2/27/2023

Imortalidades (Poesia), de Luís Delfino


IMORTALIDADES



(A Helena)

Com sombras deste lado e luz do lado oposto,
Este livro reflete a tua alma e o teu rosto:
Vem de ti este livro, e é para ti somente,
Bem que não sei quem és; que às vezes me pareces
O anjo doce do amor, o casto anjo das preces;
Que outras vezes erguendo a cabeça imponente,
O olhar fulvo brandindo, e a voz austera e rouca,
Do arcanjo que caiu tens o orgulho insensato;
Que me pareces boa e me pareces louca;
Estrela, que se mira em límpido regato;
Vulcão, que tem rugido e chamas de cratera;
Céu, onde habita o raio e o sol da primavera;
Abismo, onde a alma cai em sombra, que a devora;
Que tens luz, que eu não sei se é do inferno, ou da aurora,
Se vem dos anjos bons ou dos anjos danados;
Ser superior, que esmaga Anteus desesperados,
Monstro, esfinge, colosso informe enfim que odeio
E que amo, e cujo casto e monstruoso seio
Tanto me faz querer, como fugir, e cujo
Atrativo é maior, quanto mais dele fujo;
Clarão, do qual em torno ando queimando as asas,
Sentindo bem que morro à luz com que me abrasas:
Foi por ti que escrevi este livro, indeciso,
Um pé fora e outro pé dentro do paraíso.
 



FACHADA

Obra imortal em bolhas esculpida,
Todo o passado meu, todo o presente,
Num torvelinho, em rápida corrente,
Aí sonha e ri e chora e há de ser lida.

Tem horizonte em pérola polida,
Plumas de pomba, escamas de serpente,
O que eu mesmo senti e o que inda sente
Quem carrega este mundo estranho — a vida.

Ora a paixão e o ciúme, o amor e a calma,
Onde a brisa cantou, gemeu procelas,
Passa a folha, arfa a espátula da palma;

Tens tudo nestas pequeninas telas,
Helena, e as iluminas com tua alma:
Podes mirar-te bem, rever-te nelas...

 

A ETERNIDADE DO DESESPERO

Quando se enchem de globos luminosos,
Como um paço feérico e festivo,
Teus olhos transparentes e sedosos,
Todo em luz a banhar-te o porte altivo,

E me falas de céus, de eternos gozos,
De um Deus, de um ideal qualquer cativo,
Transporto-me a esses mundos gloriosos,
Longe do mundo em que sofrendo vivo;

Embala-me o teu sonho de criança
Em funda, em calma, em plácida esperança,
E, ao mesmo tempo, em desalento e dor;

Se a alma não morre e além tudo é verdade,
Que fora para mim a eternidade
Sem as doçuras do teu casto amor?...

 

NÚPCIAS

Antes cair no túmulo coberto
Do arvoredo dos mortos, o chorão,
E saber do lugar que, um dia, perto,
No mesmo sítio ali te levarão.

Tronco igual sobre o céspede decerto
Há de plantar uma piedosa mão:
Não hão de estar crescendo num deserto!
Que alegrias e paz lá dentro irão!

Dum e doutro casando-se as raízes,
Seremos nós os únicos felizes
A dar-lhes vida, e alento, força e ardor:

Esvaziaremos lentamente os seios,
Para que fiquem sempre os dois bem cheios
Da nossa carne e nosso eterno amor...

 

CRER NO CÉU COM ELA

Porém, se o sonho doce em que te embala
A tua rica e ondeante fantasia,
Que do teu seio, como um sol, exala
A luz perene dum sereno dia:

Se o Deus, que as grandes injustiças cria
Na terra, foi tão só para enganá-la;
Pois que em mundos de Além resgataria
O mal que fez, ou fazer deixa; — fala,

Diz a verdade, dá-me os teus conselhos:
Tina-me o ouro de tua voz, de joelhos
Ouça-a, como a de um Deus em nuvens, do ar...

Ouvi-te: creio no teu céu de flores;
Creio em tudo que crês, e onde tu fores,
E onde te possa eternamente amar...

 

PELO CÉU COM ELA

No céu de tuas grandes esperanças,
No teu grande ideal de recompensas,
Onde a alma lirial sedenta lanças,
Ali serás feliz, segundo pensas.

Duas asas de luz, largas, imensas,
Ligeiras como os sonhos das crianças,
Uma cheia de amor, outra de crenças,
Brancas, como um nevar de pombas mansas,

Nelas levam-te ao Éden prometido,
Deixa-me ir agarrado ao teu vestido,
Quando os muros de estrelas ideais,

Sobre quícios de sóis rolando à porta,
Derem-te entrada, ó bela virgem morta,
Onde ao menos não há nem dor, nem ais...

 


O BOM CÉU DELA

Oh! o teu céu é doce e bom: convenho:
Assim que fores eu irei também:
O casto amor puríssimo, que tenho
Por ti, não há de perturbar ninguém.

Vamos: eu quero amar-te, é meu empenho,
Nesses mundos, que sonhas por além:
Que meandros gentis por lá desenho:
Que vergéis e rosais cheirando bem!...

Nesse esplendor quietíssimo e celeste,
Todo o amor, que hauro em ti, que tu me deste,
Pode-se aí fruir... Depressa, pois;

Como com Deus não pode haver um crime,
Longa vida entre nós de amor sublime,
Vamos gozar nós dois... mas só nós dois...

 

RINDO NO CÉU COM ELA

Teu Deus terá no céu rosais floridos,
Leitos de ouro, de sândalo e marfim,
E ali num beijo eternamente unidos
Alegremente gritarei: Enfim!

Os anjos puros andarão despidos,
Movendo as brancas asas de cetim:
E os sóis, há pouco ainda ali nascidos,
A trança longa, as faces de carmim,

Hão de soltar risadas estridentes;
E quando Deus mostrar os alvos dentes,
Novos mundos de luz rolando irão:

Nós num canto do céu com ar tranquilo,
Hemos de ver, a rir também, aquilo,
Mas... sem nunca soltar a mão da mão...

 

UMA SESTA POR LÁ

Era um sonho talvez mas tão formoso!
Numa montanha de ouro, alcatifada
De luz, tecida em relva perfumada
Estava o céu, Deus e nós, tudo em repouso.

Aves de luz, em bando esplendoroso,
Nadando numa esfera incendiada,
Iam fazendo louca matinada,
E era o seu canto um jorro luminoso.

Um rio, como um astro liquefeito,
Era luz a correr em curvo leito,
Era luz a sorrir, luz a cantar...

Tu estavas nua, doce virgem minha,
E do teu corpo cor de lírios vinha
Leite e opala... o clarão de todo um luar.

 

O MEU CÉU É ELA

Mas... parece-me, Helena radiosa,
Que pende dos teus olhos qualquer coisa,
Como um orvalho em cálice de rosa,
Como uma abelha que num lírio pousa.

Choras? Perdão, ó Virgem melindrosa,
Brincar com Deus, como um irmão, quem ousa?...
Mas... sabes, filha, como ali se goza,
Sendo a porta do céu a fria lousa?...

Deixa-a abrir-se bem a dois batentes;
Serão teus braços nítidas correntes,
E dentro deles para o céu irei.

Olha, não sabes? o meu sonho amigo
É viver só, é só amar contigo...
E, como se ama lá no céu, não sei...

 

CÉUS IDEAIS

Por isso vou às vezes ideando
Alcova quente, e leito de frouxel,
Jarras com flores cheiros exalando,
Taças de ouro a beirar de leite e mel...

Uma casinha, como pomba, olhando
A luz do sol, num canto do vergel,
O teu sorriso tudo iluminando,
E à aba de um lago o lírio de um baixel.

A lua à noite docemente vindo
Beijar as luas do teu rosto lindo,
A brisa a arfar em morna placidez:

E tu deitada, e a rir, entre os meus braços,
Lendo nas letras de ouro dos espaços
As histórias de amor, que amor lá fez...

 


O CÉU DE HELENA

Mas o teu céu, Helena, peregrina,
Não sei o que em minha alma se afigura...
E a tua forma esplêndida e divina,
Ligeira, como o lírio na estrutura,

Dessa brancura igual, sedosa, e fina,
Que nos jônios mármores figura,
Cheia de luz suave e cristalina,
Que parece que o sol neles murmura,

O que será por fim depois da morte?
Terás o mesmo encanto, o mesmo porte,
A mesma etérea e doce palidez,

A mesma imagem lúcida e serena?
Serás, enfim, minha formosa Helena,
Quanto esperas de um Deus, e quanto crês?...

 

ONDE ESTÁ MEU CÉU

Sabes, Helena, o céu que amo e desejo,
Que é o meu sonho e a minha aspiração,
Que ante meus olhos cintilando vejo,
Que do teu céu jamais será irmão,

Que eu procuro nas asas de um lampejo,
Por onde as doidas esperanças vão,
Por onde adejo e corro, e corro e adejo?
Ai! Helena, talvez não saibas, não.

Olha, o meu deslumbrante paraíso
É onde ouvir chilrar teu doce riso,
E, como um astro, a tua voz cantar;

Onde eu vir do teu rosto o gesto terno,
E, se é possível, para ti, o inferno,
Não quero ter o céu noutro lugar...

 

DEUS É O AMOR

A vida se prolonga no infinito;
Há no universo o eterno criador,
E quando a cova geme e solta um grito,
Houve um espasmo lúbrico de amor.

Se nas estrelas luminosas fito,
De verde, branco ou rúbido esplendor,
Falam tão baixo, que um silêncio aflito
Ser parece o seu cântico de dor:

Sofrem, amam também: e o mar violento,
Inconsolavelmente, o sentimento
Do amor exprime, sem dormir jamais.

O amor é o Deus, a morte o seu profeta;
Um acaba somente o que outro enceta...
Sai da boca de um morto a alma em rosais...

 

FÉ POR FÉ

Teu rosto já de pálida açucena,
Fica ainda mais pálido — talvez,
Quando, minha gentil, formosa Helena,
Pensas que Deus abandonou-me e o crês.

De um compassivo teu olhar a pena
Se espalha em minha indômita altivez;
E contenta-te a lágrima pequena
Que, não sei como, tu chorar me vês.

Fala; eu quero prender-me à tua boca,
Como enredoiçam borboleta louca
Glaucas veigas com nódoas líricas:

Diz coisas do céu: — em tudo creio,
Eu, que amara dormir sobre o teu seio...
Eu, que não dormirei jamais... Jamais?...

 

O CÉU É UM CRIME

Quando me lembro, triste e descontente,
Que essas linhas de tua forma pura,
Que esses irradiamentos de brancura,
Que a tua carne cetinosa e quente,

Que isso morre, isso acaba, e tudo mente;
Que não serás um dia a formosura,
Que eu via com prazer e com ternura,
Como serpe a enrolar-me um fogo ardente,

Num frêmito de um gozo indefinido;
O coração em dois por ti partido,
Às carícias de tua voz sublime;

A mão, que toca, e como um lírio afaga...
E que isto tudo se esvaece e apaga...
O céu depois só me parece um crime...

 


EM FÉRIAS NO CÉU

Subi ao céu na hora em que subias,
Na espiral de berilo achada em frente;
Quis Deus, não sei por que, ver-me contente,
Disse-me: vem: eu fui; também tu ias.

Tecia o ar um fio de harmonia;
Vinha da luz um cheiro alegre e quente;
E era, como corola aberta, o ambiente;
Formosa, de que espanto o espanto enchias!

Do nume eterno o esplêndido veludo,
A grande sombra de ouro ornava tudo;
Rolavam sóis de cada olhar dos seus;

Amor, pôs-te ele, um dia, dali, fora:
E eu disse: — Isto não é mais céu agora:
E ando por ti, sem ti, sem céu, sem Deus...

 

FORA DO CÉU

Fora do céu sem ti — Fosse o que fosse,
Como sem ti viver? Eras o alento
De minha alma, eras meu contentamento,
Eras duma existência o idílio doce.

Quem o alarido das estrelas trouxe,
Como um bálsamo augusto, um elemento
Novo em meu sangue? —Tu, num só momento.
Vi-te: e o céu para mim... o céu mudou-se.

Em vão, teus olhos ao meu ódio, amarro-os!
Como essedários gladiando em carros,
Tauxiados de estrelarias de ouro,

Vencem-me, um dardo só vibrado em chama;
E era demais; para enlear quem ama
Bastava um fio do teu casco louro...

 

A RAÇA DE ADÃO

O céu, ó minha doce virgem pura,
Minha Helena gentil, és tu somente:
Ver o céu através da sepultura,
Quer minha alma, a razão só não consente.

A morte há tantos séculos que dura;
A morte durará eternamente:
E eu, que te amo, esplêndida criatura,
Hei de esperar a morte, e um céu que mente,

Para que Deus nos una então, Helena?
Quem abandona em vida, há de ter pena
De dois mortos perdidos na amplidão?

O céu é cá na terra, Helena amada,
Porque a raça de Adão foi condenada
À dor eterna, à eterna maldição...

 

O COLIBRI

Tu viste como aquela flor adeja,
Que tu chamaste, um dia, colibri,
Que, como boca que outra boca beija,
Nas asas do teu canto arfando ouvi...

Pois seja colibri e flor não seja,
Seja esmeralda, ou pérola, ou rubi,
Fora em teu lábio rubro de cereja
Que eu fizera, o que fez a flor, e em ti,

A tremer de volúpia e de doidice,
Enquanto o céu como uma tenda abrisse,
Tenda azul, sobre nós, suspensa ao ar,

Viesse a noite, enfim tornasse o dia,
Eu todo o teu aroma beberia
Sem nunca a sede minha saciar.

 

O DEUS

Como inventou-se um ser banal e insano,
Que ao homem dando um vasto paraíso,
Deixou-o, em tanto fausto, ermo e indeciso?
Foi insídia? Erro foi? Ou foi engano?

Para criar a vida, era preciso
Sacrificá-la a tão estreito plano,
Que ora a lágrima a enchesse, ora o sorriso
Ameaçando-a de um eterno dano?

Fez um Deus grande esta obra assim pequena?
Há por aí quem num tal crime creia?
Ele a fez, ele a esmaga, ele a condena?

Funda a existência uma mais alta ideia:
Amemos, pois, sem medo algum, Helena,
Que o próprio amor é o Deus que os sóis procreia.

 


O GOZO

Levava a mão à minha frente, e dela
Eu queria arrancar a sombra densa,
Que se alongava mais e mais, propensa,
Como um cíngulo, toda a enlear-me nela.

Mas donde vinha a lúgubre procela?
Queres saber donde ela vinha? — Pensa:
Era um musgo agarrado ao amor e à crença,
Que jamais foras minha, Helena bela.

Tinhas no riso embora um doce apelo,
No olhar um gesto meigo e luminoso:
Era-me um nicho de ouro o teu cabelo;

Desceste dele a mim num rapto ebrioso:
O que houve na alma eu guardarei com zelo...
Oh! noite! Oh! céu! oh! vale! oh! relva! oh! gozo!...

 

HÉRCULES VENCIDO

Neste aposento o luxo almiscarado
Envenenara um deus, se um deus dormira
No véu do teu cabelo desatado,
E dele a fronte em resplendor cingira.

Aos teus pés, como um Hércules domado,
Esquecido de tudo eu preferira
Tocar eternamente a eterna lira
Em mole curva, langue e reclinado.

Não me inebria o campo de batalha,
A luta, o sangue, a morte que trabalha
Para tudo esconder em seus lençóis...

Antes viver suspenso aos teus vestidos,
Do que sair do grito dos vencidos
Para o rumor triunfal feito aos heróis.

 

O AMOR

O amor!... Um sonho, um nome, uma quimera,
Uma sombra, um perfume, uma cintila,
Que pendura universos na pupila,
E eterniza numa alma a primavera;

Que faz o ninho, e dá meiguice à fera,
E humaniza o rochedo, e o bronze, e a argila,
Sem o afago do qual Deus se aniquila
Dentro da própria luminosa esfera.

A música dos sóis, o ardor do verme,
O beijo louco da semente inerme,
Vulcão, que o vento arrasta em tênues pós:

Curvas suaves, deslumbrantes seios
De vida e formas variegadas cheios,
É o amor em nós, e o amor fora de nós.

 

NEGAR

Não, não é o ranger do nosso leito;
Ouve: é o vento, que canta ou que murmura,
Que atravessou algum olhal estreito,
E urra, esmagado, entrando a fechadura.

Vê bem: tufões mais rijos com efeito...
Estás a tremer de medo, ou de ventura?
Pula-te tanto o coração no peito!
Mas terror, sem razão de ser, não dura.

Deita-te, escuta: deita-te, e sossega.
Há o barulho e a música da dança
Em que lá fora estorce-se a refrega.

Todo o teu corpo ao corpo meu entrega;
Chega-te a mim, aquece-te, criança:
Anda... E a luz se inquirir, o que houve... nega...

 

O MONSTRO

O rosicler de aurora peregrina,
Manhã sem nuvens, pálida e serena,
Ar puro, veiga de boninas plena,
E entre elas tu, a mais gentil bonina;

Tu, que és a branca aparição divina,
E essas iguais a ti, querida Helena,
São as que põem um monstro estranho em cena,
Que começa em prazer e em dor termina.

E este é leve, é sutil, é transparente,
Vem, arrasta-se, sobe, e de repente
Entrou em nós, com ele entrando o horror;

E em nós vive, e se nutre dia e dia
Com pedaços de carne e de alegria...
Não conheces o monstro? O monstro é o amor...

 


ENTRE PARÊNTESES

Passam lêmures desse mundo oculto,
Que anda em torno de nós, que nós não vemos;
Grandes deuses, espíritos supremos,
Vinde mostrar-nos o formoso vulto.

Ai! ao incrédulo duro, ao pobre estulto,
Que quer por vós morrer fazendo extremos,
Desvendai-vos, enfim, que nós vivemos
Na dúvida e um terror, que exige indulto.

Aclarai-vos, mistérios superiores:
Tendes a lança contra nós em riste,
Há dor demais, poupai-nos a mais dores;

Dizei-nos, pois, se aí há, se acaso existe
Um céu, de que não somos sabedores,
Que a triste vida torna inda mais triste...

 

OS FALSIFICADORES

Os grandes gênios falsificadores
Da verdade, e afinal da natureza,
Pensam que a humanidade há de ser presa
Dos seus ensinos doces e traidores.

Fazem disso o colmar dos seus louvores;
Loucos duma loucura sem grandeza,
Tomam de um Deus ideal, ideal defesa,
Prometem céus a arder de rubras cores...

E é a virtude um nome e a glória um sonho;
E o amor — egoísmo estúpido e medonho:
Olha: — o que faz a vida eterna é o cio;

Por isso andam cantando as próprias dores,
É por isso que os túmulos têm flores
E que através das lágrimas sorrio.

 

ESPECTRO

Quando a todos se ilude, ó minha Helena,
Não é? por todos finda-se enganado.
É do que mente a aterradora pena;
Todos têm de a sofrer, bom ou mau grado.

Brilha impoluto o azul do céu lavado,
Canta-lhe a brisa da manhã serena,
E o glauco mar se estende enamorado
Do beijo bom da luz na face plena;

E os ventos chegam, como as mariposas,
À tarde, em bando, e a treva e o raio e o estrondo
Vão enrolar-se ao leito, em que repousas...

Ai! quando eu me examino e a ti eu sondo,
Eu nunca minto, tu mentir não ousas...
Por que o espectro vi rir do crime hediondo?...

 

ALEGRIA E TRISTEZA

Sabes, Helena, como a noite chega,
Lentamente invadiu-me uma tristeza:
Nós somos todos, como a natureza,
Agora o vale escuro, agora a veiga.

Não tem a placidez da estátua grega
A vida humana, na ampla correnteza
Das vagas das paixões ardentes presa,
Que um vento irrita, que uma brisa ameiga.

Dormir, depois de interrogar as lousas;
Acordar a pensar nas mesmas coisas,
Eis o terror que nos perturba o dia.

Por que não basta o que há de bom na terra?
Que mundos de prazer Helena encerra!
Por que ir mais longe atrás doutra alegria?...

 

A FOLHA SECA

Como se engana a gente, Helena amada:
Há quem pense que tudo é canto e loa,
E, quanta grande música se entoa,
Se não é para si, já não lhe agrada.

Como folha, que cai da árvore, e voa,
E anda daqui p’ra ali em dança ebriada,
E em voltas doidas julga-se tão boa,
Como formosa, e como desejada,

Em torvelinho atira-se a galope,
Na asa do vento estrídula e sonora
Passa, crendo esmagar algum ciclope;

Secou: despreza-a o espaço, em que anda a aurora!
Para cair no chão basta que a ensope
Chuva, que a põe lá do céu p’ra fora...

 


O INDIZÍVEL

Quando o teu corpo nos meus versos meto,
Eu me ajoelho estático e tranquilo,
Busco as virgens gentis do Tintoreto,
E, nas augustas virgens de Murilo,

A cor, o gesto, a gravidade, aquilo
Que elas têm e tu tens, e o tens perfeito;
Que eu, se as copio, a tua voz burilo,
E o olhar delas de aurora e estrela aceito;

E pinto em torno deste quadro austero,
Ou anjos rindo, como os da escritura,
Ou cupidos de Hesíodo e de Homero;

Esta auréola de ouro, que mistura
Terra, céu, luz e sombra, — o reverbero
Do indizível, que enquadra a formosura...

 

LAURA E COLONA

É teu este meu rútilo instrumento
Igual ao que na Trácia Orfeu tocara,
Que diz teu nome, quando passa o vento,
Que vibra hinos de aurora ao ver-te, e para,

E trina logo outra canção mais rara,
Nova, digna de ti nesse momento,
Tanto sabe de cor meu pensamento,
Tanto me ouvira, tanto lho ensinara.

Enquanto Vênus o compasso marca,
A música divina em mim ressona,
Como o canto da vaga em torno à barca.

Eu tenho em ti a Laura, a exímia dona,
E se em mim não tiveste o teu Petrarca,
Tens muito, — o amor de um Ângelo à Colona...

 

ARIANA

Teu gesto augusto afeta ar de cansaço,
E tem tal força e veste uma tal graça,
Que toda ave do céu, que nele esvoaça,
Vem pousar-te à cabeça, à mão, ao braço,

Vulgo banal, sem mínimo embaraço,
Julga-te a estátua inerme em larga praça;
Lago em que pode encher-se qualquer taça;
E vem e chega e abaixa a fronte e passa.

Tens não sei que grandeza sobre-humana,
Que um ser te faz de altíssimos destinos;
O que não sabe ver-te é que se engana.

Eu... poder que eu pudesse, entre os meus hinos,
Fizera-te imortal, como Ariana,
A loura filha do terrível Minos.

 

OS DEUSES

Aos grandes reis da lira a Orfeu herdada
Debalde, a furto, os passos teus conduzes.
Trai-te, e lhes abre a esplêndida morada
Vasto clarão de aromas e de luzes.

É tua amiga cada flor, e cada
Estrela busca em tudo que tu uses
Fazer o meigo olhar, com que é notada:
Mesmo o céu a beijar teus pés induzes.

Vêm do fundo das velhas teogonias
Deuses nus, como em seus primeiros dias,
Por mãos de rosas de manhã serena;

Vêm num vermelho furacão de vozes,
No rumor largo das apoteoses,
Só para te sagrarem deusa, Helena...

 

RAINHA DE SABÁ

Tu és o sol em cima do horizonte;
É tua roupa a branca luz do dia;
Vestes brocado de ouro e pedraria,
Rodeia-te o brilhante em monte e monte:

Fulge a esmeralda e a pérola de fronte,
No centro de uma esfera, que radia;
Quem dar nome às estrelas poderia,
Que andam nos olhos teus? Quem há que as conte?

De tantas penas não precisa um ninho,
Nem tu de tantas joias, que adivinho.
Nunca as teve a rainha de Sabá...

Que mais bela princesa existe agora?
Onde a ilha recôndita em que mora?
Quem teu diadema, Helena, roubará?

 


ZELOS

Eu te quisera dentro de um castelo,
No torreão mais alto prisioneira,
Onde canção estranha e lisonjeira
Não ouvisses de culto augusto ao belo.

Teu corpo branco e tua vida em zelo
Com tão grande cuidado, de maneira
Que me amedronto de uma flor que cheira,
E à luz, que anda a envolver-te e a rir, querelo.

Uma dor funda mescla-se à ventura,
Como se a tua mesma formosura
Causasse o meu prazer, e a minha pena.

Devendo ter um riso aceso à boca,
Ando dentro da lágrima mais louca
Por isso tudo que amo em ti, Helena...

 

O NOVO MOLDE

Hemos perder-nos nesta natureza,
Como a folha que cai e segue o vento;
A forma, a cor, a voz, o pensamento
São borboletas indo à chama acesa;

Pois tua eterna e esplêndida beleza
Não é eterna, é só por um momento?
Entrarás noutro molde com certeza;
E um novo molde é sempre uma surpresa.

E assim perenemente irrompe a vida,
Como flor numa lágrima envolvida:
E foi assim que a fez quem foi mais forte.

Ai! minha Helena, tudo se renova:
Nada nos resta: é uma larva a cova;
E é crisálida ainda a própria morte...

 

SERPENTE MUTILADA

Quando em delíquio, a que ninguém se exime,
Tentações, que almas fortes mesmo coagem,
Te quiserem perder, pede coragem,
Helena minha, ao teu amor sublime.

É veneno a traição: não mata? — imprime,
Assinalando a rápida passagem,
Um eterno aleijão, eterna imagem,
Que nele toma para sempre o crime.

