3/03/2023

Noturnas (Poesia), de Antônio Crespo

 


NOTURNOS


A MINHA MULHER
MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO

A ti, ó boa e rara e fiel amiga,
A mais santa e a melhor das companheiras,
A ti, ó flor mimosa e alma antiga,
— Doce Prêmio que ris ao meu cansaço— 
A ti, ó meu Conselho, estas ligeiras
Folhas que ponho a medo em teu regaço.




CONFIDENZA

Perguntaste-me um dia a vida que eu levava.
Mimosa e ebúrnea flor,
Em antes de te ver; respondo-te: sonhava...
Ouviste, meu amor?

Não era bem sonhar: às vezes largo espaço
Ficava-me a sorrir
Para os quadros que eu via em luminoso traço
Nas telas do porvir.

Presta-me o ouvido atento, escuta-me, querida,
Os que me lembram mais:
Assim, fita nos meus, ó pomba estremecida,
Os olhos teus leais!

Olha este quadro e vê: o campo alegre e franco,
Uma aurora de abril:
Da larga estrada à beira um campanário branco,
O céu profundo anil.

De uma casa à janela uma criança loura,
Loura como um trigal:
Fiando à luz do sol que leve a sobredoura
De aureola ideal.

Toda risos e festa a doce criatura
Olhava para mim,
E eu repetia a sós: “alcanço-te, ventura!
Serei feliz enfim!”

De um outro quadro então recordo-me saudoso,
E alongo os olhos meus
Para o quadro gentil, o sonho mais gracioso,
Que me caiu dos céus!

Fica ao longe da vil poeira das cidades
E do seu vão rumor,
O palácio esquecido; às horas das trindades,
Entremos nele, flor!

Deixemos os jardins, as áleas, o arvoredo,
E o oloroso pomar;
Subamos essa escada, agora, a furto e a medo,
Comecemos a olhar.

É vetusto o salão; em flácida poltrona
Repousa e cisma alguém:
Alguém que nos recorda a imagem da Madona,
Grave e sisuda mãe.

Desse alguém no regaço um anjo se reclina
Confiado e feliz,
Sai-lhe um aroma sutil da boca pequenina.
Fala, não sei que diz.

É casta essa criança e pura entre as mais puras,
Que em sonhos vi jamais;
Tem o vago esplendor das bíblicas figuras
Dos antigos missais.

É moça e é menina: olhar nenhum ainda
De leve a maculou.
Dorme no seio dela o amor, a crença infinda
Que Deus lhe confiou.

Quando ela abre, sorrindo, as pálpebras franjadas,
Ficamos a pensar
Nos mistérios do céu, nas coisas ignoradas
Que descobre esse olhar.

Deixa que eu me ajoelhe extasiado e mudo,
Cego de tanta luz,
E que trêmulo beije o tépido veludo
De seus pesinhos nus!

E não cora, bem vês, a cândida criança!
Antes meiga sorri,
E entre risos me diz, compondo a escura trança:
“Pensava agora em ti!

Porque tardaste tanto, ó poeta? eu te esperava
Na minha solidão!
Vem os segredos ver que para ti guardava
Dentro do coração!”

Concertai vossa orquestra, harmônicas esferas,
No célico esplendor!
Maria, essa criança, ó flor das primaveras,
Eras tu, meu amor!

 

O VELHINHO
(A J. César Machado)

Aquele que ali vai triste e cansado
E mais tremente que os juncais do brejo.
Foi outrora o mais belo e o mais amado
Entre os moços do antigo lugarejo.

Nas fitas desse lábio desmaiado
Quantas mulheres trêmulas de pejo
Não sorveram os néctares do beijo
Dos trigais sobre o leito perfumado!

Hoje é velhinho, e fala dos franceses
Aos rapazes da escola, e às raparigas
Que não cansam de ouvi-lo... As mais das vezes

Sobre a ponte, sozinho, ouve as cantigas
Das que lavam no rio, e o olhar estende
Ao sol que ao longe na agonia esplende...

 
ANIMAL BRAVIO
(A Mlle. Eugênia Vizeu)

Preferiras um ramo caprichoso
De escolha rara e de um concerto fino,
Onde visses o cacto purpurino
E os nevados jasmins do Tormentoso.

Em vez do ramo exótico e oloroso,
Casto recreio desse olhar divino,
Aceita, Eugênia, este animal felino,
Que o meu braço subjuga vigoroso.

Tive artes de o amansar: ei-lo sereno!
Acode à minha voz, e ao meu aceno
Como um jaguar à voz de um saltimbanco...

Vamos, soneto! a prumo! ajoelhe, presto!
E à doce Eugênia, do sorriso honesto,
A fimbria oscule do vestido branco!

 

AD AGROS

Não tardes, flor; a aldeia nos espera,
Chovem aromas dos folhudos ramos:
Suspensa do meu braço, eia! partamos!
Olha-nos Deus da cristalina esfera.

