2/27/2023

Flor de Maio (Poesia), de Osório Duque-Estrada


FLOR DE MAIO



DEDICATÓRIA

AOS MEUS AMIGOS E CONFRADES:

MARTINS JÚNIOR
 AFONSO CELSO
LEÔNCIO CORREA
XAVIER DA SILVEIRA
JORGE PINTO
RAIMUNDO CORREA
ÁLVARO DE TEFFÉ

LEMBRANÇA DOS NOSSOS SERÕES DE PETRÓPOLIS.



SINFONIA

Ghantez, chantez, ô mes chansons!

Richepin

Musa piedosa e austera,
Volve agora a cantar!
Concerta a voz e espera,
Porque as aves e o sol e a primavera 
Já não devem tardar... 

Vai longe a névoa; maio
Passou; junho apagou-se 
Num lânguido desmaio,
E agosto acende o seu primeiro raio
De luz suave e doce. 

Bebe este ar perfumado!
Que se evola das flores!... 
Deixa o amor e o passado,
Porque o aroma do campo e o sol dourado
Curam todas as dores.

Concerta a voz e espera,
Que é tempo de cantar!
Canta, Musa severa.
Porque as aves e o sol e a primavera
Já não podem tardar...

 

AGONIA DE D. JUAN
(Ao Dr. H. Velarde)

Desfalece-me a face macilenta,
E eu não sei que ânsia louca, na partida,
Como um grilhão, ainda me acorrenta
À masmorra misérrima da vida!

Nem uma só dessas visões amadas
Vem me assistir no derradeiro instante...
Não mais pelo cair das madrugadas
Vibra a minha guitarra soluçante!

E antes que a estrela d'alva cintilando
No azul desponte, límpida e sonora,
Minh'alma, enfim, estes grilhões quebrando,
Há de ascender para uma nova aurora...

Busco um clima melhor, de sol mais rubro;
Mas, mal curado das paixões do mundo,
Novas formas fantásticas descubro
Daquele azul boiando inda no fundo...

Inda a Via-Láctea nos espaços francos
Abre em lírios de mádidas capelas,
Tão doces, tão cheirosos e tão brancos
Como seios de pálidas donzelas...

Mortal feliz, em cuja face leio
A glória de viver e amar: descansa;
O céu brilhante, o céu azul é o seio
Em que palpita a última esperança.

Penetra a fundo nesta galeria
De mulheres esplêndidas e belas
Que têm nos lábios a prisão do dia
E nos olhos o fogo das estrelas...

Repara nesta: a alma deixou-me em luto,
A fronte em brasa, o coração partido:
Inda não houve, em toda a terra, fruto
Mais perfumado e mais apetecido!

O farto colo, o seio astral, que a avara
Roupa encobre, inda a fazem, resplendente.
Rutilar através da renda clara
Como uma estrela em névoa transparente.

Mas antes, quando os astros habitavam
Outros páramos de ouro mais distantes.
Que vergéis os seus lábios aromavam?
Seus olhos em que céus moravam dantes?

Bastam-lhe os olhos: nesses, posto os veja
Longe do céu, dois novos céus diviso;
São dois altares de uma mesma igreja,
Duas portas de um mesmo paraíso...

E aquela... e esta outra aqui que, com certeza,
Do amor as chamas te vertera n'alma...
Em torneio de graça e de beleza
A própria Vênus lhe cedera a palma!

E as outras todas, lúbricas, formosas,
Feitas para a paixão, para os delírios.
De mais aroma do que as próprias rosas,
De mais alvura do que os próprios lírios;

Todas verteram sobre o meu caminho
— Mudo e negro — o crepúsculo de um beijo
Que uma flor fez abrir em cada espinho
E em cada flor a flor de outro desejo!

Por isso, ó tu mortal, que hoje te ufanas
Desse amor que te põe louco e desfeito:
Não cuides que essas vis paixões mundanas
Na cantassem também dentro em meu peito!

Essa névoa de sonho em que flutuas.
Essas glórias inúteis e mesquinhas
Pouco me pesa que hoje sejam tuas
Porque em tempo também já foram minhas!

Mas enquanto estes véus não se desatam.
Uma ideia sinistra inda me aterra.
É que no azul os corações não batam
Como o meu vai bater dentro da terra...

E tu, alma sem fé, que ainda resistes
À morte: o céu te aguarda e abre as fronteiras
Como o píncaro azul dos Alpes tristes
Onde a edelweiss floresce entre as geleiras!

 

NO BOSQUE
(A Eduardo Salamonde)

Escuro ainda. Somente
Silêncio e sombras... Agora
Lá para as bandas do Oriente
Vislumbro um raio da aurora...

E espero. Um brilho de opalas
Treme no ar. Fresca e louça,
Num rubro fulgor de galas
Há de chegar a manhã.

Uma asa rufla num galho
Onde acorda um passarinho;
Cai uma gota de orvalho...
Ouve-se o trilo de um ninho...

Ensaia-se a partitura
Da nova música; o sol
Veste a rútila armadura
Que há de brilhar no arrebol.

Sai um perfume ligeiro
De cada moita orvalhada;
À luz do clarão primeiro
Lá vem surgindo a alvorada!

Já se ouvem perto cantando
Os sabiás, e na luz
Esvoaça, célere, o bando
Das borboletas azuis.

Por tudo a esplêndida festa
Em raios de ouro se acende;
Ao longe, toda a floresta
Já brilha agora e rescende.

Nestes moitais, que embriagam,
E onde se sonha também,
As dores todas se apagam
E a vida chama-se um bem!

Vejo abrir-se, à luz serena,
Do sol à primeira seta.
Aqui, a branca açucena,
Ali, a casta violeta...

E fico alegre e contrito
Ante esse eterno esplendor;
A terra, o céu, o infinito
Falam de paz e de amor.

Tudo aqui me arrouba e encanta.
Tudo me enleva e me acalma:
Quando algum pássaro canta,
Cuido que canta em minh’alma.

Ao ver o espinho ciumento
Guardar da flor o botão,
Esqueço por um momento
O mundo, esqueço a traição;

E junto ao sol e às boninas,
Apago toda a tristeza,
Lendo as estrofes divinas
Do poema da natureza.

 

BELEZA MODERNA
 (A Olavo Bilac)

Certo, me apraz te ver nua completamente.
Como, em dezembro, o sol que funde a névoa, e ardente
E duro, fere o olhar com a dura claridade...
Lembras, então, não sei que estranha divindade
Esplêndida, torneando as linhas da figura
Num mármore de eterna e deslumbrante alvura.
Mas ainda mais te admiro, ao ver, sobre os teus braços,
Em concerto ideal de fitas e de laços,
Brilhar, com um brilho novo e que inda mais cativa,
A toilette que cinge a tua estátua viva!
E o espartilho apertado onde os seios formosos
Como dois garanhões empinam-se fogosos...
E o teu braço, que sai da manga aberta e franca
Onde a alva renda espuma em torno à carne branca...
E o teu busto solene entre cetins fechado;
E o teu pé, que se arqueia e que brinca endiabrado
Por baixo dos botões da bota reluzente...
E a saia em longa cauda arrastada e fremente
Como uma onda ideal de esplêndido cabelo.
Que desce da anca larga ao fino tornozelo...
E dobrada, a sumir-se, a cinta airosa e leda
Nesse frufru macio e sonoro da seda;
E as joias, os anéis, os broches, o veludo,
Tudo, em suma, o que inventa o teu capricho, tudo!
Nada, porém, me embriaga e me extasia mais
Do que ver-te no teatro, em toilettes reais.
Quando à ponta da luva o teu leque agitando.
Como uma borboleta o deixas farfalhando;
Ou, com uns ares de deusa e um sorriso de fada,
O peito arqueando, a coma em ondas derramada,
Mostras, fazendo inveja aos lustres da ampla sala,
Diamantes cujo brilho os olhos apunhala...

 

CHUVA ETERNA
(A Coelho Neto)

Eterna chuva, que não cessa agora
De cair! Chuva eterna, que não cansa,
E que no campo e pelo vale afora
Flores destouca e em terra os frutos lança!

Esvoaça o temporal; galopa, avança
Através da hibernal neblina, e ora
Flébil, ora a bramir, na verde frança,
Como um lobo na treva, ulula e chora...

“Será possível que estes tormentosos
Uivos, que a carne ferem todo o dia,
Tornem já tantos dias tenebrosos?”

E olho o céu... mas na densa ramaria
Ouço as bátegas da água, e os lamentosos
Guaís do vento que zune e que assobia...
 


DOLOR SUPREMUS
(A Alfredo de Oliveira)

Et l’absence de ce qu'on aime
Quelque peu qu’elle dure a toujours trop duré.

Molière

Aos corações que vivem na amargura,
Ouvi dizer mais de uma vez: “O amor
É das noites a noite mais escura,
Das dores todas a suprema dor...”

E eu, a alheia miséria contemplando,
A mim mesmo, sorrindo, perguntava:
(Quando o acharás também, minh'alma? Quando
Do seu poder hás de cair escrava?)

E sorria e cantava. A glória acesa
Via das rimas no imortal tesouro;
E o mar e o céu e toda a natureza
Punha cantando nas estrofes de ouro...

Mas quando nem temia, certamente.
Que pudesse ser presa doesse mal,
Feriu-me o peito, inesperadamente,
A mesma dor insólita e brutal.

Busquei na ausência o bálsamo do tédio,
Alivio à mágoa, lenitivo ao pranto;
E pior do que o mal foi o remédio
Que eu não supunha que amargasse tanto... 



SHAKESPEARE
(A Luiz Murat)

És o Deus soberano — o espírito sagrado
A cujo sopro, um dia, inesperadamente.
Como à voz de Jeová, criadora e potente,
Cheio de nova luz, foi um mundo criado.

De mares, de vulcões, de montanhas cortado,
N'alma humana encravaste um novo continente
Onde rola e soluça e geme eternamente
O temporal da dor que sopra do passado...

Sol de fogo a dourar os alcantis da glória
Dessa vida imortal que coroou na história
Da Ilíada o cantor junto ao cantor do! inferno;

Outros hão de tombar ao vento e às tempestades,
Tu, porém, através do tempo e das idades.
Ficarás como um Deus — impassível e eterno!

 

HISTORIA CURTA
(No álbum de uma senhora)

Vossa Excelência quer, talvez, minha Senhora,
Que, no iriado cristal de uma estrofe sonora,
Transpareça uma flor gentil de fantasia,
Dessas que a musa audaz de um poeta, às vezes, cria
A brincar — mimo, enfim, que não requer paciência
Nem esforço ao fazer; pois bem: Vossa Excelência
Manda, não pede; mas temo que esta carcérula
Vá por isso abrigar alguma falsa pérola...
Olhe: se alguém cuidar que a culpa cabe ao poeta
Que uma joia vulgar expõe como seleta,
E engana os que a vem ver, eu gritarei de chofre:
— A culpa não é dele, é da dona do cofre!
Dito isto, vou contar uma esquisita história
Que ora mesmo me vem de súbito à memória:
Era uma vez... (não sei como é que principia
A história) Vamos ver se eu acerto: Era um dia
Uma fada que tinha uma estrela na testa...
Não, não há de ser isso: essa história não presta.
Vamos ver outra: Enfim! Creio que achei: Uma alma
Agonizando... um sonho a turvar sempre a calma
Da infeliz... O ideal, de asas de ouro entreabertas.
Voando ao longe, através de umas brumas incertas...

Ó crua decepção que sobre mim desaba:
Quando a história começa, a página se acaba!...
E agora? Não faz mal: ponha Vossa Excelência
Em vez de uns versos mais, mais uma reticência...

 

O ENTERRO
(A Emílio de Menezes)

Dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j’ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés...

Baudelaire

Chegas... Na torre, ao pé, soa o toque das onze...
E, logo, o imenso sino, abalado e plangente,
Ergue no ar, em redor, a voz cava e de bronze,
E dobra a badalar, desabaladamente...

Vão te lançar, enfim, à negra cova, aberta
Junto de um vale, imerso em sombras silenciosas...
Nesta fria mansão, desolada e deserta,
Vais descansar ao pé dos lírios e das rosas...

E eu nem posso assistir a essa cena sombria
Em que profanas mãos teu féretro pesado
Hão de descer, em breve, à terra úmida e fria
Onde vais tu dormir o sono do noivado...

Chegas... Na torre, ao pé, soa o toque das onze...
E há nela e no meu peito um sino alto e plangente
Que todo o ar, em redor, com a voz cava e de bronze,
Abala, a badalar, desabaladamente...

 

O ARROIO
 (A Mendonça Cardoso)

Nunca descansas: cristalino e puro,
Doce, sereno e manso,
Passas correndo sobre o leito duro...
Eu também, como tu, corro e murmuro.
Eu também, como tu, nunca descanso!

Eu caminho ao vaivém das minhas dores;
Tu prossegues veloz nos teus caminhos,
E se vais a brincar por entre flores.
Eu me arrasto a gemer por entre espinhos!
Tu passas como sombra, vagamente.
Em continua viagem;
Vais ter ao mar em rábido escarcéu;
Baixas do céu em tímida celagem
E num raio de sol tornas ao céu!
Eu onde vou? Nem sei: vou arrastado,
Com a fé perdida que a esperança trunca...
— Sombra em meio do céu iluminado,
Mas sem poder iluminar-se nunca!
Teu fim é só passar... Eu, se te imito.
Nem consigo viver; por isso, choro.
E no inferno da dor era que me agito,
Vejo o meu leito, em sonhos que deploro,
Dourar-se à luz que baixa do infinito.

No auge da febre ardente
Sonho a meus pés um pedestal; a glória
Dá-me o seu brilho; e eu sinto, sem que o conte,
O calor dos aplausos na memória
E a gelidez do túmulo na fronte!
E logo ao despertar dessa loucura,
Desse tremendo e negro desvario.
Ao enfrentar a realidade escura.
Em vez de soluçar inda me rio!

Mas que importa? No murmuro escarcéu
Vais sussurrando sobre o teu álveo
Enquanto em mim um vendaval retumba...
És um eco do céu
Eu, um eco da tumba!

Se me parece que no teu arrulho
De um anjo a voz misteriosa canta.
Também suponho que no meu orgulho
A voz do gênio as vezes se levanta.
Das minhas ilusões puras e bela,
O último eco morrerá na lira;
Sou como tu especho que a tudo aspira!
Átomo pensador que a tudo aspira!

Nascer, pensar, morrer! Ó ímpia sorte!
Para que tanto afã, tanto tormento,
Se, ao fim, no abismo que vai ter à morte
Se há de afundar o próprio pensamento?
Nascer, pensar, morrer! E na existência
A incerteza que mata e nunca muda!
E nos lábios cerrados da ciência
Uma palavra muda!

Ó arroio que vais em burburinho!
Quisera, em teu caminho,
Ser uma flor dos campos que tu sondas,
Fulva areia em teu leito forasteiro.
Sombra de um cisne, atravessar-te as ondas
E na margem tremer como um salgueiro.

Ser a brisa que é tua, quem me dera!
O eco da tua voz guardá-lo todo;
E ser lodo também, porque quisera
(Menos a alma que pensa) ser só lodo!

 

UMA SURPRESA

Teve a morte de uma santa
Tendo a vida de uma flor

Tobias Barreto

Era uma doce e gárrula esperança
A pequena Maria;
Mas, fazendo-se triste, a pobre criança
Enfermou, certo dia...

Veio o doutor, e a rir para as Senhoras,
Disse: “É uma febre à-toa...
Ao voltar amanhã, por estas horas,
Hei de encontrá-la boa”.

No outro dia, bem cedo, ele voltava;
E na alcova, da porta,
Viu que ardia uma vela e alguém chorava.
Maria estava morta.
 

CROQUIS
(A Alberto de Oliveira)

O caso terás lido, com certeza,
Da mulher de quem diz a história rara
Que, tomada de súbita tristeza,
Petrificada e extática ficara...

Niobe era o seu nome, e tão formosa
Tão sedutora aos homens se mostrava.
Que à mesma Via escura e dolorosa
O coração de todos arrastava...