És como os torsos vivos de escultura,
Que em si guardam a graça e a formosura:
Toda em minha alma, Helena, estás metida...

Se, como serpe, foras mutilada
Em pedaços, por mim inda enrolada,
Tinhas um tronco em flor, sorrindo à vida.

 

OCASO

Vamos ao monte ver o fim do dia:
Que gozo há nisso, amada Helena, e devo
Aos teus carinhos o maior enlevo,
Que a minha alma arrebata, alteia, ébria.

Todo horizonte ao longe em fogo ardia,
Cheirava aos nossos pés pisado o trevo,
Cantos que redizer eu não me atrevo,
Vinham do ocaso em curvas de arcaria.

Embaixo o oceano, a rir, num riso enorme,
Erguia o dorso, e leão que nunca dorme,
Punha as unhas azuis pelo céu fora,

E uivando e abrindo as lôbregas maxilas,
Cheias de flavo estrépito as pupilas,
— Águia de ouro cansada — o sol devora...

 

A FERIDA

Dormindo ainda, súbito estremunho,
No coração por ti ferido, e dessa
Febre de te fugir, que em mim não cessa,
Dá meu rosto abatido um testemunho.

Fez-se-me a vida a obra do teu punho,
Tendo em si os sinais da garra impressa;
Foste mais hábil do que eu fui, confessa:
O ouro todo, que sou, tem o teu cunho.

É um arcanjo a lágrima pequena,
Que dos teus olhos cai, querida Helena;
Combato-a, sem jamais poder vencê-la.

Sou do teu fogo um mutilado; escuta,
Não posso entrar contigo em qualquer luta,
Chegasse embora o grão de areia à estrela...

 


DA VARANDA

Quente o dia ao acordar, nos prende à casa,
Numa indolência mórbida e opressora;
Ela, à sombra, a entrever do sol a brasa,
Que a água ensanguenta e o bosque em flor redoura;

Eu olhando a campina longa e rasa,
Onde falando ao lago, a erva já loura
Treme, e inclina-se ao ouvi-lo, enquanto da asa,
Nele, a ponta mal toca ave viajora.

A tarde chega. — O rio em curvas rola
Com nitidez de ônix de banda a banda:
Dançam canções no ambiente aos sons da viola...

E a noite vem: — de pé, sobre a varanda
Ela abre sobre nós toda a corola,
Como a tulipa negra, a flor da Holanda...

 

EM OUTRO OCASO

Vai acabando o dia: é triste o ambiente:
Pedra, rio, erva, bosque, arfa e suspira
Como a última nota de uma lira
Em que gemeu um cântico plangente.

Um vento frio e calmo vem do oriente;
Toda afogada em sangue a tarde expira;
Olha do lado oposto, Helena: em frente,
A lua é fogo; o mar em chamas gira.

Cavam-se os vales mais e mais escuros,
Entre as montanhas: um farrapo extenso
De luz se esgarça aos dentes dos seus muros.

Empoeira o céu raro vapor suspenso,
Como o que em lentos rolos sai dos furos
Da tampa de um crisol onde arde o incenso...

 

VOLO

Quisera ter um gênio às ordens minhas:
Rei, eu beijara as tuas tranças feitas
De ouro tecido para as bandeletas
Do estema da rainha das rainhas:

Ar, eu dera-te luz, e força, e alento,
Como o que enche o teu seio, e o eleva, e abaixa,
Que entra em teu sangue, e é já teu sangue, e acha
Que é tu mesma, ou de ti ideal fragmento.

Perfumes, ser perfumes não soubestes
Como esse aroma bom, de amor composto
Que tem os seus dois cíatos celestes:

Boca, eu fora o teu riso, a cor, o gosto:
Helena, eu fora a túnica, que vestes,
A água, em que lavas teu divino rosto...

 

DA PRAIA

Fomos da praia ver o oceano em fora.
(Como o amor que é feliz tudo engrandece:
Um grão de areia luz, um sol parece...)
Calçava inda uma vaga um pé de aurora.

Longo um ponto branqueia, e sobe, e cresce:
É um navio, que no porto ancora:
Cai de um lado, e outro lado; arfa, estremece;
Quer fugir aos grilhões; não foge embora;

Como o albatroz que voa e rui vencido,
Não volta, inda que as asas mexa e ondule...
Helena, sobre o mar do sol brunido,

Olha, por mais que o céu se afunde e azule,
Sempre um véu raro vê-se, um ar tecido,
Como o bisso no Egito, e a seda em Tule...

 

ÍSIS

Da existência és meu único alimento;
Eu ardo, como um círio, que cintila,
Que ao teu hálito só, Helena, oscila,
Que em teu hálito só encontra alento.

Tua alma é luz de límpida favila;
Em torno dela está meu pensamento,
E, como um vaso de ouro, o que distila
Guarda, como o céu guarda o firmamento.

Que nem manche o teu corpo a luz do dia:
Sê, minha Helena, a estátua de granito,
Que só vira ao meu fogo, ou chore, ou ria;

Quero em tudo seguir um velho rito,
Pois, sem morrer, ninguém descobriria
Ísis, a deusa esplêndida do Egito...

 


ORGULHO

Hebe, a deusa dos braços cor de neve,
Leda, que o cisne, por tão branco, engana,
Tétis, que tem um pé pequeno e leve,

Como um raio de luz, enfim Diana,
Rival de Vênus, que somente deve,
De um Deus, que a trai, a ver-lhe a soberana

Forma, à noite, no lago ao banho, e a custo;
A Afrodite na vaga, que murmura
De pé na concha, o flanco amplo e robusto,
Delas nenhuma, amor, mais graça apura,

Não! nenhuma te ganha em formosura:
Fez-te de um cipo de granito augusto
Um artista divino por ventura:
Tu te orgulhas de ti, Helena: — é justo.

 

NA PAZ

Quando, depois da luta, a paz dourada
Flore no campo, e esplende na cidade,
Há como nova Ilíada arrojada,
Que nas asas da estrofe o céu invade.

Orquestriza a ruidosa passarada,
Que traz consigo a aurora e a claridade,
Gorjeia o sol, talvez a eternidade
Pelos azuis da cristalina estrada.

Helena, o povo em grupos singulares,
Sua alegria em cânticos desfolha,
E ébrio de vida, espalha-a pelos ares.

Como ele agora nestes sítios, olha...
Faremos, se eu cantar, e tu cantares,
Como em curvas um rio arfa e gorgolha.

 

APARIÇÃO

Tu apareces, tudo docilizas;
Tu és como na Trácia Orfeu cantando,
O vento brando fica ainda mais brando,
Tem mais perfume as perfumosas brisas.

Vem das florestas ver-te o leão, jogando
Ao ar as clinas de ouro, e já precisas,
Dar o teu colo ao tigre miserando,
Que gemendo a lamber teus pés divisas.

Oh! que tens tu de misterioso encanto,
Que para haurir de ti qualquer afago
Ouvir-se-ia o universo andar em pranto?

E, como flora o nenúfar no lago,
Duma lágrima dentro eu vivo, enquanto
Por ti um dardo ao flanco esquerdo trago...

 

PRESSENTIMENTO

A vida cai em nós qual pedra bruta:
A alma tem mais abismos que o oceano:
Há tanto riso vesgo, há tanto engano,
Que a voz da serpe um dia a gente escuta.

Como há corais e pérolas na gruta,
Há também o réptil, a insídia, o dano;
E do destino superior o plano
Contra o nosso destino às vezes luta.

Quando em mim mesmo um pensamento insiste,
Que o fio, que nos liga, há Deus que o corte...
Oh! como o mundo, Helena, então é triste!...

És boa, sei, mas é mister ser forte:
Pois há separação pior que a morte,
Vinda de dor a que ninguém resiste.

 

UM SÓ DEUS VERDADEIRO

Eu te fui conquistando palmo e palmo,
Como quem as Américas conquista:
És tão grande que o olhar de ti já dista,
E como dantes eu não estou tão calmo.

Mas... posso acaso te perder de vista?
Entra em mim toda, estrela fugidia;
Pensas que ter-te dentro em mim desista,
Mesmo sendo com o sol que te alumia?

Há quem troque minha alma por estranho
País num mar sem nome inda mal visto?
Olha que eu te ganhei, que tu me hás ganho.

Helena minha, o nosso amor está nisto:
Sermos nós dois um só de igual tamanho:
Ser, como Deus, que é Deus inda num Cristo...

 


O MEU DESEJO

Para pores à fronte, eu desdobrara
O azul do céu mais puro e luminoso;
E para estar velando o teu repouso,
Pedira um anjo aos cipos de Carrara.

Ver-te de longe, assim, era o meu gozo,
Como se vê alguma estrela rara;
Até que uma hora branca em mim ecoara,
Que quero ouvir, e que esperar não ouso.

Depois de ter com o ouro do Pactolo
Calçado o teu caminho, cobriria
De beijos todo o luxuriante solo;

Fora teu pajem louro à luz do dia:
E à sombra quente e branca do teu colo
O meu desejo, arfando, esconderia...

 

LOUCURA

Tinha garras a voz: eu te feria,
Te espostejava num ferrenho enlace;
Apunhalara a mesma luz do dia,
Que entre nós dois naquele instante entrasse.

O rubor só falava em tua face,
Era o teu calmo olhar quem só me ouvia;
Eu era o oceano que aos teus pés bramia;
Tu o sol que o embrandece assim que nasce.

Que culpa tem o mar, se o irrita o vento?
Quem o vento do mar pôs em presença?
Não tira a uma alma a paz o amor violento?

E há dentro em ti essa amplidão imensa,
Em que Deus cabe, e cabe o firmamento...
Delira um doido, Helena: é crime? — Pensa.

 

MÚSICA ETÉREA

Não cansei inda de tamanha empresa,
Das deusas todas desprezar, somente
Por amar esta lânguida princesa.

Cega-me, Helena, o meu amor ardente:
A luz demais nos cega com certeza;
E ata-me a ti indômita corrente;

Entre nós interponha-se o oceano,
E o céu mesmo entre ti e o meu desejo:
O meu caminho a insídia, o crime, o dano
Erice-o; no fim dele erguer-te vejo.

É por ele que vou; tracei meu plano:
Rapidamente, eis surge abrupto o ensejo;
E ouço cantar-me a música de um beijo
Nesse teu lindo rosto soberano...

 

A VIDA

Quando às vezes me levas de vencida,
E é teu desejo o abismo entrar comigo,
Dizes, Helena, e é teu primeiro artigo,
Que o mesmo sol parece uma ferida,

E não é sangue, é luz que sai... — Querida,
Seja o que for, que tem? Nada maldigo:
A vida não é prêmio, nem castigo,
A vida é pura e simplesmente a vida.

Quem quiser pode achar esta obra santa:
Não é amor só o leão para a leoa?
Do veneno que dá chorando a planta,

Nasce um bálsamo bom, que o mal perdoa;
O orgulho é mau, porém Titãs levanta;
E abre e azula o céu todo uma ação boa...

 

NO OLIMPO

Sonhei. — No Olimpo imenso e resplendente,
Do turbilhão dos deuses o ruído
Era enorme: era o nu belo e atrevido,
Que ali anda num bródio permanente...

Lisonjeado Jove onipotente,
Falaz sempre, porém jamais vencido,
Cada um dos imortais farto e bebido
Vai deixando o triclínio de repente.

Todos, dançando em derredor da mesa,
Gritam: — Viva o amor! Viva a Beleza! —
Está toda a companhia ou ébria, ou louca.

E eu: — Ganimedes, mais... mais ambrosia —
Mas a cratera, pela qual bebia,
Era tua boca, Helena, em minha boca.

 


O POETA A HELENA

Meu coração gemia e soluçava,
Ou cantava cá dentro do meu peito?
Diz, Helena, que sabes a respeito?
Que foi que em riso ou lágrima cantava?

Ou é de pedra, de esfriada lava,
Ou só de pobre argila humana feito?...
Ponteiro fiel da vida está sujeito
Do sangue ao impulso: a vida é dele escrava.

E este grande rumor de alma convulsa,
É tua alma, que aí vibra, e bate, e pulsa:
Se não vem de tua alma, de quem veio?

Tu és cruel: sou para ti o vaso
Escorificatório ao fogo! acaso
És esse ouro, que salta e arde em meu seio?...

 

PASSANDO

Convenho, Helena, é de ouro este momento:
És bela, e tens ainda a juventude,
Outra beleza, enfim outra virtude,
O som da voz unido a do instrumento:

Nem redizer-tos, olha, é meu intento:
A formosura é como tudo, ilude:
Quem canta agora? Quem passou? O vento...
No universo jamais o bem ver pude...

Acaba a vida em tórpida indiferença,
Vai como a folha ao fio da torrente,
Como atrás dela o tempo de quem pensa;

Bom, se o amor não mentiu, e inda, e somente
Deixa a sombra de um cheiro em nós suspensa,
Como, num templo, alâmpada à corrente...

 

COISAS AO LUAR

Vias o rio, sim! com certo espanto:
Ninfeáceas largas já em flor olhando,
Como se fossem náiades em bando
Ao luar, num surdo riso ou surdo pranto:

Nenúfares: esparsos grupos; brando
Mover dos braços, sacudir de manto,
Quando a corrente rola, e vai dançando
Ao som da voz, à voz do próprio canto:

Pó de pérola azul ao longe, e em torno;
Amor à sombra, beijos em segredo
Da noite ao vesgo olhar, sabido e morno;

E à luz azul, que flui pelo arvoredo,
Pã, que anda em tudo, põe tudo em suborno...
E é tudo ais de surpresa... e um susto!... e, um medo!...

 

O RITMO

Não sentes destes versos sonorosos
O suave perfume ebriar-te, Helena?
Por uma taça de cristal pequena
Bebem-se os vinhos finos e cheirosos;

A ser presa nuns vidros caprichosos
A essência pura e olente se condena,
Ela, que é filha da manhã serena
E em si tem fogo e filtros luminosos.

Com um rumor de tarantela ondeante
Hás de ouvir a cantar no céu a estrofe,
Hás de ouvir a dançar a irmã adiante...

Quando minha alma ri, ou chora e sofre,
Meto isso tudo em ritmo cintilante,
Ouro, que bato, e que burilo em cofre...

 

O AMOR E A ETERNIDADE

Helena, o amor não é um sol bendito,
Não é o idílio dentro de uma gruta;
É o abismo sem fundo, é a treva abrupta,
Que se abre em longo e doloroso grito;

É andar neste exício em que me agito;
É conhecer a dúvida na luta;
Fala o universo, e temeroso o escuta
O amor, o pobre escravo do infinito.

Não ela dor, a dor de idade em idade;
Quem não ama, e interrompe o pensamento
De um Deus, emenda-o, e nele enfim se evade.

Não é mais folha solta entregue ao vento:
é com amor a vida a eternidade,
É sem amor a vida um só momento...

 


PELO INFINITO A DENTRO

Meto-te às vezes, minha grande Helena,
Dentro dos sons duma harpa vigorosa,
Em cujo acorde não se acende a rosa,
Nem há brando rumor de água serena.

Minha alma fundamente religiosa
Ama os idílios de sonora avena:
Mas gosta de cismar contigo; e goza
Quando o infinito, e o que há por lá, lhe acena.

Que vai fazer por aí tão longe? — Observa,
Acha que a estrela é menos do que a erva,
Que vale o sol o lago, que abrilhanta.

Os perfumes que o vento lança, aspira:
E ouve vibrar no seio a interna lira,
E, sem saber, ao deus que passa, canta...

 

EMIGRANDO

Tendo partido, Helena, o que dirias?...
Nuvem, por que será que tu caminhas?
Onde ides vós, ó bandos de andorinhas?
Quereis mais luz? buscais mais largos dias?

Estes céus, estas serras estão já frias;
Mancham o ar azul névoas marinhas;
Sol, não tens o calor que inda ontem tinhas:

No Brasil, nesta América odorosa,
Raras folhas das matas vão caindo;
Há sempre lírio em flor, há sempre rosa.

Há por aí país qualquer mais lindo?
Embora! por estrada luminosa
Para fugir-te, amor, irei fugindo...

 

FUGA EM SONHO

Fugia, sim!... (Mas era um pesadelo,
Era um sonho, que em mim já crime acusa.)
Tu me prendeste a um fio de cabelo,
Leão ou tigre preso os ferros usa;

Eu mais seguro estava: é bom sabê-lo.
(A minha mente agita-se confusa...)
Ergo-me, a força emprego, rompo-o, e pelo
Espaço vou: fugi de uma Medusa.

E era uma pedra que rolava; a estrela
Que Encélado agarrava às mãos, caindo,
Esta minha alma, sem poder contê-la.

Fugi de ti, Helena, ia fugindo...
Mas tua face estava eu sempre a vê-la;
E era um mar em soluço o olhar teu lindo...

 

O SILÊNCIO

Estás triste? — um pouco: senta-te ao meu lado;
Abre a voz de ouro, é músico instrumento;
Vá: qualquer coisa; lendas do passado;
Que soprou rijo esta manhã o vento;

Que arde em flor, é novembro, a veiga, e o prado:
Que ontem houve por perto um passamento,
Em lágrimas narrando-o: toma alento;
Canta, pássaro azul no céu parado.

Alma, esvoaça, e vai o espaço em fora,
Metendo o glauco olhar alegre em tudo:
Quando tudo anda a rir, que bom! quem chora?

Pode alguém ante o sol e a luz ser mudo?
Vozes das coisas, vós falais agora:
Só teu silêncio, Helena, eu ouço e o estudo!

 

AMOR EXTINTO

É preciso tratar bem a ventura:
Se eu te arrancasse o meu amor, querida,
Deixaria em teu flanco uma ferida,
Por onde, com teu sangue de mistura,

Saíra morta a tua formosura,
E entrara a dor, verme agarrado à vida:
A chaga cerra; a cicatriz perdura:
Nem tu, nem mais ninguém o caso olvida.

Está sempre o estigma ali, sempre ali fala,
Cipo de um templo em pé, de heras coberto,
Junto à tristeza insólita, que exala

Outra maior talvez, de haver por perto
Um esqueleto grande em larga vala,
Um império enterrado num deserto!...

 



UMA VERDADE

Não há mulher que ideia clara faça
De sua formosura. — Ó minha Helena,
Em ti a força doma, impõe a graça;
Tens a harmonia duma cantilena,

Que deixa em céu, que pisa, e onde ela passa,
Som e som, como uma ave pena e pena,
Que ébria, como o vinho em branca taça,
E enturva, como névoa a luz serena:

És a rainha Onfale em todo o brilho
Que dá a um corpo augusto a mocidade,
Pondo em tudo odor bom como um rastilho...

Mas nosso o amor faz vossa divindade,
Deuses, que o amor criou: não vos humilho:
Do orco só com Orfeu veio a verdade!...

 

A FONTE DA FURNA

Olha, Helena, este sulco ali no mato:
É um carreiro que vai dar na furna;
Uma abóbada verde, eril, soturna
Cobre-a, ao pé de um penhasco esconso e chato.

Lívida boca de visão noturna,
Gorgolha dele um límpido regato,
Como o que sai a clocolar por urna
Que guarda às mãos um mármore insensato.

Para chegar ao peregrino veio,
Subiremos a passo estas encostas,
Galhos, folhas, que caem; não há receio...

Trepa bem quem não leva um céu às costas;
Terás num mundo novo um novo enleio:
Flores da água e da sombra... E eu sei que gostas...

 

CRER E NÃO CRER

Contradizer-nos sempre dia a dia,
Hora e hora, talvez instante a instante!
Tem tantas faces o cristal iriante,
Que em cada volta a cor da luz varia.

O universo visões estranhas cria:
É, não é; minha Helena, é ir adiante:
São os séculos degraus da escadaria,
Que vai calcando espírito gigante:

E ele aí fica em dúvida perene!
E nos vaivéns terríveis, que o consomem,
Só tem decerto a dor... a dor infrene.

Somem-se os céus com os deuses que se somem:
Nenhum ditame, que alma enfim serene:
Crer e não crer!... Que verme hediondo é o homem!...

 

OURO E ARGILA

Não há paz: a questão está decidida:
Banir de nosso amor, Helena, o ciúme,
É não saber o que se pede à vida,
É querer luz, mas sem querer o lume,

Pedir ao cris que seja cris sem gume,
E que não corte a lâmina buída:
Triste experiência, sempre aborrecida
Pôs em nosso caminho estranho nume.

Não ter medo? se cada hora tangida
É como a vaga errante, que vacila
Daqui, dali por ventos conduzida!

Guardar minha alma plácida e tranquila?
Se a estátua de ouro da mulher querida...
Se a estátua de ouro tem os pés de argila!...

 

BAIXO

Sinto que ela atravessa cintilando
Por cima dos meus versos, e que deixa
Esse ruído de frouxéis tão brando,
Como de asa, que a abrir, azuis remexa.

Há neles sempre um frêmito de queixa,
O som mais grave súplice quebrando,
Como um soluço dentro de uma endeixa,
Que amor de acordes vários vai bordando:

Não ais, que deusa em nimbo esplendoroso,
Quando do Limpo em luz rasga o caminho,
Ouve a seus pés de um deus, que a segue ebrioso;

Ou que solta a ferida em sangue ao espinho;
O ai, que se ouve, é o ai delicioso,
Que geme o leito agora, agora o ninho...

 


INSENSATEZ

Em toda parte em que meus olhos deito,
Helena, quero ver se há porventura,
Quem fascinado pela formosura,
Sonhe em êxtase azul frouxéis de leito,

Noite e dia, sem trégua, a amor sujeito:
E sem crer na mulher, que fé lhe jura,
Mescle ao ódio a paixão, cólera ao preito,
Montes de luz, tojais de noite escura...

Há?... O leão de Nemeia (imaginando)
E o tigre de Bengala, ver quisera
Ruindo sobre mim furiosos, quando

Minha alma nessa insensatez de fera,
Crendo e não crendo, amando e não amando,
Pedira a flor, negando a primavera...

 

A CICATRIZ

Fulminado do céu pela revolta
Não sei de que Titão, avô antigo,
Carrego em mim a sorte do inimigo,
Que do exílio, em que cai, ao lar não volta.

Sofrem todos, que eu vejo, igual castigo...
Helena minha, o teu sorriso solta,
Só assim ter na terra o Éden consigo,
Sem malta, a rir, que o condenado escolta.

Flore em mim um vergel, que aspiram todos...
Em mim... um doido em meio de outros doidos,
E com eles, misérrimo e infeliz.

Dilacera-me a fronte a coroa augusta
Da dor, da morte enfim, que sempre assusta,
Do velho raio odioso a cicatriz...

 

O RECEIO

Sei por que me posteja esta lembrança?
Eu, que ando a erguê-la numa eterna glória,
E obra ensaiando de imortal memória,
Movo o buril, que as mãos jamais me cansa?

Peço às vezes à estrela da esperança,
Que me não dê ventura transitória:
E cada erro de amor, que conta a história,
Como um espectro em minha mente dança.

Ah! se mentisse o seu divino riso,
Mentira a luz ao sol; o abutre e a hiena,
Abrigara em seu seio o paraíso.

O que haveria que valesse a pena,
Se para que eu vivesse, era preciso
O seu amor... o teu amor, Helena?!

 

FIAT, FACTA

Depois de tudo achamos, como dantes,
A cova aberta à sombra dos salgueiros,
Um pássaro que aí vem cantar instantes,
Lírios, que o fio bordam dos ribeiros.

Vamos queimar aos sóis dias inteiros,
Enlaçados os dois, e delirantes,
Contando histórias dos aventureiros,
Ávidos sempre de falar de amantes.

Este universo a um canto da alma arruma;
Enterremos no gozo a ânsia do estudo;
O teu amor as horas me perfuma:

Colha-se ao amor o riso, à vaga a espuma,
A flor ao vale, ao prado, a veiga, a tudo:
Para que desejar mais coisa alguma?...

 

QUIMERA MITOLÓGICA

E eu caio à ebriez de cálidos licores;
Caio, porque bem sei que é no seu colo,
Carro de um puro azul, que monta Apolo,
Às mãos rédeas de raios multicores;

Corcéis de fogo, o espaço em luz por solo,
As Virgens Horas, como batedores,
Deuses atrás de nós jogando flores,
Enquanto eu dentro do meu sonho rolo.

Muitos palácios de ouro esparsos, tendo
Almas de estrelas esperando às portas,
Ao acorde de harpas, que elas vão tangendo:

E as almas brancas de esperanças mortas
Sorrindo ao ver-nos pelos céus correndo...
Por que durma em teu beijo, amor, me exortas?

 


UMA FRASE

Bem como um dardo, que atravessa a corça,
Tenho o amor agarrado ao pensamento;
E por mais que forceje, e o abale, e o torça,
Lá está tremendo, como galho ao vento.

Não há poder em mim, não sinto força,
Para ao gozo fugir do meu tormento:
Não há quem caia a rir, e a rir se estorça,
E morra, crendo em Deus, a fogo lento?...

Então notaste em frase, que semelha
A uma abelha de ouro, e ao mel da abelha,
Que havia em meu descrer, crer inda. — Eu ri-me.

Crer? não: pesar, Helena, ou mesmo enleio:
Não tenho um éreo coração no seio,
E o cadáver de um Deus por chão me oprime!...

 

VELOCINO

Que silêncio dormia em toda sala!
(Cabe bem neste quadro a formosura)
Foi meu amigo, é meu amigo, e dura,
Para dar tempo; enfim quer me entregá-la.

