3/01/2023

Leviandades de Cíntia (Poesia), de Fagundes Varela


LEVIANDADES DE CÍNTIA


PERSONAGENS
Panfílio
Anfilófio
Marculfo.

 

(Noite. Um rio com uma ponte. Panfílio à margem esquerda)

PANFÍLIO
Círios da noite, vividas estrelas,
Apagai vossa luz! Veigas, campinas,
Onde tantos momentos palpitantes
De poesia e de amor errei tecendo
Hinos à ingrata por quem tanto sofro,
Envolvei-vos num manto tenebroso!
Furtai o turbilhão de vossas dríades
De meu trágico fim à triste cena!
E tu cruel tirana de minh'alma,
Tu que a pagaste meus rosados sonhos,
Que afogaste meus planos de esperança
No oceano sem fim de tua astúcia,
Adeus! adeus! No seio destas águas
Quero ocultar meu drama de martírios,
Minha história de lágrimas e sombras!

(Aparece Anfilófio à margem direita)

ANFILÓFIO
Eis-aqui o lugar ermo e sinistro
Onde vou terminar minha existência.
Deus me perdoe, sobre este vil planeta
Vale mais um defunto que um mendigo.
Ignoro a política, estou pobre,
Heranças não espero, acho-me velho,
É preciso morrer. Examinemos
Esta liquida cama. Quando a aurora
Estender caprichosa os seus rabiscos
Na cúpula do céu, meu fim nefasto
Correrá, bem o sei, de boca em boca
Pela cidade toda. “Era um bom homem,
Os vizinhos dirão; morou dez anos
Junto de nós e nunca nos queixamos,
Nem tínhamos de que; amava os pobres;
Nunca na vida alheia intrometeu-se,
Nem fez mal a seu próximo somente
Era amigo do vinho e das mulheres,
E voltando do jogo às vezes bêbado
Punha toda esta rua em movimento.”
Outros dirão: “Matou-se? Aos sessenta anos
Um homem de juízo não se empenha
Em conquistas venais. Teve sultana,
Boa mesa, bom vinho e maus amigos;
Comprou sedas, brilhantes, carros, moveis,
E cego por seu ídolo funesto
Fez da burra um altar para adorá-lo.
Foi melhor que morresse; Deus o tenha.”

PANFÍLIO
Negro destino! Abandonar o mundo,
A esperança, o porvir, talvez à glória,
A fortuna, o prazer, na flor dos anos,
E buscar os desertos de além-túmulo,
Cheio de desespero! No entanto
Não posso mais viver!... Pois bem, morramos
Amanhã os jornais desta cidade
Num artigo de fundo acomodado
Entre tarjas de luto, em grandes letras
Dirão: “Mais um talento há sucumbido
Ao peso das desditas! Mais um astro
Perdeu-se entre os negrumes da tormenta!
Panfílio já não vive! Já não vive
O terno sabiá que amenizava
Com seu canto sentido estas paragens!”
Talvez ao ler a lúgubre notícia
A ingrata chore, e lá na eternidade
Eu goze do prazer de ver meu nome
Impresso em grossos tipos.

ANFILÓFIO (descobrindo Panfílio)
Não me engano,
Eu vejo alguém que falia e gesticula,
Do outro lado do rio. Estou perdido!
Espreitam-me talvez! Se por ventura
A cruel que arruinou-me, e por quem morro,
Suspeitasse o projeto que acalento
Em silêncio há três dias! Oh! mulheres!
Mulheres!

PANFÍLIO (descobrindo Anfilófio)
Grande Deus! diviso um vulto
Sobre a margem direita deste rio!
Quem será? Quem será? Tremo de susto!
Parece que me estuda! É necessário
Meu medo disfarçar.

ANFILÓFIO
O tal amigo
Começa a incomodar-me! Eu sou valente,
Mas a noite, o lugar, meu triste estado...