Mas um dia, — implacável lei da sorte! —
Do seu perverso amante desprezada,
Viu-se ferida pela mão da morte
E em bruta e inerte pedra transformada...

A alma do poeta, triste e dolorida,
— Árido campo onde uma flor não medra,
Lembra aquela mulher, que assim ferida
De estranha mágoa, transformou-se em pedra.

 

NO DIA DOS MORTOS

Lírios aqui... Vejamos: a morada
Que sob estes ciprestes acha abrigo,
Não é, por certo, a tenda iluminada
Que tu sonhavas habitar comigo...

Ó alma sem piedade maltratada:
Por que, após expiar o teu castigo,
Vieste, em leito de seda reclinada,
Buscar a eterna paz deste jazigo?

No mármore gelado da saudade,
Por mitigar a mágoa que não finda.
Ajoelho; e enfim, olhando com piedade

A pedra que te guarda, ó joia linda.
Venho aquecer, na sua frialdade.
Meus ideais... mais gélidos ainda!

 

A NÁIADE
(A propósito do acidente ocorrido em Cascais, e em que foi protagonista Sua Majestade, a rainha D. Amélia, de Portugal)

Si detrás de los espacios
Hay ojos que estan mirando
El combate de la vida
Ellos sigan vuestras pasos
Y enaltescan vuestro nombre.

J. de D. Peza

A lenda, que a Mãe d'Água, em raros versos, cita,
Conta de uma princesa estranha e misteriosa
Que o fundo de um palácio, entre as ondas, habita,
E aos incautos propina a morte tenebrosa.

Conta da sedução e do engano que mata.
Mas não fala, sequer, naqueles versos de ouro.
Da náiade gentil que ao pélago arrebata
A presa que se afunda em negro sorvedouro...

Senhora! Além de vivo e férvido respeito,
Encheis também de amor os nossos corações:
Se ao tempo dos heróis brilhasse o vosso feito,
Teria um canto mais o poema de Camões!

 

ABDICAÇÃO
 (A Eduardo Rudge)

És a minha Madona, és o meu Deus agora.
Nada me fica mal se o ordenas tu, Senhora!

É o teu corpo ideal, sem um relevo falso,
A estrada que me leva à cruz e ao cadafalso.

Com um só requebro teu, tão cheio de molezas,
Conseguirás de mim as maiores baixezas.

À minh’alma darei, se inda pedires mais,
As sete seduções dos pecados mortais.

Se desejares ver da orgia o vivo espelho,
Vê-los-ás resplandecer no meu carão vermelho!

De um herói queres pôr o luto, com barulho?
Morro, de cetro em punho, enchendo o teu orgulho!

Queres um mundo ter de beijos e carícias?
Dou-te para dormir um leito de delícias...

Se a tua carne freme em ânsias, libertino
Serei mais que Petrônio e mais do que Aretino.

Se por algum tesouro o teu desejo estua,
Sou capaz de ir roubar o sol e a própria lua.

Se queres que eu abjure a Arte que um Deus asila.
Nos misteres mais vis irei prostituí-la.

Se a ventura de uma outra a tua contradiz,
Terei um mau olhar para vê-la infeliz!

Meu próprio coração, se a distração é boa,
Podes quebrá-lo até, como uma coisa à-toa...

Se num cofre possuir desejas um tesouro.
Tão avaro hei de ser, que o encherei todo de ouro.

De crimes um buquê aos teus seios divinos
Dou, com a faca e o punhal dos feros assassinos...

Se ao meu melhor amigo ouvires um “talvez!”
Hei de, traidor e vil, perdê-lo de uma vez.

Se beber o meu sangue um dia te apeteça,
Sê logo a guilhotina e corta-me a cabeça!

 

OS ESPECTROS
(A Heitor Maris)

Nos cemitérios, onde gemia
Do vento o açoite,
Espectros negros, em agonia,
Vi, certa, noite...

Espectros tristes, num antro imundo
Sem luz nem brilhos,
Eram as almas dos que no mundo
Deixaram filhos...

Espectros loucos na treva uivaram,
— Sombras de cães;
Eram as almas dos que mataram
As próprias mães...

Bailando, em gritos, espectros coxos,
Nos cemitérios,
Olhavam tristes, funéreos mochos
De olhos funéreos...

Corujas, sombras que assim gemeram,
Tão bem sinônimas.
Eram as almas dos que escreveram
Cartas anônimas...

 

BOCA IDEAL

A sua boca ideal
É um palácio com jardim;
As portas afio de coral.
Os degraus são de marfim.

Gomes Leal

Naquela boca apetecida
— Fonte do amor, ninho do beijo, —
Brilha uma flor rubra e cheirosa;
Amando mais a luz e a vida,
Andam as vespas do desejo
Zumbindo em torno dessa rosa.

No lábio ideal, que da ambrósia
Guarda o sabor, de néctar cheio,
Veria um poeta a excelsa graça;
E Praxíteles acharia
Molde melhor que o helênio seio
Para esculpir a sua taça.

 

A HORÁCIO
(Ao Dr. F. Paula Castro)

Velho amigo! Ao provar, no campo, agora,
Dos teus versos o favo delicioso,
Vou, como tu nas bacanais outrora,
libando à taça um vinho capitoso...

Outros, da forma o brilho caprichoso
Acham que a tua lira faz sonora;
A mim ela entontece e enche de gozo
Quando de beijos e canções se enflora.

Certo, dentre as belezas que depara,
Não tem menos valor a forma rara;
Mas de tudo o que mais me maravilha

É da tua alma doce a alacridade
E esse eterno frescar da mocidade
Que em tua musa e nos teus versos brilha.

 

O SABIÁ DA MATA
(A H. Marinho)

Ficava ali, entre árvores sombrias,
A casa branca, o pouso perfumado
Em que, felizes e sonhando, os dias
Longos passamos de um feliz noivado.

Horas perdia, então, alegre e ouvindo
Frêmitos de asas, límpidas canções,
E essa doçura que do azul caindo
Enche de paz e doura os corações...

Do nosso quarto, via, a poucos passos.
As borboletas de irisadas cores,
E a laranjeira que estendia os braços
Já carregados de olorosas flores...

Quando ela vinha, perfumando a terra,
Cantando e rindo nas manhãs de amor,
Doido também o sabiá da serra
Cantava ali na laranjeira em flor.

A primavera clara e luxuriante
Enchia de ouro e de alegria o mundo:
Era em setembro; o sol cantava errante
A ária de amor de um louro vagamundo...

Nos linhos frescos do cheiroso leito
Punha as cadeias dos seus braços nus;
Quando, nervosa, me estreitava ao peito,
Nos olhos langues se apagava a luz!

Hoje, que a noite pavorosa e escura
Venceu, por fim, a tanta claridade,
Daqueles dias de ideal ventura
Resta somente esta imortal saudade...

E agora, enfim, que ela baixou à terra
E que a minh'alma enlouqueceu de dor,
Ainda existe o sabiá da serra.
Mas já não canta no arvoredo em flor.

 

ANTE UM CADÁVER
 (Ao Dr. Ferreira de Campos)

Eis-te afinal na noite eterna e escura
Onde o horizonte intérmino da ciência
Fundo mistério desvendar procura!

Aqui onde, por fim, a experiência
Vem proclamar as leis superiores
A que sujeita está toda existência...

Aqui onde derrama os seus fulgores
Esse astro a cuja luz desaparece
A distinção de escravos e senhores;

Neste âmbito onde a fábula emudece
E dos feitos à voz que se levanta
Toda superstição desaparece;

Aqui onde a ciência só se adianta
A decifrar o magico problema
Cujo enunciado triste nos espanta!

Ela enfim que a razão guarda por lema,
E agora busca em tua face fria
Da verdade escutar a voz suprema!

Aqui estás, mas após a luta ímpia
Em que romper, ao cabo, conseguiste
O cárcere da dor que te prendia!

Em teus olhos a luz se fez mais triste;
A máquina vital repousa, e, forte,
A cumprir o seu fado inda resiste.

Miséria só! — dirão da tua sorte
Os que pensam que o império desta vida
Tem de acabar onde começa a morte,

E os que a tua missão crendo cumprida,
Te olham de perto, e em ânsia desolada.
Vêm te trazer o adeus da despedida!

Mas a tua missão não está acabada.
Pois nem o nada é o ponto em que nascemos
Nem o da morte pode ser o nada...

É um círculo a vida, e mal fazemos
Quando, ao querer medi-la lhe assinamos
O berço e a sepultura por extremos.

A mãe é só o modelo em que tomamos
A simples forma, a forma passageira,
Com que esta ingrata vida atravessamos;

Mas não é com certeza ela a primeira
Que o nosso ser reveste, nem tampouco
Quando morra há de ser a derradeira.

Tu, sem alento já, num sonho louco.
Da dura terra ao generoso seio
Fonte da vida, há de volver em pouco.

E ali à vida, na aparência, alheio,
O poder do verão e da água, ufano,
Fecundará de gérmens o teu seio.

E, enfim, subindo num esforço insano.
Verás o vegetal no fundo abrigo
Do seu laboratório soberano.

Talvez para voltar mudado em trigo
Ao triste lar em que uma triste esposa
Quando por um pão sonhe contigo!

Ao mesmo tempo o mundo, dessa lousa
Verá subir, estupefato e absorto,
A larva convertida em mariposa

Que, nos ensaios do seu voo, ao porto
Irá levar dos teus gentis amores
Os frios beijos do teu lábio morto.

E, em meio desses transes interiores.
Teu crânio cheio de uma nova vida
Em vez de pensamentos, dará flores.

Em cujo cálix brilhará perdida
A lágrima talvez que a tua amada
Deixou cair na hora da partida.

A tumba é o fim da lúgubre jornada
Porque é na tumba que repousa morta
A chama em nosso espírito guardada.

Nessa mansão, enfim, em cuja porta
Nosso alento se extingue, um outro alento
À existência de novo nos transporta.

Ali a força cai, morre o talento,
Findam-se os gozos, e não brilham mais
A ardente fé e o vivo sentimento.

Morrem de todo os laços terrenais
E o grande e o sábio ao lado do idiota
Nivelam-se por fim, tornam-se iguais.

Mas ali onde o ânimo se esgota.
Há no fundo, em contínuo transformismo.
No ser já morto um novo ser que brota.

Força é que o forte e fecundante abismo
Doesse organismo antigo se socorra
Par dele tirar outro organismo.

Um nome à história entrega essa masmorra.
Sem ao menos cuidar, indiferente.
De que esse nome se eternize ou morra.

Ele recolhe a massa tão somente
E mudando-lhe as formas, lento e lento,
Quer apenas que viva eternamente.

Guarda a tumba o esqueleto num momento,
E da vida a fatal e eterna história
Consiste nesse trágico alimento.

Mas ao fim da existência transitória
De que tanto a nossa alma se socorre,
A matéria imortal é como a glória:
Muda de formas, sim, mas nunca morre!

 

JESUS NO HORTO
(A Guimarães Passos)

“Volto ao páramo azul, torno aos climas serenos
De onde me trouxe o ideal da glória quando, um dia,
Nos vales de Belém cantou a luz de Vênus
Como um salmo de amor e de melancolia!...

Mas não sei porque a terra arde toda e resplende
Quando sopra em minh'alma um turbilhão de dores,
E a saudade, Meu Deus! como um sol que se acende,
Esta várzea sombria enche toda de flores!

Negras imprecações soltam de quando em quando
A brisa que farfalha e as sombras do arvoredo;
E eu, eu louco, infeliz que anda monologando.
Perscruto este mistério, indago este segredo...

Ela pisou também estas veigas serenas,
E essa pátria de amor que reviver não há de,
Eu a diviso agora, eu a descubro apenas.
Dentro do coração que chora de saudade!”
.....................................................................
.....................................................................

E ele sente, e ele vô num delírio de anseios.
Num tormento febril de loucos pesadelos,
— Na Via-Láctea que esplende, um palpitar de seios.
 No hálito da noite, um olor de cabelos...

 

PLANTA SEM NOME

De flores — não sei de quantas —
Conheço um vale opulento
Onde cresce, entre outras plantas,
A erva do esquecimento.

Propina uma doce calma
A tal flor que assim se chama,
E um sono profundo n'alma
De quem a prova, derrama.

Se um lobo voraz suplanta
Qualquer cordeiro ou novilho,
A mãe, comendo essa planta,
Esquece a morte do filho.

Eu, contra a voz carniceira
Da lembrança alvoroçada
Que agita a minh’alma inteira,
Colhi a erva encantada...

De comê-la avidamente
Não tive o menor receio:
Fiquei apenas doente...
O esquecimento não veio.

 

SONHO DE COLOMBO

Palos resplende toda... A multidão delira
E, em festa, aclama um Deus. Aves de bico rombo
Talham do vasto Oceano a líquida safira...

Pandas velas ao vento, ao convulso ribombo
Do pélago que freme e que estruge iracundo,
Calca o dorso do mar a frota de Colombo...

O herói sonha; o horizonte é mudo; o céu, profundo...
Abre-se a rota, enfim, para o pendão das quinas
Que há de brilhar um dia ao sol do Novo Mundo.

E um paraíso em flor, entre verdes cortinas
De esmeralda, irradia ao flavo sol ardente
Com os seus campos ideais semeados de boninas...

Sonha Colombo. O olhar que mede avidamente
O solitário mar, denuncia os desejos
De dar asa à ilusão, vida ao sonho esplendente.

Este se agita, enfim, e entre vivos lampejos,
Estremece na luz o pórtico da América
Como um colo de deusa enflorado de beijos.

Rasga-se o véu que cobre a região feérica:
Avulta um mundo novo aos olhos do Universo
E a história escreve mais uma página homérica.

Musa eterna do Amor! Lira de ouro onde, imerso
Em doida melodia, ouço o tropel sonoro
Das rimas: fulge agora, e dá fogo ao meu verso!

Que a pátria cante nele, e siga, audaz meteoro,
O círculo de luz que junta no horizonte
A ata à cruz de Cabral a espada de Deodoro!

Canta o ninho de amor, fonte de aromas, fonte
De inspiração, e o sol que enche de ouro o valado
E abre incêndios no mar e na cripta do monte...

Abre o cofre ideal de áureas gemas guardado
Nestes paramos onde, entre as aves canoras,
Tem a mulher no olhar um céu quente e estrelado.

Pede à musa de Anchieta o brilho das auroras
E esse canto que sai, como de harpas aflitas,
Do rútilo cristal das cascatas sonoras.

Ateia a chama em que hoje abrasada palpitas
E dize: “Este calor que ora o seio me aquece,
Ó Pátria, é um sonho bom de glórias infinitas!”

E as gentes do porvir, que um sol novo entontece,
Vendo-te o vulto audaz, como o da antiga Hélade,
Em teu solo sagrado hão de colher a messe
Dos frutos que só dão o amor e a liberdade!

 

A UMA ARTISTA
(A R. Betnardellii)

Não desejo beber a luz que brilha,
Fresca e dourada, no arco do Levante,
Nem contemplar de perto a maravilha
Do paraíso que ideava o Dante;

Novos céus estrelados, nova trilha
Seguiria a tremer, louco e ofegante,
Todas as ilusões dando em partilha
Pela ilusão que afago neste instante...

E veria brilhar, em luz fagueira,
A Terra Prometida, a Terra Santa
Que o sonho encheu de paz hospitaleira;

— Pátria ideal onde a poesia canta,
E onde eu quisera ouvir, a vida inteira.
Os rouxinóis que guardas na garganta.

 

VERSOS DE UM LOUCO
(A Sílvio Romero)

O mundo envelhece e rejuvenesce, e
o homem anda sempre atrás de uma esperança...

Schiller

A dor fez do Universo o espectro de uma geena...
E há quem, feliz, aplauda este lúgubre drama,
Quando a existência tem sete línguas de chama
E é uma mortalha o luar, e o sol uma gangrena!