Eu murmurava coisas que murmura
O amor numa hora, em que ele sonha, e fala
Rimas de fogo, e as asas com brandura
Abre, como quem canta, e abre uma vala.

Ria, chorava, convulsava um pouco:
Ela estava enleada: eu estava louco...
Ergo-a ao leito: este riu-se, ao recebê-la...

Das roupas brancas, que rasguei, despida,
Entre as coxas ao ver, que a vi ferida,
Era ela toda o estremecer da estrela...

 

DOR E PRAZER

Por ti a dor somente hoje conheço.
Como por ti me vem toda a alegria,
Quando canta por cima do teu beiço
Agora o riso, agora a luz do dia.

Dantes homem eu era; — sofreria:
Mas depois, que te vi, e amei, esqueço
Se há na terra soluços de agonia;
Para gozar-te, amor, aos teus pés desço.

Quando ao colo te aperto, o mais olvido:
E é tal a ebriez a ter-te encadeada,
Que a vir um culto dar-te, a Deus convido:

Porque é minha alma em ti a luz ideada,
Porque o mais tudo é fugitivo ruído:
Tudo, Helena, sem ti, que vale? — Nada...

 

ENCONTRO DE LÁGRIMAS

Que sofrimento!... E dizes não ser nada!...
Eu sei que me amas muito, Helena minha:
Mas tu, que és bela, e sentes-te rainha,
Queres por todos ser, sequer, olhada...

Quanto to digo, ficas espantada:
Mas a mulher mais simples adivinha
Que uma alma casta, amante e apaixonada
Não tem assim o amor, que lhe convinha...

Quero fugir de ti; fugir, deixar-te;
Choras só, como a pedra ao raio estala:
Morro e vingo-me... — És livre agora: parte —

Parece que tu dizes: — nisto exala
Um tal suspiro o peito teu, que a olhar-te,
Choro, e chora comigo em torno a sala...

 

LEMBRA E ESPERA

Sempre me vês profundamente triste,
Como a cova, que tem por cima a lousa:
Se eu, como Kant, não sei se Deus existe,
Nem sei mesmo se existe alguma coisa,

Tenho minha alma contra tudo em riste,
Porque a insídia ao redor contra nós ousa...
Helena, aos lábios meus teus lábios pousa...
Vi o sorriso, que em teus olhos riste.

Já estou alegre; alegro-me ao teu lado:
És todo meu porvir, e meu passado,
Viva imagem do amor, que o amor só paga.

Lembra e espera hora, e dia, e mês, e ano...
Não sou a vaga, renegando o oceano:
Não sou o oceano, renegando a vaga...

 


DUAS AURORAS

Sentamo-nos às vezes silenciosos,
Duas auroras, que dois sóis prometem,
Duas bocas, com os lábios tão sequiosos,
Querendo tudo, sem que nada encetem.

Digo-lhe então: — Que tens? — Não sei... — Inquietem
Horas, amargas tantos desditosos...
Mas nós... Há para nós tão perto os gozos:
Abraço-a; e os braços seus nos meus se metem.

Beijo o céu todo então no céu de um beijo,
E em delírio parece-me que vejo
Andar dum para outro a alma do amor...

Oscilo além das raias da loucura,
E rio, e choro, e canto de ventura,
Meu espanto igualando o seu terror...

 

O DESTINO

O rio vem do mar, para o mar corre:
Quem sabe por que nasce e por que morre?
Sabe o sol que ele faz a madrugada?

Quem fez de um grão de areia este universo?
Não podia fazê-lo outro e diverso?
Pode coisa qualquer sair do nada?

Por que nos fez assim com fome e sede,
Selvagem, como a fera da floresta,
E não pôs tudo numa eterna festa?
Quem deu a vida, não daria a rede

Em que se embala o índio do arvoredo,
Mas que ele arranca ao tronco com trabalho?
Ruge em torno de nós a dor e o medo.
Nada vales, Helena, e eu nada valho?!...

 

A ALMA DA BOCA

Vale mais nua a minha Helena bela,
Que vestida com púrpuras de Tiro,
O olhar molhado e fundo da gazela,
Trêmulo o corpo, ao pé do qual deliro.

Esta noite é assim como um suspiro
Que sai de tanto gozo haurido nela;
Estamos sob uma cetinosa umbela:
E se acaso de ti meus olhos tiro,

E pelo céu profundo e azul derramo,
Palpo esse azul, e nele sinto o arminho:
É cada estrela um pássaro no ramo,

Pássaro de ouro em cinzelado ninho;
Alma de boca, que dissera, eu amo:
Que inda diz, a cantar, amor, baixinho...

 

O FLANCO E OS PÉS

Nesse momento eu via o que somente
Se pode ver em súbita paisagem,
Quando a vaga do mar empluma a aragem
De uma penugem branca e reluzente;

E essa traz numa concha alvinitente
Alguma Vênus, o ideal, a imagem
Do belo, que ali surge de passagem,
Mas fica avassalando a toda gente.

Assim da nuvem sai a claridade
Em que anda envolta alguma divindade,
Que podem ver acaso alguns felizes,

Que isto o destino a muitos não permite:
Tal vi teu flanco, Helena, o de Afrodite,
E os pentélicos pés de estátua de Ísis...

 

ÍXION

Não podes ser a pérola da veiga,
Nem branca névoa, filha da alvorada,
Que se esgarça e flutua e fica em nada,
Se põe nela os pés de ouro o sol que chega.

Quero-te, Helena, para ser amada,
Modelo em carne de uma pedra grega,
Rainha de Sabá, ridente e meiga,
Que desce um trono ao ser por mim enleada.

Seria um sonho mau, sonho importuno,
Ser Íxion, amar com desespero a Juno,
E ir abraçar a deusa onipotente

E uma nuvem tão só ter abraçado,
E ser ainda ao Orco condenado
A mover uma roda eternamente...

 


O POETA A HELENA

Helena, tens razão — o movimento
Mau de minha alma rui em tempestade,
Que vem do monte, esbarra na cidade;
Ruge em ciclone, não ressoa em vento:

Voa como em remoinho o pensamento,
Arrasta o lírio, a torre, o templo invade,
Quanto encontra em caminho, e encontrar há de,
Tudo é seu no fatídico momento.

Passa. — O que aí cair, caído aí fica.
Mas logo após a atmosfera é pura,
Mais perfume se enrola em luz mais rica:

Como uma flor o sol, que abriu, fulgura,
Cai-lhe um grão de ouro em terra e a prolifica:
E assim tu és, amor, sol na ventura...
 

ORGIA DAS HORAS

Todos os sóis, na febre de um conflito,
Hão de vir ver a ti como eu me ligo;
E cada qual há de voltar aflito,
Sem te poder seguir, como eu te sigo.

Virão também dos seios do infinito
As rainhas gentis do mundo antigo,
E hão de chorar, achando-me contigo,
Tendo à boca os farrapos vãos de um grito.

Pode o mundo dar mais, tendo-me dado
O que tinha em ti de bom guardado?
Há ventura maior que esta ventura?

Nosso amor há de ver em longa orgia
Cantar as Horas, cor da luz do dia,
Dançar as Horas, cor da noite escura...

 

UMA DESESPERADA

Tristeza é coroa régia, alta e robusta,
Que em cada volta tem agudo espinho,
Como a que teve um Deus, quando escarninho
Espírito a deitou na fronte augusta:

Ela faz parte de mim mesmo e assusta
Como a serpente, que rodeia um ninho:
Farei com ela todo o meu caminho;
Mas... carregar seu grande peso, custa.

Helena, há dentro em mim escura mágoa,
Como o nenúfar negro dentro da água,
Como uma frase triste enluta um carme.

Mas se te beijo a mão, o pé, a perna
A minha dor, desesperada, eterna,
Fica então à penumbra a olhar-me... a olhar-me...

 

POR QUÊ?

Tu me perguntas, quase a rir, Helena,
Se não foi a vaidade o sentimento
Que me embalou, quando atirava ao vento
Folha e folha a suave cantilena,

Que me levara a ti o pensamento,
Como uma vela a viração serena,
Como em lagoa plácida e pequena
Pétala, que anda a boiar por um momento?...

Sabes? o amor é a imortalidade:
No porvir, no passado, e no presente,
É alma e vida a toda humanidade:

Ele cria o heroísmo; e o gênio sente
Que é ele só a mesma divindade,
Que os mundos fez, e os guarda ele somente...

 

O RETRATO

Quereis saber por quem deliro? — É pena.
Nada podeis saber, sem vê-la: o dia,
A luz, o som, quem é que os pintaria?
Quem pinta à noite o mel da voz da avena,

O ouro, a esmeralda, o trêmulo da antena
Do inseto, a vibração com que sacia,
Num beijo a flor e guarda-lhe a ambrosia,
Como de ti eu tenho, e guardo, Helena?

Saibam que tem relâmpagos de neve
Seu braço, quando erguendo o dedo breve
Mostra o azul rofo, que se alisa ao ouvi-lo.

Nasceu-lhe o pé para o coturno antigo:
Do colo o abismo branco é só perigo:
Sei quem és, luz de um grande mar tranquilo!...

 



REGINA

Quando lança-me os olhos seus de aurora,
E abre-me a boca de púrpura rosa,
Digo: — o que hei de mim fazer agora
Sob o clarão de tanta luz cheirosa?

Onde a alegria mais suave mora?
Há país em que mais prazer se goza?
Para estar neles vou... já vou-me embora...
Quero um lugar na terra a mais formosa...

Louco! O que vejo em torno é tudo escuro...
A luz noutro horizonte em vão procuro...
Aonde há beijos, como os dela? Aonde?...

Amar-te, amor, a sorte me condena,
É a única, a só, a minha Helena!...
Há céus contendo em ti céus que ela esconde?

 

MONSTRO

Helena é um monstro, e tem, como a Quimera,
Bico de bronze, e garras lacerantes:
Creem todos, que ela diz, olhando: — espera.
E a seus pés surge um pó sutil de amantes.

Risos na boca, e ares triunfantes,
Com seu donoso olhar de fome e fera,
Parece dar-lhes toda a primavera,
Que em flor lhe sai dos seios deslumbrantes.

Mede o grau de loucura em cada louco,
Lhes conchegando adrede o corpo todo:
Cada qual a crê sua, e já vencida...

Cio de turba vil, que não lhe importa...
Tem, num gesto, um dragão de guarda à porta;
Num desdém cão alado ao pé da vida...

 

O TESTAMENTO

Se algum dia te vir, celeste Helena,
Mais branca do que os teus lençóis de linho,
Como um pássaro morto no caminho,
Morta em antes de vir a tarde amena,

Deixa-me o gozo ao último carinho,
Que podes dar-me sem remorso ou pena,
E, como uma ave, que procura um ninho,
Pôr meu lábio em teu rosto de açucena.

Diz que cedes já ao meu desejo,
Que eu posso à face bela haurir-te um beijo,
O meu primeiro e último sequer...

Eu nunca quis, nem quero inda outra coisa:
Abre-me os braços nesse leito, esposa;
Dá-me o teu seio: espera-me, mulher...

 

O PROMETEU DE HELENA

Mármore branco, mármore sem vida,
Sonhado em noites tépidas de amor,
Sombra da sombra da mulher querida,
Quero imprimir-te o alento criador.

Quero ver-te convulsa e estremecida,
Alagada de luz e de calor,
Nos braços meus gemendo adormecida,
Cheia a fronte de angústia e de terror.

Pedra, preciso despertar-te: acorda
Mesmo no abismo, ou muito perto: à borda,
A energia do amor asas me deu.

Animar-te com um beijo, Helena, é crime?
Beijo-te... e quero após a dor sublime
Na eterna punição de Prometeu.

 

A NEVE IDEAL

Tinhas medo de mim: eu tinha medo
De ti, Helena! se te amava tanto!
E quantas vezes veio o nosso pranto
Pôr-se entre nós, involuntário e tredo?

Para escapar-te acaso era então cedo?
Um deus, um anjo, um serafim, um santo
Poderiam fugir ao teu encanto?
Não sei: nem soube nunca um tal segredo...

Cisne, que cai em volutabro ou mangue...
O amor é o vinho azul da mocidade,
Deu-me a presa indefesa, inerme, exangue...

Foi-me preciso o instante de ebriedade,
Para manchar-lhe, no seu próprio sangue,
A neve... a neve ideal da virgindade...

 


OS ANJOS

Tu crês nos anjos, nessas criaturas
Aureoladas, cheias de esplendores,
Perfeitas e acabadas formosuras,
Com asas de ouro e variegadas cores?

Serás um deles, quando um dia fores
A essas sublimes e ideais alturas,
Onde há só coisas virginais e puras,
E reinam só castíssimos amores?...

Falam em ódio, em lutas, em ciúmes,
Que puseram em guerra os céus, e os numes,
Houve um combate aspérrimo e medonho...

Helena, em céus e em anjos tais não creio:
Céus cortando o infinito e o espaço em meio?!...
Só Deus... só Deus... talvez não seja sonho!?...

 

A LUZ

Da falsa luz da tela às vezes rimos,
Cremos que o artista deu-lhe uma beleza
Maior do que possui a natureza...
Já vimos tudo aquilo e inda não vimos...

O grande mestre apanha a cor dos cimos,
A cor do vale apanha ele em surpresa:
Digo-te, Helena minha, com franqueza,
Como ele segue a luz nós não seguimos.

A luz do céu, que vemos num momento,
O ar tépido ou frio, a calma ou o vento,
A água do mar, um bosque, o sol a pino

Mesclam-lhe os vários tons: assim parece
Que é outra a luz da tarde, à hora da prece,
E há nele os tons ideais dalgum Poussino...

 

COMO COLOMBO

Helena, vida minha, e meu contento,
Quando se fala negligentemente
Às vezes diz-se bem o que se sente,
Nenhum esforço encobre o pensamento;

Como um navio entregue a Deus e ao vento,
Deixa-se ir a fremir pela corrente
Até que acaso encontra-se na frente
Um país novo e um novo firmamento.

Sabia bem Colombo o que buscava?
Nunca ele o soube bem: sua alma ansiava
Só por novo caminho; e achou um mundo!

E esse mundo era a América encontrada,
Pérola grande, única, arrancada
Às entranhas azuis do mar profundo...

 

SEGREDO

De ti fizera a luz um mau conceito,
Também quisera haurir-te um beijo à face:
Depois do beijo, ela talvez achasse
Que era mais branco que o lençol do leito

Teu corpo lirial, teu corpo feito
De um pentélico vivo, e num enlace
Nas grandes asas de ouro o arrebatasse
Com todo o amor com que no colo o deito.

Não! Não saiba ninguém esse segredo...
O teu segredo, Helena: o amor tem zelos;
Do que anda em torno a ti amor tem medo;

De ti longe inda os sóis eu quero vê-los,
Se, como faz às folhas do arvoredo,
Até o vento bole em teus cabelos!...

 

MEDO

Sabes? Não sei de ti o que penso e o que quero:
Não devo amar-te, eu sei, nem eu procuro amar-te:
E tua imagem vai comigo a toda parte;
Vai, onde eu vou; e vai, onde eu jamais a espero.

Meu semblante entre altivo e tristemente austero
Deve estar, quando enfim preciso, ou devo olhar-te,
Meu profundo segredo eu temo revelar-te:
E junto a ti me esqueço, ou talvez persevero.

Quantas vezes porém me tem já parecido,
Que longas horas eu sob os teus pés me olvido,
Bem como num vulcão, abrasado em desejos!

E ergo-me, e fujo, quando irado e delirante
Vejo, que vão tragar-te a carne palpitante,
Leões rugindo em bando, os meus famintos beijos...

 


MADONA DA CADEIRA

Helena, os sons da orquestra o espaço enchera:
Roda o baile. — E contudo em semiescuro
Vão alguém lá ficou, que ver procuro:
Tem seu rosto o rumor da dor ligeira.

Quem é? Encontro-a pela vez primeira:
Mas prenderia todo o meu futuro
A um dedo só de sua mão de cera,
A um raio só do seu olhar tão puro.

É a Madona da Cadeira, é Sara,
É Raquel, é Desdêmona: não fala:
Mas quem ouve o silêncio, a ouvira, e amara.

Crê-se que à sombra, e ao ângulo da sala
Guarda a inocência azul dos olhos, para
As lágrimas, que um dia hão de inundá-la...

 

PELO INFINITO ADENTRO

Sou aos teus pés, como o areal sedento;
A água toda do azul nunca o sacia;
E pode a noite remendando o dia
Cair-lhe de pancada, ou lento e lento.

Sou um faminto a precisar sustento;
Sempre a febre que um forno acende e cria,
Morda-te o corpo esplêndido e opulento,
Beba-te à boca — num cíato — a ambrosia:

As horas... ando sempre a refazê-las...
Quando a pouco ou de vez te vou haurindo,
Creio que engulo estrelas sobre estrelas

Feitas das carnes do teu corpo lindo;
Não basta, Helena, o céu para contê-las,
Sinto o infinito em mim abrindo... abrindo...

 

NINHO DE ESTRELAS

A noite era profunda, azul, banhada
De luz branca da opala transparente:
Na alcova Helena dentro reclinada
Numa atitude aérea de doente,

Que é uma Ofélia, que a princípio nada,
Como um lírio por cima da corrente,
Tinha na roupa um cântico fremente,
Como arrulhos de pomba na alvorada.

Caía, nota e nota, o argênteo trilo,
E inda o ar repetia em torno aquilo
Que cantava o seu corpo de alabastro:

Que doce! que suave murmurinho,
Como se nela mesmo houvesse um ninho,
Onde andasse a querer pousar um astro!...

 

CORPORIZAÇÃO DA ALMA

Dar consistência à grande essência pura,
Oculta em nós, como uma divindade,
A tela, o bronze, o mármore procura
Com mais ou menos graça, arte e verdade.

De sol em sol descendo o ideal da altura
Em que ele jaz desde a remota idade,
Rafael, em vão para o pintar, mistura
O belo, a força, e azula a claridade.

Se eu pudesse imprimir forma à minha alma,
Quisera que a ti mesmo semelhasse
No que te envolve em luz augusta e calma,

De maneira que quando alguém te olhasse
A um dos dois tendo a dar triunfante palma,
Visse nos dois um só numa só face...

 

O ETERNO PROBLEMA

Mas... daqui a alguns anos?... Por que taça
Então queres beber, ó minha amiga,
Que não chore no fundo uma desgraça,
Que a uma outra lágrima não siga?

O tempo chega e brevemente passa,
E o pó que ergue a sofrê-lo nos obriga;
A luz, a sombra, a soberana graça,
Por tênue fio à nossa fronte liga.

Quem é que aos universos te encadeia?
Que elo imenso te prende a um grão de areia?
Que elo te prende, de outro lado, aos sóis?

Quem nos aclara este problema escuro?
Que fomos no passado, e no futuro...
Ah! no futuro, que seremos nós?...

 


A DEUSA CARINHOSA

Tendo às vezes segura a minha mão na sua,
Um silêncio que geme entre nós dois flutua:
A voz desse silêncio, essa voz quero ouvi-la.

Fala, a interrogo: Ofélia, ó Julieta, ó Fedra...
E o negro olhar de estátua, o olhar oco da pedra,
Sai-lhe às vezes assim, marmóreo e sem pupila...

Não quer que eu saiba que ela ali, naquela hora,
Tendo mundos de luz e de ouro em seus olhares,
Sabendo que merece em toda parte altares,
É capaz de envolver-me em sua casta aurora,

Dar-me lírios, dos que põem-lhe as espáduas fora:
Mas quando em versos meus ouve o chorar dos mares,
Procura, onde estou eu, em todos os lugares,
E ergue-me ao azul do céu eterno, em que ela mora...

 

PLENITUDE

Estou cheio de ti, mulher querida,
Como de ondas o mar, de selva o monte,
De azul o céu, de estrelas o horizonte,
E a vastidão dos mundos percorrida...

Andas na luz, que vejo, diluída;
No livro para o qual inclino a fronte;
Estás perto, longe, dentro em mim, de fronte,
Em cima, embaixo, em tudo, como a vida.

A tua imagem pálida cintila;
Todo universo brilha-te à pupila...
No abismo duma pérola cai...

No ano, e mês, e dia, e hora e momento
Penso em tudo, porém o pensamento
Anda em torno de ti, contigo e em ti...

 

A TÚNICA DE NESSO

Helena minha, a tua formosura
Faz-me pensar nos desgraçados seres
A quem amor não dá os seus prazeres,
Mas dá o que ele tem só de amargura.

E pode haver uma gentil criatura,
Por quem não tens no mundo outros deveres,
Por quem és todo enleio, e que perjura
Achas um dia acaso, e sem quereres?

Que Medusa pior se me afigura,
Vê-la, e em seu rosto aquele crime impresso,
Sem ninguém transformar em rocha dura:

Eu não pudera amar assim, confesso,
Crera beber duma alma a sânie impura:
Era vestir a túnica de Nesso...

 

Ó SÓIS, PASSAGEM

Sabes, Helena, quem me anima e eleva,
Quem me levanta, quem me alenta e guia?
É esse olhar, que vem de ti, ó Eva,
E a luz me dá, que acende a luz do dia:

É essa doce, essa íntima alegria,
Que estrela a noite, e quase azula a treva,
Que sobre mim róridos lírios neva,
Que é o teu nimbo, e o teu amor me envia...

É tua voz calma a me cantar: — coragem! —
Que me aveluda o árido caminho,
E de ouro seu arrasa-me a voragem:

De pérolas um fio é teu carinho...
Vai alguém a meu lado: — Ó sóis, passagem:
Há quem me leve, ó sóis: não vou sozinho...

 

CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Basta, Helena, que em torno tudo minta:
Não é um sonho vão, que em vão procuro;
É qualquer coisa de mais santo e puro,
Sílvia agarrando, em fim de idílio, Aminta.

Não é a sombra, que um pincel nos pinta;
Eu quero o que a produz, e que seguro
Entre os meus braços, como um corpo duro,
Que eu force, e em si a minha vida sinta.

Amor minha alma a ferro em fogo marca:
Tu não és Laura, nem eu sou Petrarca,
Tu não és Beatriz, nem eu sou Dante.

Jamais eles ouviram com efeito,
No cântico dos cânticos do leito,
Boca e boca um só beijo atar radiante...

 


ÉDENS SURPREENDIDOS

Mágoas doces de amor no amor conquisto:
Que édens oculta esplêndido vestido!...
Olhem, surpresa igual não tenho tido!
Quem se não dobra e apanha achando disto?

Pode alguém resistir? eu não resisto:
Embriagado, louco, enfim vencido,
Úmido o corpo, um dia, inda esquecido,
Como Vênus no mar, no banho a avisto.

Não diz que é bela; cai, mudo a não louva,
Vendo-a; e vendo-a é querê-la eternamente...
Nem pensa haver buril, que a sonhe e a mova...

E, ante a realidade nua e surpreendente,
Vê-se que a Virgem, que animou Canova,
É apenas um mármore que mente!...

 

CASTELOS DE ESPANHA

Por que fundar nas nuvens um castelo?
E eu ouço em tua lânguida pupila
Som de desdém e orgulho, que rutila
Como um raio de sol sobre um cutelo.

Faces brancas do mármore mais belo
Podem cobrir um coração que oscila
Em antro, onde não chegue a luz tranquila...
Vê, Desdêmona amar o negro Otelo!?

Vênus, — olha, — o ideal da formosura,
Embora deusa, o aspecto soberano,
E um astro, em cada olhar, que lhe fulgura,

Há quem a mostre nua em jogo insano
Às risadas do Olimpo, ante a loucura
De a ver a boca em Marte, e ao pé Vulcano...

 

A QUEIXA DA VENTURA

Ai! como em mim este momento chora!...
Dize, Helena, se a hora da ventura
Será só esta, que tão pouco dura,
Se não bate amanhã outra igual hora,

Como esta, em que te abraço e beijo agora,
Que és uma flor em toda a formosura,
Em todo viço e matinal frescura,
Em todo seu perfume, em toda aurora...

Se isto pode ter fim, se em tudo há fundo?
Por que a taça do gozo é tão medida?
Quem para nós assim nos fez tal mundo?

Alma, sombra da minha, alma querida,
Sol, em cujo clarão de luz me inundo:
Mesmo contigo há de acabar a vida?

 

VENDO-A ADORMECER

Velou a face à luz: e a luz calou-se,
A luz, que andava pela casa, e ria;
Era um sol, que uma nuvem cobriria,
Flor, que não corta, e um pouco inclina, a fouce.

Quieta ao pé, dedo à boca, arfa a alegria:
Ela adormece: há nada de mais doce?
Parece o sono assim como se fosse
Pregado a cada pálpebra do dia.

Sem um rumor o lírio desabrocha;
Sai em gotas sem bulha a água da rocha;
A águia, que a noite colhe em céu enorme,

Para dormir as asas encurvando,
Faz seu ninho do espaço, e aí jaz, pairando:
Num sonho azul suspensa, ela assim dorme...

 

VICTRIX

Entre Beatriz, Leonora e Catarina,
Entre Ofélia, Carlota e Julieta,
Todas duma escultura peregrina,
Obras de um deus, ou sonhos de um poeta;

Eu buscarei também, mulher divina,
Como elas só de azuis e estrelas feita,
Que entre os astros, na estrada cristalina,
Sejas de igual a igual coroada e aceita.