PANFÍLIO
Ele tosse, aproxima-se da ponte,
Volta, torna a tossir. Sejamos fortes,
Falemos. — Oh! vizinho do outro lado,
O que faz o senhor aí sozinho?
Por que passeia, escarra e estende os braços
Quando eu contemplo as águas sussurrantes
Deste rio saudoso e merencório?
Diga-me sem demora!

ANFILÓFIO.
Por São Pedro!
E o senhor o que faz? Vamos, responda-me.
Por que contempla as águas sussurrantes
Deste rio saudoso e merencório
Quando eu passeio, escarro e estendo os braços?

PANFÍLIO
A resposta é difícil, entretanto
Posso lhe asseverar que neste sitio
Tenho sérios negócios.

ANFILÓFIO
A estas horas?
Neste lugar deserto? Não há duvida
O homem tem os sapos por clientes,
Ou é algum ladrão, mas não me assusto,
Não sou mais rico. — Pois também, amigo,
Tenho sérios negócios.

PANFÍLIO
Seja franco,
Somos aqui sozinhos, por ventura
Vem espreitar meus passos?

ANFILÓFIO
Menos essa!
Eu não sou espião, nem o conheço!
E dê graças a Deus se nos separam
As águas deste rio, malcriado,
Senão lhe gravaria nas bochechas
Os princípios da sã civilidade
E boa educação!

PANFÍLIO
Paz, meu amigo,
Paz; a desgraça me tornou grosseiro,
A dor me transviou!

ANFILÓFIO
A dor, entendo,
Entendo, vem aqui chorar seus males?
Eu também sofro; diga-me, precisa
De alivio e de consolo?

PANFÍLIO
Não; eu venho,
Eu venho aqui morrer! Não há consolo
Que abrandem minhas mágoas!
 
ANFILÓFIO
O que escuto!
Eu também vim aqui buscar a morte
No fundo destas águas! Deus louvado,
Morramos juntos como bons parceiros,
Contentes, de mãos dadas, e fujamos
Deste mundo cruel como dois ébrios
À meia noite de uma escura tasca.
Mas conte-me primeiro seus pesares;
Foram azares da fortuna? A morte
De uma esposa querida? O vício? O crime?
Erros da mocidade?

PANFÍLIO
Antes o fosse!
De que me serve repetir-lhe a história
Das mais negras desditas que aniquilam
 coração humano? As tristes lendas
De um amor infeliz?

ANFILÓFIO
Bem o previa.
Sua amante deixou-o...

PANFÍLIO
Sim, deixou-me!
A mim, alma de fogo, alma inspirada,
Cheia de sonhos e ilusões formosas,
Por um parvo, um sandeu endinheirado,
Um chatim miserável, cuja bolsa
Valia mais aos olhos da traidora
Do que todas as odes e sonetos
Dos poetas da terra!

ANFILÓFIO
Pois comigo
Sucedeu o contrario. A minha deusa
Sugou-me à gorda burra o leite todo,
Deixou-me sem vintém. Dizia amar-me,
E no entanto eu soube que passava,
Durante minha ausência, horas e horas
Entre os braços de um biltre empomadado,
Possessor de uma dúzia de bengalas,
Umas de pau com caras de cachorro
Ou patas de peru, outras de chifre
Com cabeças de Chins, outras mais feias
Que o próprio frontispício do malandro
Que meus bens devorava em comandita,
À sombra da velhaca! — Eia, morramos!
Quem pulará primeiro dentro d'água?
Sem dúvida, o senhor?


PANFÍLIO
Oh! caro amigo,
A boa educação manda que eu ceda
Esta honra ao mais velho.

ANFILÓFIO
Nada, nada,
Nada de cerimônias, eu não gosto
De fofas etiquetas.

PANFÍLIO
Pelos anjos!
Eu cumpro o meu dever.

ANFILÓFIO
Não, deste modo
Se gastamos o tempo a rasgar sedas
E fazer cortesias um ao outro
Nenhum se atirará. Bem, concordemos
No que passo a propor: em voz bem alta
Pronunciemos vezes três o nome
De nossas infiéis, à vez terceira
Arrojemo-nos juntos.