Poetas! Só vós sabeis o mal que as dores fazem...
Poetas! O vosso ideal não vai além da dor,
— Almas sem paz nem luz, que inda no seio trazem
Este canto — a saudade, este perfume — o amor!

Poetas, que sem dar tento aos uivos da procela.
Atravessais da vida o oceano tormentoso:
Só em vossa alma canta o reflexo saudoso!
De um sol, de um céu, de um mar, de um lago, de uma

Poetas, deixai a luz; nautas, deixai o oceano
Na luz, como no mar, negreja o mesmo véu:
E é debalde que agora o triste olhar humano.
Farto de lodo, aspira a desvendar o céu!

Tudo se estorce e ulula em um coro de blasfêmias
Que parece sair do inferno de Alighieri:
A asa que acaricia, ao mesmo tempo fere,
A alma do astro e a do pó são duas almas gémeas...

Só na alma, — antro da treva e dos sonhos, que o mal
Avassalou, criando a dor para perdê-la, —
Roça ainda a ilusão a asa de ouro e coral...
— Num pântano também debruça-se uma estrela.

Por que é que o teu sorriso e o teu beijo me deste,
Ó Poesia, que dás aos teus filhos a glória?
Por que me traz assim, nesta paz ilusória,
A túnica de luz que a tua espádua veste?

Faze brilhar de novo o primeiro arrebol:
Tu, somente, és capaz desta metamorfose...
Vamos: a noite é a vil crisálida do sol,
E as trevas podem ser a luz da apoteose!

És a Musa do Amor. Há, na tua garganta,
O gemido que a pomba entre os moitais arrulha,
O aroma dos jardins, o ócio da sombra, a bulha
Dos pássaros, e a luz que em toda parte canta!

Não há quem, como tu, saiba dar eco ao grito
Que, fibra a fibra, estala um pobre coração;
Ao amor cego — dás o horizonte infinito...
— — Juntas à voz do corvo o soluço e a canção!

Plágio de uma mulher que eu conheci na terra,
— Sirius, que, no amplo espaço, a cantar, resplandeces:
Por que é que do teu ninho azulado não desces
Para purificar o lodo que a alma encerra?

Mas, és lama também... há no teu colo nu
A lepra e no teu brilho a irradiação da morte...
— Homem, que sonhas mais? Homem, que queres tu?
Qual é teu sol, qual é teu fim, qual é teu norte?

Há uma força que o alvor da luz às trevas liga:
— A ave canta no céu torvo e profundo; chora
O beijo; e a alma de Jó conserva a mesma aurora
Dentro da chaga hedionda e podre que a mastiga!

O crepúsculo já começa a se estender
Pelo vale, onde a tarde aromosa boceja;
E, como um círio ao sol, que em breve há de morrer,
Uma estrela saudosa ao longe palideja...

Nem há tempo, talvez, de correr os caminhos,
Cheios do olor que sai dos bosques e das matas,
Para ouvir o rumor queixoso das cascatas
E o sonoro cristal da voz dos passarinhos...

Morre, com o sol, o dia... E, como a alva do luar.
Que num louro festão de estrelas aparece,
A magnólia, ao seu beijo, entra a desabotoar
O seio... A tarde vai declinando... Anoitece...

 

SCHOPENHAUER
(A Artur Azevedo)

Lendo-te, ó mestre a todos excelente,
Presa fui de um abalo tão profundo
Como se, por milagre, e de repente,
Sob os meus pés se esboroasse o mundo...

Ao vê-lo, assim, de perto e na agonia,
Pude sondar então toda a verdade,
E abandonei, como armas sem valia,
A crença e a fé, o amor e a mocidade.

Ante a visão de um mundo tão pequeno
Só hoje sei quando esta dor maltrata
Porque a verdade é um pérfido veneno
Que enlouquece de todo... e que não mata!

 

BILHETE
(A uma condessa)

Recebi, neste instante, a carta perfumada
Em que a sua alva mão traçou, nervosa e aflita,
Largas frases de efeito e uma longa tirada
Que eu (confesso-lhe) achei deveras esquisita...

Diz que “ainda me adora e há de provar, em breve.
Que me consagra o mesmo amor santo e profundo”.

Senhora! Há muito já, morreu quem tal escreve,
E eu nunca tive fé nas almas do outro mundo!

 

O PIRILAMPO

“Olha essa estrela que ilumina o campo,
E ora se apaga, ora fulgura...”
— Disse a criança ingênua criatura,
Que em vez de estrela via um pirilampo.

Muito não é que ela enganada fosse,
Não é; pois eu mesmo, mais tarde,
Tomei por luz do céu serena e doce
O pirilampo que em teus olhos arde...

 

SOMBRAS RIVAIS
(A Roberto Escragnolle)

Este é o meu carcer negro... A luz esquiva
Nem a minh'alma torna agora forra;
Antes crepita em chamas, e cativa,
De vícios a novíssima Gomorra...

Duas sombras rivais, que a sombra aviva,
Vejo ao fundo espectral desta masmorra...
Diz a primeira: — “Eu quero que ele viva!”
Diz a segunda: — “Eu quero que ele morra!”

Qual das duas sentenças é nascida
Do ódio? Qual do amor? Qual a mais forte,
Com mais dura ironia proferida?

Não sei, por que por mal da minha sorte,
Aquela que diz morte, quer a vida,
E aquela que diz vida, quer a morte!

 

OS CEGOS
(Imitação)

Pobres, que a noite vertida,
Como agudo e acerbo espinho,
Guardavam n'alma dorida,
Junto à margem de um caminho
Discreteavam da vida:

— “Se as auroras têm mil cores
Não me é dado conhecê-las;
Nunca vi prados nem flores,
Nem conheço os esplendores
Do céu, do sol, das estrelas...”

— “Conheço todo o fulgor
(Diz o outro) e esta é, não nego,
A causa da minha dor...”

Um de nascença era cego,
O outro... era cego de amor...

 

A PROCISSÃO
 (A Dário Freire)

Via-se a vaga aflita e tumultuosa
De imenso povo, que, em confusas massas,
Percorria a cidade rumorosa
Ruas enchendo e atopetando praças...

No andor dourado, entre custosas cassas,
Vinha a Senhora... Esplêndida e radiosa,
Seguia-se dos anjos e das graças
A longa fila de asas cor de rosa.

De ver-te me agitava um vago anseio,
Quando, afinal, olhando da janela,
Vi teu vulto surgir, de anjos no meio...

— “É ela! (eu disse} e o coração: — “É ela!”
Tornou. E o peito arfou-me, inda mais cheio,
Quando te vi... de palma e de capela!...
 

A MORTA

Cheguei-me ao pé do leito, em prantos; e ela,
Como uma flor já pálida e esvaída,
Volveu-me o olhar onde brilhava aquela
Ânsia que traz a dor da despedida.

Busquei num beijo inda infiltrar-lhe a vida;
Mas o palor cobriu-lhe a face bela,
E a fronte, enfim, dobrou desfalecida,
Como um lânguido lírio de capela...

Desde então paira a sombra desse leito
Na minh'alma, onde a noite eterna esconde
Meu louco ideal num túmulo desfeito.

E onde paira a minh'alma, em trevos? Onde?
Foi com ela, pois bato hoje no peito
E o coração também não me responde!

 

O BATEL COR DE ROSA

Marinheiro feliz e alvoroçado
Que a praia deixa e arrosta o sorvedouro.
Para o país do sonho irei levado
Do teu cabelo sobre as ondas de ouro...

Da tua saia, ao vento, o leve pano
Há de abrir-se, enfunado, como as velas;
Quando a noite baixar sobre o Oceano,
Teus grandes olhos servirão de estrelas...

A rubra luz que o teu sorriso imita,
— Farol da grande gávea — há de brilhar;
Meu pavilhão foras de qualquer fita,
Da carne branca o resplendor do luar.

Para ir tão longe há de munir-se a gente
De fartas provisões para a viagem:
Canções e beijos com que, certamente.
Havemos de embriagar toda a equipagem...

Desceremos, ao cabo, não sei onde.
Longe, bem longe, sob um céu risonho
Numa plaga ideal em que se esconde
O paraíso rútilo do sonho...

 

A POESIA
(A Artur Barbosa)

Foste a amiga fiel dos meus tempos de criança
E hás de seguir comigo à derradeira idade,
Que assim como cantaste os poemas da esperança,
Hás de cantar também os hinos da saudade...

Como uma chama ardente e rubra e crepitante
Que ao vento cada vez mais aumenta o clarão,
Jamais hás de morrer; ouço-te a cada instante
Gemendo e soluçando em cada coração!

Em meio ã funda dor, à funda mágoa em meio,
Se um sorriso me chega, intercalando o pranto,
É que a penugem doce e branda do teu seio
Edulçora na lira o eco do meu canto.

Vive o sonho em teu beijo... Ali dentro é que mora,
Em frouxel perfumoso, o alado rouxinol
Sempre pronto a cantar quando desponta a aurora.
Pronto sempre a gemer quando sucumbe o sol.

Ó vós, almas que amais, e esqueceis a poesia
No místico luar do vosso amor ardente:
— Este rio, que passa, é o rio da harmonia...
Parai, para escutá-lo, à margem da corrente!

 

MILAGRE

Well Juliette! shall lie withyjou to night...

Shakespeare

Um ano há já, veio buscá-la a morte...
Hoje, de novo, as mesmas mãos piedosas
Que ao céu se ergueram num cruel transporte.
Vem procurá-la em seu dossel de rosas.

Nem parece mudada a sua sorte:
Dos brancos pés às faces cetinosas,
Tudo inda guarda q mesmo brilho forte
De carnes que eram quentes e cheirosas...

Toda perfeita! E alguém que a vê conforme
E calma, quebra em blocos a prisão
Em que se opera este milagre enorme...

Para trás, mão cruel! Profana mão.
Que não sabes que a cova em que ela dorme
É a catacumba deste coração!...

 



CANTARES

Campo que o sol de fulgores
Jamais encheu,
Sem aves, fontes nem flores,
— Assim fui eu...

Rubro sol que os céus inflama
De ouro e carmim.
Sol de viva e acesa chama,
— Tu foste assim...

Sol que ao campo abandonado
Volta depois.
Campo, enfim, do sol beijado
— Somos os dois!

 

AS MULHERES

Flores rubras, sensuais, da volúpia e do gozo,
Que enchem os corações de aroma e de veneno,
Só do fingido olhar com o filtro misterioso
O homem, de grande e audaz, tornam fraco e pequeno.

No entanto, na mulher, futilidade, apenas.
Em tudo, leio: o olhar presunçoso, a vaidade
Tola e tonta, as razões, mágoas, risos e penas,
Alma e corpo, a mulher toda é futilidade...

Não sou dos que supõem que a vida é triste e chata
Sem o adorável ser que a mágoa toda espanca,
Mas adoro a mulher... como adoro uma gata
Ronronando de amor, arqueada, e toda branca...

 
CANÇÃO

Guardam veneno (disseste)
Meus versos; e como não,
Se tu de veneno encheste
Minh’alma e meu coração?

No teu conceito não mentes;
Minh’alma veneno tem,
Pois nela moram serpentes
E, além delas, tu também!

 

CANTARES

A mim que importa o arrebol
Da tarde? Que importa a aurora?
Para esta alma que te adora,
Tu és o céu e és o sol!

Vem! Deus, que é todo bondade,
Vela o nosso amor profundo,
Amor que faz neste mundo
De uma hora uma eternidade.

O céu resplende com calma
Dando-lhe Deus o esplendor
Assim resplende minh'alma
Com o brilho do teu amor!

 

MIOSÓTIS

Dizes que aflige o contraste
De ver-se a flor cor do céu
Inclinando a débil haste
Na pedra de um mausoléu...

Pois quando vieste, criança,
Já me encontraste sem vida:
Foste uma flor de esperança
Junto a um túmulo nascida!

 

RONDÓS

Todo o orvalho
Se evapora de repente
Quando o beija o sol ardente
Sobre o galho;
Assim meu pranto, Senhora,
Quando queres, se evapora
Como o orvalho.

Rouxinol!
O teu canto na ramada
Parece a voz constipada
De Guignol,
Se a minha amante radiosa
Solta a voz harmoniosa,
Rouxinol!

A andorinha
Volta quando a primavera
Varre o vento, e na alta esfera
Barborinha;
Tal teu riso aos céus ufanos
Reconduz dos meus vinte anos
A andorinha.

Meus amores
São como um vinho que inflama,
E põe no outono uma chama
De esplendores;
Venha, pois, a bebedeira
Quando esgoto a taça inteira
Dos amores!

 

UM BEIJO

Bacciame in boca!

Stechetti

Quisera um beijo teu, um só, Senhora!
Um beijo só dos teus é que eu queria;
Somente um beijo o meu amor implora
Porque a glória de dois me mataria...

Um beijo, e nada mais! Do seu perfume
Minh'alma toda se entontece e alaga,
E o anseio que em beijar-te se resume
Já nos meus lábios impaciente vaga...

Minh' alma é tua; podes tu bem cedo
De teus lábios prendê-lo nos refolhos;
Mas não me olhes assim, que eu tenho medo
De ver tão perto os teus divinos olhos!

O céu todo se arqueia em teus abraços...
Arfa-me o peito, estuando de desejo;
Ah! Sustém-me na vida de teus braços,
Mas não me mates, louca, com teu beijo!

 

RESSURREIÇÃO

Eu te perdoo, flor, e te bendigo:
Nem há piedade que comova tanto,
Pois, neste de hoje, sinto o mesmo encanto
E a mesma luz do nosso amor antigo.

Longe de mim pulsou teu peito amigo;
Sem compaixão, deixaste-me... no entanto
Houve em meu pranto um pouco de teu pranto
E em teu castigo tive o meu castigo.

A dor, como a paixão que antigamente
Tão por justo tivemos repartida,
Repartida tivemos igualmente...

Voltas agora triste e arrependida;
E, mais feliz, eu dou-te, finalmente,
Todo o meu sangue, toda a minha vida!

 

PELE DE TIGRE

Bela e sozinha, vi-a...
Sozinha e bela!
Numa pele dormia
Como uma estrela.
E eu, ao lado dizia:
“Com que doce sorriso
Os corações amarras,
Filha do paraíso!”

Tão linda era...
Fui a beijá-la, e as garras
Meteu-me a fera!

 

NINHO AZUL

L'oiseau cache son nid, nous cachons
nos amours.

Victor Hugo

I
O dia nasce; o sol apopléctico, rubro,
Manda à terra o esplendor de uma manhã de outubro
Dourada e virginal... Vaza na brenha dura
A luz que boia em toda a extensão da planura,
Coleando sobre um vão, tremendo sobre um cálix,
Como uma cobra de ouro a serpentear nos vales...
O céu é todo azul, toda verde a esplanada
Onde, em manhãs de abril, ao fulgor da alvorada,
Vêm alegres cantar os rouxinóis em coro:
Como o dia que nasce, a várzea é toda de ouro...

Brilhando entre mirtais em flor, junto à montanha
Que a água clara de um rio em torvelinhos banha,
Há uma casa. Em redor, as sombras do arvoredo
Dão a tudo o mistério e a mudez de um segredo
Impenetrável como as catedrais de Brahma...
A ventania põe lamentações na rama

Das árvores, e o rio em que a floresta bole,
Lambe-lhe o seio ideal numa carícia mole...
A casa é todo branca, e na balsa remota
Descansa e pousa como a asa de uma gaivota.
Em redes de torçais, frouxas, de várias cores,
Borda os muros, em torno, uma colcha de flores
Larga, toda de aroma e seda, resplendendo
Ao sol; brilham ao longe os píncaros; ardendo
Num ninho quente e azul, o frouxel perfumado
Faz o leito de amor, aberto, de um noivado...
 