Hei de estemar-te a fronte com meus louros,
Hei de evocar os séculos vindouros,
Que hão de seguir-te em marcha triunfal;

Hei de estrelar-te o chão, onde pisares;
Hei de erguer em meu canto os teus altares,
Musa do amor, esplêndido ideal...

 


AMABAM AMARE

Helena, o que amo em ti? Olha, imagina:
O chão que andam teus pés, o ar que respiras,
E essa harmonia de invisíveis liras,
Que é o ambiente da mulher divina;

O que toca tua mão lirial e fina,
Tudo por quanto sofres e suspiras,
E o grupo de visões, que peregrina
Por tua mente em prásios e safiras;

E essa tristeza funda, em que repousas,
Tristeza, que só têm as grandes coisas,
E mesmo o céu com luz, e o mar risonho...

E tudo quanto em ti o belo exprime:
E se isto tudo que amo em ti é crime,
Ao mundo, aos deuses o meu crime exponho...

 

ESPELHO INCORRUPTÍVEL

Diz-te a luz da Alva: — vem: anda: sempre és bem vinda. —
Mas inclinas de leve a fronte cismadora,
Que enturva a sombra da basta madeixa loura
Na onda, que passa e canta, e que te foge, e a linda

Cecém do rosto, que fresca manhã redoura. —
E quando ela esmaiar, pois não cai tudo, e finda?
Dizes: a água chilreia em festa; mas quem fora
Capaz de vê-la rir um dia, ao ver-me ainda? —

Mas olha: o estrago de ano e ano, amor, não temas;
Corpo grácil, da trança o ouro astral, meus poemas
Hão de sempre guardar, como incorrupto espelho;

Lendo-os, neles verás tua beleza eterna,
E, arrabalde do céu, subindo a branca perna,
Lírio, que um deus plantou num sideral artelho...

 

O FÓSSIL FUTURO

Num paraíso, embora, homem, teu berço escondas,
És o embrião: evoluir, mudar é lei Suprema:
Mas a quem passarás depois o áureo diadema?
Que outra cor hão de ter um dia as verdes ondas?

Quando Valmiki, Dante, Homero, e Epaminondas
Forem, na história, um nome, uma dúvida, um lema,
Quando fóssil for tudo o que hoje vive e sondas,
Que haverá do porvir longínquo enchendo a extrema?

Com que malho os titãs, dando molde ao futuro,
Batem dentro da terra o ferro incandescente?
Que deus forja outro céu, e abre-o mais largo e puro?

Quem vem, o que há de vir num sopro e de repente?
Tudo oscila em tuas mãos, tudo em ti stá seguro,
Ó força misteriosa, ó força onipotente...

 

REMEMBRANCE

Ondeava a erva do campo, ao longe, aberta
Em fita curva pelo andar: no espaço,
Já do poente, descia ao mar, coberta
De um palor grande, a lua. Ia ao meu braço

Helena, enquanto vindo a tarde, a incerta
Luz de ouro velho em tudo punha um traço;
Fazia baixo idílios com seu passo
Verde cantando na extensão deserta.

E eu ouvia fremir-lhe as pomas quentes:
E ela tentava com as mão detê-las
Às deslumbrantes, nítidas correntes:

Era, como o alarido das estrelas,
Quando baixando por degraus luzentes,
Deus, às portas do céu, senta-se a vê-las.

 

JUNTOS

Helena amiga, quando te não vejo,
Quando entre mim e ti o tempo e o espaço
Se interpõem, velho muro ideal, ensejo
Tenho para sentir o forte laço

Que a ti me prende, que te leva um beijo,
Que traz de ti estremecido abraço:
Entre nós ergam serras; pó as faço;
A paixão grande em britador manejo.

Não posso mais deixar de ver-te, e amar-te:
Tenho-te a ti, e não ao teu transunto
Que pode um Tintoreto ou dar-me, ou dar-te.

Quem ma pode arrancar? — Aos céus pergunto.
Amor tem asas, voo a toda parte;
E é nas asas do amor que a ti me junto...

 


PANEGÍRICO

Céus, e estrelas, e sóis, e o que não digo,
Por não encher volumes e volumes,
Que encher quisera; e encher o não consigo...

Tu trouxeste do céu o céu contigo
E inda, para adorar-te aos pés, os numes
Lendo coisas de amor artigo e artigo.

Como o rumor da página voltada,
Sinto-o em cada rufar das roupas tuas:
De tuas mãos liriais a revoada
De níveas pombas saem duas a duas

Nas brancuras azuis das carnes nuas,
Na luz do olhar, a arder-te, o éter nada...
A terra anda de pérolas calçada:
A terra é o Olimpo, Helena, em que flutuas.

 

ÉGLOGA

Nesga de céu azul, que se reclina
Sobre os montes; o sol franja o contorno:
E entre arabescos de viçoso adorno
O fogo beija a espádua da colina.

Choram correntes trépidas em fina
Ondeante fita sobre o dorso morno
Das rochas: uma cabra pula em torno,
Burilada na zona purpurina.

Helena, como um ósculo de afago,
Por meio disso um vento olente passa:
E esta cena de luz esvai-se cedo.

Assim branco clarão de água de um lago,
Canta, e rui ao cantar, e se espedaça
Pendurada das pontas de um fraguedo...

 

O MEU PRAZER

É meu prazer cantar-te, Helena minha:
Às mãos a branda lira me não cansa.
Não sei se a Glória, ao ouvir-me o canto, dança;
Ou, se ao ouvir-me, ao meu lado ela caminha.

Era uma orquestra, que nas ruas lança
Seus hinos ao passar de uma rainha
Quando ela ia de casa, e quando vinha,
Como o bater das asas da esperança.

Entre as estrelas, que eu à noite admiro
Rutilantes das púrpuras do Tiro,
Não, não há uma que te valha, Helena.

Elas não sentem suas lindas chamas:
Tu só, querida, vales todas: — amas;
Vives: não elas: tudo aí está!... E é pena!...

 

SOLIDARIEDADE UNIVERSAL

A vida é força, a vida é inocência;
Como existimos nós, existe a planta;
Tudo na terra é obra imensa e santa;
Tudo, um dia, absorve a mesma essência.

Tudo pois deve ser amor, clemência;
Nenhum poder outro poder suplanta;
Tudo que voa, ou anda, ou ri, ou canta...
Tem sempre o mesmo fim toda existência...

Almas das coisas, vos conjuro, e apelo:
Nosso globo é dos astros companheiro?
Se ata-os todos cadeia elo por elo!

É solidário este universo inteiro;
Sermos dele, ele nosso ser... é belo!
E, Helena, o belo é sempre o verdadeiro...

 

SONHO DE MOMENTO

Logo que eu abordar um astro amigo,
Um astro onde ninguém haja habitado,
Quero que nele estejas só comigo,
Helena, e quanto amei, e tens amado.

Um pequenino mundo limitado,
Não conhecendo mais qualquer perigo,
Como o hipogeu eterno de um jazigo,
Sem nos lembrarmos nada do passado,

Nem nada mais querendo do futuro,
Fechando tudo impenetrável muro;
Como no espaço imenso um mausoléu,

Aí construído para nós adrede,
Aonde Deus tem a sua própria sede,
No páramo infinito e azul do céu...

 


A ETERNA ESSÊNCIA

Porém o que entra nestas sepulturas?
Serão perfumes virginais dos lírios?
Mudam-se as lentas dores, e os martírios
Em borboletas e ideais brancuras?

Helena, o que vês tu no que procuras?
Talvez os santos, os benditos círios
Sejam vozes de mortas criaturas,
Que erram no azul profundo dos Empíreos!

Tudo será mentira, ou sonho, ou mito?
As lágrimas têm uma consciência?
Tem uma alma a outra alma igual um grito?

Quando acabar as formas da existência,
Enchendo o espaço todo do infinito,
Há de ficar só Deus, — a eterna essência!?...

 

A DEUSA

O seu pescoço esplêndido e robusto
Implantado às espáduas fortemente,
Presta-lhe um ar olímpico e imponente;
De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto;

E sustém-lhe a cabeça bela: é justo,
Porque dos deuses vem; e se presente
No andar, na voz, no riso negligente;
Mete em tudo, que a cerca, estranho susto:

Tão grande e superior ela parece,
Que não é muito a admiração e o espanto:
Segue-se ao espanto o amor; ao amor a prece.

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto:
É de ti, que, em mim só, todo um céu desce:
A ti meus olhos, como a um céu levanto...

 

CHEIRO PREFERIDO

Helena, um cheiro tens na carne ardente,
Que não há nos jardins, nem nas florestas;
Nem sai dos vasos, nas noturnas festas,
Onde há mulheres belas em torrente,

Faiscando joias lúbricas, funestas...
Prende minha alma delirantemente
Esse odor, que em ti sinto, e ninguém sente
Desprender-se outro igual de algumas destas.

Só em olhar-te e ver-te o tempo emprego:
Eu te conheço; para o mais sou cego...
Para servir-te, a natureza é pouca:

Inda, para isso, o céu teus gestos toma...
E enquanto eu, como abelha, ando-te à boca,
Haurindo o mel, que dá seu fluido — aroma...

 

REPETINDO

Qualquer, — Rubens, ou Sânzio, ou Ticiano,
Tem cada qual seu modo de pintura:
Mister não lhes é ver a assinatura;
Os trai a tinta, um gesto antigo, um plano.

Não pode nunca haver no nome engano:
A obra é o homem: — mesma envergadura;
Desenho, cor mais clara, ou mais escura,
Traz as garras do gênio soberano.

Assim, Helena, as minhas melodias:
O mesmo sol traz sempre os mesmos dias:
Idílios canto, e amor neles repito.

Mas se o que ontem pensei, hoje inda penso!
Não vês? Deus, que é também obreiro imenso,
Sóis repete aos milhões pelo infinito...

 

PRIMEIRO O AMOR

Sei que às vezes a pena vale a espada,
Que por um Tiquius fosse trabalhada;
E a tem, logo que ao poeta a ergue, e a maneja.

Ela com golpes de cinzel burila
Combates de Titãs; corta, cintila
Ante deuses e sóis na árdua peleja.

Lembra-se alguém da monstruosa guerra
Dos ciclopes, e o ataque estranho e rude
Com que foi revolvido, um dia, tudo,
O velho céu, o antigo Olimpo, e a terra?

Prefiro o amor cantar, que a vida encerra,
O amor, da vida o adamantino escudo,
E com Helena ser estranho e mudo
Ao mais que ande no mundo, ou voa ou erra...

 


SONHAR-PENSAR

Helena sonha: por que sonha? — Creio
Que em sua alma se passa estranha luta,
Que qualquer obra grande ela executa
Dentro mesmo de si, no próprio meio.

A fronte se ergue e abate: arfa-lhe o seio;
O amplo peito se eleva e cai: que escuta
Quando inclina a cabeça? O leão na gruta
Roda: ela assim anda em vago enleio.

Tem diante de si páramo enorme:
Nele o que ruge, ou brilha, ou salta, ou dorme?
Olha uma esfinge a solidão imensa?

Entre constelações, espaço em fora
Ela arrojou-se e vai... lá vai... embora!
Que faz Helena assim inquieta?... Pensa.

 

MÁGOA DA AUSÊNCIA

Quando estavas de mim um tempo ausente
Uma saudade imensa me pungia,
E já sem mais saber da noite ou dia,
As horas perguntava a toda a gente;

E perguntava arrebatadamente...
Sei lá, Helena, se era cobardia!...
Fosse o que fosse; mas ninguém sabia
O que sentiu minha alma, e inda hoje sente.

Andava num terror, e num desmaio,
Numas angústias grandes! Quando vinhas,
Tu dizias, a rir: — Está morto: olhai-o. —

É que em ti toda tais encantos tinhas!...
Árvores belas, se vos busca o raio,
Procuram-vos também as andorinhas...

 

TRISTEZA INCÓGNITA

Por que, vento, ao passar contigo trazes
Dos antros, das florestas, ou dos mares,
Pedaços de soluços, rotas frases,

Como as que andam gemendo pelos ares,
Como as que muitas vezes tu te aprazes
Em soprar dos latíbulos dos lares?...

Ai! quem mais ri é sempre quem mais chora!
Pergunta à noite as lágrimas que orvalha;
Pergunta à primavera, à flor, à aurora,
Que íntimo mal os corações trabalha.

A sombra de suas asas de anjo espalha
Por mim, por tudo, pelo espaço em fora!...
Não haverá ventura em nós sem falha?
Por que está triste a minha Helena agora?...

 

PARCE

Vamos gozando a nossa felicidade,
Como se goza um dia após um dia:
Vamos, Helena, em boa companhia,
O céu, e o sol, e o amor, e a mocidade...

Vamos sem pressa, exemplos de ansiedade,
Aspirando das coisas a alegria;
Da luz ao riso... A luz pois não riria,
Se é nova sempre e tem a nossa idade?

Vamos gozando, sem olhar quem passa;
Sem perguntar quem fez o bosque, e o ninho,
E sem que uma pergunta alguém nos faça.

Gozemos, filha. — O odor ao rosmaninho
Não queiramos saber quem dá... Tem graça
Não colher o que é bom pelo caminho!

 

SÓS

Deixemos pó, rumor, luxo às cidades;
Ninguém saiba onde eu moro, onde tu moras;
No campo, longe, unindo as nossas horas,
Unam-se as nossas duas mocidades.

Nossa paixão tem loucas ebriedades;
Cantos, que em si contêm nascer de auroras,
Que em si rufam canções de asas sonoras,
E idílios cheios de imortalidades.

O nosso amor é simplesmente humano:
Dura um instante, ou dois, um dia, um ano:
Pode ainda durar a vida inteira...

De nossa alma amorosa essência pura,
Quem sabe o tempo, que uma essência dura,
E o tempo que inda o frasco exausto cheira?

 


AS ALMAS DAS ROSAS

Quando os perfumes aparecem, quando
Já pela tarde ao mar o sol se inclina,
Como as almas das rosas vindo em bando,
A descer pela encosta da colina,

Fulgem, brilham, Helena, e se imagina
Um mundo oculto de esplendor passando,
Vindo do céu, de uma mansão divina,
De uma estrela, que nos esteja olhando...

Vêm para nós num movimento doce,
Como se um nume, um deus antigo fosse,
Que queira ver-te a boca, quando toma

O aspecto da purpúrea flor abrindo,
E ao dar-me um beijo, o beijo seu mais lindo,
Ver como entorna o penetrante aroma...

 

PERNAS E PÉS

Estas pedras inclinam-se, formando
Uma caverna, um antro quase obscuro:
As moscas negras zumbem dentro em bando;
Das fendas desce um fio de água puro;

Arroio é já: gazeia adiante, e andando
Abre na relva verde um branco furo:
Já estende-se: é lago: — em vão murmuro...
Cais, Helena, no lago — eu vou gritando...

Cai. — Belo é ver-lhe as pernas na corrente,
Blocos vivos de um mármore esplendente:
São duas hastes, que sustêm com graça

Os seus pés nus, os seus dois pés nevados,
Claros, como dois lírios inclinados
À beira da água que os oscula e passa...

 

CARPE DIEM

Onde há perene e certo lenitivo?
O passado é somente uma lembrança;
É o porvir apenas a esperança;
Nosso é só um segundo fugitivo...

Que mortes vai sofrendo um corpo vivo!
O homem entre dois báratros avança...
Helena, um pouco aos braços meus descansa;
O instante é nosso: temo-lo cativo.

Desde quando te amei, eu não me lembro;
Ando a beijar-te o corpo membro a membro;
Nem sei se o corpo todo teu beijei.

Mas beijar-te hei de a boca eternamente;
E se este gozo fundo e permanente
Teve princípio ou terá fim... não sei...

 

UM NOVO PÔR DO SOL

Vai acabar o dia. — Helena, agora
Que a luz se mescla à treva, e que perfuma
Tudo a brisa, que sopra, e como a aurora
Dúbias nos mostra as coisas uma e uma,

Olha a praia, onde ali o mar espuma,
E mais acima a zona, onde uma flora
Nova, só do Brasil, variada e odora,
Em que a piteira em haste a flor apruma,

E o ingá, e o coco, e o cacto, e o mato reles,
Que na água azul o mar estende e espelha,
E encanta mais que um quadro bom de Apeles...

Sobre isto o pôr do sol de hoje semelha
Uma paisagem do Victor Meirelles,
Com sua eterna luz, bela e vermelha.

 

ANTES DO UNIVERSO

O amor nasceu primeiro que o universo...
Helena, inda antes dele, ele existia;
E quando o mundo estava em treva imerso,
Ele foi que acendeu a luz do dia:

Soube-se então o que era uma alegria,
E em todo ponto, múltiplo e diverso,
Lançou rios de néctar e ambrosia,
De música e de dança enchendo o verso.

A mesma origem tem... teve igual era
Que o primeiro raiar de um Deus, que via
Rolar-lhe aos pés sua primeira esfera.

Quando o primeiro coração batia,
E floriu a primeira primavera...
Ele era alma de tudo, e tudo unia...

 


POR QUE TREMO?

Não te parece agora uma estranheza
Ter-te em meus braços a tremer de gozo?
Ele tão novo me parece!... E ouso
Achar constante a vária natureza?

Temo sempre do incógnito a surpresa:
O tempo é como o mar, não tem repouso;
E a luz do sol de um dia o mais radioso,
Que inda volte amanhã, não há certeza.

És a taça, por onde às vezes cuido
Prazer haurir em misterioso fluido:
Helena, és tu a essência da ventura,

Ó filha dessa América formosa,
Onde na noite azul abre uma rosa
Em cada estrela, que no céu fulgura...

 

A PRETA DA CABANA

Esta preta que vês junto à cabana,
Velha, gasta, pedindo-te uma esmola,
Teve na terra benfazeja a escola
Do trabalho, do amor, da luta humana.

Deixou a pátria tórrida africana
Pelo Brasil, onde é soberba a flora;
E, no país em que ela é livre agora,
Viveu escrava e a um tempo soberana.

Misturou o seu sangue ao nosso sangue,
O seu suor, no campo, ao suor da aurora,
Deu força e alento ao nosso corpo langue.

Helena, inda hoje embala-nos nas sestas,
Como ria no lar conosco outrora,
E eram suas também as nossas festas...

 

PAVOR DAS COISAS

Como é noite, ir mais longe tu não ousas.
Eu sei que há sempre dentro em nós um medo...
Que haja talvez, Helena, algum Segredo,
Onde teus pés gentis de leve pousas.

Sob o frio e a mudez cruel das lousas,
Muda-se um morto em seres vivos, cedo:
Tudo é metamorfose, atrito, enredo...
Todo o pavor vem do pavor das coisas.

Dentro em si mesmo turbilhona o argueiro:
Levam ciclones o universo inteiro:
Inteiro salta, e vive, e pensa, e sente,

Move-se tudo: move-se a montanha
Numa marcha invisível, surda, estranha:
Tu, imobilidade, és só quem mente...

 

A ETERNA IGNORÂNCIA

Minha razão direita a chamo, e a torço,
Para que ela ande em longas correrias:
Vem sempre aflita, e cheia de agonias;
Volta, Helena, perdido o extremo esforço.

Inventas religiões todos os dias,
Trazes, homem, visão audaz ao dorso...
E em vão ao céu um grande Deus pedias:
Chega do céu com um sonho em vago escorço.

Abres a boca de ciências cheia,
E não sabes criar um grão de areia,
Nem pôr pé num degrau da grande escada!...

Não posso! É o teu vão e último grito.
E ficas na paisagem do infinito,
Sem saber o que és tu: sem saber nada...

 

SPINOZA

Quando Spinoza pensa, — o humilde artista,
Penso como ele: é ele quem me ensina
Esta tão doce e singular doutrina,
Que ninguém já de Deus em nada dista.

Só assim a nossa alma um Deus avista;
Como parte de um Deus ela domina:
Quem não tem dentro em si a luz divina
Sentindo arder um dia à hora imprevista?

Quem já não teve algum pressentimento
Do seu destino incógnito e brilhante?
Que vem a ser em nós o pensamento?

Como é pequeno então o grande Dante!
Valer mais cada ser que um firmamento!...
Ó minha Helena, ó minha eterna amante!...

 


A IMORTALIDADE DA ALMA

Deste sonho arrancar-te eu não consigo?
Se a alma é eterna, sempre eterna há sido:
Onde ela está antes de um ser nascido?
Quem nasce, morre; e ela nasceu contigo?

E essa alma, que há contigo, e em ti servido,
É imortal... é imortal te digo:
É, sempre foi, será, — e desvivido
O corpo, ela também desce ao jazigo.

Helena, queres ver a realidade?
Pergunta às pedras tumulares: pousas
Nelas teus olhos? Achas a verdade?

Dizem-te o mesmo todos, que ouvir ousas:
— A alma é eterna dessa eternidade
Que vai, com Deus, atravessando as coisas...

 

SER

Minha Helena imortal, amar?! — Amemos.
Fazemos parte desta natureza:
E toda sua esplêndida grandeza
Nos contém, como em nós a contemos.

E o que ela foi, e inda há de ser, seremos:
Seremos tudo em tudo com certeza;
Porque é ela, e ela só, força, e beleza;
Todo o universo nela, e em nós... — Cantemos.

O ser nosso anda assim de vaga em vaga:
Nós em Deus, Deus em nós, o ser consiste,
E o infinito ao infinito se propaga...

Não, meu amor, não há ficar mais triste:
O verdadeiro não começa e acaba,
Não tem passado, nem porvir: existe.

 

CONVITE

O homem, como a borboleta, é verme
Quase nojento, pegajoso, inerme,
Antes de ir-se ao azul, voando do chão:

Depois de flor em flor asas abrindo
À luz do sol, não há nada mais lindo,
Quando elas sempre assim vibrando vão...

Nada mais lindo, quando vão direitas
Pelos vergéis, por essas veigas fora...
Como elas vamos pelo espaço embora...
Vamos... se meu convite, Helena, aceitas.

Vamos ver o país que habita a aurora,
E as grandes flores de ouro dos planetas;
Vamos, como lá vão as borboletas...
Vamos... como elas vão em bando agora...

 

AS LAVADEIRAS

Ao acaso. — Havia um trilho pelo monte,
Que abrira o camponês no andar constante,
Em linhas curvas: — longe amplo horizonte
Azul, profundo, largo, rutilante...

Despenhadeiro e matagal de fronte:
Desce o carreiro em cotovelo: — adiante
Córrego vivo de água: em cima ponte
De pranchões, velha, negra, vacilante.

Embaixo, ao lado, em joelhos, lavadeiras
Batendo às pedras, em mudez, o linho:
Em torno ipês, guaris, bambus, paineiras.

Sol a pino: a cigarra, o voo, o ninho...
E eu e Helena, de pé, às soalheiras,
Vendo este quadro achado no caminho...

 

VÊNUS ANADIOMENA

Confesso-te sem custo, Helena minha,
Que essa serenidade, essa grandeza,
Que tens, que vem de tua natureza,
Que se impõe simplesmente e se adivinha

No andar, no olhar, no gesto de rainha,
Nessa auréola ideal na fronte acesa,
Que nasce, que irradia da beleza,
Sem outro arranjo ou outra louçainha,

Que te faz a Anadiomena antiga,
Que por mais que eu cante, ou pinte ou siga,
Não digo ou pinto ou canto isso em que exceles.

Deviam só dos velhos mestres da Arte,
Em egípcio mármor, Fídias trabalhar-te,
E em tela Zêuxis, Eufranor e Apeles...

 


A LOCOMOTIVA

Monta, Helena: não há nenhum perigo.
Em garras fortes de leão, bufando,
A entranha enorme em chamas palpitando,
Sobe a fera, levando-nos consigo.

Em cóleras parece: mas te digo
Que é para o homem o animal mais brando,
E as mais altas montanhas superando,
Tem as docilidades de um amigo.

Lança fumo e fagulhas de cratera;
Ofega: bebe e come, enquanto espera;
Foi aço ao fogo, golpeado a malho.

Respira, vive esta obra — um primor de arte —
Move-se e anda e vai a toda parte...
Foi um Deus quem deu alma a um tal trabalho!...

 

O CAFÉ

É setembro. — Aos corimbos as mangueiras
Misturam já os frutos verdes inda,
E inda pequenos: viração benvinda
Lhes mexe os galhos, vai, desce às balseiras,

Mete-se, rindo pela selva infinda:
O sol declina; é brando: às quintas-feiras,
À tarde, em roupas brancas e ligeiras,
Bebe o café pelos jardins... É linda!

Anda, passeia... E os traços superiores
No ouro da luz macia emoldurados,
Para os pintar, terei pincel e cores?

Há de dar corpo a estes vergéis e prados
E a ti, Helena, a ti, a flor das flores,
Palheta inda mais rica em tons variados.

 

O IDEAL REALIZADO

Teu corpo todo é uma ideal pintura;
E o teu rosto divino e a um tempo humano
Parece, que o pintando Ticiano,
Deu-lhe o melhor que tem a formosura.

Nos vestidos a púrpura fulgura,
É do veludo do mais rico o pano,
Que arde sob os teus pés: no extremo plano,
Em tudo um traço rubro o sol mistura.

Uma nesga do céu, de azuis acesa,
Olha a janela, límpida e casquilha,
E em ostros mete rútila turquesa.

O artista, um deus, fez esta maravilha,
E a ti, Helena, a deusa da beleza,
Pôs-te ao centro, aterrando a luz, que brilha.

 

VERTIGEM

Se Helena ata-me aos braços na tranquila
Força, num gesto bom, num beijo em suma,
Todo universo, que ela desapruma,
Atira sobre mim, e me aniquila.

