3/30/2023

Estória de Lobisomem (Conto), de Raimundo Nonato



Estória de Lobisomem 

O Cariri, o fértil vale que se deita ao pé da serra de Ibiapaba, é a terra proverbial das estórias de lobisomens. Ali não são poucas as pessoas que conhecem e repetem casos de arrepiar os cabelos, a respeito do terrível híbrido. 

É destes, o referido, certa noite, na Estrada de Ferro de Crato, pelo tocador de realejo, Clementino Araújo, um preto célebre por todos os lugares que se estendem nas imediações da serra do Camará e do Riacho do Sangue. 

Um meu velho compadre — narrava o sanfonista, deitado nas pedras da calçada, de papo para o ar, no meio da roda dos ouvintes — contou-me, certa vez, esta estória assustadora. 

De uma feita, dois comboieiros, muito conhecidos nas estradas e nos ranchos, chamados João Seleiro e Bartolomeu Alagamar, quando voltavam de uma viagem a Oeiras, no Piauí, não tendo conseguido alcançar uma morada, para o pouso, foram forçados a descansar os muares em plena mata, botando as cargas abaixo, numa escampada, onde havia bastante pastagem para as alimárias, e água perto, num pequeno córrego. 

Depois de tomadas as providências indispensáveis para a segurança do comboio, e de um ligeiro jantar de carne assada com farinha e rapadura, os dois tropeiros armaram as redes, debaixo de uma frondosa oiticica, e trataram de estirar os corpos, fatigados de longas caminhadas. 

Enfadados como se encontravam, pouco tiveram de conversar, pois logo pegaram no sono. 

Ao quebrar da barra, Bartolomeu pulou fora da rede, bem disposto, refeito pela dormida ao ar livre. Deu um giro pelo arredor, notando, pelo toque dos chocalhos, que os animais não estavam longe, e voltando para junto cargas, foi acordar o companheiro. Com admiração, porém, observou que a rede de João Seleiro estava vazia, com o lençol enrolado no punho. Observou, em volta, e como nada visse, imaginou que ele tivesse acordado antes já andasse tangendo os burros. Este pensamento logo foi afastado, pois Alagamar viu que os cabrestos estavam em cima dos cabeçotes das cangalhas, do mesmo modo que, ali, os botara ao anoitecer. Gritou então pelo João Seleiro  duas ou três vezes, mas só o eco respondeu à sua voz. 

Dai a pouco, dia claro, verificou que em redor da redor, havia pela areia um rasto achatado, que se dirigia para o lado oposto, penetrando no cerrado matagal. O Alagamar começou a ficar apreensivo diante do desaparecimento do companheiro de jornada, e pensou, em face daquele estranho indício, que por ali tivesse passado algum animal, que podia ser uma onça maçaroca, ou mesmo a pintada. 

Dessa ideia, também se dissuadiu, pois bem sabia que uma onça não poderia carregar um homem do corpo de João Seleiro. 

De qualquer modo, dominado por certo sentimento de pavor, pegou do punhal e do revólver, e saiu pela trilha, disposto ao que desse e viesse. Bateu a macega, revirou o mato, atravessou um riacho, cortou pelo canto do cerrado, o rasto sempre a reaparecer, aqui e ali, mais vivo e mais — apagado, conforme a resistência do terreno. O comboeiro ia perdendo a paciência, e o sol principiava a esquentar. Já devia ter andado mais de légua, naquela busca, atrás de um possível inimigo que presumia esconder-se por ali. 

Depois de virar pelos arredores de um baixio seco, encontrou, na sua frente, atirado por cima de um lajeado, todo coberto de sangue e terrivelmente mutilado, o corpo do companheiro de viagem. O tropeiro, ante o terrível quadro, ficou com a vista turvada, estático, sem nada compreender, com um entalo na garganta. Refeito, porém, do choque, chegou para junto do cadáver, apalpou-o e descobriu que o mesmo fora sangrado e que lhe tinham amputado ambas as mãos. O que, no entanto, o deixou ainda mais intrigado, foi não ter encontrado, em todo o rastejamento que fizera, o menor sinal de sangue, nem indício de que o corpo fosse arrastado, o que queria em dizer que aquilo  não fora trabalho de uma onça. E dali para diante, as pisadas mudavam de forma. Na areia fina do baixio, o que se via, claro, perceptível e nítido, era um rasto de homem, pé descalço e passadas largas. 

Bartolomeu Alagamar, apesar de se encontrar em plena luz do dia, sentiu que os cabelos se erguiam na cabeça. 

Estava trêmulo, dominado por um medo que quase o imobilizara. Mas a reação veio logo; o almocreve respirou forte, agitou os braços e sentiu o sangue ferver nas velas. Numa brusca decisão, meteu-se pela nova pista, não tardando em descobrir, ao longe, uma casa grande, os currais da fazenda, o engenho e, pelas imediações, as casas dos vaqueiros e dos moradores. Sem perder a marca das pisadas, o tropeiro notou que elas se encaminhavam para uma pequena choupana, muito distanciada das outras, fincada quase na orla do carrasco. 

O tangedor de tropas, meio cauteloso, foi se aproximando, ouvido atento ao menor ruído, como caçador que não quer perder o tiro. No terreiro, sondou tudo, e no oitão da choça, meteu o rosto por um frechal, para logo retirá-lo, lívido, deformado pelo pânico. O que vira, deixara-o aparvalhado: numa esteira estendida no copiar estava dormindo, de boca aberta, ressonando alto como um bicho, um homem todo sujo de sangue, nu da cintura para cima, de cara inchada e amarela que nem flor de algodão. 

Por junto, espalhados no chão, estavam as pequenas falanges, os ossos roídos das mãos do tropeiro João Seleiro. Ali mesmo, sem acordar o monstro, Bartolomeu Alagamar pespegou-lhe um tiro bem no meio da testas.

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