PANFÍLIO
Seja, vamos.

AMBOS.
Cíntia!

ANFILÓFIO
Por Deus, repita, sim, repita!
Cintia disse, não é?

PANFÍLIO
Sim eu o disse,
Disse o senhor também!

ANFILÓFIO
Eu também disse.
E a sua namorada assim se chama?

PANFÍLIO
Certamente.

ANFILÓFIO.
E sua cor, sua estatura,
Seu aspecto, seu ar, sua morada?

PANFÍLIO
Alta, morena, de aneladas trancas,
Pés e mãos pequeninos, olhos negros,
Moradora na rua das Estrelas
Número quinze.

ANFILÓFIO...
É ela! É ela! Não há dúvida!

PANFÍLIO
Ela, quem?

ANFILÓFIO
Pois não vê? a minha amante.

PANFÍLIO
Era o senhor o celebre papalvo?
Era o senhor? Ah! deixe que me ria!
Oh! que aventura! Vale a pena agora
Voltar de novo à vida!

ANFILÓFIO
Já lhe disse,
Já lhe fiz ver há pouco que não gosto
De certas brincadeiras, e mormente
Na hora de morrer! Quem pensaria
Que era o senhor o biltre, o peralvilho
Cúmplice da malvada! Eu lhe perdoo!

(Aparece Marculfo no fundo)

MARCULFO
Vou me arrojar às ondas deste rio!
Quero morrer, meu plano está formado,
Já não há nem apelo nem agravo!
Eu um homem de honra e probidade,
Que há três anos padeço, trabalhando,
Longe da pátria, longe dos amigos,
Acho ao voltar, depois de tantas penas,
Minha mulher perdida e difamada.
Meu nome escrito em vergonhosos versos
Nas esquinas das ruas! Se eu pudesse
Dos dois marotos me vingar ao menos,
Do tal capitalista e do tal vate!
Mas os patifes hão fugido, e eu morro
Levando este pesar na consciência!
Porém ouço falar, vejo dois vultos;
Escutemos.

(Neste ínterim Panfílio tem passado para a outra margem onde está Anfilófio)

PANFÍLIO
Vivamos, companheiro,
A ingrata Cintia, a estrela impiedosa
Da rua das Estrela perseguida
Pelo remorso, chorará seus crimes,
Nos abrirá de novo os braços meigos,
E nós...

MARCULFO
De Cintia eu escutei o nome,
Ouvi falar na rua das Estrelas,
Trata-se dela, pelos santos! Calma!
Calma, meu coração!

ANFILÓFIO.
Viva em sossego,
Não amo a companhia em tais matérias.
Estou pobre, arruinado, eu o mais rico
Capitalista desta terra. Agora,
Dado o caso que viva, o desespero
Não deixará meus passos.

PANFÍLIO
Eu não posso
Me olvidar da infiel! Por toda a parte
Sinto o aroma sutil de seus cabelos,
O hálito celeste de seus lábios,
O imbre mavioso de seus cantos!
Volto de novo à rua das Estrelas,
Caio a seus pés...

MARCULFO (gritando)
Ah! monstros! Ah! perversos!
Eu inda vivo, esperem que lhes mostro
Quanto penetra a ponta de uma faca!

ANFILÓFIO (espavorido)
Fujamos, meu amigo! É o marido!
E o marido que chegou, fujamos!...
Ei-lo! Que brilho seu punhal espalha!...
Como é grande, meu Deus! como é terrível!
Corramos, que já sinto pelo ventre
O imperioso anuncio do perigo!...
Fica para outro dia o nosso plano!

PANFÍLIO
Sim, fujamos, fujamos sem demora!

(Saem correndo)

MARCULFO
Não quero mais morrer! Já descobri-os!
Hei de viver para vingar-me! Eu parto!
Eu parto, e em breve há de saber o mundo
O que fez um marido indignado!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo 2023.

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