Sei mais onde ir? Apenas sei segui-la;
Já não sei mais do mundo coisa alguma:
Anda sob os meus pés o mar, e a espuma,
Sobre minha cabeça o céu vacila.

Sair eu lá de dentro do seu riso,
Bem como Eva, em nudez, do paraíso,
Como, após ela, Adão, deixando a entrada,

É não sentir que aos pés eu pise espinhos,
Não ver luz, não ouvir a voz dos ninhos,
E, a não ser ela só, não ver mais nada...

 

O POETA É UM DEUS

É orgulho, é jactância, enfim vaidade
De quem ou vibra a lira ou sopra a avena,
O crer que o vento o escuta e o mar serena,
E arranca sóis a ouvi-lo à imensidade:

Que tem e pode dar celebridade
Como na Trácia Orfeu, querida Helena.
Segue o poeta, como sombra, a pena:
Pois quem goza, por que sofrer não há de?

Eu hei de acompanhar-te onde tu fores;
Toda minha alma em versos se derrama,
Como quem joga todo um campo em flores.

Corpo de ferro, coração de chama
Há de ter o que cante os seus amores:
Há de ser... deve ser um deus quem ama.

 


NO CÉU DE VEZ

Mas enquanto não chega a fatal hora,
Vamos eterno crendo o amor profundo
Com que me inundas tu, com que te inundo,
Como uma imorredoira e branca aurora.

Pelo tempo esmagados, sós no mundo,
Vamos amando pelo espaço em fora,
Até chegar além do azul, segundo
A fé, que nos alenta e aviva agora.

— Batem à porta duas criaturas,
Duas almas talvez não muito puras,
Deixo-as entrar, Senhor? — Deus ficou mudo.

Logo: Amaram-se muito; o mais que importa?
— Pedro, conserva sempre aberta a porta
A quem amou: o amor é deus, é tudo...

 

UM HINO À LUZ

Cinco horas da manhã. — Helena, agora
Canta o galo e no céu Vênus fulgura,
Com um clarão de luz macia e pura,
Com o doce olhar, com que nos olha a aurora.

Poucas estrelas pelo espaço em fora:
Vento um pouco mais fresco, e que murmura,
E faz cantar as ramas na espessura,
E o monte e o vale e o campo e a veiga irrora.

Luz da manhã, como de ti se goza!
E como o ar da cidade é tão diverso
Do que se bebe aqui!... Ó sol, ó rosa

Vermelha, cujo odor voa disperso,
E é tua luz, e a um tempo alma radiosa,
Um hino, ao ver-te, canta-te o universo...

 

ESPIANDO A VOZ DOS ASTROS

As pequeninas bocas de ouro abrindo
E fechando-as, os sons se ouvem de um canto,
Agora em riso alegre, agora em pranto,
Agora em hino harmonioso e lindo.

Helena espia, ouvidos convergindo
Para o profundo azul do céu, enquanto
Os astros, como abelhas, volitando
Pelo éter puro, saltam, indo e vindo.

Numa pausa em que se ouve aflar os ventos,
Quando o universo, então, arfando, é mudo,
Sentem-se em nós nascendo os pensamentos,

Com o rumor de aspereza de veludo,
Embalsamando os nossos sentimentos,
Docilizando, efeminando tudo...

 

LEITO DE NOIVOS

Ah! quem te vira pálida e sem vida,
Na cama cor de rosa amortalhada,
E, como sendo a mesma luz tecida,
A tua trança esplêndida espalhada.

Assim te quero, Helena, desmaiada
Antes do tempo, flor gentil colhida,
Ó minha noiva, ó minha eterna amada,
Alma para minha alma só nascida.

Teu corpo frio osculo com respeito,
Tens o vestido branco de noivado,
A boca, um lírio, onde os meus beijos deito.

És minha toda enfim: fico ao teu lado:
Contigo dormirei no mesmo leito...
Que sono bom, profundo, e prolongado!...

 

SEM OSSÁRIO CONHECIDO

Tenho medo aos aplausos populares...
Pudera, água, ocultara-me nos ares:
Gritos triunfais ouvir eu não desejo.

Vir até mim, ó multidão, não queiras;
Tenho as estrelas como companheiras;
Segue-me o enxame de visões o adejo.

Assim, Helena, enquanto tu me restas,
Nestas horas, que plácidas decorrem,
Que os meles de Hibla dos meus versos correm,
Só amo as tuas ovações modestas.

Os pássaros o azul dos céus percorrem
E vão cantando à luz alegres festas;
Voltam um dia e entrando nas florestas
Morrem... Sabeis depois onde eles morrem?

 


A MOSCA VERDE

O sol é grande: o dia se derrete
Do céu em áscuas de ouro à terra: a brisa
Morre agarrada à folha, e não desliza
No vale, e o riso irônico não mete.

Nem pássaro ao vergel aí vem, que o inquiete:
Num ramo ou ninho encolhe-se; precisa
Que venha a sombra, que o calor suaviza,
Quando a chama invadir tudo promete.

Só verde mosca luzidia agita
Cada flor do jardim, em surda grita,
Num giro voluptuoso e demorado.

Helena em cima, aberta uma vidraça
Zumbe, ao acaso também, mas com que graça!
O zum... zum... com que zumbe o inseto alado!...

 

UM SOLO DE D. JOÃO

Ela vocalizava de maneira
Tão natural, tão negligentemente,
Que parecia estar ali presente
A flor, e ante ela a mosca passageira,

Nessa contínua e célere carreira,
Que, no espasmo em que fica, é de repente
Como quem, por exemplo, a rosa cheira,
E, embaixo tom, segreda-lhe o que sente.

Helena entrando à sala, a voz levanta,
De D. João de Mozart um solo canta
Na sua voz de límpido soprano;

A alma da Malibran seguiu-a ao piano,
A luz a enquadra, a c'roa e abrilhanta,
E em tudo isso entra um deus, se não me engano.

 

OS APLAUSOS

Quando Helena parou e deu por findo
O trecho da sublime partitura,
Tudo que em torno dela estava ouvindo,
Numa serena e austera compostura,

Como que irrompe em gritos de loucura,
De bravos e de aplausos a cobrindo:
Inclinavam-se os troncos da espessura,
Donde saía o furacão bramindo;

As hastes dos vergéis se ajoelhavam,
Desfolhavam-se as rosas pelos ares,
Em tom alto os trovões também cantavam:

Em mantos de ouro silfos aos milhares
C'roas de luz, para a estemar, lançavam:
Ruía em gotas do céu a água dos mares...

 

TRIUNFO

Foi um triunfo. — Em torno a ouvira tudo!
Pendurado o silêncio, como um ninho
Vazio ao arvoredo do caminho,
Das alfaias o ar parara mudo:

As asas encolhera o vento e a miúdo
Tremeu, por estar dela mais vizinho;
E a mesma luz de palidez de arminho
Teve estranha emoção, digna de estudo.

Foi ouvi-la ebriez, delírio, gosto!
E, como a luz em cima da colina,
Sua voz raiando, iluminou-lhe o rosto.

E era o seu rosto a nota peregrina,
A ária melhor que o amor tinha composto:
Ela era mesmo a música divina...

 

O IMPOSSÍVEL

Queres que fale em Deus? — Que contrassenso!...
Que falar pode a pobre criatura?
Há na semente uma árvore futura;
Equilibram-se os sóis no espaço imenso.

Dentro e fora de nós nevoeiro denso:
Sei que a vida é por mim, por ti, que dura;
Há quem o veja e meça-lhe a estatura?
Não o afirmo, nem nego. — Cismo e penso...

Deus não tem atributo algum humano:
Deus é Deus, porque é Deus, Helena amada...
O seu nome em meus lábios não profano.

A nossa inteligência limitada
Não conhece o arquiteto, a obra, o plano;
E o que sabe melhor não sabe nada...

 


CANTO DE CISNE

Desde a aurora, que brilha, ao sol já posto,
Há um canto em mim, como há pelo arvoredo
Que há de irromper, espero, ou tarde, ou cedo,
Como irrompeu na luz do sol teu rosto.

Guarda-se em si um derradeiro gosto,
Como um mistério, ou íntimo segredo,
Como água e ouro dentro de um penedo
Por muito tempo, sem ficar exposto.

Será então meu canto, o da saudade,
Que nos recorde, Helena, a mocidade,
Nosso amor, nossa vida, e nossos gozos:

Como ao harmônico giro, que descreve,
Num lago branco, um cisne negro e leve
Morre, cantando uns doces sons maviosos...

 

O ESCABELO DE DEUS

Como em torno de rubra boca um riso,
Que tine sobre pérolas fremente,
Em roda do horizonte, e rente e rente
Corria um áureo e deslumbrante friso.

No céu, largo tapete do Oriente
Estendido até quase ao paraíso,
Rico escabelo de ouro, o sol nitente,
Espera um Deus que aí vem, e já diviso.

Para o ter, se ilumina toda a esfera,
E o galerno, que vai passando, e cheira,
Com um hino aos lábios, como nós, o espera.

Ó minha Helena, ó doce companheira,
Galas, festas, e luz para quem era,
Se não foi para um Deus que ver nos queira?....

 

HELENA E AS ROSAS

Rosas, conheceis tanto como Helena
As coisas todas do universo! Rosas,
Como vós, a contar também sem pena
Ela sabe as estrelas luminosas,

Em diáfana noite azul, serena;
E ouvir as sinfonias sonorosas
De longe, ao que o destino nos condena...
Que língua é a vossa, esferas misteriosas,

Que dizem a cantar na longa dança,
Em cada vasto círculo, que trança
Uma com outra, e outra, e sem parar,

A melodia desse etéreo canto
Soube escutá-la, e traduzi-la entanto
Primeiro que ninguém o fez Mozart...

 

EM VIDA NOVA

Não sei há quantos séculos vivemos,
Quando viemos para aqui um dia!
Vi-te: lembrei-me: amado eu já te havia!
Onde? não sei. — Mas nos reconhecemos.

Depois que nesta estrela aqui nos vemos,
Que eras tu mesmo, Helena, eu já sabia:
Como duas gotas numa se fundia
O nosso ser... — Mas como nos perdemos!

Caímos outra vez no redemoinho
Deste universo... Em cada estrela um ninho
Tivemos cada um. — Noção perdida

Do tempo pôs um do outro em certo olvido:
Deu-nos por fim um Deus compadecido
O amor antigo em nova e ardente vida...

 

PINTURA AO AR LIVRE

Sobre o banco de mármore polido,
Que há no jardim em frente do repuxo,
Vem, senta-te assim mesmo, assim sem luxo:
Quem vem aqui notar o teu vestido.

Ligeiro, branco, meio desprendido
Da cintura gentil? — Traz teu debuxo,
As tintas, os pincéis: eu mesmo puxo
O cavalete... tinha-me esquecido.

Olha a paleta... Helena, já revelas,
Dizem os mestres bons, em tuas telas
Os traços largos de uma mão segura:

E uma viagem nos países da arte,
A Roma sobretudo, há de ensinar-te
Quantos segredos tem qualquer pintura...

 


QUANDO APARECE

Há criatura, como tu, Helena,
Que quando sai das sombras, e aparece,
É como o sol, que vai surgindo, e cresce,
E mete em cada raio um som de avena.

É como a lua, quando emerge, e em cena
Pôs sobre o mar um sacerdote em prece,
Héstia pálida às mãos, e que a fizesse
Subir ao céu simpática e serena.

Como estrelas, a noite abrindo o manto,
Tu derramas em tudo suave encanto,
E ouves cantar a paz, de que estás cheia,

No murmúrio doce do oceano,
Quando em hora amorosa, augusto e humano,
Ele vê rir teus pés na fulva areia...

 

CONHECIMENTO UNIVERSAL

Por esse espaço incógnito, e sem meta,
Enchendo toda a região serena,
Ouço bater meu coração de poeta,
E o teu vibrar ao pé do meu, Helena.

E tudo isto, que existe, e nos afeta,
Como as estrofes duma cantilena,
Aos sons cantada de sublime avena,
É a obra de um Deus, e obra completa.

E somos nós o Deus. — E quem pudera,
Por todos espalhar esta verdade:
O verme morre, como morre a esfera.

No fim de tudo brilha a realidade:
Voltaremos ao Deus, que nos espera;
Em Deus seremos toda a imensidade...

 

O DEUS BOM

Há, Helena, quem ande a meter medo
Com um Deus grande, que pune e que castiga:
Mas há também quem quer saber e diga
Que falam como o mar fala ao penedo.

Jamais arrasarão um tal segredo:
Porém há quem os ouça, os creia e os siga.
Eu penso que há só uma lei, que obriga!
É a lei do amor, que aprendem todos cedo.

Mas tudo diz, tudo murmura e sente,
Onde está o seu Deus onipotente:
Tem o universo a voz no olhar de um mudo:

E, Ofélia em flores, boia a natureza,
Indo do tempo eterno à correnteza:
E Ela é o Deus e o Deus é Ela. — Eis tudo.

 

NAS ALVORADAS

Temos umas três casas espalhadas
À beira, ao meio, ao cimo da floresta,
Pequenas, brancas, limpas, bem tratadas,
Como vegetações, que florem nesta.

Vamos às vezes assistir à festa,
Que faz o céu, em vindo as alvoradas,
E ao acordar das folhas rorejadas
De orvalho, quando o sol inda as não cresta.

É outro sempre esse prazer: parece,
Que tudo nasce de repente agora,
Que tudo agora de repente cresce.

Que mocidade por aí a fora!
Cremos, — eu em ebriez, Helena em prece,
Que em nós também pôs vida nova a aurora...

 

COMO ENTRAREMOS O CÉU

Quando depois de nosso último beijo,
Quando depois de séculos de gozo,
Deus entender que é hora de repouso,
(Ai! que dor! — eu, Helena, o não desejo)

À eternidade então eu pedir ouso
Um lugar, que não sei, e que não vejo,
Mas que haverá, eu creio temeroso,
E que de ver-nos nele ainda haja ensejo.

Melhor? não sei. — Mas esse paraíso,
Cuja porta a cantar, como um sorriso,
Abre em batentes de ouro e de diamantes,

Entrando, há de ir o Deus, que nos espera
Conosco a voar de esfera sobre esfera
A sóis por céus mais novos e distantes...

 


A GRANDE RELIGIÃO

Ser bom é nossa religião: fazemos
O que queremos que nos façam. — Isto
Foi o que proclamava Jesus Cristo:
Amou: e disse em suma à terra: — Amemos.

O amor é o preito à vida, Helena; insisto:
É a força, com que tudo podemos;
Nessa fé vivo: nessa fé persisto:
Ao amor, qual folha ao vento, as almas demos.

Cisnes iguais um lago atravessando,
Iremos nós num giro preguiçoso,
Ouvindo as hamadríades cantando

Dentro de cada tronco rumoroso,
Sem esperar pelo luar, que é quando
Saem em coro à relva, e andam dançando...

 

PROBLEMA SEMPRE NOVO

Helena, além da vida, o que há? Que existe?
Em que parte do céu um Deus repousa?
Que deseja? Que quer? — Saber quem ousa?
Não o conheces tu, ó grande antiste...

Dizes que o vês: dizes que já o viste!
Viste e ouviste qualquer uma outra coisa:
E de tudo, que passa sob a lousa,
Conheces bem o quanto a história é triste.

A sombra, a sombra espessa se aglomera,
Mesmo apesar dos sóis do firmamento,
Sempre a luzirem, que não têm mais era...

Deus tem de tudo um longo esquecimento!
Dos fins deste universo, o que se espera?
Nada descobre em torno o pensamento!?...

 

AUREA AETAS

A idade de ouro de Saturno e Reia
Não passou inda para nós, existe:
Sombra alguma entre nós não vi, nem viste:
Fora do amor não temos outra ideia.

Além dessa tristeza, que vagueia
Por toda parte, e a quem ninguém resiste,
Helena, como a abelha, conseguiste
Em cada flor ter mel para a colmeia.

Há um mundo de rosas que equilibra
Nossa imaginação em si; que vibra
Só para nós, à luz dos seus perfumes:

E essa luz é de um sol que não declina;
Vivemos dentro dela em paz divina,
Em paz, como no Olimpo outrora os numes...

 

O DORSO DA MÃO

Pelo dorso da mão de Helena a gente
Vê fossetas de tênues sombras cheias,
Da cor do ouro do sol: filões de veias
Correm sob a epiderme transparente.

Enlaça o lírio ao lírio em finas teias,
Põe juntas a essa pele odora e quente,
Noutros clarões de neve já não creias,
Quando olhares de perto, e longamente.

É um mimo de flor desconhecida,
Abrindo em hastes lindas de estrutura:
Delas saem doces hálitos de vida:

Tem brancura, que mancha outra brancura;
tem luz, mais luz que a luz do céu descida;
É mais formosa, enfim, que a formosura.

 

PENSAR-CISMAR

A gente toda pensa... — Helena pensa
A terra, o céu, o espaço, o que a rodeia
De tudo quanto a natureza é cheia,
O movimento desta coisa imensa;

Que é um castigo, ou uma recompensa,
O que se quer, se espera, ou se receia
Das abelhas do azul a áurea colmeia...
Sofre o homem ab aeterno uma sentença?

Faz pensar tudo!... A cisma, em que laboras,
Dá-te um espanto às rútilas pupilas,
E ondas de sombra e luz, como as auroras;

Sob essas ondas plácidas, tranquilas
Tens, como o mar, as pérolas, que irroras,
Se a dor desce à tua alma e faz subi-las...

 


A GLÓRIA ESPREITANDO

Ouves entre os fragores misturados
Num só rumor de toda a natureza,
Ouves cantar o hino da beleza
Nos turbilhões de sons desencadeados

Da minha voz, por todo céu lançados,
Levando em sua ardente correnteza
Todo o perfume de tua alma presa,
E os dons divinos teus por mim contados.

De Cós melhor, que em veste transparente,
Mais bem, que em peplo ático, te estreita,
Helena, um cheiro teu... mas teu somente:

Conhece-o bem a glória, que te espreita
Nos movimentos teus, no teu ambiente,
E em meus cantos hauri-los se deleita...

 

DO BALCÃO À NOITE

Deste balcão vê, tu, que paraíso!
Vê tu, Helena, neste céu em frente,
Entre os aromas duma brisa olente,
O que é, para elevar a alma, preciso!

Que noite, abrindo sobre nós, diviso,
Pálio de sóis num fundo azul fremente,
Digna de ti, e deles igualmente,
Que estão sorrindo lá do teu sorriso.

Oh! quem me dera, para o teu estema,
Todas as gemas dele em uma só gema
Para ti, que nesta hora beijo e abraço...

E das canções, que te urdo, em cada verso
A eterna mocidade do universo,
E o encanto, e a vida, e o fogo, e a luz do espaço...

 

A LUZ E A SOMBRA

De Sísifo a rocha, desde a aurora,
Rola-se: é bom subir pelo caminho:
Há um tronco enflorado, há cheio um ninho;
Há um lírio, entre os seixos muito embora.

Quase ao chegar, o passo se avigora:
O céu, do alto do monte, é tão vizinho!
Colhe-se a rosa, em que se colhe o espinho:
Chega-se ao cimo... Eis cai a rocha!... — E agora?

O bom é bom, porque o mau existe:
Vive-se alegre agora, agora triste:
Toda existência é nisso resumida.

Nem tudo são vergéis de olente alfombra.
Gozar a luz, e suportar a sombra,
Não maldizer, Helena, eis toda a vida...

 

PARA O INFINITO O INFINITO

Oh! a vida! No cálice da vida
Ter bebido os mistérios do infinito,
E deste ínfimo ponto, em que me agito,
Ver ante mim tão larga e tão comprida

A estrada... a estrada nunca interrompida,
Atravessá-la? Oh! hórrido delito
De ter nascido!!... O espaço é nosso: e hesito?
Sim! como hei de tentar essa partida?

Para tão longe, para o ilimitado,
Por mais que nos pareça estar vizinho
Stá igualmente o fim sempre afastado...

Helena, antes contigo estar sozinho,
Pois tenha céus, e céus e céus andado,
Ninguém sai das ourelas do caminho...

 

DEUS ENTÃO?...

Mas Deus?... Correu-me o corpo um calafrio!
Quem descobrira então meu pensamento?
Trouxe a mim, essa voz, de fora o vento?
Já de estrelas o céu era vazio:

De Helena o corpo tépido e sadio
Eu aperto mais forte em tal momento:
Crer, por amor, que vem qualquer tormento?
Ai! o homem é baixel em mar bravio;

Folha que cai e segue arrebatada:
Deus é tudo; — o universo não é nada:
A máquina, em seu grande plano, é toda

Igualmente perfeita e conservada;
E todo mundo é borboleta doida
Na luz da sua alâmpada abrasada...

 


O POSSÍVEL

O fundo olhar da estátua, o olhar escuro,
Que não aquece algum divino lume,
O olhar morto de deusa, o olhar de um nume
Num bloco egípcio, tendo o grão mais puro;

Que não está ao coração seguro;
Que em si, o que alma sente, não resume;
Onde ódio e amor não luz, como é costume...
Não... não te quero assim, mármore duro.

Tenho talvez, Helena, um melhor gosto:
Não amo a pedra branca à luz trazida
Por forro e em corpo augusto enfim transposto.

Sabes rir e chorar e ser querida;
Riso ou dor chora ou ri sempre em teu rosto:
Peço à vida o que dar só pode a vida...

 

FORA DE TEMPO

Lavraste os arabescos de um idílio?
Cismaste, Helena, sem fazer mais nada
Quando fui ver a pobre ali na estrada
E entregar-lhe um qualquer pequeno auxílio?

Pareceu-te ficar num longo exílio!
Achei-te a face triste e consternada;
E o teu úmido olhar de madrugada
Tinha um mundo de luz em cada cílio...

Rubores boreais!... eu quero vê-los
Nessa noite, que assim veio a desoras
Ao teu divino rosto, ardendo em zelos.

Chora, Helena, porque, quando tu choras,
Acolho-me ao teu colo e aos teus cabelos
Borrifados dos ouros das auroras...

 

VOLTA DA PRIMAVERA

Helena, é um grande ninho azul a esfera:
Anda tudo a cantar e tudo canta:
E a flor, que oscila sobre aquela planta,
Vive a cantar também. — Oh! Primavera!...

Diz o pássaro à flor: — Ó flor, espera! —
Para, e a beija: e ao pássaro — Com tanta
Pressa não vás — o vento diz: e o espanta;
(Que o vento à flor um príncipe trouxera,

Num manto de turquesa transparente!...)
De lá transborda uma canção sonora:
Há perto um ninho num rosal florente;

Ouve-se um hino de esponsais: cá fora;
A luz cicia em cima da corrente...
Oh! Primavera!... Tudo é belo agora!...

 

AINDA A NOVA PRIMAVERA

Helena via tudo sem surpresa,
(Que a morte eterna coisas não profana)
Surgir no álacre tom da orgia insana
As verduras da grande natureza:

Na esfera azul talvez maior beleza;
A veiga em flor mais linda e mais humana:
Na perfumosa roupa de sultana
Tinha a esmeralda transparente presa.

Levava à cinta a larga fita ondeada
Da célere corrente: em cima à fronte
Da aberta e crócea flor do sol coroada:

Pilastra de safira cada monte
Sustenta o céu: a luz aveludada
Era um véu de ouro aos ombros do horizonte...

 

SOB A MANGUEIRA

Calor canicular. — Helena agora
Deixa o jardim; está já quente a areia;
Busca o silvedo; o bosque a fronte ondeia
Ao fresco bom da viração sonora.

Vai alto o dia: o dia queima a esta hora...
Roupa ligeira: é vê-la andar; passeia;
Mancha de branco a sombra... a sombra meia
Furada pela luz do sol que há fora

E entra por entre as frestas do arvoredo:
Para: senta-se em cima de um penedo,
Sob o largo dossel duma mangueira.

Tem visões doces; não medita ou pensa:
Enquanto a enamorá-la, a árvore imensa
Lança flores sobre ela, e arqueja e cheira...

 


AMOR E MOCIDADE

Tem, Helena, no amor o seu poema
À mocidade: é o seu idílio eterno,
Que faz chorar, que faz que a voz nos trema,
Que faz que se tirite em frio inverno

Na quadra do prazer, ante o galerno
Quente e cheiroso da estação suprema
Dos risos, em que o azul é suave e terno
E o sol no meio é coruscante gema.

Então as folhas límpidas da vida,
Uma a uma ela a juventude esfolha:
E uma aqui, outra ali lá jaz caída

Por vergéis e caminhos, que após molha
Com prantos, quando volve atrás e olha,
Sem ver mais uma só visão querida...

 

NA MONTANHA

Temos dentro de nós o ar bom, que cheira;
Palhetas de ouro e azul descendo as ramas
Sobre estas moles, verdejantes camas
De relva solta, como larga esteira;

O olho fundo do céu pela clareira,
Onde entra em turbilhões a luz, e as chamas,
E a mudez branca duma água palreira,
Que veste um peplo lúcido de escamas.

Há voz por toda parte, e nada fala:
E o silêncio, que se ouve, nada o iguala;
Tendo um grande rumor, é mudo ainda:

E entre o mudo clamar de cada coisa,
Como em uma aquarela, Helena pousa,
E, linda, ela inda assim fica mais linda...

 

ILUSÕES?