O nome da habitante... é um pecado dizê-lo:
A luz do seu olhar, o ouro do seu cabelo
Não têm rivais nos sóis nem nas manhãs serenas
E claras: é uma flor entre outros mais pequenas...
Quando ela sai de casa, um instante, a passeio,
Se deixa, descuidosa, o tesouro do seio
Fugir da renda, em toda a extensão da alameda
Erra um perfume quente e sensual que embebeda...
Acende-se o vergel ao seu encanto, como
À onda clara de luz um verdejante pomo;
E no alto da montanha, e por todo o valado,
Embaixo, em cima, o sol, mais quente e mais dourado
Rutila. Enche-lhe a veste o olor das brancas pomas...
Se pisa a alfombra, no ar uma oblata de aromas
Se eleva; e as flores vão beijar-lhe os flancos, uma
Por uma, e o róseo pé feito de jaspe e espuma...
Guarda na fina pele, em ondas voluptuosas,
A neve dos jasmins e a púrpura das rosas;
E da ânsia e do prazer toda a volúpia louca
Eletriza-lhe o seio e esbraseia-lhe a boca.
Se o vento rodomoinha em torno, ou, brisa terna,
Quer descobrir-lhe o pé e acariciar-lhe a perna,
Ou, com a fúria brutal de um desvairado amante,
Cobiçoso, se afoita a caminhar por diante,
Bebendo da alva pele o aroma capitoso
Naquele céu de carne onde lateja o gozo,
A alva do seu roupão busca logo escondê-la
Como uma nebulosa ocultando uma estrela.

Há uma gala triunfal e esplêndida por tudo,
Desde a gaze, ideal como o sonho, ao veludo
Que forra as dálias; enche a gruta a chuva de ouro
Que vasa um sol eterno e eternamente louro...
Voam, leves, as mil borboletas afoitas
Que vão brilhar além, como um Arco-íris, nas moitas...
Abre o monte sonoro a cortina das fraldas
Como um manto real bordado de esmeraldas
A casa, em suma, é um ninho, é o retiro amoroso
De uma deusa. Ao clarão do dia vitorioso
Ou ao raio que cai moribundo do Ocaso,
Brilha da mesma luz: para tal flor, tal vazo...
Vê-se de muito longe a espalda desse monte
De cuja cripta em flor, cosida no horizonte,
Parece alçar-se ao céu, como de altar imensa
Toda a prece do campo, entre nuvens de incenso...
De Zaida, a linda flor, este é o formoso ninho:
Tal o que faz num galho aéreo o passarinho,
E que fica a cantar, palpitando na altura,
Cheio de melodia e cheio de ternura...

II
Do amor a rubra lava arde, lateja e estua
Naquele corpo undoso e cheio;
Na sua voz há um brando e choroso gorjeio
De pássaros; fremente e rija, a pele nua
Põe-lhe em amojo o branco seio.

Um sopro de volúpia, assanhando os desejos,
Enche-lhe as formas cetinosas,
Como um raio de sol que abre lírios e rosas;
E Ela — Via Láctea — esplende ao luar dos meus beijos
— Festão de estrelas jubilosas!

No delírio do amor colam se as nossas bocas,
E ei-las assim, como crateras
De um vulcão que se acende em sua carne, feras
Que se debatem como loucas
E rugem com o furor de assanhadas panteras...

Todo o seio lhe cinjo; o meu lábio o percorre;
E, como a flor, que aspira o verme,
Assim, ponto por ponto, a cheirosa epiderme
Aspiro e palpo; nela morre
Cansado de viajar, meu lábio quase inerme...

Zaida sucumbe, enfim. Arde, lateja e estua
Todo o seu corpo undoso e cheio;
Passa-lhe pela voz um choroso gorjeio
De pássaros; fremente e rija, a pela nua
Põe-lhe em amojo o branco seio...

III
Beija-me assim, que eu desejo
Queimar-me no teu calor;
Beija-me assim, porque o beijo
É a hóstia santa do amor!

Deus, que fez a noite escura,
Criou-te para acendê-la:
— Astro, em vez de criatura,
— Em vez de mulher, estrela.

Sai do teu corpo nevado
Que toda a graça resume,
O cheiro mais delicado,
O mais secreto perfume.

Se falas, doce e suave
A tua voz de cristal
É como o trilo de uma ave
Cantando num roseiral.

Desde que a tépida aragem
Nos teus cabelos se enrosque.
Sente se a morna bafagem
Dos moitas quentes de um bosque

Das cambraias deste leito
Surge o teu corpo sem par,
Como o de Vênus, perfeito,
Da branca espuma do mar.

Não fiques mais um instante
Surda ao clamor do meu rogo,
Aos lábios do teu amante
Cola os teus lábios de fogo!

És hoje um botão apenas,
Porém mais bela em botão
Que aquelas flores morenas
Dos cantos de Salomão

— Moças de lindos cabelos
Negros e de olhos divinos
Que a gente supõe, ao vê-los,
Fitar dois sóis pequeninos...

Moças como Rute e Lia
— Morenas em cujo olhar
Cantava toda a poesia
De lima noite de luar.

E amadas no mundo inteiro.
Tanto pelos olhos, como
Por aquele estranho cheiro
De nardo e de cinamomo;

De peitos rijos, arfando
Com a insolência das ondas,
Ainda mais arredondando
As belas formas redondas...

Para este ninho, querida,
Teus doces raios conduz,
Por que esta moita esquecida
Não tem perfume nem luz.

Canta aqui! Vive cantando!
Sonoriza estes valados,
Para que te inveje o bando
Dos rouxinóis despeitados;

Para que um novo arrebol
Doure o cimo desta serra
E cante também o sol
No melhor lugar da terra!

Para que se alastrem rosas
E lírios pelas campinas
E soltem notas queixosas
Os melros nas balsaminas.

Ardam perfumes! Rescenda
E brilhe a balsa estrelada:
Temos um lençol de renda
Nesta folhagem dourada...

Rosas, havemos de tê-las,
E luz, e aroma, e esplendores.
São nossas estas estrelas
E são nossas estas flores!

 

INTROIBO...

Este livro é um altar...
Ajoelha-te, minh'alma!

Alberto de Oliveira

Este livro é um altar: em cada folha escura,
Como em cada degrau da ara de um templo santo,
Um penitente ajoelha e uma oração murmura
Com os olhos úmidos de pranto...

Nele, atenta, e escutando, entre um rumor de arpejos,
Algum canto de amor que o teu nome não traz,
Alguma flor, talvez, ofertada entre beijos.
Entre outras flores acharás...

Recolhe essas também, filhas do sentimento,
Mortas inda ao nascer, sem luz e sem carinhos;
Delas as pétalas d'ouro eu desfolhei ao vento,
Guardando apenas os espinhos...

São tuas. Tudo quanto há em mim de almo e divino,
Tudo o que em mim palpita e em mim fala de amor,
Pertence-te: minh'alma é tua; meu destino
É teu; é tua a minha dor...

Tudo, tudo: o futuro, o presente medonho
E o passado infeliz, de dúbia claridade,
Que inda vejo através da asa triste do sonho
— Roxa alameda da saudade...

Deixa que deste livro em cada folha escura
Eu erga ao teu amor o degrau de um altar:
Nele minh’alma ajoelha e uma oração murmura,
Sempre a sofrer, mas a cantar...

 

POEMA DE ISA

I
Do sagrado instrumento corda a corda
Vibrando, pus em cantos redourados
Toda a alegria que de mim transborda.

Mas, fugindo dos homens revoltados,
Fui proclamá-la, audaz e alvissareiro,
Ao mar, aos céus e aos campos perfumados...

E parti. Lira em punho, um poema inteiro
N’alma a cantar, busquei do vasto mundo
Perlustrar os arcanos... Fui: primeiro,

Ao mar. Ao velho mar cavo e profundo
Desci. Tritões e ninfas, em porfia,
Ao meu canto acudiram, num segundo.

E ao mar falei na glória e na alegria
Deste amor que ao céu claro me arrebata
E que é o meu sonho, a minha luz, meu dia!

E, triste, o mar: Essa, formosa e ingrata,
Das ninfas a mais bela, era beijada
Destas espumas alvas como a prata;

Um dia, entre os palores da alvorada,
Como Afrodita à luz da Grécia antiga,
Foi às ondas do Oceano arrebatada...

Minha dor, desde então, nada há que a diga
Nem os versos de Homero, nem de Horácio
As odes — nada esta paixão mitiga!

Por isso, em raiva como um Deus do Lácio,
Choro, quando a bramir na praia estouro,
A pérola melhor do meu tesouro,
A ninfa mais gentil do meu palácio.

II
Aos céus, depois, subi: sonho de poeta
Foi o que me levou, mas sonho ardente
Como o carro de fogo do profeta...

E interroguei a abóbada esplendente
Prenhe de estrelas e de nebulosas
Que se acenderam todas, de repente...

E o céu também, choroso, estas saudosas
Palavras proferiu: “Tenho a tristeza
Deus noites longas e tempestuosas...

Já não sorri, cantando, a Natureza
Sob um pálio de luz; se aqui não foras,
Não me acendera agora, com certeza.

Brilho ainda, mas vô que enganadoras
Luzes, além... para de longe vê-las
Só dos poetas as almas sonhadoras.

É que falta hoje ao céu, para acendê-las.
Seu corpo astral, que o mundo iluminava.
Mais claro do que todas as estrelas!

Partiu a ingrata da mansão que a amava;
Na terra, onde de luz não deixa um traço,
De um poeta agora, anda, sonhando, escrava...”

Correndo a resguardá-la de algum laço.
De escondê-la, inda mais, veio-me a ideia:
Vi a lua, entre nuvens, de alcateia,
E os cometas de ronda pelo espaço...

III
Aos campos fui depois... Que cena estranha!
Das árvores as comas farfalhantes
Desgrenhavam-se ao vento da montanha...

Tudo o contrario do que eu vira dantes:
Não mais zumbia em torno a um doce cálix
O enxame das abelhas susurrantes...

Dir-se-ia que fugindo a estranhas males,
Perdera-se na brisa e nos perfumes
A alma errante e bucólica dos vales!

Não mais pouso e mansão de etéreos numes.
Só â noite os percorre o alado bando
Das mariposas e dos vagalumes...

E falaram também os vales, quando
Inquirindo da mágoa que os premia,
Fui as flores e o sol interrogando.

E um silfo entre os rosais assim dizia:
Inda perguntas, ó malvado e astuto,
Qual a razão desta melancolia?

Tu, que um roubo fizeste, audaz e bruto.
Nem devias pisar as veigas claras
Que assim cobriste de tristeza e luto!

A oreada gentil de prendas raras
Roubaste-a, infame! Erra a mágoa, por isso.
Nos vergéis e nas rútilas searas...

Foi-se das flores todas o feitiço;
Perdeu de alvor a luz das madrugadas,
As rosas já não têm nem cor nem viço...

Foi se a alma do verão: as mãos rosadas,
E os cabelos que o sol punha, de escuros.
Louros, da cor das espigas douradas,
Louros, da cor dos milharais maduros!...

IV
Aturdido e confuso a tantas vozes
Que na treva e na luz me apostrofavam,
Voltei ao peso de paixões atrozes:

Céus e campos a um tempo proclamavam
Meu tesouro real. As ondas quérulas
Sobre as areias de ouro marulhavam 

As angústias do mar... E ele as carcérulas
Mais puras dera em troca, e dera ainda
Seu largo escrínio de corais e pérolas...

Mas como o avaro, com cautela infinda, 
Guardo o tesouro régio e fabuloso 
Da minha joia encantadora e linda!

Em toda parte um eco lastimoso
Ouvi desse pesar que por momentos
Simples murmúrio pareceu sandoso...

Só agora interpreta em tais lamentos
Minh'alma, que por fim deles não zomba,
A tristeza do céu, a voz dos ventos
E a cólera do mar quando ribomba!...

 

MOISÉS

Eu também caminhava entre a neblina,
Como Moisés pelos desertos tredos,
Buscando o ideal da terra peregrina
De que só tu conheces os segredos.

Tive sede, também, ânsias e medos;
Do Amor, porém, à tua voz divina,
Fendeu-se a penha brava, e entre os rochedos
A água jorrou sonora e cristalina...

És o bálsamo bom do meu desgosto,
O arco íris entre mim e o mundo posto,
A coluna de fogo do deserto

Que encobre o ardor do sol durante o dia
E os escuros caminhos me alumia
Quando as sombras da noite chegam perto.

 

PRIMEIRO BEIJO

Leio a um canto da sala; e, enquanto, lendo,
Perscruto; em torno, os mudos corredores,
Vejo-te entrar, na leve mão trazendo
Um leve ramo de olorosas flores.

Mensageiras gentis dos teus amores,
Junto de mim o olor ficam vertendo;
E um longo beijo, cheia de rubores,
Deixas cair na minha face, ardendo...

Bendita redenção! Bendito dia
Que, em vez do vão fulgor de uma quimera,
Minh'alma encheu de luz e de harmonia;

Porque este beijo, que assim canta e espera,
É a primeira cigarra que anuncia
Do nosso amor a eterna primavera!

 

DESVARIO

Desvario, paixão, febre, loucura...
(Chama como quiseres esse estreito,
Rijo tormento de masmorra escura
Que me espedaça e dilacera o peito!)

No painel do meu sonho, onde fulgura
Todo o verão de que teu beijo é feito,
Passa o frêmito alado que sussurra
Entre os linhos cheirosos do teu leito...

Volto à razão e recupero a calma;
Mas a febre me deixa inda alquebrado
E a fantasia as asas de ouro espalma.

Por ti renego as crenças do passado;
Por ti profanarei toda a minh’alma
Na volúpia do crime e do pecado...

 

CANTA

Inverno triste e lutulento:
No meu jardim nem uma rosa!
Treva a negror... Zarguncha o vento
Na noite fria e tenebrosa.

Que nos importa o inverno, agora?
Cante e papeie a tua voz...
Se há muita treva lá por fora
Há muito azul dentro de nós!

 

NOITE DE INVERNO

Tece junho, o glacial, de cândidas neblinas
O frio véu da noite em luto; pavorosas,
Rondam trevas em torno às mudas casuarinas...
Anda o vento a despir a túnica das rosas.

Viemos os dois, fugindo às insidias raivosas
Da lufada; e ainda assim, na alcova, onde as franzinas
Mãos lhe afago, a tremer, duras e tormentosas
Picam, do frio, a carne, as agulhas mais finas.

Ao leito, enfim, seu corpo ascende, como a lua...
E ali, qual pelo espaço, entre vivos lampejos,
A estrela em fundo céu flutua, ela flutua...

Louco, então, de volúpia, ebriado de desejos,
Por lhe aquecer a carne alva, cheirosa e nua.
Ponho a queimá-la toda a pira dos meus beijos!

 

NOVA LUZ

Sei que lês estes versos, vagamente,
Como estrofes de anônima poesia, 
Razão porque não canto o que a alma sente
Nem digo tudo o que dizer podia.

Embora! Bebo o olor, sorvo a torrente
De luz que de teu corpo se irradia,
Pois nunca vi cantando juntamente 
Tanto fulgor, e tanta melodia!

Para longe as estrofes que choraram!
Para longe essa nuvem tenebrosa
De dias tristes e de luz tão pouca;

Arderam novos céus, quando escutaram
A tua boca lúbrica e cheirosa
Rolando beijos sobre a minha boca! 

 

ZAGALA

É cedo ainda; à brisa que farfalha,
Passas, na asa sutil de um sonho brando,
De vara em punho e de chapéu de palha,
Pelos campos alegres passeando...

À velha moda, então, de Pan, me calha
Seguir-te, a furto; e um cálamo cortando,
Dele vou, à manhã que os sons espalha.
Cantos de amor num pífano soprando...

Da agreste frauta aos trêmulos arpejos,
Digo-te terna e doce e brandamente
Quanto nutro em quimeras e em desejos...

E adormeces ao som dos ais tristonhos,
— Linda zagaia dos meus doces beijos,
— Leda pastora dos meus pobres sonhos!

 

MANHÃ DE AGOSTO

Acordo. À música de ouro
Do dia, corro à janela:
— “É Ela que canta em coro
Com os passarinhos... é Ela!”

Digo; e, entre as galas douradas
Dessa bacanal paga, 
Solto as estrofes aladas
Na limpidez da manhã.

