadas areias.

Por atalhos rescendentes.
Por claras lombas e outeiros,
A capelinha do monte
Chegam por fim os romeiros.

A capela é essa boca,
Que eu por outra nunca deixo,
Com a sua porta aberta
No terraço desse queixo.

Capelinha de novena.
Por mil rosas adornada,
Toda ela forradinha
De fina seda encarnada.

Cantam em coro lá dentro
Com voz d'ouro os serafins,
E, entre as rosas, os teus dentes
São grinaldas de jasmins.

Por cima da capelinha,
Onde é permanente a festa,
Há uma torre de prata,
A torre da tua testa.

Nessa torre, mal os beijos
Na capela entrado tem,
Repicam logo dois sinos,
Que são teus olhos, meu bem!

Os meus beijos são romeiros
Duma eterna romaria,
Romeiros que nunca dormem,
Que andam de noite e de dia.

Os meus beijos vão descalços,
Mas, descalços como vão,
Pisam tapetes, que os anjos.
Cantando, estendem no chão...
 


PRESUMIDA

Quando, pela vez primeira,
Te avistei no meu caminho,
Levavas, qual grega estátua.
Simples túnica de linho.

Sorrindo, olhaste para trás.
Lá no extremo da alameda...
Momentos depois voltavas
Toda vestida de seda.

No dia seguinte, ao ver-te,
Fiquei atónito e mudo:
Eras como uma rainha
No teu manto de veludo!

Perdias trabalho e tempo
Com rendas, fitas e folhos:
Não eram teus atavios
Que enfeitiçavam meus olhos!

Qualquer que fosse o teu traje,
Eu sempre te achava linda,
Mas suspirando pela hora
De te ver mais linda ainda!

Tal hora chegou enfim,
Dourando a minha impaciência:
Foi quando a mim te entregaste
Vestida só de inocência!

Então, sim! é que eras linda!
Tão rica de encantos tais,
Que neles pregando a vista
Fiquei cego para o mais!

 

PEQUENA CHAVE, QUE PESA MUITO

Fechou esta chave um dia
Dum filho meu o caixão,
Fechando a minha alegria
Dentro do seu coração.

 

INSCRIÇÃO PARA O VESTÍBULO DUMA CASA DE CAMPO

Sê bem-vindo nesta casa,
Se és deveras meu amigo:
Entra, abraça-me, descansa,
Senta-se à mesa comigo.

 

INSCRIÇÃO PARA A SEPULTURA DUM MANCEBO

Morriam por ele os pais
Nos dias em que viveu,
E nele vivem aos ais
Desde o dia em que morreu...

 

CEGUEIRA DOCE E AMOR CONSTANTE

A fazer versos e a lê-los,
Pôs-se-me a vista cansada;
Vejo ao longe como os linces,
Mas ao pé não vejo nada.

A vista da minha alma
A mesma fraqueira sente,
Vejo bem, se olho o passado,
Cego sou, se olho o presente.

Por isso, aos olhos do amor,
Que neste coração mora,
Vejo-te como tu eras,
Não como tu és agora.

Com os anos desmaia a pele,
Branqueia a dourada trança;
Mas o amor, se é verdadeiro,
Só em crescer faz mudança.

Assim, com a alma e com os olhos,
Vencendo o tempo que foge,
Vejo-te como eras dantes
Sem querer saber como és hoje.

Se estás velhinha, se o vento
Tuas folhas faz cair,
O viço para mim conservas
Dum botão de rosa a abrir.

Cego ao perto, vejo ao longe,
Mas, cego, com alegria,
Amo-te como te amava,
Vendo-te como te via.

 

O MEU ANEL
(Ao meu parente e amigo José de Azevedo e Meneses Cardoso Barreto, Senhor da casa do Vinhal)

Dois rubis, três esmeraldas
E dois líquidos diamantes
Fulguram no meu anel
Como sete astros radiantes.

Nessas três castas de pedras
Despiçadas de beleza,
Três forças minhas se espelham:
Amor, esperança e firmeza.

Nos rubis vê-se o meu sangue
Rico de luz e de cor,
Azeite dum coração,
Que arde com chamas de amor.

Nos diamantes, que são duros,
Mas que luzem como o orvalho,
Vive pintada a firmeza
Com a qual amo e trabalho.

E nas esmeraldas verdes
Ri com riso esmeraldino
A verde esperança que eu ponho
Dos meus versos no destino!

Tão lindas pedras cintilam
Num aro d'ouro, preciosas;
E nesse aro a mão dum ourives
Burilou folhas e rosas.

Velha joia, minha amiga,
Que tão bem me quer e enfeita,
Trago-a, há já mais de trinta anos,
No anular da mão direita.

Com ele na mão, em novo,
Mais duma taça esvaziei,
Mais duma rosa colhi,
Mais duma espádua afaguei.

Companheiro da minh'alma,
Segue-a sempre no seu voo:
Com ele na mão dou esmola,
Faço versos e abençoo.

Se acaso a mão se me fecha
Com egoísmo ou com ira,
Embaciam-se-lhe as pedras
E parece que suspira...

Mas se faço um lindo verso
Ou uma mais linda ação,
Rompe em cânticos de luz,
Não é joia, é coração!

Velho anel, bom companheiro,
Sempre a luzir nestes dedos,
Sabe toda a minha vida,
Faz a cama aos meus segredos.

Tinha-o na mão, quando um dia
Vi a minha noiva bela;
E as pedras dele sorriam
Ás pedras dos anéis dela.

Com ele na mão, casei
Em linda manhã de maio:
Ao ver a noiva, de branco,
Quase que teve um desmaio!

Tinha-o no dedo também
(E até mostrava mais brilho!),
Quando pela vez primeira
Peguei no primeiro filho.

E com ele neste dedo,
A desmaiar de paixão,
Do filho que me morreu
Fechei um dia o caixão.

Meu velho anel, quando, enfim
Desta mão tirado fores,
Dirás que, se eu não fui santo,
Muitos há que são piores!

 

COM A MÃO NA CONSCIÊNCIA

Do povo a Sabedoria
Tem rifões que são espelhos
Onde, para aviso dos novos,
Luz o juízo dos velhos.

Dir-nos um desses rifões,
Em palavras judiciosas,
Que ninguém deve ir da vida
Sem ter cumprido três coisas:

Deve plantar uma árvore,
O homem, nos seus terrenos;
Um livro escrever; e enfim
Deixar um filho pelo menos.

Esses preceitos antigos,
Cumpri-los procurei eu:
Filhos, tive meia dúzia,
Vivos, cinco, e o que morreu...

Quanto a árvores, comprando
Certo dia umas courelas,
Plantei lá vinte oliveiras:
Já bebi azeite delas!

Pelo que aos livros respeita,
São até em demasia:
Em vez dum livro somente.
Cá deixo uma livraria.

Conforme Deus foi servido,
Fui cumprindo os meus deveres;
Tenho a consciência em paz...
Morte, vem quando quiseres!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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