Eu trouxe a Vênus, que criou Canova,
Da Itália aqui ao meio da floresta,
Onde não há um tronco, que se mova,

Nem há um ninho, que chilreie em festa,
Que não faça o que faz quem te ama e louva:
E sem querer beijar teus pés, quem resta?

Talvez esteja dentro de mim tudo
Que se inclinar por ti de joelhos vejo,
Do pássaro que canta ao seixo mudo:
Talvez apenas seja o meu desejo

De olhar-te em meio de um geral festejo;
E que eu, Helena, amando-te, me iludo:
E sobre ti abrir o céu eu vejo
Um pálio de ouro e azul, feito em veludo.

 

CONTRADIÇÕES

Fujo do mundo, amando o mundo e Helena:
E esta luta ela sabe compreendê-la:
Pois, para eu só gozá-la, amá-la, e tê-la,
Na selva densa a escondo, e a ponho em cena.

Tenho ciúmes dela, e tenho pena
Que possa um anjo, que a encontrar, querê-la,
E que eu não tenha em mim onde escondê-la...
O amor a um Éden só o amor condena.

Ó natureza, nestas coisas cismo!...
E entretanto amo a luz, o céu, a vida,
As festas, o prazer: — odeio o abismo.

Que João Valdés amava, alma em que ardia
O inferno em chamas do catolicismo,
Cujo horror em seus quadros refletia.

 

AMOR SEM FIM

Amor nos leva ao céu da vez primeira;
Amor é o mesmo em todas as idades:
Momentos cheios de imortalidades
Amor nos dá de insólita maneira.

Orfeu nos montes, Pã na selva inteira
Cantando o amor, e as suas variedades,
Deram-lhe uma áurea e triunfal carreira,
Templos lhe erguendo brenhas e cidades.

Nasceu, Helena, o nosso amor eterno:
Foi primavera; não terá inverno:
Como nasceu, há de viver assim.

O nosso amor divinamente humano
De instante, e hora, e dia, e mês, e ano
Há de ir, sem ter jamais parada ou fim.

 


MINIATURISTA

De tudo, que contigo olho florindo,
Rumor, que mete no ambiente a abelha,
Voo de colibri, viva centelha,
A violeta, que esmaga o teu pé lindo;

Borboleta, asas de esmeralda abrindo,
Na haste rosa gentil, fresca e vermelha,
Um pássaro, que passa, e que semelha
Alma de um sonho azul ao céu subindo:

Tudo que vejo eu colho, e tudo espremo
Dentro de um molde límpido e singelo,
E dar-lhe forma é meu prazer extremo,

Num poema de amor cantante e belo:
E nisto, Helena, crês (louvor supremo)
Que um bom miniaturista me revelo!...

 

AO QUE FOR DEUS

Qualquer que seja enfim nosso destino,
Quem sabe tudo, e pode tudo (hei dito)
Não, para esse não há ninguém maldito,
Nem tem consigo um código ferino.

Tudo é grande, estelar, azul, divino,
Como na orquestra um som mais baixo, um grito,
Voz doce, ou rouca eleva-se ao infinito,
Nas assonâncias triunfais de um hino.

Creio que Deus não quer mais nada, Helena.
Sofra-se a dor, a fronte radiosa,
De nosso irmão lima-se o mal e a pena.

Ser sempre bom. — Quem ama a vida e a goza,
É branco, é puro: é límpida açucena,
É límpido jasmim, é nardo, é rosa...
 

NOVO OCASO

Naquele instante estava o sol vermelho,
Como patena de ouro sobre o monte:
E os ciclopes, em torno do horizonte,
Um dobrava a cabeça, um outro o joelho.

Pantominando, como num conselho,
Do rei da luz universal de fronte,
Em que havia os reflexos de um espelho,
E era esse espelho o mar, radiosa fonte:

Lentamente os degraus ele descia
Do trono para o tálamo, em que dorme,
Num rico pavilhão, como devia...

E era todo de púrpura o uniforme
Dos colossos em arma. — Helena via
Ir descendo após ele a guarda enorme...

 

TRISTE? JAMAIS

É que este excesso de felicidade
Mete bem vezes um terror à gente!
Tudo muda: e perdê-la de repente,
Era não haver céu, nem mais piedade.

No que varia, quem confiar há de?
A hora passa em giro surpreendente:
Há também a cruel fatalidade,
Que esmaga tudo, cega e inconsciente.

Tu me perguntas se estou triste, Helena?
Não estou triste, não: mas quem resiste,
Quando enterra em nossa alma a rude antena

Inseto mau, que num zumbir ouviste,
Sem que perca o ambiente a cor serena?
Posso eu, Helena, ao pé de ti ser triste?

 

A NOITE ANTE O MAR

Uma alegria em tudo se revela:
Ri cada estrela, que na vaga ondeia,
Quando ela à noite brinca e se recreia,
Ante o mar, grande em calma, ou na procela.

E enquanto a lua aberta, como umbela
Sobre uma deusa, que uma nuvem creia,
Pequenos sóis erguiam-se da areia
A cada passo dos seus pés sobre ela.

Helena sabe o que é a natureza;
Mas sua alma de um quadro tal surpresa,
Uma estranha emoção em si continha;

E era ouvi-la nuns sons de surda prece,
Como em torre, em cujo alto cimo houvesse
Rumor de um ninho, a urdi-lo uma andorinha...

 



EM CONTEMPLAÇÃO

Sabes, Helena, o que eu nas selvas ganho,
Quando em ti me absorvo e afundo, quando
Das alucinações nas asas ando,
E procuro levar-te a um céu estranho?

É um delírio este prazer tamanho!
Fico um brâmane sério e venerando,
Só para ti, amor, olhando... olhando,
A ver se em ti o fim de tudo apanho.

Como a Terra, que habita a eternidade,
Tua alma amante e misteriosa habito,
Sol mergulhado nos seus raios de ouro.

Sinto-me aí em tal profundidade,
Que vai descendo além pelo infinito
Contigo e os sóis, que vão cantando em coro...

 

O ESPECTRO

A mocidade é pássaro que trina,
Tem grandes asas, com que o céu devora:
Nasce, e dá-lhe o bom dia a rir a aurora:
Dá-lhe estrelas a aurora, que se inclina

Do azul; como por taça purpurina
Ferve o fluido de um astro, que a rubora:
É-lhe o dia uma música sonora:
É-lhe a existência uma visão divina.

Tem o que os sonhos bons à vida pedem,
O chão se lhe abre em flores na passagem:
Tudo recorda nesta idade um Éden.

Mas pouco a pouco esvai-se-lhe a paisagem:
E resta, Helena, dos dias que precedem
O espectro apenas de tão fausta imagem.

 

O DESEJO DE UM MOMENTO

Naquele instante estávamos sonhando:
Odores vinham bons das laranjeiras,
Trazidos pelas brisas passageiras,
Cantando baixo, suspirando, e andando.

Tinha o rio a descer um som mais brando:
Davam soluços longos as balseiras,
E isso tudo, que vem a ti que cheiras,
Parecia estar rindo, estar cantando.

Era um hino tecido de perfumes,
Talvez composto por estranhos numes,
Restos que nos deixou o Olimpo e Homero...

Neste momento um só desejo eu tinha,
Entre beijos dizer-te: — Helena minha,
Contigo ir para o céu agora quero...

 

O SOL E O ARGUEIRO

O sol, Helena, é um grande argueiro: o argueiro
Pode mais do que nós? O vento o leva,
Vai ao fundo do mar, ao céu se eleva,
Brilha no templo, em cima de um outeiro:

Sai de um vulcão, onde era prisioneiro:
Corre ao acume dos Andes, onde neva:
Rola na luz, revolve-se na treva
E soberano reina em vasto arneiro.

Somos, como ele, em nossa infimidade:
Sinto entretanto haver mais claridade
Em nós do que no sol do céu suspenso:

O sol é como o círio de uma igreja:
Luz o sol, sem saber que luz, quem seja:
Tu não és sol; eu sol não sou: mas penso...

 

AMOR ETERNO

Testemunhas sois vós, astros supernos!
Enquanto eu tiver sede, e tu quiseres,
Eu tenho em ti milhares de mulheres,
Helena, ricos mananciais eternos,

Sempre novos. Não pode haver invernos,
Enquanto meus prazeres tu fizeres;
Enquanto tu me dês quanto tiveres,
E me prometem teus olhares ternos.

É tua toda minha vida; é tua
Mesmo já quando o sol não doire a esfera,
Quando a noite não veja a luz da lua,

Pois fundir-nos em Deus amor espera,
E aí seremos sempre era após era,
Quando Ele, enchendo o espaço e só, flutua.

 


MULHER NOVA

Qualquer pequena coisa a remodela,
Como dar tom mais doce à velha trova:
E ei-la outra Vênus, que saiu da cova,
E outra estranha beleza se revela.

Uma nova mulher irrompe dela
Em gesto novo, em atitude nova,
Como se recebesse de um Canova
Etéreo golpe, que a tornou mais bela.

Cantou Helena? é outra: alguns instantes
Mais quero ouvi-la, e lhe pedir conselhos
Ante seus olhos, — dois gentis diamantes.

E entre os seus risos de corais vermelhos,
Misturados com pérolas brilhantes,
Preso aos seus pés... preso aos seus pés de joelhos...

 

NOVA E A MESMA

É a mesma mulher com outro encanto,
Novo raio de luz de cor diferente;
Outra voz recitando o mesmo canto,
Que parece mais belo, surpreendente

Um nada, que a transmuda de repente:
O olhar molhado, que não é de pranto,
Lânguido, voluptuoso, inda inocente,
Como a Virgem, que veste um outro manto,

Que é azul e foi verde, e está broslado
De franjas de ouro, e estrelaria de ouro,
E o rosto e o corpo só não foi mudado:

E anda num sonho, e em um beijo eterno, e um coro
De invisíveis canções: ouço-as prostrado,
Ó minha nova Helena, ó meu tesouro!

 

A ESPLÊNDIDA LOUCURA

Tu me perguntas, Flor, se não me iludo,
Quando no vale ouvir as flores quero?
E tua voz doce, assim como um veludo,
Se estria de ouro, em tom que é quase austero.

Por que outras vezes desabrido e fero,
Tudo me irrita, e fujo enfim de tudo,
Ou vou contigo merencório e mudo?
E outras vir-me as canções do céu espero

Para pintar teu corpo, onde resumes
Quanto há de belo em toda formosura:
Pondo-te aos pés a terra, os sóis, os numes?

Então ouves cantar minha ventura:
Helena, disto tudo o que presumes?
Não é o amor a esplêndida loucura?

 

UMA CONQUISTA

Na espessura das matas, entretanto,
Há uma flor que não entrou na lista;
Há sempre lá — num esquecido canto —
Sempre Helena, a fazer qualquer conquista.

Nem tudo abrange de uma vez a vista...
Num rochedo musgoso um novo encanto
Temos na branda lágrima de um pranto
Lento e lento; e não há quem lhe resista.

Sente nossa alma umedecer-lhe essa água,
Que luz, como uma lâmina acerada,
Rolando, como pérolas na espádua

Branca de uma mulher formosa e amada:
Pensamos: donde lhe virá tal mágoa?
E a pedra chora, sem dizer-nos nada!...

 

NOTORIEDADE DE UM DIA

Nunca procures a notoriedade
No tumulto fugaz da populaça,
Que corre, freme, ondula, espuma, e passa,
Espuma e passa, e, quanto encontra, invade;

Como a maré, que move a tempestade,
Ruge, os rochedos bate, e a terra ameaça,
O povo, meio ebriado, enchendo a praça,
O vago ideal de um só momento aplaude.

Sabe acaso o que aplaude, ou só presume?
Não sabe bem se foi ou monstro ou nume!
Amanhã ele vem depois mais doido...

Ele, Helena, num grande e cego esforço,
O herói, que vitoriou num dia, — ao dorso,
Arrancando-o do altar, carrega-o ao lodo...

 


LAUS DOMINO

Louva-se a Deus por tantas coisas belas,
Ao Deus grande, ao Deus forte, ao Deus bondoso,
Que pendurou do céu o sol radioso,
E pôs no mar azul as brancas velas:

Que fez as flores, e os perfumes delas,
A terra, a vida, o riso, a paz, o gozo,
E, para a natureza ter repouso,
Cortou as rijas asas das procelas.

E a quem se há de louvar, quando a dor chega,
Quando, o leito deixando, invade o rio
O campo, a choça, a sementeira, a veiga;

Quando o homem sem lar, sem pão, ao fio,
Nem tem para lenir uma voz meiga?...
Disse-me Helena: — a Deus, em Deus confio...

 

CONTINUA...

Confio em Deus, que é toda a natureza
Em que Deus se divide e multiplica:
Há um mistério, que lá dentro fica,
Que a todos deixa em trêmula incerteza.

Ele em todas as coisas se unifica:
Está sua essência sempre em tudo acesa:
É providência, força, amor, beleza,
Ele em tudo se eleva e glorifica.

Ele conhece o maquinismo inteiro,
Em que, num dia acaso entrou, criando:
É dele o chefe e a um tempo o prisioneiro:

Ele sabe o porquê, o como, o quando:
Ele é a própria obra e o próprio obreiro,
E o plano guarda, embora o detalhando...

 

IGNORÂNCIA

Helena, esta obra é de ideais criaturas!
Há nesta porcelana transparente
Um primor de arte, que um pintor paciente
Fez do caulim, enchendo-o de figuras.

Sob os arcos as águas mais escuras
Passam, gemem, espumam; de repente
Calmas vão, refletindo o sol fulgente:
Quem fez o quadro? O homem, que o fez, procuras?

Foi Deus que é o melhor pintor da China,
Que pinta o astro que brilha e que ilumina,
E abre o céu, em que um céu e outro céu cabe...

E quem primeiro foi, Deus ou o Infinito?
Foi o Infinito ou Deus?... Quando reflito,
Não sei quem foi: não sei, não sei... Quem sabe?...

 

DISTRAÇÃO

Mas... isto! Olha daqui do bosque à fralda...
Tira os teus pés do chão, vê que te enlodas...
Assistamos, Helena, um pouco às bodas
Dos seres, que esta luz doura e engrinalda.

Lá vão em grupos borboletas doidas;
Passam dois colibris cor de esmeralda,
Leves asas vibrando ao sol, que escalda,
E indo de flor em flor, beijando-as todas...

Uma pomba, que vem da selva, pousa
Na rocha: salta, e busca qualquer coisa,
Que um providente acaso ali depôs...

Bebe a gota, que brilha, e um céu tem dentro,
E outro céu, em que os olhos meus concentro,
Vejo-a num branco voo, encher depois...

 

GUACHE

Aquela noite bela era sem bruma;
Vinha da selva unicolor o cheiro.
Passamos, eu e Helena, sobre o outeiro
Em sonhos, sem buscar ver coisa alguma..

Correram horas, sem ninguém detê-las...
Anos há em que Agosto é mês já quente:
Barcas à vela, ao longe: então foi vê-las...

Iam lambendo as vagas, uma a uma,
Deixando atrás um luminoso esteiro,
Todo fosforescência, noite e espuma,
E pingos de ouro e azul, argueiro e argueiro:

E em cima disto o céu de azul diferente,
Onde milhões de pálidas estrelas
Pareciam sorrir languidamente...

 


TEMPO FIO

Mas neste mês de Julho, em que inda há frio,
Estão de novo as mangueiras dando flores;
A cigarra não canta: as multicores
Borboletas não voam sobre o rio.

O céu é baixo e escuro; o sol sombrio:
Do bosque as verde-negrejantes cores
Sob o véu de diáfanos vapores
Estão acusando o úmido estadio.

Da capela da aldeia o som do sino
Desce a passo a colina, tiritando:
Chora uma prece, não farfalha um hino.

Nós atrás da vidraça imos olhando,
O que vai lá por fora... Ó ser divino,
Minha querida Helena, isso até quando?...

 

SOL PERENE

Senta-se à nossa porta uma esperança;
Amanhã brilhará de novo o dia;
Em nossa alcova há outro, que alumia,
Que em seu perene giro não descansa;

Nela um belo país azul radia;
Orla-o um límpido mar de vaga mansa,
Que em concha branca a Vênus embalança,
E a brisa a afaga e à curva praia a envia.

E aí sombras não há, não há vapores;
E aí ouve-se orquestra trabalhada
Sobre idílios, que falam só de amores.

E aí vivemos nós, Helena amada...
Mas anda o sol contigo, e onde tu fores,
Irás de hinos e luz acompanhada....

 

DESEJO DE IMORTALIDADE

É uma ideia, uma visão sombria
este desejo de imortalidade!
Quiséramos saber toda verdade,
Ao menos como quem conhece o dia...

Perde-se o tempo, sofre-se a agonia
Do infinito; e o que sabe a humanidade?
É este mal, é esta infelicidade
Um bem? Será pior esta utopia?

Mas se o espírito vai, sobe, vagueia
Além dos sóis, acima dos espaços,
Nas asas leva sempre um grão de areia,

E enquanto para os céus levanta os braços,
Helena, quem procura o que o enleia
Só ouve o eco dos seus próprios passos.

 

VIVER ENTRE ESTRELAS

Outra ambição minha alma não tortura;
Não sei ter e não tenho outro desejo:
Não sei em que país há mais ventura,
Nem para pensar nisso encontro ensejo.

Acho em ti o ideal da formosura;
Longe de ti prazer e paz não vejo;
Quando quero subir ao céu, e adejo,
Em ti, Helena, o céu arde e fulgura.

Fundei no teu olhar o meu asilo;
No teu seio arranjei meu lar tranquilo;
Fiz os meus dias dos teus sóis risonhos.

Quem as traz até mim, quem faz descê-las...
Se eu vivo sempre meio das estrelas,
Vivendo ao pé de ti, e entre os meus sonhos...

 

A UNIDADE DO UNIVERSO

A religião de nossas mães não finda?!...
Hão de séculos vir, talvez milhares,
Em que há de um Deus na terra ter altares,
E há de uma igreja celebrá-lo ainda.

Já o tempo a dourou da luz mais linda,
Sons alegres meteu nos seus cantares;
E as torres dela atiram-se nos ares,
Dando às novas ideias boavinda...

E é nossa vida, Helena, a do universo:
É sempre a mesma coisa em todo espaço;
Não tem princípio, nem um fim diverso:

O argueiro e o sol, os prende o mesmo laço:
Dentro de um ovo enorme o infindo imerso
Nasce, morre, renasce sem cansaço....

 


AMOR-DELÍRIO

Isto, que sinto em mim, será delírio?
Será, Helena, tudo que quiseres:
Mas amar-te entre todas as mulheres,
É meu gozo, é também o meu martírio.

Se busca o orvalho o cálice do lírio,
Eu teu seio procuro, e se mo deres,
Ponhas tu lá minha alma, onde puseres,
Estou dentro do céu, habito o empíreo.

Todo o espaço dos sonhos meus percorro,
Se lá não fico, se por lá não morro,
Sem teu amor também eu não vivi.

Por mim se estende a tua eternidade,
O teu fulgor, a tua mocidade:
Não sentirás o mesmo amor em ti?!...

 

TERRA A TERRA

Entre espíritos vãos ninguém se meta;
E entre as sombras da morte andar evite;
Quero amar e sofrer neste planeta
Mesmo um dia me afague, outro me irrite.

Viver quero, o que a vida nos permite;
Não ser num bosque um velho anacoreta;
Ou ir subindo à cauda de um cometa
Por espaços sem fundo e sem limite.

Helena, isto não queres tu, suponho,
Tu que és formosa, inteligente, e moça,
E fazes do teu lar um céu risonho:

Nem eu anjo, em que os olhos meus não ponho,
Anjo que nunca vi, ou veja, ou ouça
A não ser dentro de um brilhante sonho...

 

TERROR DA PERDA

Helena, por que cismas tanto? Eu creio
Pouco na longa paz desta ventura;
O que é bom, sabes bem, tão pouco dura,
Que perder o que é bom sempre receio.

A terra, o céu, o clima, o tempo, o meio
Dão o seu gesto a toda a criatura:
E esta existência cheia de amargura
Nos enleia, como eu te abraço e enleio.

Crer nosso amor eterno enfim não ouso:
E a eternidade, só por si, que prova,
Que tem com nosso amor e nosso gozo?

Tudo acaba e em outra forma se renova:
Não há em parte alguma algum repouso,
Mesmo na cova, mesmo além da cova...

 

APROVEITAR O GOZO

Mas enquanto não chega a fatal hora,
Vamos eterno crendo o amor profundo,
Com que me inundas tu, com que eu te inundo,
Aos clarões de uma ilimitada aurora.

Vamos amando pelo tempo em fora,
Vamos sonhando um céu de amor, segundo
O que podemos esperar do mundo,
E a fé, que nos aviva e alenta agora.

Tenhamos a coragem de um rei godo,
Que inda é grande atirado ao insulto à praça,
Inda sob os grilhões, à infâmia, e o apodo.

Helena, a felicidade é sempre escassa,
E o néctar bom, que há dentro em nossa taça,
Em cada gota encerra o saibo todo...

 

DEUS JULGADO

Já que contigo, Helena, a alma permuto,
Julguemos Deus: quem é? Minha tristeza
É não saber quem é, nem por surpresa.
Dizer que é grande, em toda parte escuto.

Contra a ideia de Deus, em vão! não luto.
Porvir, passado, o instante com certeza
Abrange tudo, — é só na natureza:
É, como Deus, mistério, e absoluto.

A natureza, e a criação com ela,
Deus pois há de levar com mais cautela,
Que a criança o ninho e os pássaros à mão.

Saber, razão de tudo, onipotência
Resolve-se em piedade, amor, clemência...
A justiça de Deus é só perdão...

 


ASPIRAÇÃO

Cada século tem uma atitude,
Traz ao nascer qualquer fisionomia,
E do que já passou ele varia
Na ambição, na moral, vício ou virtude.

Este é polido, aquele austero e rude;
Este abre mares, novos mundos cria:
Outro é Titão, só quer o céu, vigia
Sol, que prolongue a terra; astro, em que a mude.

Rumor seguido de fatais batalhas
Ouve-se em outro; um braço de gigante
Arroja ao globo múltiplas mortalhas.

A mim, Helena, apraz-me ouvir durante
Isso a tua voz, — aspiro só que valhas
Longo beijo de amor a todo instante...

 

DEO IGNOTO

Ao Deus Ignoto o hino meu entoo!
Não sei se a morte é sono, ou queda, ou voo:
Ele, que vela pela natureza,

Que tece a luz do sol de cada dia,
Que o linho branco para o lírio fia,
Dele o dano não vem como surpresa.

Faça-se em nós sua vontade: esteja
Como ele quer, no Deus que o serve, e o habita;
E a sua força única infinita
Erga, ou destrua a sua grande igreja.

Eu, e Helena, só nele a graça veja:
Ele pensa por nós, por nós cogita;
E o alvo, a que me elevo, e que ela fita,
Onde for e estiver, — bendito seja...

 

A IMORTALIDADE DE LAURA

Dos vergéis respirando o olor sozinhos,
Andando à sombra de formosa aleia,
Não queríamos ter outra plateia
Senão das flores só pelos caminhos.

Feitos a ouvir os pássaros nos ninhos,
Nunca tivemos, em Helena, a ideia
De meter a cantar numa epopeia
Nossa vida de paz e de carinhos.

Para embalar-te, Helena, em meu conceitos,
Odes festivas, não; tu me pedias
Leves versos de amor, porém perfeitos.

Foi nas suas mais doces harmonias,
Foi nas suas canções, e seus sonetos,
Que à Laura deu Petrarca imortais dias...

 

EXPOSTA AO SOL

Canta a cigarra. Helena, o sol está quente,
E mete os dardos de ouro no teu flanco,
Um após outro, como em alvo branco:
O ar cintila, e agita-se fremente.

Vamos. Nesta fogueira, a que te arranco,
Estás ardendo; vais ficar doente:
Olha: mais um instante aqui somente
Ficas morta no chão: vê bem, sou franco.

Não te posso deixar aqui sozinha:
O vento pesa, e queima: a água caminha
Lenta, tórpida; é grossa massa em brasa...

Em que te alheavas tu, que não sentiste
Este calor?... Mas ris? Tu não estás triste?
Vem: só é bom nesta hora a sombra em casa...

 

A VOLTA À CASA

Muda-te agora toda; estás molhada
De suor copioso: — uma brancura
De açucena, a flexível estrutura
De flor tão leve aos sóis fica estragada.

Sóis de Dezembro! — Que quer a formosura
Luz de tonalidade delicada:
Um rosicler, um pouco de orvalhada,
É que convém a tez tão branca e pura.

Com roupa fresca, Helena assim vestida
Repousa um pouco: menos abatida
Sobre as rendas do leito, és sobre a vaga

Vênus: na espuma aos beijos repetidos,
De amor morramos num transporte unidos;
Noutro transporte à vida amor nos traga...

 


DEVER E AMOR

Crês que a virtude em mim é força e alento?
Naturalmente as más paixões odeio;
E amo o que é grande, e no que é belo creio:
Noutros e em mim o mau sempre é tormento.

O ser piedoso e bom é meu contento;
E quando inclino a fronte no teu seio,
Acho a existência um bem, e encontro o meio
De levantar ao céu meu pensamento.

Queres saber que ações eu preferira?
Nunca, Helena, ações de alma corrompida;
Contra a baixeza tudo em mim conspira.

De dever e de amor é feita a vida:
Se por dever eu Gólgotas subira,
Por amor eu descera aos pés de Armida.