C6tnta-me n'alma a alegria
E a vida canta lá fora:
Saiu apenas o dia
Do róseo banho da aurora...

Tanto essa luz vasa o cálix
Da dor, e cantando vem,
Que eu cuido que pelos vales
Ela gorjeia também!

Desprende a manhã tão linda
Tão perfumosa canção
Que eu levo horas ainda
Sem desfazer a ilusão:

E digo, à música de ouro
Que alaga a minha janela:
“É Ela que canta em coro
Com os passarinhos... é Ela!”

Mas apenas no arvorado
Afina um melro a garganta...
Só na minh’alma, em segredo,
É que Ela gorjeia e canta!

 

EM PASSEIO...

Ó que famintos beijos na floresta!
E que mimoso coro que soava!

Camões

Ao longo da alameda, caminhando
Fomos os dois... Falávamos de amores...
Ao teu encanto a luz ia brotando;
Sob os meus pés iam brotando flores...

Tinhas no rosto esse fulgor divino
Que a febre acusa e ao êxtase arrebata;
O sol radiante dardejava a pino
Quando contigo penetrei na mata...

Uma orquestra de aromas e de ninhos
Sonorizava o bosque e os verdes ramos;
Em arremedo aos outros passarinhos
Trilava perto a voz dos gaturamos.

Tudo ardia de inveja e de ciúme!
Manso arrulavam juritis e rolas;
Das flores evolava-se o perfume
Como num templo o incenso das caçoilas.

Tatalando, ao rumor do nosso idílio,
Em cada moita, aberta à luz ridente,
A asa de ouro de um verso de Virgílio
Errava... errava, em torno, o sol ardente...

Quando trocamos o primeiro beijo
Louco, amoroso, quente, apaixonado,
Ressoou na floresta um longo arpejo
Que os serafins no céu tinham vibrado!

Toda a mata, em redor, cheirava e ardia,
A alma banhando em sensações estranhas;
O próprio céu mais alto parecia...
Pareciam mais altas as montanhas;

Depois... porque contar toda a loucura?
Veio a vertigem... Mudos, silenciosos,
Cingimo-nos, e ao peso da ventura
Nossas corpos dobraram-se amorosos...

Quando te alcei dessa paragem flórea.
Soavam hinos de amor; e uma cigarra
Como a entoar-me um canto de vitória,
Tocava no alto a estrídula fanfarra!...

 

EM VÃO

Em vão a nossa calma
Busquem toldar... em vão:
Tudo o que diz minh’alma
Repete o coração!

Esqueço a dor de outrora
Como se um sonho fosse,
Para dormir agora
Sono mais calmo e doce.

O teu altar incensam
Meus versos com fervor,
E eu canto a paz e a bênção
Do teu divino amor!

Que os olhos teus me firam:
Não falo como os poetas
Que, enfáticos, suspiram
As dores mais secretas,

E em rimas de ouro e opala
Buscam real tesouro:
O amor somente é gala,
Somente o amor é de ouro.

O verso mais singelo,
Mais lépido, traduz
O encanto desse anelo
E o brilho dessa luz.

Não vale gastar meses;
Basta-me a Musa antiga
Para dizer-te, às vezes,
Uma palavra amiga.

Quem é que ensina o meio
De rutilar ao sol?...
É  límpido o gorjeio
Do livre rouxinol!

A mais doce harmonia
Sussurra a asa do vento:
Se é velha a poesia,
É velho o sentimento.

Pôs isso assim te incensam
Meus versos, linda flor,
E eu canto a paz e a bênção
Do teu divino amor;

E esplende, na quimera
De um sonho doce e terno
A eterna primavera
De nosso amor eterno!

Busquem toldar a calma
Do nosso afeto... em vão!
Tudo o que diz minh’alma
Repete a coração...

 

VELHA CANÇÃO

Ouvindo o canto que ensaiaste agora,
Lembrou-me o tom ligeiro
De uma velha canção que ouvi outrora
No rancho de um tropeiro.

Eram versos de um peito apaixonado
Que o trovador queixoso
Rimava num suspiro prolongado
Do violão choroso...

Dizia assim: “Do amor perdeu-se a chama
Que escravo teu me fez,
Porque basta somente ser, quem ama,
Enganado uma vez...”

Guardei da toada os versos e o quebranto
Que de cor aprendi,
E do tropeiro, muito tempo, o canto
Sozinho repeti.

Ouvindo o trecho que ensaiaste agora,
Passou-me pelo ouvido
Dessa mesma canção, que ouvi outrora,
Um eco dolorido...

 

ILUSÃO

“— Hei de esquecer-te... (digo, presunçoso
De cumprir tal protesto) — É bem que esqueça
Quem tanto esquece; altivo e caprichoso
É justo, um dia, que eu também pareça!...

Hei de varrer de dentro do meu peito
Toda a memória deste amor ingrato!”

E à noite, vou beijar, quando me deito,
Tuas cartas, teu lenço e teu retrato...

 

NEBULOSA

Vi-te radiante, envolvida
No teu roupão cor de rosa,
Como uma estrela escondida
No alvor de uma nebulosa.

Nos olhos lúcidos, davas
A visão de uma quimera,
E no corpo, em flor, guardavas
O olor de uma primavera.

E eu vi, na minh’alma escura,
Tocada do teu sorriso,
A mesma luz que fulgura
Lá dentro do paraíso!

Por isso, já deslembrado
De um pesadelo medonho,
Quis percorrer, a teu lado,
Toda a paisagem do sonho...

E, embora já quase morto
Do fogo em que tu me abrasas,
Dormi feliz, ao conforto
Das tuas cândidas asas.

 

BIANCO VESTITA

Se houvesse luz inda um dia
Em meu coração desfeito,
Em vez de versos e dores
Eu certamente a daria
Por uma só dessas flores
Que brilham sobre o teu peito...

Porque de branco vestida,
Com tantas flores, que, ao vê-las,
Tenho ciúmes brutais?
É justa a razão, querida:
Por entre a névoa, as estrelas
Podem brilhar muito mais!

 

NUVEM DOURADA

Sofre minh’alma
Vendo-te, a olhar
A nuvem calma
Que passa no ar...

— Nuvem dourada
Do firmamento,
Sempre tocada
Da asa do vento,

Por esta vida
Minh’alma passa
Sempre batida
Pela desgraça.

Mas faz-se mansa
Quando a ilusão
Põe a esperança
No coração;

Da mágoa zomba,
Quer teu carinho...
É como a pomba
Buscando o ninho...

Mas tu, que o orgulho
Guardas da flor;
Ouvindo o arrulho
Da minha dor;

Deixas minh’alma,
E olhas, cismando,
A nuvem calma
Que vai passando!...

 

VERÃO EM FESTA

Canta o verão esplêndido. A alameda
Rútila cheira; e no álamo, e na parra,
Por onde voa a borboleta leda,
Fulge a luz, canta estrídula a cigarra...

Doideja o sol, que o pálio de ouro amarra
À asa que rufla a amarrotada seda;
E ouve-se a voz dos ninhos, e a algazarra
Deste perene idílio que embebeda!

— Isto dizem os poetas, insensatos
Que o rutilante brilho dos espatos
Olham, sem ver nem uma flor como esta...

Só tu, dourada e fúlgida quimera.
Tu, que és todo o verão e a primavera,
Deras mais luz, mais ouro àquela festa!

 

DIANA

Causa deste pesar sem lenitivo
És tu, a Diana caçadora e brava
Que quer que eu sinta e que suporte vivo
Todas as setas que inda tens na aljava!

Ímpia e cruel, no ardor do gesto altivo
Vibras o dardo que o desdém me crava.
Porque eu, que sou do teu poder cativo,
Vi-te também do meu amor escrava!

Mata-me; vence, enfim! Quando a agonia
Turvar-me à face os últimos palores,
E a alma me achares regelada e fria,

Lembra-te, ao menos, que eu morri de amores,
Para que possas dessa aljava, um dia,
Todas as setas converter em flores!

 

IMPOSSÍVEL

Não me podes amar... fora doidice
Torcer a sorte que se faz mesquinha:
Se a mesma sorte um dia nos unisse,
Serias infeliz por seres minha!

 

AO LUAR

Era tarde e a noite cálida
De uma doçura sem fim,
Quando penetrei precipite
Nas sombras do seu jardim

Por entre a fila das árvores
Seu vulto me apareceu;
— Julieta inquieta e romântica
Vinha em busca de Romeu...

O amojo dos seios túmidos
Erguia-lhe o alvo roupão
Mais rutilante que a clâmide
Das virgens de Salomão.

Entre as sombras dos sicômoros
Fomos, por fim, passear...
No céu errava a luz pálida
De um merencório luar.

Tomei-lhe, após, a mão gélida
Tão linda como uma flor,
E pus-lhe nos lábios trêmulos
Um longo beijo de amor...

Ao fundo escuro da chácara
Tomou-me a paixão voraz;
Errava, em torno, balsônico,
O aroma dos manacás...

Veio então a febre lânguida
Que sempre chega depois,
E presos da mesma síncope
Desfalecemos os dois...
......................................
......................................
......................................
Fugimos; a aurora fúlgida
Do Oriente já vinha à flux:
Fomos os primeiros pássaros
Que viram surgir a luz...
 

VIDA E MORTE

Falar-te, filha, da melancolia
Que enluta esta alma de te amar cansada,
É a prece que me escutas desde o dia,
Desde o momento em que te viste amada.

Sinto, no entanto, o vácuo, em torno; e em cada
Hora, que passa, um dardo de agonia...
E a lembrança de tudo, hoje apagada.
Lanças ao vento, como a cinza fria!

Nem sei dizer-te, pomba estremecida,
Que véu pesado ensombra a minha sorte,
Que mal cruel gangrena esta ferida!

Tropeçando e a cair, vago sem norte,
Pois, se em tua lembrança busco a vida.
Acho na ausência, a solidão e a morte!

 

DUAS ASAS

Nos seus dois olhos negros, tempestuosos,
Em que um fragor de cóleras rebenta,
Tenho a visão dos mundos tenebrosos
Em que ruge a paixão, como a tormenta

Mas vejo neles desfilar, ao menos,
Dos meus ideais a morta caravana,
Porque só ela guarda a luz de Vênus
E de Minerva a graça soberana.

Só ela, ao ver-me padecer aflito,
Mede os mundos de dor que em mim abranjo;
Só ela em meio à treva em que me agito
Põe o fulgor de duas asas de anjo!...

 

ESTRELA CONFIDENTE

Dentre o mundo de estrelas, que fulgura
Pelo esplendor da abóbada arqueada,
Há uma estrela, uma estrela há nessa altura
Que guarda a luz da tua fronte amada:

É Vênus. Toda a longa madrugada
Fala de ti, doidas canções murmura...
Por ela sei que tens a alma enlutada
Porém cheia de amor e de ternura.

Contei-lhe dos meus males a inclemência,
E ela há de repetir ao teu ouvido
Toda a romanza desta penitência...

Ouvirás o seu canto dolorido,
E há de saber que eu tenho, pela ausência,
A alma sem fé e o coração partido.

 

PEDIDO

Dizes que não te esqueça, e que em meio ao deserto
Em que sozinho me deixaste,
Andam beijos errando, e me assistem de perto
O amor e a fé que me juraste...

Esquecer o martírio? É inútil o teu rogo...
A mesma febre me consome,
E em minh'alma deixei gravar com sangue e fogo
As cinco letras do teu nome...

 

PAISAGEM

Quão longe estamos do viver de outrora!
Como enublaste o sol d'aquele dia!
Já nem posso, sequer, dizer-te agora
O que a cada momento eu te dizia.

No entanto, fulge a primavera; Flora
De ricas, novas galas se atavia,
E borda a rósea túnica da aurora
Que, da áurea porta do Oriente, espia...

Na tela deste sonho, que ressumbra
A frescura de um bosque, eu vejo a imagem
Doeste verão de amor que me deslumbra;

É o mesmo céu, a mesma ideal paragem;
Só a saudade põe uma penumbra,
Um crepúsculo triste na paisagem...

 

MINHA MUSA

Presa ao êxtase suave
De uma tristeza sem par,
Minha Musa é como uma ave
Que anseia apenas voar...

Chega às paragens secretas
Do desespero e da dor
E aonde vão as inquietas
Asas do beijo e do amor...

Faz um batel pequenino
De pandas, purpúreas velas,
E, num clarão matutino,
Ascende ao céu e às estrelas!

Com elas fala e conversa
Da alcova dos arrebóis
E desce tranquila, imersa
Na luz de todos os sóis.

Vive, filha, neste mundo,
Mas vai ao céu onde moras,
E mergulha no profundo
Mar Vermelho das auroras...

Versos meus! Rimas que faço
No arroubo audaz da paixão!
Versos que sois como um laço
Apertando um coração;

Flores partidas nos campos
Ao bafo impuro do vento;
Bando azul de pirilampos
Na noite do meu tormento;

Se achais um raio do dia
Para dourar minha cruz,
É que no olhar de Maria
Fostes beber toda a luz!

 




VELHO TEMA

Fatigado viajor, que do deserto,
Ledo, percorre o areal que o sol castiga,
Busca um pouso na terra, onde se abriga,
Vendo as sombras da noite que vem perto.

Assim também, — ó minha doce amiga! —
Em meio ainda do percurso incerto.
No teu regaço, para mim aberto,
Fui repousar, exausto de fadiga...

De uma planta fatal, que em meio à trilha
Em flores perfumosas se desata.
Bebe a morte o viajor que o sono pilha...

Assim teu beijo a vida me arrebata
— Beijo que guarda como a mancenilha
O mesmo aroma que envenena e mata!

 

LENDA MÍSTICA

Contam de formosíssima princesa
Que tão piedosa aos pobres se mostrava,
Que, por milagre, a própria natureza
Do seu poder mostrou-se um dia escrava.

Era o caso que a dama celebrada
— Bela e fidalga — tinha por desvelo
Estancar toda lágrima brotada
No sítio em que torreava o seu castelo.

Como um anjo de Deus, cortando o espaço
Que mal purpureava a luz da aurora,
Humilde, olhos no chão, cesta no braço,
Ia, furtiva, pela estrada afora...

Pães despejava ao colo da indigência,
E nas lágrimas punha o santo orvalho
Com que molhava as faces da inocência
Órfã da luz, do amor e do trabalho.

Viu-a o príncipe um dia, e enquanto, irado
Quis a tanta piedade opor furores.
Força foi que um milagre inesperado
Os pães da cesta convertesse em flores...

Houve tempo também em que, desfeito
E preso nesse olhar que tudo acalma,
Dividia em suspiros o meu peito,
Repartia em pedaços a minh’alma...

Hoje tudo passou; frios, medonhos.
No passado se arrastam meus desejos:
Nas nossas almas já não moram sonhos,
Nas nossas bocas já não rolam beijos...

E — milagre inaudito — quando a fria
Morte encheu de minh’alma os universos,
Da própria dor e da melancolia
Surgiram rimas, rebentaram versos...

 

TROVAS

I
Do meu peito a dor secreta
Quiseste ainda aumentar
Cravando nele uma seta
Que envenenaste no olhar.

Insensata, que não vias
(Tanto te cega a paixão)
Que a ti mesma te ferias
Ferindo-me o coração!

II
Querendo ver-me sujeito
À morte, mais de uma vez,
Deste o exemplo perfeito
De um sacrifício chinês.

Sinto que dela te prive,
Mas não traz glória ou conforto
Matar a quem já não vive.
Dar punhaladas num morto.

III
De um rei contaram-me um dia
Que em seu tesouro guardou
Tanta luz de pedraria
Que os próprios olhos cegou

A mim não me fez cegar,
Mas pôs a minh'alma louca
A luz que vive a brilhar
No escrínio da tua boca.

 

DE VOLTA

Torno da terra das manhãs brumosas,
Das noites cheias de melancolia,
Onde as cecéns e as orvalhadas rosas
Abrem-se aos beijos úmidos do dia.