 

UMA POR OUTRA

Helena, é meu prazer, gosto de olhar-te,
E ver-te nessa triunfal postura,
Que exiges tu e exige a formosura
No nobre orgulho ideal da forma e da arte.

E o belo só não é que faz amar-te;
É a graça também, essa flexura
Do teu corpo de deusa, e uma doçura
Do olhar teu, que contigo a luz reparte.

É isso, e inda outras coisas mais: um laço
Transparente entre o céu e a terra: e ao vê-la,
A outra estrela, a tua irmã no espaço,

Do azul, que a engasta, quero desprendê-la;
E encostado ao teu flanco, acho em meu braço,
Em ninhos de ouro e em ti a mesma estrela...

 

RAZÃO E INSTINTO

Helena, tudo morre, e tudo nasce:
Anda a matéria e a vida em movimento,
E trazem dentro em si um pensamento,
Com a marca com que Deus o carimbasse.

Quem é Deus? Ah! se alguém me perguntasse,
Ignoro, eu lhe dissera em tal momento:
Mas encontro-o no mesmo pó, que o vento
Levanta ao chão, e me arremessa à face:

Num astro, que não vibra mais, extinto,
Morto, frio, sem luz; eu palpo-o, o sinto:
E esse cadáver, esse excídio infindo

O atesta, como em larga estrada, um cego,
Como uma árida rocha, em meio ao pego,
Sentem sol, que os feriu, e os vai ferindo...

 

TRISTEZA NA ALEGRIA

Do berço à cova a sombra do mistério!...
No tempo e no infinito a gente pensa!
Vive de fé, de hipóteses, de crença...
Tudo é grave na vida, e tudo é sério.

Da verdade e o fantástico, o adultério,
Levanta ao céu uma coluna imensa;
Crê que lavrou uma fatal sentença:
Mas a razão fixou seu largo império.

Em lágrimas amor acende o facho;
Dentro de um pranto surdo a voz lhe ouviste:
Há riso em cima, há dor qualquer embaixo.

Tudo isso, Helena, em ti e em mim já viste:
E em todas almas cismadoras acho
Que é a alegria sempre um pouco triste...

 

O JULGAMENTO FINAL

Há miríades de anos que a cobiça,
O ódio, a inveja, o terror tinham altares:
Povos novos porém noutros lugares
Em templos novos ouvem nova missa.

Nação que a outra nação a guerra atiça,
Lendas faz hoje, e histórias singulares:
Cobrem montes, planícies, céus e mares
A grande paz serena da justiça.

O universo, o que existe, e vive, tudo
Anda fervendo dentro de um cadinho:
Nem foge o mesmo Deus à cifra, e ao estudo:

Ser livre é o ideal de hoje, adivinho,
É ter asas... Helena, eu não me iludo,
E vou por trecho mau de um bom caminho...

 


A NOVA FORMA

Nossa alma aspira sempre à eternidade;
Não há eternidade sem mudança:
Minha Helena, percamos a esperança,
A forma de hoje em nós ser mais não há de.

A natureza é dura, e sem piedade;
Ninguém dela favor algum alcança;
Ela trabalha sempre, e não descansa
Por ter força, e fulgor, e mocidade.

O mal dos males, o maior sem cura,
É o mal da morte: — amor o não procura;
Da vida os males, pelo amor, suporto-os.

Não é a ideia de ir além buscá-los;
É o espanto, é o horror de acompanhá-los,
O que fica entre nós, lembrando os mortos...

 

SONHO

Amar por toda a eternidade! Ouvira
Helena: acaso ouvi eu igualmente.
Quem em si entretanto um Deus não sente?
E com ele quem é que a amor fugira?

Longínquo acorde de invisível lira,
Que ouvimos, sim! que chega, e embriaga a gente,
Que é de um país de aromas, como o Oriente,
De um país pelo qual a alma suspira!

Belo país, país de sonhos vagos,
De montes de ouro, e prateados lagos,
Aonde o sol brilha, fulge e não escalda;

Aonde é céu um bloco de safira,
Que o buril só de um Becerril abrira,
E aonde os bosques são todos de esmeralda...

 

COBARDIA E CORAGEM

Não vale a eternidade, Helena, a vida
Se a polui ou baixeza ou cobardia:
É ferro em brasa, que nas carnes chia,
E deixa feia cicatriz dorida.

No extremo transe a lágrima bebida,
Ninguém a saiba e a veja todavia;
É da alma forte a sombra da alegria:
Quem vendo um forte um dia acaso o olvida?

Homem, vê por onde andas tu, vê onde
Pões pé: — abre-se o abismo? dele corre:
Cais?... Tu gritas em vão: quem te responde?

Em vão! Nem mesmo o céu te ouve e socorre:
Num nobre esforço a dor no rosto esconde,
E firme, envolto em teu orgulho, morre...

 

ÍMPETO DE LOBO

Helena estava em frente da janela,
Por onde o vento francamente entrava;
E a morder-lhe o pescoço, levantava
Os fios de ouro dos cabelos dela.

A cabeça inclinada à luz da vela,
Que ora estava serena, ora oscilava,
Escrevia: — a letra miúda escorregava,
Vermiculando o chão branco da tela.

Eu, atrás dela, em sua alcova estreita,
Como quem um qualquer segredo espreita,
Ardia ao fogo atroz de mil desejos...

Agarrar, como quem fizesse um roubo,
A nuca, e como em fome e em sede um lobo
Tragá-la aos poucos, gole a gole, em beijos...

 

A JOIA DE CELLINI

Sonha Cellini, que do sol saía
Como pistilos de uma flor abrindo,
Cristo Jesus, — o louro infante — rindo,
Ao colo da santíssima Maria.

E num trabalho de ourivesaria,
Obra triunfal, e de um valor infindo,
Que outra igual não verá a luz do dia,
Fixou seu sonho, o sonho seu tão lindo.

Deus tem o gênio sob a sua vista,
Dizia o Papa: — é um estranho artista,
A que eu, mau grado tudo, me submeto. —

Oh! quem me dera, minha amada Helena,
Pôr-te dentro de joia tão pequena,
Grande a um tempo, e imortal; fosse um soneto!...

 


NOVOS MUNDOS

Helena minha, queres que te diga?
Com alguma mulher não te comparo;
Nem com modelos de um mármore raro;
Nem com outras, que canta a musa antiga.

Uma imortalidade te preparo,
Que vença o tempo, o ódio, a inveja, a intriga;
Que um século a outro século prossiga,
Repetindo teu nome, a mim tão caro.

Um carinho não feito, um beijo dado
De um certo modo nunca imaginado,
No som da voz um lânguido luar,

Dá nova vida ao amor, e novos mundos
Brilham dentro dos olhos teus profundos,
Terras novas no fim de um grande mar...

 

IDEALIZANDO

Todo o teu corpo esplêndido revela
Nas conchas de ouro nele semeadas,
Mar, que o bebeu em rápida procela,
Cheio de vagas múrmuras, cantadas:

E nas espáduas brancas torneadas
De uma Milo, que a Milo inda mais bela,
Todos os beijos, que eu lancei por ela,
E nela, como pérolas douradas.

Ouço-te, e fala a estrela, e eu sei ouvi-la,
É como o som de harmoniosa lira,
E neste amor, e nesta paz tranquila

Vejo em ti, o que em ti eu sempre vira,
Nos olhos todo o céu, que me rutila,
Nos pés a terra, que aos teus pés suspira...

 

SUPERIOR

Tu não és uma flor da fantasia,
Um sonho, uma visão, que nos domina:
Não tens a limpidez alva e franzina
De um lírio, que se queima à luz do dia:

Não és o cacto, que uma noite cria,
E mal passa a manhã se fana e inclina;
Arrancou-te ao Carrara uma utopia,
E fez-te o gênio deusa peregrina.

Tens as formas augustas de Minerva,
E em teu olhar um raio de aço brilha,
Que a ti, como num trono te conserva.

De um Deus do Olimpo tu pareces filha:
Não sei que glória eterna se reserva,
Para quem pisa céus, quando o chão trilha!...

 

A MINHA FORÇA

Helena, a chama, que de ti radia,
Mete-me em quente esfera gloriosa:
Tens a brancura triunfal do dia,
Coisas de mar, e brisa caprichosa.

Meu nimbo é a sombra só do teu, Formosa,
Bloco de luz veiado de harmonia:
Em ti deu corpo um mago à estrelaria
De um luar na água, em noite perfumosa.

Onde vais tu, fanal do meu destino,
Levas aos pés acorrentado um hino,
Que o tempo escuta, colhe, e ao longe expande.

Quem és? O gênio, que a cantar revelo;
E acendendo-me a força e o amor do belo,
Me diz a rir, quase a chorar: — És grande!...

 

INDAGAÇÃO HISTÓRICA

Quando, Helena, milhões de brasileiros
Nesta divina pátria nossa amada,
Por nossa causa um dia despertada
For — talvez — os poetas forasteiros

Hão de buscar a sombra dos loureiros,
Onde amamos; e em que ermo, em que esplanada
A nossa casa esteve alevantada?!
E hão de nisto levar anos inteiros.

Quais foram nossos mais íntimos gozos?
Quando os fruímos mais? E como? E aonde?
Nossos prazeres são misteriosos...

A árvore nasce, cresce, e enquanto esconde
Na escuridão da treva os pés nodosos,
Só mostra à luz azul do céu a fronde...

 


SUA FATA LIBELLI

A escória de um vulcão em si conserva
O molde augusto de uma Vênus morta:
E um rei, que já foi grande, hoje que importa?
Cresceu-lhe sobre a história o olvido e a erva.

Em si milhões de séculos suporta
Belo trecho de um Paros de Minerva,
Fechando a glória ao autor a ebúrnea porta:
E a ti, Helena, o que o porvir reserva?

A cinza guarda um triunfal modelo!
Para salvar-te ao tempo, eu canto, eu luto:
Tudo está preso a um fio de cabelo;

Ou ganha ou perde tudo um só minuto:
Mas teu nome hei de aos versos meus prendê-lo,
E inda o teu corpo, mármore impoluto!...

 

A CELEBRIDADE

Quando esverdeia o musgo do abandono
Na pedra, onde se dorme o último sono,
E o olvido, — o vil, o esquálido lençol —

Que inda a cobriu, de vez seja rasgado:
Teu mito por meus versos celebrado,
Há de sentir dourá-lo a luz do sol.

Helena, buscarão em que cidade
Nasceste, quem és tu, o que é preciso
De tempo a um triunfo, ou se isto é de improviso:
Que havia em ti de estranha divindade?

De boca em boca toda a mocidade
Cantará o meu beijo, e o teu sorriso,
E esse amor, onde foi meu paraíso,
Que há de o amor repetir por toda idade...

 

A LENDA DO ÉDEN

Hás de lembrar-te ainda da tremenda
Queda dos nossos pais, que a história conta:
Helena, sobe os séculos, remonta
Ao livro santo e após do Éden a lenda.

Aqui há muito que se leia e aprenda.
É na aurora da vida que desponta
O amor, que tudo eleva e tudo afronta:
É bom que cada qual o saiba e entenda.

Deixar a luz, para cair na treva,
Deixar tudo o que é belo e grande a troco
De um sonho vão, que ao erro e à dor nos leva!...

Deus dava tudo: e tudo inda era pouco:
Que mais queria Adão? Que mais quis Eva?
Ter tudo e querer mais? — Não é ser louco?!...

 

O NASCIMENTO DE EVA

Quando pediu, um dia, o homem primeiro,
Cansado de estar só no Éden fruindo,
Quando pediu a Deus, entressorrindo,
Para gozar consigo, um companheiro,

Deus quis mostrar-se excepcional obreiro,
E fez, então, o que houve de mais lindo,
Fez a Mulher, primor, que ele exibindo,
Pôs, mudado em seu eixo, o mundo inteiro.

Era demais aquela maravilha:
Mais do que o sol, mais doce que o sol, brilha;
Aparição assim jamais foi vista.

Viam-se estrelas mesmo à luz do dia;
E o cântico que em tudo então se ouvia,
Era um Te-Deum da natureza ao artista...

 

A GRATIDÃO

Mas o Senhor, em tudo extraordinário,
Deu-lhe uma companheira com certeza
Compatível com sua natureza,
Joia sem preço em seu divino erário.

Ser grato era-lhe agora necessário:
Amá-la muito, a chama sempre acesa
De um grande incêndio e lirial pureza
Trazer no coração, feito um sacrário.

Sentiu que, perto dela, ele crescia:
Na alma igualá-la viu dia após dia;
Viu ter em si a mesma etérea essência.

Deus moldara-o também para ser dela;
E rir ouviu, na aparição tão bela,
Dentro e fora de si toda a existência.

 


ADÃO E A COMPANHEIRA

Quase atônito Adão, e ebriado ao vê-la,
Deslumbrado, porém não satisfeito
Ficou desta obra augusta, em seu conceito
Melhor que a luz, mais bela que uma estrela;

Disse em si: — Por que fez tal obra? E fê-la
Mais do que lhe pedira com efeito:
E, inquieto o coração dentro em seu peito,
Foi de braços abertos recebê-la.

Oh! como o corpo tinha um suave cheiro!
Oh! que delícia penetrante e doce!...
Era o céu todo ante um pequeno argueiro!

Por que digno de a ter consigo fosse,
Lhe era preciso ser um deus primeiro...
E um terror vago na alma ao pasmo enleou-se.

 

DEUS EM TRABALHO

Deus perdido no fundo do seu sonho
Tinha na mente um grande pensamento,
E, como o lume errante e incerto ao vento,
Ora triste ele estava, ora risonho.

Parecia dizer em tal momento:
— Tenho medo da obra que componho:
Assim: há de ficar um monumento:
Mas... doutro modo... era melhor... suponho! —

Deus, artista, deixou vencê-lo o gosto:
De modo que um ao outro soto-posto
Dava um só... De escultor obra genial.

Apenas um do outro era metade:
Um era a força junto à majestade:
Outro a doçura, a graça, o belo, o ideal...

 

DEPOIS

Mas Deus, no caso, tinha sido omisso...
Apenas tinham leve conjectura,
Só um desejo, uma ânsia, uma tortura...
Sem poderem querer mais nada disso.

Cada qual ao escultor, que o fez, submisso,
Nenhum deles por si achar procura
Onde estava outra forma de ventura...
Se tudo andava em luxuriante viço!

Renques de rosas, filas de amarantos,
Sândalos, frutos, ondas de perfume,
Misturando-se aos mais variados cantos;

Joias e pedrarias de água em lume...
Não lhes bastavam já esses encantos,
Nem Deus entre eles como de costume...

 

NO ESPELHO D’ÁGUA

Um via o outro; a si porém não via:
Numa ingenuidade imensa, ter certeza
De sua grande e esplêndida beleza,
Os dois quiseram nos vergéis um dia.

A menina dos olhos refletia
Um e outro: era isso uma estranheza:
Não lhes bastava: a natural grandeza,
O tamanho gentil lá não havia.

Foram mirar-se ao espelho luminoso:
A água, ao tê-los em si, ficou mais linda;
Guardou, pra os ter melhor, maior repouso,

Ebriada e muda a fruir de uma tal vinda:
Disse Adão: — Como Deus me fez formoso! —
Eva: — Sou, do que Deus, mais bela ainda! —

 

A VIRGEM

O ar cantava, ao ouvi-la e ria, ao vê-la.
O sândalo precípite inclinava
A fronte verde, quando ela passava:
Nua, a fonte quisera em si contê-la.

Quem nos braços pudesse adormecê-la,
Para os lírios contar, que ela pisava:
Tinha por ela a flor o amor de escrava;
Tinha por ela a luz o amor da estrela.

À sombra de ouro dos cabelos bastos
Brilham no olhar mais doce os sóis mais castos,
Vestia-a só diáfana alvorada.

A esposa, a mãe talvez houvesse nela;
Mas... tão humilde, e, além de humilde, bela:
Era a Virgem de auréolas cercada.

 


SEMPRE! SEMPRE!

Assim os esperava a eternidade!
Iam calmos assim para o infinito,
Sem nenhuma emoção, de espanto um frito...
Numa monótona perpetuidade...

Da paz sem trégua a grande intensidade!
Deus num halo de glória a iriar, um mito,
De aloés, incenso, mirra o odor bendito,
Longa aleluia, plena felicidade...

Oh! que desejos de mudar de cena;
De ver tudo ao contrário, amada Helena;
De esquecer por uma hora o canto e o riso,

De ver a fera em cóleras uivando!...
Mas era tudo tão suave e brando!...
Mas era tudo aquilo o paraíso!...

 

E AINDA

Hoje tem a tristeza a augusta vida,
Essa tristeza que do céu radia,
Que enche de sombras o mais puro dia,
E que a cismar, pensar, amar convida;

Deles só a alegria era sabida:
Nunca mudava, nunca, essa alegria!
E lento e lento, o coração batia
À luz de um sol jamais interrompida.

Eva era toda a essência de uma rosa,
Adão a boca ideal, rubra e mimosa
A respirá-la por jardins tranquilos.

Perto, ali mesmo, a fabricar seus ninhos,
Torcendo a palha ao bico, os passarinhos
Iam cantando, e os dois a rir e a ouvi-los!

 

A ETERNA ALEGRIA

A relva era de idílica beleza:
Era a selva de sândalo cheiroso:
O ar vinha cantando ao par ditoso
Hinos verdes de esplêndida grandeza.

O leão de olhar macio e sem dureza
Buscava os pés lamber-lhes carinhoso:
Respirava o silêncio num repouso
Doce, como era em torno a natureza.

Adão da Virgem pura e imaculada
Bebia aos beijos, sem querer mais nada,
O leite do seu corpo, — ebúrneo vaso... —

Deus ria à parte, vendo-os prazenteiros;
Ou riam todos três, dias inteiros,
Deus, Eva e Adão, sem arte, em grupo, ao acaso.

 

PELOS VERGÉIS

Deus os via de longe, arfando em zelos
Indo pelos vergéis, e vindo a passo,
Nus, pelo sol, de luz enchendo o espaço...
E anjos vinham do céu a surpreendê-los.

Quadro novo, era cada vez, ao vê-los
Presos por transparente e forte laço;
E a fronte, e o rosto, e o colo, e a espádua, e o braço,
Pernas e pés em véu de áureos cabelos.

Não era em vão o sexo diferente,
Imo rumor, rumor de um fogo ardente
Lhes crepitava em delicioso anseio.

E quando Eva em transporte enleava o esposo,
Adão sentia um dolorido gozo...
Gozo e dor a pungir-lhe a fundo o seio...

 

EXPERIÊNCIA DE EVA

Quando Eva só ensaia algum caminho,
Há de alegria em tudo uma vertigem:
Quando ela um pé levanta, chilra um ninho;
Dá de um pássaro a um canto novo origem.

Do bosque as feras todas se dirigem,
Para vê-la passar, deixando o arminho
Escuro; a neve dele é só caligem,
Tanto ela esplende — Adão ficou sozinho...

Hoje é sua a apoteose — O Éden toma
Uma estranha beleza; — e maravilha,
O que de bom na natureza assoma:

Em cada galho de árvore um sol brilha:
Da selva vem mais novo e doce o aroma:
Mesmo, como aos seus pés, o céu se humilha!...

 


PAVOR GERAL

— Eva, não sei o mal que nos espera!
Mas... enquanto não vem, quero, ao teu lado,
Gozar contigo desta primavera. —

Sobre a pele de um tigre Adão deitado
Sentia o dorso estremecer da fera:
Ao pé Eva montava um leão dourado.

Em círculos o Éden todo vinha
Ver sem cuidos ali seu rei brincando:
Mostrava a mesma pedra o olhar mais brando:
Move-se a selva... a selva então caminha?

Tudo vem... tudo chega-se à rainha:
Cantam sobre ela os pássaros em bando;
Como um vago terror, de quando em quando,
De vê-los ir, a natureza tinha...

 

O IDIOMA DO ÉDEN

Não dizem nada as santas escrituras,
Do que Deus conversava ali com elas,
Com essas duas criações tão puras,
Com essas duas criações tão belas.

Lá não havia rixas e querelas,
Noites sem sóis, lugubremente escuras:
Língua houve só para contar venturas,
Em vozes claras, límpidas, singelas.

Saber? o quê? e para quê? A vida
Perto do céu, sem dúvidas da sorte,
A lentos sorvos de prazer bebida,

E sem que o fio de ouro alguém lha corte,
Não tem questão qualquer desconhecida,
Nem tem que ir dar combate à dor e à morte.

 

O IMPOSSÍVEL EM DEUS

Deus, talvez triste, um pouco anda erradio
Num manto azul de luz todo envolvido,
Anda na selva só, quase escondido:
Cisma... para... caminha... Está sombrio.

Veio do céu um dia aborrecido,
Como quem busca um clima em vale mais frio:
Em tanta glória tinha ali vivido,
Que o Éden lhe fora um plácido desvio.

Como fez anjos, fez também aquilo...
Adão... Eva: de argila os fez, tranquilo.
Depois olhou-os: meditou... Foi mudo.

Deus não recua: o que Deus faz, está feito:
Há lei também, em que anda ele sujeito:
Deus é Deus: porém Deus não pode tudo!...

 

DEUS À DISTÂNCIA

Visto de longe Deus é um gigante,
De uma beleza, de uma mocidade,
Que só podia ter a Divindade...
Era assim visto a andar, porém distante.

Como em chamas, etéreo, deslumbrante,
Havia um vago em sua majestade,
Que já não parecia a realidade,
Que antes era visão de instante a instante.

Tinha seis asas de ouro em cada ombro:
Era uma maravilha, era um assombro:
Era um arcanjo em luz, quando ele passa.

Mas à medida que chegando vinha
O aparato de um Deus perdido tinha,
Guardava só de Adão o porte e a graça.

 

SENSAÇÃO NOVA

Sentiu-se Adão, um certo dia, alheado:
A quanto tempo ele existia? Quanto...
Quanto tempo teria então passado
Nessa ebriez do seu divino encanto?

Era mais que tortura aquele espanto!
Era uma dor... como uma dor do lado,
Ou golpe, a espera de um remédio santo,
De que ele enfim pudesse ser curado:

Por toda a parte olhava: — ele ia absorto:
Jamais vira cair um corpo morto,
E cria que era assim que ele caía.

De Eva buscava a deslumbrante face;
Que fora dele se Eva lhe faltasse?
Deus, Éden, tudo então lhe faltaria.

 


DELÍCIA AMARGA

Sofrer, e não saber por quê? — Que luta!...
Ter o esplendor de um mármore com vida,
Vestal guardando a chama ininterrupta,
Fazendo um mal, que vem de ser querida?!...

Labareda no corpo arder escuta
Lá dentro: é Eva ao fogo derretida,
E a mesma luz, de que ela anda vestida,
Saindo, entretanto, em singular permuta.

Sofrer? — Sofrer!... Mas nada lhe doía!
Era um outro prazer, outra alegria...
Um pungir!... E isso mesmo era-lhe um gozo!...

Não definia bem o sentimento:
Vaga delícia amarga de um tormento...
Era um bem, que o deixava sem repouso...

 

O MAL EM EVA

Eva no entanto tinha qualquer coisa:
Sentia em si a langue morbideza,
Que ela cria envolver a natureza,
Que explicar a si mesma ela não ousa.

Em Adão suas mãos divinas pousa,
Como quem busca apoio e fortaleza:
E de uma dor secreta alheada e presa,
Dizia-lhe a tremer: — Sou tua esposa...

Piso em falso num sólido terreno:
Para as estrelas, para Deus apelo,
Apelo para o azul do céu sereno:

Há uma embriaguez, um mal do belo,
Há no amor mesmo puro algum veneno
Que acre o torna, e anda em nós, como um flagelo. —

 

ESQUECIMENTO

E Deus vinha descendo a veiga amena,
E Adão sentia logo um novo alento,
Espantado de si, e o esquecimento
Daquela confusão, daquela pena.

Eva irradiantíssima e serena
Respirava do olhar um tal contento,
Que o Éden todo bebia esse momento
De inexcedível gozo em taça plena.

Deus bem sabia o mal que tinha feito:
Quis juntar neles dois um par perfeito,
E o fez em rapto e artístico delírio.

Tinha tudo de grande essa obra imensa:
Mas olvidou-se, pondo-os em presença,
Que os não fizera para o amor do Empíreo.

 

A COBRA

Por vez primeira a vê passar a cobra,
Dentro de lua em círculo, num halo:
Que prodígio!... Outro nunca há de igualá-lo!
Pensou: e a língua estende, e volta, e dobra.

Tudo que é belo e esplêndido lhe sobra,
Deus mesmo sente em si um grande abalo!
Pode tudo: o que pois há de orgulhá-lo?
Mas... que encanto ele vê numa tal obra!

Chegam-se as feras: — Eva a compreendê-las;
Ruge o leão: — há muito não se espanta:
Mesmo lambe-lhe as mãos, que olha, e quer vê-las:

E vão na fronte auréolas de santa,
Dos céus nos olhos com milhões de estrelas,
Clarões nos pés de um sol, que se levanta.

 

A QUEDA

A queda!... O que era a queda? A eterna ameaça?
E aos pés o luxo, e a paz, e o paraíso?
Para cair, o que era então preciso?
Sorria! e com que riso, e calma, e graça!

Não: não hei de cair, por mais que faça:
Tudo em meus lábios vem deitar um riso:
Por caminhos de relva em flor deslizo:
Obra de Deus temer pode a desgraça?

Tão feliz, mas tão boa, quem não há de
Crer, que pode cair? — Quem pode vê-la,
Sem provar-lhe os tesouros de bondade?

Deus preveniu-se em tempo inda, ao fazê-la:
Deu-lhe o instinto, que a guarda, e por piedade,
Pôs os raios do sol na opaca estrela.

 


O CONSELHO

Eva agora com gosto a serpe ouvia:
— Vem, modelo sem par de formosura;
Anda contigo um céu, ideal criatura,
O sol não dá mais doce e claro dia.

Eras digna de ter maior ventura:
Existe o fruto da sabedoria:
Deus proíbe tocá-lo: outro Deus cria;
Quem o comer, vai, sobe a grande altura.

Teu gesto bom a todos conquistando,
O Éden fará irredutível, mudo. —
E dando à branda voz um tom mais brando:

— Não te aflijas ao ouvir um grito agudo;
Come com Adão o fruto; — e come, quando
A grande paz da sombra invade tudo. —

 

OS ARCANJOS CANTANDO

Muitas vezes no Éden de repente,
Batendo as asas múltiplas, douradas,
Os arcanjos em grupo, em revoadas,
Vinham cantar aos três, parando em frente,

E ao som das doces harpas dedilhadas,
Melancólica história, em voz dolente,
Narravam, de ações más no céu passadas,
Que Deus venceu, mas não ficou contente.

Eva, tremendo, ao ouvir, um pouco fria,
Sob um véu fugitivo de tristeza,
Conchegava-se a Adão; — Adão sorria.

Dessa ideia ela agora andava presa;
Parte do céu com sóis cair ouvia:
Mas isto era um mau sonho com certeza...

 

ADÃO E EVA

— Há só para o que é triste agora ensejo:
Hão de vir dias cheios de amargura:
Não nos bastava aqui tanta ventura?
Como sabe em teu rosto um casto beijo!

Eva, não quero mais, nem mais desejo:
Só mal — só mal a inveja te procura;
Só em pensares nisso, olha, criatura,
Ponho os olhos no chão, quando Deus vejo.

A que imprudência a serpe te convida!
Vê que podes mudar a nossa sorte,
Mudar tudo em nós, mulher querida.

Acautela-te tu de ti; sê forte:
Disse a cobra, que o fruto era o da vida:
Mas disse Deus que o fruto era o da morte. —

 

REFLEXÕES

Não sabiam, felizes! que existisse
Outra atitude, e vale, e campo, e flores;
A mesma claridade, as mesmas cores!
Ah! quem amar nesses jardins os visse!

Uma inocência, um raio, uma ledice
Batiam asas cheias de esplendores:
Anjos passando, pássaros cantores...
— Se isto acabasse! — Eva consigo disse.

Bastava a Adão a sua companheira;
Ela enchia-lhe bem a vida toda:
Tinha a razão, a boa conselheira.

Esse eterno festim de eterna boda
Deixar! Expor a paz da vida inteira!...
Era, além de ser má, uma ação doida!

 

O CÉU INVADINDO O ÉDEN

Um revoar de arcanjos nunca visto,
Com plumas de rubis e de safiras,
Estes com harpas, serafins com liras;
E Adão consigo a refletir: — Que é isto?...

— Eva, não vês? É novo: e não te admiras?
Eva, repara: em que olhes bem, insisto,
Rumor de vozes, músicas em misto;
Anjos nus, cheios de secretas iras!...

Deus no meio entre os mais brilhantes raios,
O Príncipe da luz movendo um dedo,
E os Tronos voando em torno dele: olhai-os...

Deus fala agora, vê, baixo, em segredo:
Há clarões, tendo súbitos desmaios...
Eu não sei por que tremo... Eu tenho medo... —

 


ÚLTIMO CONSELHO

— Eva, ânimo! está próxima a hora.
Deus tem medo de vós; — sabei-o ao certo:
Reúne todo o céu aqui: está perto
De banir-vos, os dois, de pôr-vos fora.

Éreis só três — Deus, Eva e Adão: — agora
Não sois só três em plácido deserto!
O segredo, que nisto anda encoberto,
Eu sei, vi-o chorar! Tem medo! chora!...

Não é perder-vos, não: o que lhe importa,
É deixar de ser Deus: ele vos teme,
E lança os olhos com terror à porta

Por onde há de sair em breve; e geme!...
Comei do fruto... a sua força morta,
Sereis Deus com poder imenso, extreme...

 

REPUGNÂNCIA DE ADÃO

— Esta serpente esquálida e medonha,
De pele áspera, de escamas cheia, escura,
Que a sombra escusa dos moitais procura,
E que parece ter do sol vergonha;

Traiçoeira, sutil, de má figura,
Que faz que dorme e faz pensar que sonha,
Não tem ninguém no Éden que a suponha
Capaz de uma ação boa, uma ação pura;

É vil; ondeia, salta, o corpo arrasta:
Todos a fogem, como de um perigo,
No flóreo prado, na floresta vasta:

Ninguém a quer: não tem um só amigo.
Eva, foge também da serpe; — basta
O susto, em que ando; o horror que anda contigo.

 

A SERPE SÓ COM EVA

— Gentil Princesa, se ainda vir eu ouso
Lembrar que tardas em colher o fruto,
É que, enquanto o não tens, eu não repouso,
E com visões aterradoras luto.

Ah! não demores meu supremo gozo:
Sem justas ambições te não reputo:
Sereis, tu só e teu sagrado esposo,
Donos disto: do próprio Deus o escuto.

Serão ordens somente os teus olhares,
E a natureza, em tudo obediente,
Dará vida ao que dentro em ti pensares.

Baixará aos teus pés o céu fulgente,
Anjos e sóis, escravos aos milhares
Virão servir-te, deusa onipotente!

 

O AMOR DE DEUS

E Deus mais uma vez tristonho e doce
Chegou-se ao par gentil com passo tardo,
E lhes disse: — Por vós de amor eu ardo,
Como se todo sarça em fogo eu fosse.

Não se esqueceu, Adão, Eva, lembrou-se
Que vos proibi tocar nesse bastardo
Fruto, que fere e mata, como um dardo?
Lembrar-vos isto, aqui hoje me trouxe.

Nas faces um rubor maior, mais lindo
Eva tinha; no olhar um resoluto
Raio fulvo a animá-lo... — O céu infindo,

Tornou Deus, toda a terra há de ser luto,
E aos vossos pés o mesmo Éden fugindo
Dirá... Comeram do maldito fruto!

 

O FRUTO

Eva a Adão: — Olha a serpe, o que tem dito:
No pomo está todo o poder, é certo:
Não quer Deus o segredo descoberto,
E traz no tronco o olhar constante fito.

O meu poder com teu poder permuto;
Adão, é já bem pouco o teu trabalho,
É só metade, come, acaba o fruto.

Quando o pomo não foi mais preso ao galho,
Em cima a noite se vestiu de luto,
E caiu, como lágrimas, o orvalho:

Rompeu da árvore logo agudo grito,
Como o de um Deus, que andasse ali por perto,
E tudo transformou-se num deserto
Árido, feio, lúgubre, infinito...

 


A SAÍDA DO ÉDEN

Ao caírem os dois, tudo caía:
Belos ainda, vê-los já não ousas:
Havia em tudo as lágrimas das coisas;
Quem não chorava então, também não ria.

Do Éden de ontem nada mais havia:
Em cardume andam doidas mariposas:
Por ervas mortas só teus olhos pousas:
Tudo é total, tudo é melancolia.

Sabem: — fizeram jus à sua ruína:
E vão, perdoando aos anjos, que se excedem,
Ao pô-los fora da mansão divina.

Já não podem querer; já nada pedem.
E Adão, beijando-a: — Esposa peregrina,
O amor nos resta; e o amor resgata um Éden.

 

ADÃO À PORTA DO ÉDEN

— Anjos, saímos já: nada queremos:
Das mãos nos escorrega o paraíso,
Como o irradiamento de um sorriso,
Que está perto de nós, e nós não vemos.

Isso, que nosso foi, já foi, não temos:
Tudo, ó Eva, perdemos de improviso;
Saibamos bem deixar o que perdemos:
O orgulho do vencido hoje é preciso.

Mas em te possuindo, Eva querida,
Tenho o gozo infinito em minha vida:
Não vale a nossa perda um grão de areia.

Deus não soube pesar o cruel castigo:
Tenho flores, jardins, vergéis contigo:
De Edens contigo está minh’alma cheia.

 

EVA

Surge Adão; Eva após; Deus os exorta:
Tinham no paraíso eterno encanto:
Roubam o fruto, que é vedado, e entanto
Deles toda a ventura é logo morta.

Vê-os Deus... Deus agora os não suporta,
E envolve a face irada em rubro manto:
Cai-lhes dos olhos o primeiro pranto:
Rangeu, o Éden fechando, a brônzea porta.

Tinha lá dentro sândalos, e nardos:
De cada lado um anjo a espada eleva:
O sol golpeia-os com seus áureos dardos.

Urram leões em torno, ao pé, na treva,
Eriça-lhes a terra urzais e cardos...
Mas junto a si Adão inda tem Eva.

 

NÃO

— Basta-me, ó Eva, o teu olhar ainda,
Para não querer ver nem mesmo a aurora:
Eu te prefiro ao sol, à estrela linda,
Que a curva azul do céu à noite o enflora.

Quis-te lá dentro muito, e mais cá fora:
Eu te possuo: seja a dor bem-vinda:
Com teu prodígio e amor o Éden não finda;
Digam os anjos, que acabou embora.

Se o Pai viesse, e me dissesse: — Esqueço:
Voltemos todos, como no começo:
— Não, lhe diria, estou feliz e rico.

Esta mulher é minha toda inteira;
Preso à sombra de sua cabeleira,
Dela à sombra acabar eu quero. — Fico.

 

EM FRENTE À CATÁSTROFE

À traição da serpente Adão irado,
Mas sem perder de todo a calma, via
Como em torno de si tudo caía,
E como deles Deus ficou vingado.

Deus mesmo estava mudo e perturbado!
Deus ouve tudo, mas naquele dia
Deus não quis nada ouvir, e nada ouvia:
Chorava o ar só, — ao ouvir Adão, coitado!...

— Pai, é teu sangue, bebe... é teu: flagela
A mulher, que fizeste assim tão bela,
E o homem, que foi tua melhor criatura.

Eva, és maior que a própria Divindade:
Vai palpitar-te ao flanco a humanidade,
A obra, que é sua, a geração futura.

 


PRECE DAS ÁRVORES

— Senhor, Deus, Eloim, sede clemente:
Mostrai-lhes sempre aos dois os bons caminhos,
Que não pisem aos pés urzes e espinhos,
Que tenham água em límpida corrente.

Que seja o céu azul, o sol fulgente;
Lhes preste a natureza os seus carinhos:
Deem-lhes os troncos folhas, sombra e ninhos,
Seja-lhes sempre aroma e luz o ambiente.

As árvores cantavam, misturando
O orvalho, pranto em gotas, brando e brando:
E as cítaras brandindo iam também

Anjos, com tristes salmos, repetindo:
— Perdão, piedade, amor a par tão lindo.
E o Éden todo, a chorar, dizia: — Amém.

 

PRECE DOS NINHOS

— Senhor, Deus, Eloim, somos os ninhos,
Os vossos grandes cedros enfeitamos,
Nascem aí os vossos passarinhos,
Que são o encanto dos seus verdes ramos.

Só para vós nossas canções entoamos,
Temos sempre de vós festa e carinhos:
Seguimo-vos por todos os caminhos,
E, sabeis, como todos vos amamos.

Tende pena de vossos pequeninos,
Que juntos vêm a vós, cantando os hinos,
Que eles sabem cantar, pedir também

Perdão aos vossos filhos tão queridos:
Foram, Deus bom, coitados! iludidos!
E o Éden todo, a chorar, dizia: — Amém!

 

PRECE DAS FLORES

— Eloim, Eloim, Clarão intenso,
Que com as tuas próprias mãos fizeste
Eva e Adão, que em ti se manifeste
Poder de obra maior... maior eu penso.

É a piedade de um perdão imenso,
Para esse par belíssimo e celeste:
Tudo teu esplendor de luz reveste,
Rompe, rasga o nevoeiro inda o mais denso.

Eu sou a rosa dos jardins do Éden,
Que em nome vem das flores, que te pedem
Perdão... as flores, em meu nome, vêm,

Senhor, Senhor, pedir-te o esquecimento...
O erro deles foi o de um momento... —
E o Éden todo, a chorar, dizia: — Amém.

 

PRECE DO CÉU

Cítaras, harpas, outros instrumentos,
Nebéis, teorbas, cistros dedilhando,
Agora brando, agora inda mais brando,
Com letras de saudosos pensamentos,

Os serafins em lúgubres lamentos,
Anjos, arcanjos, querubins errando,
Pareciam voar no Éden cantando
A surda mágoa de íntimos tormentos.

Um miserere longo, e soluçado,
O céu, reunido ali, clama ajoelhado,
Em pranto: enquanto um Trono só desfere

Um cântico tão triste ao som da lira,
Como Deus nunca ouviu, nem mais ouvira...
— E o Éden todo chorava: — Miserere...

 

DENTRO E FORA DO ÉDEN

Gritos de festa? Para quem seria,
Música, hinos, preces e louvores,
Todos esses multíplices rumores,
Que Adão soar no Éden calmo ouvia?

E olhos grandes à esposa dirigia,
A ver se o rosto lhe traía as dores:
E murmurava: — quando triste fores,
Só então perderei toda alegria. —

Era de tarde. — O sol pelo horizonte,
Banhado em sangue, a luz soluça, e o monte
Desce, e vai-se escondendo mar além:

Inda perto Eva e Adão, naquela hora,
Ouviam esses cânticos cá fora:
Que eram no Éden: — Miserere e Amém.

 


DEUS DEIXA O ÉDEN

Deus nada ouviu: e amanheceu sentado
Perto de um cacto, que só tinha espinhos,
Sem braços para suspender os ninhos,
Ou cantar algum pássaro isolado.

Tudo estava de súbito mudado:
Encheram-se de pedras os caminhos;
Afastados vergéis, jardins vizinhos
Eram sáfaro chão aos sóis deixado.

Não de argila, de mármore, suponho,
(Foi seu segredo) obra melhor faria:
Fez isso: obra de gesto em leve sonho!

Depois de tudo, ao declinar o dia,
Ao céu Deus só, incógnito, tristonho,
Por escadas de lágrimas subia...

 

A PRIMEIRA LÁGRIMA

Quando a primeira lágrima caindo,
Pisou a face da mulher primeira,
O rosto dela assim ficou tão lindo,
E Adão beijou-a de uma tal maneira,

Que anjos e Tronos pelo espaço infindo,
Qual rompe a catadupa prisioneira,
As seis asas de azul e de ouro abrindo,
Fugiram numa esplêndida carreira.

Alguns, pousando à próxima montanha,
Queriam ver de perto os condenados,
Da dor fazendo uma alegria estranha.

E ante o rumor dos ósculos dobrados,
Todos queriam punição tamanha,
Ansiosos, mudos, trêmulos, pasmados...

 

CONSOLAÇÃO

— Eva, choras? não sei por que tu choras!
Também caíam lágrimas dos galhos:
Tinha o chão todo pérolas e orvalhos...
Vi no Éden também pranteando auroras...

Pois já não me amas tu? Já não me adoras?
Por ti são leves todos os trabalhos:
No meu amor teus membros... agasalha-os...
Hei de em beijos vestir-te o tempo, e as horas.

Hão de servir-te em grupo as primaveras,
Serás rainha, como então já eras:
Há de cantar-te aos pés minha alegria.

Eva, junto de mim não sejas triste:
Foi com asas de pomba que caíste;
Nas mesmas asas te erguerás um dia...

 

EVA FORA DO ÉDEN

Eva ao deixar o Éden viu decerto
Árido tudo, tudo enfim maninho:
Cantando o céu cantava um passarinho;
Lambeu-a um leão, que andava ali perto.

De urzes achava o chão todo coberto;
Não sabia pisar sobre os espinhos;
Faltavam-lhe os edênicos carinhos...
Em tudo via um pálido deserto.

Campos vastos, cascatas delirantes,
Florestas negras de árvores gigantes,
Vê, como o último som de morta lira.

Viu tudo; — e tudo olhou com doce calma;
Tinha o céu todo dentro de sua alma...
O que era belo, e grande e bom já vira.

 

A ATITUDE DE AMBOS

Adão achava Deus correto e justo;
Não tinha a opor-lhe ou ódio, ou raiva, ou queixa,
E à leonina sombra da madeira
Erguia ao céu um tronco alto e robusto.

Não era um desafio ao Verbo augusto,
Que num só gesto as cóleras enfeixa;
Era a grandeza inata, que não deixa
O herói, que nunca conheceu o susto.

Um anjo mesmo em frente, e a sós, se o vira,
Talvez tremera, enfim talvez fugira,
Crendo que o espaço às mãos ele continha.

Eva, igualando-o, era maior ainda:
Vencida era soberba, e assim mais linda:
Eva continuava a ser rainha...

 


FORA DO ÉDEN

— Que espaço grande, lúgubre, vazio!
O sol está de nuvens encoberto:
Contra o longo e monótono deserto
Contigo, Adão, um novo Éden eu crio.

Sereno e calmo, Adão, o ar sombrio,
Achava em Eva o paraíso eterno:
Podia vir também agora o inverno,
Tinha nela o calor preciso ao frio.

Na terra triste, e como aborrecida,
Soprava um vento! O vento enfim que importa?
Hão de erguer com trabalho uma guarida.

Depois que dos vergéis cerrou-se a porta,
O ser primeiro, que caiu sem vida,
Foi uma rosa, que eles viram morta...

 

O SEGREDO DE ADÃO

— Eva, chega-te a mim: em tudo há luta;
Tenho em mim mesmo um pensamento ardente:
Sem to dizer, não ficarei contente:
Minha alma com tua alma anda em permuta.

Quando contigo alheado, ao pé da gruta,
Hauro o ar perfumado, e leve, e quente,
Deus... o Deus que te pôs de mim em frente,
Ouço dizer-me: — A pena acaba: — Escuta,

Não pode ser eterna esta desgraça:
Não tens o instinto de uma estranha raça,
Na nossa estranha e indômita altivez?

Agora posso conservar-me mudo.
Eva, eu disse demais, mas disse tudo:
Vê bem quem somos: olha quem nos fez...

 

PENSAMENTOS DE ADÃO

Vinha-lhe sempre, bem como um marulho
Eterno de água em queda, essa lembrança,
Que ele a se repetir não poupa, ou cansa:
— Foi pena o Éden perder, não foi esbulho.

Tinham na alma uma grande calma: e o orgulho
De quem guarda no peito uma esperança,
E é, bem como há de ser um mar, que alcança
A praia, sem espuma e sem barulho.

Raça de Deus, a raça perseguida,
Não recebera alento e força e vida,
Para acabar como animal qualquer.

Não sabiam que, um dia, deste crime
Sair devia uma mulher sublime,
E a Mãe de Deus seria essa mulher...

 

ADÃO DEPOIS

Adão foi forte, vendo tudo aquilo:
Que podia esperar senão castigo?
Inquieto dentro em si e só consigo,
Por Eva só mostrava-se tranquilo.

Eva pensava em cóleras ouvi-lo,
Vê-lo erguer-se terrífico inimigo...
E Adão: — Querida, crê, não te profligo,
Não era a queda para mim sigilo.

Mostrava no seu porte o heroísmo raro,
O heroísmo de uma alma grande e boa...
Para Eva ele assim lhe era mais caro.

Seu lábio um hino esponsalício entoa:
Ele devia à sua esposa amparo;
Tinha tudo a esperar do amor: — beijou-a.

 

GRATIAS TIBI

Eva sorriu com tanta gravidade,
Que Adão viu nela a gratidão da esposa,
Tinha no gesto um cunho de verdade,
E toda em si de Deus alguma coisa.

Enleado ante essa estranha divindade
Roja-se aos pés, e olhá-la então não ousa:
Ela as mãos níveas, cheia de humildade,
Nos seus cabelos meigamente pousa.

Abriu no céu os olhos uma estrela,
Outra, e mais outra, muitas mais, por vê-la,
Os rouxinóis cantaram nos palmares...

A lua, que entre nuvens se escondia,
Num manto de ouro agora os envolvia...
Viam-se anjos por perto enchendo os ares.

 


AVENTURAS DO DIA

Não tinham mais aquela estância amena,
E aquele fundo gozo ininterrupto;
Fora do Éden variava a cena.

Nem sempre o rosto agora andava enxuto:
Possa-lhes sempre o amor dar trégua à pena:
Longa dor lhes custou tão peco fruto.

Sem terror nunca havia um dia findo.
Um leão a bramir, como se fosse
Saciar a fome, em cólera atirou-se
À gruta, em cuja entrada era o par lindo:

Fitou-os, cauda e juba sacudindo,
E abraçando-os no olhar mais calmo e doce
Nas quatro patas, aos seus pés sentou-se,
Na grande paz, que ele sentiu, dormindo...

 

APÓS AS BORBOLETAS

Buscava-a inquieto Adão um dia, quando
Viu pela veiga deliciosa e lisa,
Nessa nudez, que o artista diviniza,
Borboletas após, Eva brincando.

Ia ligeira, em movimento brando,
Ia, assim como um rio, que desliza,
Como uma ave no ar, no prado a brisa...
Adão e os anjos viam-na passando.

Tinha no olhar um raio de piedade,
No gesto uma espontânea majestade,
Que era da raça essa altivez infinda.

Tinha a graça infantil, doce e serena,
Tinha tudo, que tens em ti, Helena;
E mais do que tu tens, que é muito ainda.

 

A MORTE DA COBRA

Num dia de mais sol, e mais cansaço,
Em que as cigarras chilram loucamente,
Que é pouco o ar, que se respira, e é quente,
Sem pássaros, sem nuvens pelo espaço:

E à sombra do nopal, e braço a braço,
Haurem, sonhando, o perfumado ambiente,
Súbito aos pés, de rastos, a serpente
Veem que os circunda em sorrateiro laço...

Eva afastar... Adão mais nada espera:
Um pouco para trás o corpo dobra,
E o golpe parte, e o vil réptil lacera...

Virão mais... Força e ânimo lhe sobra:
Pode o tigre poupar; poupa a pantera...
Mas não pode jamais poupar a cobra...

 

EVA ANTE A SERPENTE

Eva vendo-a morrer, só teve nojo,
Mesclando em tudo um pouco de piedade:
— E isto é obra de um Deus?!... Pensar quem há de!
Ele dar vida a um ser, que anda de rojo!

Que habita as urzes, que procura o tojo,
Para estar lá em mais seguridade,
Que é hipócrita e falsa, e a todo arrojo,
Não opõe força, opõe sagacidade.

Finge às vezes letárgico repouso,
Para atrair a si os passarinhos,
Que amam a luz do seu olhar choroso:

Ou abandona o seu moital de espinhos,
Para enroscar-se ao sândalo odoroso,
Ou dormir dentro, em paz, nalgum dos ninhos...

 

EPÍLOGO

— Sem Éden, diz Adão, o mal que venha,
Não há um mal maior; nem maior luta
Ter poderemos ao sair da gruta;
De pé andemos sobre o espinho e a penha:

Na floresta, que ao lado se desgrenha,
No rugido da fera irada e hirsuta,
No areal deserto, que o areal permuta;
Mal maior sobre nós não se despenha.

Tudo é pouco a vencer, e lento e lento
Servir faremos mesmo o raio e o vento:
Tudo terá em nós um domador:

Somos de raça máscula e divina:
Teme-nos tudo, e tudo a nós se inclina:
É Deus em nós a inteligência e o amor...

 


ASPIRAÇÃO ETERNA

Aqui acaba, boa e má, a história
Dos livros santos, cânones da fé,
Resta-nos só por eles a memória
Do que há de estar por séculos de pé.

Essa mulher caída, hoje quem é?
A Mãe de Deus: a humanidade adore-a:
Anda cheia de auréolas de glória,
E é maior que o universo, e mais até...

Helena, anos e anos em milhares,
Terá Eva em Maria culto e altares:
A lenda há de durar, como a esperança.

A pobre humanidade um céu deseja,
Deu-lhe esse céu consoladora igreja:
De aspirá-lo e querê-lo o homem não cansa...

 

O ENSINAMENTO

Esta história do Éden eloquente
Tem episódios curtos porém cheiros:
Os males todos podem vir. — Temei-os,
Helena; os males chegam de repente.

Há sempre a inveja, há sempre uma serpente,
Que vem encher a vida de receios;
Que nos ensina falazmente os meios
De sair de um puríssimo ambiente.

Então tudo que é bom, mau nos parece:
De hora em hora, e de instante a instante cresce
Vago desejo, que jamais se diz:

É deixar os jardins amados, indo
Para um outro país qualquer mais lindo,
Onde, em outros vergéis, se é mais feliz...

 

DEPOIS DA LENDA

A Odisseia de amor, querida Helena,
Triste e alegre, contigo compartilho,
Segue, como à canção segue o estribilho,
Uma mágoa tristíssima e serena.

Tu me ouvias deitada sobre o leito
Onde um perfume doce anda e cintila.
Tinhas as mãos cruzadas sobre o peito:

Ouvindo a Lenda, não te vi tranquila:
Eva nela é tão grande com efeito,
Que de pé não podias tu ouvi-la.

Depois de tanto gozo, e tanta pena,
Tinhas o rosto pálido, sem brilho,
Como a Madona ao enviuvar do filho
Aos pés da cruz, e junto a Madalena.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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