Deixei o sol e as brisas rumorosas
Que cantam lá com muito mais poesia,
Mas vim beber em ânforas cheirosas
A luz que de teus olhos irradia...

E hoje, feliz porque de ti estou perto,
Recobro aos poucos o perdido alento.
Meu coração de encontro ao teu aperto;

Sinto-o que pulsa de contentamento,
Ao ver que brilha sobre o meu deserto
Um novo sol e um novo firmamento!

 

A ENTREVISTA

Espero-a. Toda a tarde e todo o dia,
Aflito, andei, na ânsia de vê-la; e agora.
Este vento a zunir na ramaria
E esta chuva monótona lá fora!...

Olho o relógio que se move ao fundo
E, ora lento, ora presto, vai medindo
Cada minuto mais, cada segundo
E os sonhos que com eles vão fugindo...

Um ruído... alguém!... Corro, abro a porta: fria
E negra é a noite... Apenas, a esta hora.
Zune o vento na densa ramaria,
Cai a chuva monótona lá fora!...

“Ela não vem, — murmuro desolado —
E, no entanto, a paixão, que me enche o peito.
Bem podia aquecer-nos um bocado
Entre as rendas cheirosas deste leito!”

Paro; escuto, impaciente... Que agonia!
Nada... Em meio da treva que apavora.
Zune o vento na densa ramaria,
Cai a chuva monótona lá fora!

“Já não virá... Que chuva impertinente!”
Vou fechar... e eis que um vulto, da espessura
Da treva, surge, e passa-me na frente
Como o ruflo de uma asa... oh! que ventura!

Chega a vingança contra a noite fria:
Beijo-a toda... arde a carne, em fogo... Agora
Zuna o vento na densa ramaria,
Gaia a chuva monótona lá fora!

 

ESQUECIMENTO

Se queres inda ver como escondida
Guardo no peito a tua imagem pura,
— Imagem que no céu da minha vida
É como um sol ardente que fulgura;

Convida o coração na sepultura
A viver e pulsar por ti; convida
Minh'alma para amar de novo; cura
A, que lhe abriste, cáustica ferida...

Só pedira a paixão com que me iludo
Que um raio apenas dessa luz me desses,
E uma palavra do teu lábio mudo;

Mas nem ouves, sequer, as minhas preces;
E enquanto, para amar-te, esqueço tudo,
Tu, por um nada, o meu amor esqueces.

 
NO CAMPO

Para calmar tantas dores
Busquei a vida dos campos;
Aqui brilham mais as flores,
E os pirilampos...

Arde o sol pelos valados,
E na asa dos colibris
Quebra os escrínios dourados
Onde guarda os seus rubis

Ágil, leve, em leve adejo,
Aceso em púrpuras, maio
Traz um riso em cada beijo
E uma flor em cada raio.

Um novo canto enche o vale
E ao longe, no alto, se perde...
Só esta música vale
As sinfonias de Verdi!

A aurora visita os ninhos:
— Grisete de mãos rosadas.
Pula e canta; os passarinhos
Respondem com gargalhadas.

A magnólia expõe à brisa
O seio branco... ora esta!...
Olha, em fraldas de camisa,
A outra dormindo a sesta!

Não sente aí quem se afoita
A ficar de todo exangue...
Está quente ainda esta moita;
Naquela há um pouco de sangue...

Um beija flor o aproveita
Na pintura de uma dália
Que há de sair mais perfeita
Que os quadros todos da Itália.

Filha! Para estes instantes
Traz o teu corpo gentil:
É mais um casal de amantes
Que vem às bodas de abril...

Tão leve e frágil como és,
Procura sempre uma sombra...
Não te vá magoar os pés
O veludo desta alfombra...

Não há flor que não compreenda
Os nossos beijos rimados:
Vem, Amor! Abre-me a tenda
Dos teus cabelos dourados!

Vem, junto à fonte sonora,
Na gruta que nos espera,
Beber os beijos da aurora
E o aroma da primavera!

 

HELIANTO
(A Eugênio de Magalhães)

É o antos de ouro, a flor apaixonada,
Gema que fulge em límpido crisol,
A flava espuma enfim cristalizada
Pelas carícias rútilas do sol.

Vendo a alameda tépida e abrasada
Onde se expande o fulvo girassol,
Nem sei se esse fulgor da luz dourada
Sobe do campo, ou desce do arrebol...

Ah! Se eu mudar pudesse, num instante,
A alma da ingrata nessa flor constante
Que só bafeja a viração do sul.

Veria a mesma esplêndida miragem
Do campo, e na minh'alma a sua imagem
Veria abrir-se, como um sol no azul!...

 

DISCORDÂNCIA

Dizes que és bela, e que, por isso, o mundo
Tens fechado na mão —
A forma é boa, mas, talvez, no fundo,
Tu não tenhas razão:

Douram-te a fronte os arrebóis suaves;
O teu sorriso canta,
E a mais canora e estrídula das aves
Prendeste na garganta;

Teus olhos ferem, causam-me desmaios:
São dois profundos céus
Cortados de relâmpagos e raios.
De gritos e escarcéus;

Quando, o primeiro trilo desferindo,
Sais pelo campo afora.
Eu não sei quem as rosas vai abrindo,
Se és tu, ou se é a aurora...

Deu-te o vergel da tua adolescência
O aroma de uma flor,
E deu-te à carne uma secreta essência,
Um estranho calor;

No entanto, vê: o teu olhar macio
Que as flores desabrocha,
Nem o meu peito fere, como um rio
Que abre, lento, uma rocha...

De que vale esse brilho estranho e louco?
De que vale essa luz?
Tens nos olhos o céu — isso é bem pouco
Tens nos braços a cruz!

Não te iludas, portanto. Guarda n'alma
O seu casto perfume;
Assim terás a ingenuidade e a calma
Que a inocência resume.

Só a poesia tem raios brilhantes
Para o teu arrebol:
És como a joia que não tem cambiantes
Sem um raio de sol.

Enquanto apenas doure a formosura
Essa face de rosa.
Não vencerás. Amor, a rocha dura.
Não vencerás, formosa!

Beleza fátua! À minh’alma perdida
Brilharás, afinal,
Como junto de um corpo já sem vida
Uma chama mortal.

Todo esse brilho há de passar ainda
E hás de cair de chofre.
Como uma joia pequenina e linda
Na escuridão de um cofre...
 

TÓXICO

Minh’alma, ao ver-te passando,
Suspirando
Já vencida, se julgava
Tua escrava.

E queria com ternura
A ventura
De ver junto ao coração
Tua mão.

Que morrera entre os escolhos
Dos teus olhos,
Toda hora e todo dia
Me dizia.

Mas achava duvidoso
Mesmo o gozo
De uma esmola inda alcançar
Desse olhar...

Suspirava a toda hora.
Como agora
Quando um raio nem alcança
De esperança!

Procurava o paraíso
No teu riso,
E apagar no teu amor
Toda a dor.

Suspirava delirante
Pelo instante
Em que um dia inda beijasse
Tua face...

— Sonho bom, quase inocente,
Certamente:
Beijo dado entre dois ais,
Nada mais!

Mas qual busca a borboleta,
A violeta.
Foi buscar minh'alma louca
Tua boca.

Pobre abelha destes vales,
No teu cálix
Onde os outros acham mel.
Achou fel!

Foi matar o seu desejo
No teu beijo;
Mas o filtro, que era forte,
Deu-lhe a morte...

 

SONHO

Sonho com ela, coisas esquisitas
Sonho: vejo-a através das noites belas
A vagar nas alturas infinitas
Corado de rosas e de estrelas...

Ouço-a que fala entre o fulgor dos astros
Cheios da sua luz... Para escutá-la
Aplico o ouvido, e, atento, ando de rastros
Por ver se ouço melhor o que ela fala!

Tornam-lhe as flores a candura; brasas
O sol ardente, os astros a beleza;
A pomba leve frêmito das asas,
E o quente aroma toda a natureza!

Deixa um queixume em cada rosa; em cada
Cálix derrama o matutino orvalho;
Abre um riso no céu pela alvorada
E um ninho faz cantar em cada galho.

Por longo tempo assim paira e flutua
No largo espaço que o seu riso enflora;
Do seu seio de neve surge a lua,
Dos seus lábios de fogo surge a aurora...

Desce depois num raio de ouro; adeja
Em torno a mim, como no espaço um cúmulo,
E esvai-se, como a sombra, quando beija
De leve, a fria lápide de um túmulo...

Caio vencido, prostro-me de joelhos;
E deste sonho lúbrico, somente
Acordo, quando banham todo o Oriente
Da aurora os fogos e os clarões vermelhos...

Porque veio despertar a minha crença
E em sombras desfazer meu sonho louco
Deves saber que a tua indiferença
Matou-me a vida e os sonhos, pouco a pouco...

Some-te... O meu amor — águia indolente —
Paira na sua habitação etérea,
Como a rena que vive eternamente
Nas savanas geladas da Sibéria...

 


TEU NOME

Teu nome é mais suave e mais doce que a taça
De um vinho embriagador que as dores me consome;
A doida viração, quando trêmula passa,
Minh'alma enche de luz com o eco do teu nome!

Enche todo de paz e harmonia o Universo
E um dourado clarão verte na minha vida
Se contemplo feliz, da alta torre do verso,
Todo o imenso luar do nosso amor, querida!

É o nome que no céu toda uma corte adora
E aclama, entre o fulgor de uma glória infinita!
Fonte clara de amor, raio da eterna aurora
Que em cada coração resplandece e palpita!

Almas baixas e vis, vendo-me teu escravo,
Fazem-me caminhar pela estrada da dor,
E crendo me atirar um espinheiro bravo,
Atiram-me por cima uma roseira em flor!

Nela quero picar a carne lancinada
Para melhor sentir o olor dos teus carinhos...
Não vale tanto a glória aos fracos arrancada
Nem vale tanto a flor quando não guarda espinhos

Podem partir, por fim, toda a nossa ventura,
E envenenar a luz que em ti vivo bebendo...
Para um dia as matar, almas da treva escura,
Do meu verso farei um latejo tremendo!

Das mortas ilusões sobre o imenso destroço.
Ficarei a chorar o passado e o futuro;
E estes favos de mel com que os versos adoço,
Serão peçonha e fel, serão veneno puro!...

 

ÚLTIMO SONHO

Não te ver junto a mim, porque estás longe?
Mas a sombra do Deus, que nele habita.
Não vê, acaso, o solitário monge
Em toda a luz da abóbada infinita?

Pois que em ti toda a vida se resume,
Como deixar de ver-te e de adorar-te.
Se em toda parte aspiro o teu perfume
E o teu fulgor diviso em toda parte?

Por eles se desfez minh'alma, e em meio
Do naufrágio, a roçar por entre abrolhos,
Fui buscar um abrigo no teu seio
E um raio de esperança nos teus olhos.

Por eles, do encantado paraíso
Do amor, baixei ao cárcere das dores,
E hoje somente sobre espinhos piso
Quando pisei outrora sobre flores.

É minha esta ilusão... Caio com ela
— Luz que me aclara as portas de outro mundo.
Deixa-a brilhar... é força que uma vela
Arda sempre na mão de um moribundo!

 

ILHA ENCANTADA

Que mais espero? Náufrago que espanta
O fragor da tormenta, e a alma encarquilha,
A esta plaga aportei; tu, porém, santa.
Vives cantando em torno desta ilha!

És de meu sonho triste a maravilha,
A cheirosa manhã, que se levanta.
Que, como um raio cristalino, brilha!
Que, como uma harpa enternecida, canta!

E erro, entre fráguas tétricas e estranhas,
De onde vejo montanhas e montanhas
Toldando a luz desse funéreo dia...

Se, pois, da morte já me espera o gozo,
Dá-me em teu seio o último repouso,
Dá-me em teu lábio a última agonia!

 

CASTIGO DOBRADO

Se é por acaso um culpado
Aquele que te quer bem,
Dá-me o castigo dobrado,
Porque eu já tenho pecado
Por dez, por vinte, por cem.

 

NO MORE

Inda haverá, talvez, novos fulgores
No céu, que eu não contemplo nem diviso,
Porque não tenho mais os esplendores
Da aurora boreal do teu sorriso.

Pode haver luz no azul, brilho nas flores.
Vozes no vento, e um fulvo paraíso
Na aurora, quando acende em várias cores
Dos horizontes o dourado friso...

Já não desperta o sol, que vem com ela,
Aquela doce melodia, aquela
Música de ouro das estrofes mansas:

Hoje é meu peito um túmulo fechado
Onde apenas o vento do passado
Canta a nênia feral das esperanças...

 

SOL AUSENTE

Já não me afaga o teu clarão sonoro,
E hoje só vivo do teu reverbero,
Sol, cuja ausência em lágrimas deploro,
Luz, pela qual os mundos exagero!

Se canta em teu olhar almo e canoro
A Ilíada de amor de um novo Homero,
Como adorar-te mais do que te adoro?
Como querer-te mais do que te quero?

Vai-se apagando a tua luz tão clara,
E em vez dela, no campo e na seara
Descem as sombras de uma noite escura...

E eu sinto, e eu vejo, no final do dia,
Que esta treva de luto e de agonia
Faz-me forçar as portas da loucura!

 

FUGITIVA

Reinas aqui... Se estas canções dominas,
— É forma ideal de todas as belezas —
É que os versos são como as pedras finas:
Toucam melhor o colo das princesas... 

És tu, que inda de longe me fascinas,
E, entre a luz das estrelas mais acesas,
Como estrela, do azul do céu te inclinas
Num diadema de fogo e de turquesas... 

Nem acodes de longe aos meus desejos!
A luz do abismo e a palidez dos lírios
Mandas cantar somente em meus arpejos?

E os teus beijos de amor, e os meus delírios? 
— Não cantam versos o sabor dos beijos, 
Versos não dizem todos os martírios!

 


Triste, caminho só! Levo o meu manto
De sombras e de luto tão coberto
Que já nem sei quanto martírio, quanto
Pesar me aflige em meu caminho incerto...

Solidão, nada mais! No horror do espanto
Destes fantasmas que me assistem perto,
Nem uma nota ao menos do seu canto,
Nem um raio de luz no meu deserto!

Perverso coração em seus refolhos
Nem mais me escuta; e não me diz, ao menos.
Porque quer que eu me fira nos escolhos.

Daqueles olhos que soluçam trenos
Cheios de almo luar... daqueles olhos
De luz tão bela como a luz de Vênus!
 

RUÍNAS

Pisa as ruinas do altar profanado e sem lume,
Minh'alma! Faz-te mal beber inda os fulgores
Desta página azul, tão cheia de perfume
Como o moital de um bosque onde rescendem flores...

Quebra as aras da fé, despedaça as redomas,
Santa, que um novo céu no olhar guardas oculto:
Não é mais o meu verso a caçoila de aromas
Com que outrora exaltei as glórias do teu culto!

Teu corpo ideal, de deusa, em seu domínio encerra
Tantas constelações, que nem cabe em meu verso;
Desertaste do céu para pisar a terra,
E ao amor e à poesia abriste outro Universo.

Novos sóis a ígnea e flava ascuma flamejante
Dardejam no esplendor dos teus olhos profundos...
Mas eu, crente, hoje ateu, fugo ao clarão vibrante
Desse incêndio voraz que há de abrasar dois mundos!

Não posso, acaso ir só cumprir o meu fadário,
Das mortas ilusões de pé sobre os escombros?
— Pois será como o teu, Senhor, este Calvário,
E tão pesada a cruz que hei de levar aos ombros?

Só pode a ave que sofre o exílio do seu ninho,
— Desterro atroz e igual ao que tenho sofrido —
Dizer esta tortura, espinho por espinho,
E esta mágoa contar, gemido por gemido!

Deixa-me agora só! Alma na treva alçada
Como um pobre réptil à borda de um penhasco,
Não me firas — por Deus! — da mesma luz dourada
Que a Saulo converteu na estrada de Damasco!

Foge de mim!... Do altar profanado e sem lume.
Quebra a pedra, minh'alma, e oculta-te aos fulgores
Desta página azul, tão cheia de perfume,
Como o moital de um bosque onde rescendem flores...

 

CONTRASTE

Isa, não creias na felicidade:
Eu procurei-a, como um cego, e tanto
Que não sei porque choro esta saudade
Nem a razão porque estas mágoas canto.

Dá-me apenas um pouco de piedade:
— Soturno Hamleto de pesado manto,
Enchi de goivos toda a mocidade,
Todas as rosas orvalhei de pranto...

Entre os delírios vãos da fantasia,
Nunca sonhei com céu tão vasto e largo
Como o do beijo que me deste um dia;

Sinto, no entanto, o esquálido letargo
Que faz achar, em meio da alegria
Amarga a vida, o sofrimento amargo...

 

UM DIA

Como o nauta que, entre abrolhos,
Prevê nos céus a bonança,
Eu vi a luz da esperança,
Brilhar na luz dos teus olhos;
Pois esse calmo fulgor
Que aparentava a descrença,
Não era de indiferença,
Era de paz e de amor.

Não sabes hoje o castigo
Que me trouxe aquela glória,
E ouvindo essa triste história,
Talvez que chores comigo;
Hás de também padecer,
Pois creio que inda algum dia.
Hei de contar-te a agonia
Que tu me fazes sofrer.

Talvez se mude essa calma,
E os teus floridos caminhos
Se encham dos mesmos espinhos
Que trago aqui dentro d’alma:
Só então, querida flor,
Tu saberás, em verdade,
Quanto punge esta saudade.
Quanto maltrata esta dor!

 

NINHO VAZIO

O ninho em que a asa esvoaça,
Cala-se quando a neve o refrigera;
Mas, quando o inverno passa,
Canta de novo pela primavera...

Este nem hoje um pio,
Nem um ruflo de amor o torna quente:
Ficou triste e vazio,
Vazio há de ficar eternamente...

 

ZELOS

Só tu conheces o secreto espinho
Que dentro d'alma me pungindo está

Fagundes Varela

— “Versos a outra! É um poeta que não sente
O que escreve...” Isto dizes; entretanto,
Arde e queima o meu peito ansiosamente
Nestas estrofes úmidas de pranto!

A aurora desce pelos altos montes,
Dourada como os sonhos em que cismo:
— Quanta luz a banhar os horizontes!
— Quanta treva no fundo deste abismo!

Tantas e várias fantasias gero
Dentro do verso estrídulo e canoro,
Que já nem sei dizer quanto te quero,
Nem mais posso dizer como te adoro!

Essa que apontas como desejada
Não é do ideal de um poeta o Novo-Mundo,
A imagem da beleza constelada,
A sombra, ao menos, deste amor profundo...

Não tece, como tu, de treva densa
Dos meus sonhos a límpida miragem,
Nem o meu verso o seu altar incensa
Como incensa e perfuma a tua imagem!

Amá-la? Não: amam-se céus e flores,
Asas de opala, frêmitos de ninhos
E essa música própria de cantores
Como o luar e como os passarinhos...

Amam-se as serras ao romper do dia,
A balsa, o prado que de luz se touca,
A aurora que os teus olhos alumia, 
E o verão que esbraseia a tua boca...

Amam-se os anjos, como tu, que um trono
Ergueste em meio desta noite escura,
E, estrídula cigarra deste outono.
Sabes cantar as árias da ternura.

Só não sei se essa fé que me juraste
Tens ainda por certa, como eu tinha.
Ou se já formam nítido contraste,
Neste momento, a tua crença e a minha...

Não sei; mas quando aos ideais dispersos
Faltar um porto onde lhes dês abrigo,
Relembra ao menos os meus pobres versos,
— A Bíblia Santa em que rezei contigo!

 

PERDÃO

Feriste-me, e essa mágoa inda me oprime
Como a algema que prende o condenado...
— Criminoso, não sei qual o meu crime;
— Pecador, não conheço o meu pecado!

Mas se dizes que fui louco e perverso,
Se me acusas de um mal que eu desconheço,
Perdoa-me, que a endecha do meu verso
Diz o que sinto e diz o que padeço!

Julgas agora que o perdão te mande,
Como o que ora te peço neste voo?
A tua culpa?... a tua?... essa é tão grande
Que eu nem posso dizer se te perdoo!

 

DESPONDENCY

Nem a mais viva loucura
Nem o mais louco desejo
Podem pagar a amargura
Do dia em que não te vejo!

Ando longe desse amado
Olhar, que as dores me leva,
Como um cego abandonado
Que vai tateando na treva...

Mas se a minh’alma está morta,
Que importa que andes distante?
Se me não buscas, que importa?
Adoro-te eu, e é bastante.

Quem há que uma estrela olhando
E enternecido por vê-la,
Queira que logo, cantando.
Lhe fale e responda a estrela?

Beijar a dália escarlate
Por que um jardim pôs em festa?
Não há maior disparate,
Maior loucura do que esta!

Tem só a flor o perfume,
A graça a harmonia, a cor,
E é nisso que se resume
Todo a mistério da flor;

Mas nem a maior loucura,
Nem o mais louco desejo
Podem pagar a amargura
Do dia em que não te vejo!

 

MINIATURA

Estrela, nuvem ave,
Perfume, aragem, flor...

A João e Deus

É branca e pura, casta e divina,
Leve e franzina
Como um jasmim;
Cheia de graça, de alma doçura
Tem a candura
De um serafim.

Vendo o seu rosto brilhar tão doce
E o céu abrir-se no seu olhar
Sinto-a tão linda como se fosse
A própria Santa Virgem Maria
Sorrindo sempre, de noite e dia,
Por entre as rosas do seu altar...

Na minha mente, quando ela assome
Quando o meu beijo nem mesmo a enlaça,
(Santa que vive numa redoma,)
Era nuvens de ouro vejo-a que passa,
Cheia de graça,
Cheia de aroma...

Sabe que aquela que um beijo der-me
Bebe a peçonha própria do verme
De atro paul;
No entanto, esfaima, para onde fala,
Veste de gala,
Forra de azul!

Formas que brilham assim radiosas,
(Mais do que os lírios, mais do que as rosas)
Um poeta justo nos seus louvores
Não as compara sem ofendê-las,
Nem mesmo às flores.
Nem às estrelas.

Vendo o seu rosto brilhar tão doce
E o céu abrir-se no seu olhar,
Sinto-a tão linda como se fosse
A própria Santa Virgem Maria
Sorrindo sempre, de noite e dia.
Por entre as rosas do seu altar...

Se ela é senhora de tal encanto,
Se apaga o luto, se enxuga o pranto,
— Bálsamo puro da minha dor, —
Se é mensageira da primavera.
Quem lhe não dera
Todo este amor?

Por isso agora, quando ela assoma,
Quando o meu beijo nem mesmo a enlaça,
(Santa que vive numa redoma)
Em nuvens de ouro vejo-a que passa.
Cheia de aroma,
Cheia de graça!

 


NO PARQUE

Céu todo de luz batido...
Tu, que do sol és irmã,
Tinhas o olhar embebido
No resplendor da manhã.

E eu fui passando a teu lado:
Tudo era azul, tudo calma
No grande parque dourado...
Só era noite em minh'alma!

E assim, preso a. um mal medonho,
Via-te, o olhar esplendente,
Indiferente ao meu sonho
E ao meu mal indiferente...

No entanto, segui de rastros
Por entre a luz que cintila,
Só para ver quantos astros
Se ocultam nessa pupila!

E em doido e iriado bando,
As ilusões irrequietas
De minh'alma foram voando
Como ideais borboletas;

E todas, num vago anseio,
Foram por fim, uma a uma,
Pousar na flor do teu seio
Feito de jaspe e de espuma.

Em meio de muita gala.
Quando o sol dardeja forte,
As asas de ouro e de opala
Na própria luz têm a morte;

Nisto o caso se resume:
As borboletas douradas
Com tanta luz e perfume
Morreram todas, coitadas!

 

ONTEM E HOJE

Ontem dizia eu: — “Agora,
Calmo e feliz pulsa o meu peito:
Faz muito frio lá por fora,
Mas está quente o nosso leito...”

Hoje desponta a madrugada
E eu, triste e só, tremo de frio;
Procuro em vão a minha amada...
O seu lugar está vazio!

 

AGONIA

Sombra... sombra e mudez... Só fulgura, em contraste,
Todo o abismo sem termo em que afundei meus passos...
— Nebulosa do amor, tu para mim criaste
Este céu, esta luz, este ar, estes espaços...

Inda em minh'alma vibra uma harmonia infinda;
Louco me torna ainda essa febre estuante;
E os teus braços de neve, os teus braços ainda
São a cruz em que vergo o corpo agonizante!

Não me culpes a mim, que o ermo de um paraíso
Entrevia, ao calor da febre e do desejo:
— Muita angústia custou-me as vezes um sorriso,
— Muitas lágrimas dei-te em troco de um só beijo!

Como no espaço adeja uma garça perdida,
Vieste a mim, tatalando asas pandas, serenas;
Mas perdeu-te, afinal, essa paixão mentida
— Asfaltite do amor em que molhaste as penas...

Que importa que se afunde ou pereça o Universo,
Que o sol deixe os vergéis e os pâmpanos em chamas.
Se de novo, a cantar, abre as asas o verso
Para beber a luz que sobre mim derramas?

Cheira a balsa; o arvoredo emaranhado em ninhos
Solta, de quando em quando, harmonias queixosas...
— Flauta amorosa e doce, a voz dos passarinhos
Empresta uma alma ao campo e sonoriza as rosas.

Só há sombras no monte, onde não vai minh'alma
Incerta percorrer as paragens tranquilas...
Só luz para este abismo, ermo de toda calma,
Onde dardejam fogo os sóis dessas pupilas...

É a angústia suprema é a tortura sem nome
Do vampiro que foge ao sol e à claridade;
Sofra — que importa? — eu quero a pena que consome,
A volúpia da dor que só traz a saudade.

Mas debalde se acende o meu antro... debalde
Erro como Cam, espavorido e louco.
Fugindo à luz e ao mundo... (Esta alegria jalde
Brilha tanto no céu, e em minh’alma tão pouco!)

Não mais povoado tenho o espírito de sonhos,
Como uma estufa de ouro onde rescendem flores;
E hoje apenas me arrasto entre parcéis medonhos
Pisando um tremedal de espinhos e de dores.

Cala as penas, minh’alma, e suporta o cilício
Que as fibras te corrói, cruciante e sem tréguas;
— Não tem fim nem começo a estrada do suplício,
A vereda da dor não se mede por léguas.
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..............................................................................

Poeta: abate essa fronte onde fagulham mundos,
Onde vivem cantando os arrebóis suaves:
— Urna que guarda em si os mistérios profundos,
— Harpa que canta o amor, como o trilo das aves.

Dorme: procura a treva asquerosa e maldita
Onde não entra a luz nem resplandece a aurora,
Mas como um seio quente e amoroso palpita
À alma que geme e canta e que gorjeia e chora!

Vai! Segue eternamente a caminhar de rastros,
Já que não podes hoje amá-la e compreendê-la!
É debalde que o teu olhar perscruta os astros:
Verme, volta ao covil! Deixa no céu a estrela!

 

SILÊNCIO

Silêncio impões ao meu cruel martírio!
E inda juravas me guardar constância,
Quando do lábio dava-me a fragrância
De um branco e casto e perfumado lírio!

Que culpa cometi? Ao meu delírio
Outra me aponte agora, e em rosto lance-a!
Não tu, espelho vivo da inconstância.
Luz, que cuida ser sol, e vem de um círio...

Silêncio... é a voz dos túmulos fechados,
O vento surdo da esterilidade,
Nos campos pelo inverno desolados...

É o prêmio que me trazes à ansiedade,
O negro galardão dos meus cuidados,
A triste recompensa da saudade!

 

A TARDE

A tarde desce, em meio
De um pálido langor;
O espaço brilha cheio
De aroma e de esplendor,
Minh'alma é um doce leito
De espinhos ermo e nu,
Pois guardo inda no peito
Uma esperança..... tu.

 

FLOR DE TORMENTA

Na alta grimpa da mata rumorosa
Que mais crua e mais forte a claridade
Coa dos sóis, há uma flor caprichosa
Que o vento fere e açoita sem piedade.

Balouça no ar a corola aromosa
Que o tronco forte eleva à imensidade,
E ao fragor da rajada tormentosa
Abre a coroa real à tempestade.

Quanto mais a água a bate, e o ar farfalha,
Do limbo azul o verdejante toro
Mais brilho e aroma aos vendavais espalha.

Assim também o teu clarão sonoro;
— Flor da tormenta, o rocio que te orvalha
É o dilúvio das lágrimas que choro.

 

A UMA CRIANÇA

Passas às vezes, cantando
Como uma rósea quimera,
E eu sinto também passando
Nesse momento febril
Um sopro de primavera
Cheio do aroma de abril.

Sentindo a tua alma pura
Cheia daquela meiguice
Só própria da criatura
Que é santa como tu és,
Sonhei que o mundo me visse
Louco e prostrado a teus pés...

Mas ah! Que abismo medonho
Hoje entre nós se levanta!
Ao despertar deste sonho,
Louco e prostrado a teus pés,
Nem posso a teus pés de santa
Cantar meus hinos de amor!

Esquece, pois, os meus hinos;
E já que a sorte impiedosa
Unir os nossos destinos
Num só destino não quis.
Deus te faça tão ditosa
Quanto me fez infeliz!

 
ALMA EXTINTA

Estala, coração! Ela também, querida
Entre todas, partiu, deixou-te a solidão...
Já não te resta mais nem um sopro de vida.
Nem um hausto de luz... estala, coração!

Não pecaste, se quer, e a injustiça te oprime!
Nem uma jura só, de tantas, se partiu,
E é forçoso expiar essa culpa de um crime
Que não quer o perdão, porque nunca existiu!

A ingratidão, por fim, veio bater-te à porta
Mas um triste despojo encontrou nos umbrais:
A alma gelada e extinta, a alma vazia e morta
Que palpitou de amor e que não canta mais!

Dela desfeito, enfim, às lancinantes garras,
Já nem podes viver, já nem podes amar:
Extingue-te: no amor, foste como as cigarras
Que em meio do verão estalam de cantar!

 

LONGE

Depois de passados dias
De ventura, esta alma escrava
Punha bênçãos e agonias
No beijo que te deixava!

Depois, rolei como um morto
Pejo alto mar... nem o céu
Dava-me mais o conforto
Que o teu sorriso me deu.

Mas não suponhas que, acaso,
De ti me aparto um momento:
O sol mergulha no Ocaso,
Mas redoura o firmamento...

Da melhor das criaturas
Nem me podem afastar
Estas tremendas e escuras
Trezentas léguas de mar!

Aspiro ainda a fragrância
Com que o teu lábio me anima:
Quanto maior é a distância
Tanto mais nos aproxima!

A luz com que o mundo espantas
Prefiro ao sol (crê, se queres...)
És a mais santa entre as santas
E a mais pura entre as mulheres:

O sol mergulha no lodo,
A estrela beija o paul...
— Não troco pelo céu todo
Este pedaço de azul!

 

REINADO IDEAL

Loura sereia de olhos tentadores
Que és a razão da desventura minha:
De uma pátria de sonhos e de flores
Eu fora o rei... se fosses a rainha.

És senhora de um mágico tesouro
De perfeição, de graça e de beleza;
Em tua boca esbraseada, o coro
Dos beijos canta a sinfonia acesa.

Desses teus olhos o amoroso encanto
De galas veste o meu tristonho exílio,
E apenas num sorriso dizes tanto
Como um verso de Horácio ou de Virgílio.

De que estranha e dourada nebulosa
Baixaste à terra, tu, que vens perdê-la,
E irradias — estrela jubilosa —
O clarão jubiloso de uma estrela?

De um paraíso, para mim perdido,
Guardas a chave, — magica Sultana,
Enquanto a contemplar-te ando esquecido
Como Jesus junto à Samaritana...

O escravo, achando à dor um lenitivo,
Beija os grilhões que o trazem prisioneiro;
Eu, como o triste e mísero cativo,
Choro... e bendigo o próprio cativeiro!

No entanto, — ó dona de olhos tentadores,
Que és a razão da desventura minha:
De uma pátria de sonhos e de flores
Eu fora o rei... se fosses a rainha!

Sentindo a ferida larga
Que a alma preme e a voz embarga,
Inda há pouco eu repetia
Aquela palavra amarga
Que tu me disseste um dia.

Disseste bem; desgraçado,
Triste, louco e apaixonado
Fadou-me o destino, quando
Me fez ver em céu dourado
Das fantasias o bando;

Quando, sem trégua que a acoite,
Vibrando o trêmulo açoite.
Na minh’alma, inda louçã,
Verteu a treva da noite
Em vez da luz da manhã!

Quando, em pasto ao meu desejo,
— Único bem que inda almejo —
Me quis dar um paraíso
Todo quente do teu beijo.
Todo fresco do teu riso.

E apenas o alado coro
Das quimeras de asas de ouro
Fez em minh’alma cantar,
Pondo-me em frente um tesouro
Que eu nem podia tocar!

 

BEIJO SEM VIDA

Quando ela por mim passava,
Parecia-me tão bela
Que o céu todo palpitava
Junto dela...

E eu sonhei, por isso, outrora,
Tão ditoso, quando a via.
Que cantava toda hora.
Todo dia.

Hoje, enfim, não mais cantando,
Mas carpindo a minha sorte,
Vivo triste, suspirando
Pela morte.

Exilado da alegria,
Se cantei, feliz, outrora.
Hoje choro todo dia,
Toda hora;

E minh’alma, que agoniza,
Só tem bálsamos fugazes
Neste pranto que inda pisa
Minhas faces;

Pois o pranto, que consola,
Cai tão fresco sobre a dor,
Como o orvalho na corola
De uma flor

Nem ao menos, pomba mansa,
Nem ao menos, por contraste,
Com tal dor uma esperança
Me deixaste...

Tanto em vão busquei conforto
Para a mágoa que não finda
Que eu nem sei como, já morto,
Vivo ainda!

Vens agora, mas o tédio
N'alma, aberta em dores, arde...
Chegou tarde esse remédio,
Muito tarde;

Porque é triste e fria a chama
Desse beijo que me deste,
Como a luz que doura a rama
De um cipreste.

Vai-te, pois; vai-te, querida;
Não agraves mais a sorte
De quem quer trocar a vida
Pela morte.

 

DOLORA

Como é triste andar sonhando
Com um mundo que não existe!
Como é triste
Ir vivendo e caminhando
Sem ver, em nossos delírios,
Da razão com os puros olhos,
Que se há na vida alguns lírios
São muito mais os abrolhos!

O homem nasce, e num momento
Corre a seguir a esperança:
Não a alcança,
Porque não se alcança o vento;
Mas corre e cansa e delira.
Sem ver afinal que a glória
Não é mais que uma mentira
Tão bela quanto ilusória.

Sempre a correr como um louco,
Não vê que os falsos amores
Como as flores.
Duram pouco, muito pouco!
Não vê, quando se entusiasma.
Pela fortuna que adora.
Que ela parece um fantasma:
Quando a tocam, se evapora!

E que a vida é um sonho ameno,
Mas do qual, se despertamos,
Sempre achamos
O bem, por maior, pequeno;
Pois é o mal tão forte e tanto
Na senda escura da vida
Que uma torrente de pranto
Brota de cada ferida.

Durar os gozos só querem
Como as puras açucenas,
Mas as penas
Vivem sempre e sempre ferem;
E quando nos foge a calma
Com as esperanças mais belas,
O lugar que tinham n'alma
Fica ocupado por elas.

A ferida que os amores
Deixam n'alma quase morta
É a porta
Que abre a passagem das dores;
Sucedendo na jornada
Desta vida mal vivida.
Que é para o prezar “entrada”
O que é para o bem “saída”.

E sofrem todos e choram
E os males e a dor toleram
Porque esperam
Achar a ilusão que adoram.
E o homem pálido e triste
Não vê, quando arda a sonhar,
Que apenas a dor existe
E nada a pode apagar.

E não vê que é um fátuo fogo
A paixão com que se abraça,
Luz que passa
Como um relâmpago, logo;
E que os sonhos e os receios
Da sua mente abrasada
Não são mais que devaneios.
Sombras apenas, mais nada!

Que o próprio amor é ligeiro
Como a amizade que mente
Pois somente
Rebrilha a luz do dinheiro;
E não vê quando se lança
Dos sonhos no pego fundo,
Que são a fé e a esperança
Mentiras só deste mundo!

 

MARGARIDA

Indo ao prado colher flores,
O prado (que não sabia
Para quem eu as colhia)
Disse, entre prantos e dores:

“Eis aí a dália, a rosa,
A camélia, o cravo olente;
A margarida somente
Fugiu da veiga cheirosa...”

O prado andava gemendo
A ausência do seu amor;
Por ele fiquei sabendo
Que, em vez de mulher, és flor.

Colhi da balsa florida
As corolas mais louçãs:
Trago-as aqui... Margarida,
Recebe as tuas irmãs!

 

FLOR VIÚVA

Guarda ainda o gesto terno
E a marmórea palidez
Que lhe trouxe o longo inverno
Da viuvez.

Já chorou pelo passado,
Mas traz hoje o rosto enxuto
E, em vez de luto pesado,
Meio luto:

— Fio azul de seda frouxa,
Pintas brancas pelo véu,
Laço escuro e pluma roxa
No chapéu.

Só negro luto poreja,
Como de fundos abrolhos.
Desse abismo que negreja
Nos seus olhos.

Negros como a minha sorte,
Negros como a minha dor,
Negros, negros como a morte.
Como o amor...

Por entre sombras escuras,
Vejo-os, negros e tristonhos,
Como as negras sepulturas
Dos meus sonhos.

 
AO GENERAL OSÓRIO
(Junto ao seu monumento)

Ei-lo, por fim, na praça alevantado,
O audaz guerreiro! O eco de seu nome
Às plagas do porvir será levado
Pelo bronze que o tempo não consome.
No largo punho o gládio vitorioso
Que amplas florestas derrubou de alfanjes,
Sereno agora, altivo e desdenhoso,
Mal lembra o herói que, à frente das falanges,
No fragor da batalha, a onda purpúrea
Do sangue à fronte, a glória a embriagá-lo,
Tragava os ventos, sem buscar a fúria
Conter do seu indômito cavalo...
Ginete igual ao de Átila na guerra,
Tremendo escudo do seu braço forte.
Por toda parte em que pisava a terra
Levava o espanto, a confusão e a morte!
Sol da peleja! Intrépido e valente
Batalhador! Leônidas que ao braço
Ergue a clava terrível e potente
E a um exército inteiro embarga o passo!
Foste ainda maior do que o Espartano
Quando o raio acendeste no horizonte
E vingaste de um déspota e tirano
A injuria, do Brasil cuspida à fronte!
Herói de Tuiuti: tua memória
Guarde o mundo pra sempre, ame-a, idolatre-a...
O bronze eterno que te leva à glória
Enche de orgulho o coração da Pátria!

 




BRANCA FLOR

Onde estarás agora,
 Branca e perdida flor
Por quem minh’alma chora
Preza de estranha dor?
Onde estarás agora,
Sol da minha existência, alma do meu amor?

Geme ainda a saudade
Com que o pesar me assiste
Na minha soledade
Eternamente triste!
Geme ainda a saudade
Que em minh’alma cantou no instante em que partiste.

A que outro claro mundo
O fado te conduz
Longe do moribundo
Que arrasta a sua cruz?
Que outro céu, que outro mundo
Andas dourando agora, astro de estranha luz?

Por que é que me deixaste
Em meio do caminho
E ingrata abandonaste
O amor do nosso ninho?
Por que é que me deixaste
Em meio da tormenta, esquecido o sozinho?

E onde andarás agora,
Branca e querida flor,
Longe de quem te adora,
Longe da minha dor?
Onde estarás agora,
Sol da minha existência, alma do meu amor?

 

MONÓLOGO

(Recitado no festival que em honra do poeta Fagundes Varela realizaram os homens de letras de Petrópolis)

Se de alguma atenção eu lhes peço o concurso,
É modesto o meu fim,  minha intenção singela:
Não cuidem, pois, que eu vá fazer outro discurso
Nem nova conferência acerca de Varela...

Isso é bom para quem sabe dizer por junto
Tudo o que o estilo tem de opulento e de excelso,
E, como bem sabeis, já trataram do assunto
Quatro: Leôncio, Martins, Xavier e Afonso Celso.

Incumbido, porém, de agradecer ao povo
O concurso gentil que à nossa ideia presta.
Eu tinha de encontrar por força um modo novo
De dizer o que é velho: assim o exige a festa...

Outro, em frase elevada, ardente e acesa em chamas
Empregara talvez estilo bem diverso;
Mas tendo de falar principalmente às damas,
Achei que em vez da prosa era melhor o verso.

Sois vós que compreendeis, Senhoras, em verdade,
Da lira suspirosa as notas esquisitas
E interpretais melhor a doce suavidade
De um poeta que cantou tantas coisas bonitas:

Verbi gratia: a mulher... a mulher, sobretudo!
Sim: a César o que é de César: a poesia
Deve cantar primeiro a alva mão de veludo
Que esconde dentro o espinho, e por fora... amacia.

E Varela cantou glórias, que eu canto agora
Mas que ninguém como ele inda soube dizê-las:
Na boca da mulher pôs o escrínio da aurora,
Na luz do seu olhar o fogo das estrelas!

Verdade é que deixais morrer as pobres almas
Que a esperança alimenta e o desengano trunca;
Mas se depois de morto o poeta, dais-lhe palmas,
É o caso de dizer: Antes tarde que nunca!

Isso de assim deixar, como folhas ao vento,
As queixas que na lira o trovador resume
Sem mais compensações que as glórias do talento,
Aqui pra nós: eu acho um péssimo costume...

No entanto, é o que se vê: antigamente, então,
Quando um poeta cantar queria a sua amada.
Eram rosas na boca, eram lírios na mão,
E na pálida fronte a estrela da alvorada.

Não me refiro, é claro, ao tolo namorico
Da donzela enfezada, a pálida menina.
Que dizia à Mamãe: “Eu gosto de seu Chico
Porque ele na chamou de rosa purpurina,...

Não; Falo da mulher por quem o verso acende
A lava da paixão negra e tempestuosa;
Aquela que compreende as ânsias, que compreende
Os sonhos, e abandona os sonhos, caprichosa.

Marília, por exemplo: o pobre poeta ardente,
O amoroso Dirceu finou-se de saudade...
Pois a bicha morreu escandalosamente
Depois de completar oitenta anos de idade!

É demais! Na mulher anda tudo trocado:
Nada há que para o seu orgulho o bem resuma
Como deixar morrer um poeta apaixonado...
É por isso que eu cã não morro por nenhuma!

Mas hoje resgatais essa dívida imensa
Da velha ingratidão por tantas repartida;
É justo que receba um dia a recompensa
Quem só provou da dor — fruto amargo da vida.

Vós que os poetas matais só com os olhos serenos,
E que do ideal tornais tão lutulenta a história,
Amai o grande poeta: amai-o, pra que, ao menos,
Quem morreu pelo amor seja amado na glória!

 

POR QUÊ?

Por que será que receia
O pescador navegar
Quando brilha a lua cheia
Sobre as ondinas do mar?

Ao pleno luar dos teus olhos,
Logo que o pobre embarcou,
Num mar calmo e ermo de escolhos
O meu batel naufragou...

Ao reler esta página, que finda
Do nosso amor a história sem piedade,
Do passado infeliz lembro-me ainda
E de tudo me punge a atroz saudade...

Queimou-me os olhos este pranto ardente,
Neles a própria luz morreu queixosa...
E nos cílios, que cerro, impertinente
Baila ainda uma lágrima impiedosa...

Nada há que valha a dor deste momento;
Nada iguala a essa dor; a sua história
Por ser a história de um cruel tormento
Inda a conservo toda na memória!

Parece-me que venho, soluçante.
De um funeral... Os sonhos, o passado,
Tudo enterrei neste tremendo instante
Junto ao meu coração despedaçado!

Geme a lira com quem corri primeiro
Da ventura e do amor todos os portos...
E canta! Mas seu canto derradeiro
Dobra às exéquias dos meus sonhos mortos!

 

ASCENÇÃO 
(Ao ilustre poeta Ricardo Muica)

Foi em torno da imensa e lauta mesa,
À hora do café,
Que eu da fresca vizinha baronesa
Toquei no pé...

Ela, mal encobrindo a onda purpúrea
Do rostinho vermelho,
Num frêmito convulso de luxúria
Roçou-me o joelho...

De braço dado, vendo arfar-lhe o seio.
Fui levá-la ao salão;
Aí, a um canto, em fino galanteio,
Beijei-lhe a mão...

À saída, no espasmo delirante
Da febre ardente e louca,
Pareceu-me de mel, naquele instante,
A sua boca...

São decorridos, já quase dois meses,
E, sem um só revés,
Tenho-a beijado já diversas vezes
Da boca aos pés...

 

ENGANO
(A Rebeldino Batista)

Absorto em outros misteres,
Nunca busquei a ventura,
Nem cometi a loucura
De acreditar nas mulheres.

A uma, sim, jurei que a amava;
Mas não menti, quando o disse.
Pois ao dizer tal tolice,
A mim também me enganava!

 

A PETRÓPOLIS

Terra de paz e harmonia
Que de luz a alma me banhas:
No azul das tuas montanhas
Vive cantando a poesia!

Vale de amenas doçuras,
De rosas e malmequeres,
Onde as estrelas mais puras
Brilham no olhar das mulheres!

Aqui o sonho e a quimera
Vivem de luz e esplendores,
E brota um mundo de flores
Ao sopro da primavera!

Tudo fascina e embebeda,
Tudo é rútilo e dourado:
Bebo a luz com que me banhas:
Só há perfumes no prado!

Toda noite e todo dia
Bebo a luz com que em banhas:
Fica entre as tuas montanhas
O Eldorado da poesia!

 

ÚLTIMA PÁGINA

Voltas de novo, e os escolhos
Vens trilhar de ondas mendazes:
O pranto inunda-te os olhos
E o palor te cobre as faces...
Que tu sofreste, e bastante,
Bem sei: o véu do desgosto
Vejo pintado em teu rosto
Como em meu próprio semblante.

Tornas, aflita e saudosa
Daquele mesmo passado
Que tu, louca e caprichosa.
Deixaste atrás sepultado;
E eu, como alívio e conforto
À flor sedenta de orvalho.
Só posso dar-te o agasalho
De um peito já quase morto!

Longo foi o meu delírio
E o meu tormento cruel,
Pois temperei o martírio
De amargo pranto e de fel;
Louco e transido, sofri
Todos os males da ausência...
Foi tremenda a penitência,
Negra a dor, longe de ti!

Do meu triste eremitério
Sonhava às vezes contigo,
Em busca do refrigério
De tão tremendo castigo;
Mas sempre impiedosa, a sorte
De tal modo me arrastava,
Que em toda parte avistava
A sombra escura da morte.

Calcando a larga ferida
Que aberta n'alma deixei,
Da taça amarga da vida
Todas as fezes provei;
E a própria estação das flores,
Ao tardo volver dos anos.
Foi quadra de desenganos.
De desalento e de dores!

Voltando aos dias de calma,
Teu amor rejuvenesce
E canta dentro em minh'alma,
Como o sol, quando amanhece...
Sol do amor, que esta alma espera
À luz do teu riso doce.
Fugiu a treva, e mudou-se
Todo o inverno em primavera!

Canta, rouxinol amado!
Quero ouvir dessa garganta
O melódico trinado...
Rouxinol amado, canta!
Voltam a paz e a alegria;
Tem a dor onde se acoite...
Se em todo o Universo é noite,
Em meu coração é dia!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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