Nas manhãs da passada primavera
Com que delícia etérea nos amamos!
Iremos ver os nomes que traçamos
No rude tronco em que se enlaça a hera.

Não tardes, meu amor, sei de um caminho,
Que sobe a encosta, e vai direito ao moinho,
Em cujas velas bate o vento em cheio...

Seguir-nos-ão as aves namoradas,
Que ao som das tuas infantis risadas
Modularão seu trêmulo gorjeio...

 

A NUVEM
(De T. Gautier)

As roupas deslaçando, entra no banho
A lânguida sultana enamorada:
Livre do pente, os ombros nus lhe beija
A longa e fina trança desatada.

Atrás dos vidros o sultão a espreita;
E consigo murmura: “como é bela!
Ninguém a vê, ninguém! o negro eunuco
Do harém na torre solitário vela!”

— Eu a vejo, uma nuvem lhe responde
Do sereno e alto azul iluminado:
— Vejo-lhe os seios nus, vejo-lhe o dorso,
— E o seu corpo de pérolas colmado— 

Fez-se pálido Ahmehd bem como a lua,
E erguendo o seu kandjar de folha rara,
Desce, e apunhala a nua favorita...
Quanto à nuvem... no azul se dissipara...

 
O JURAMENTO DO ÁRABE
(A Teixeira de Queiroz)

Baçus, mulher de Ali, pastora de camelas,
Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrelas,
Wail, chefe minaz de bárbara pujança,
Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança;
Corre, célere voa, entra na tenda e conta
A um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.

“Baçus, disse tranquilo o hóspede gentil,
Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Wail.”

Disse e cumpriu.

Foi esta a causa verdadeira
Da guerra pertinaz, horrível, carniceira
Que as tribos dividiu. Na luta fratricida
Omar, filho de Amru, perdera o alento e a vida.

Amru que lanças mil aos rudes prélios leva,
E que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva,
Incansável procura, e é sempre embalde, o vil
Matador de seu filho, o tredo Muhalhil.

Uma noite, na tenda, a um moço prisioneiro,
Recém-colhido em campo, o indômito guerreiro
Falou severo assim:
“Escravo, atende, e escuta:
Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,
Em que vive o traidor Muhalhil, dize a verdade;
Dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdade!”

E o moço perguntou:
“É por Alah que o juras?”
— Juro, o chefe tornou— 
“Sou o homem que procuras!
Muhalhil é o meu nome, eu fui que espedacei
A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!”

E intrépido fitava o atônito inimigo.

Amru volveu: —  És livre, Alah seja contigo!

 

NUM LEQUE

Amar e ser amado, que ventura!
Não amar, sendo amado, é um triste horror:
Mas na vida há uma noite mais escura,
É amar alguém que não nos tenha amor!

 

OLHOS DE JUDIA

No transparente olhar das virgens da Alemanha
Nada um fluido sutil tão pleno de cismar,
Que a gente cuida ouvir uma sonata estranha
Num castelo do Reno em noites de luar.

Flor do Guadalquivir, glória da ardente Espanha,
Se dardejas, sorrindo, um teu lascivo olhar,
O crespo, o encapelado e proceloso mar
Dos desejos febris o coração nos banha.

Nos teus olhos porém venusta semideia,
Como nas mutações de um rápido cenário,
Desdobram-se ante mim paisagens da Judeia...

Vejo o louro Jesus vagueando solitário,
Vejo-o no Horto a chorar, ouço-lhe a voz na Ceia
E escuto-lhe o gemido extremo no Calvário.

 
H. HEINE 
NÚMEROS DO INTERMEZZO
(A Mlle. Louise de Almeida e Albuquerque)

I
Rosas e lírios, pombas, sol radiante,
Tudo isso outrora, no fugaz passado,
Eu adorei constante.

E desse amor, que tive imaculado
Por lírios e aves e sutis perfumes,
Nem já me lembro, sedutora amante,
Fonte pura de amor, que em ti resumes
A rosa, o lírio, a pomba e o sol radiante!

II
De um lírio branco no mimoso cálix
Se eu a fosse depor
A vaga essência de meu peito, em breve
Escutaras no cálice de neve
Uma canção de amor.

Canção divina relembrando as ânsias,
E o lânguido tremor
Daquele beijo, em noite misteriosa,
Que me deram teus lábios cor de rosa,
Meu doce e casto amor!

III
À luz viva do claro sol radioso
O loto inclina a fronte esmaecida,
E espera a noite pensativo e ansioso.

Rompe a lua, e derrama a luz querida
Na corola mimosa
Da pobre flor que se abre enlanguescida.
Pobre flor amorosa!

Olhando o céu e a lua até parece
Que, em desmaios de amor,
Treme, palpita, cora e desfalece
A cismadora e enamorada flor!

IV
Sobre os olhos formosos
Da minha doce amada
Rimei canções que os astros decoraram;
E embalsamei-lhe a boca perfumada
Em tercetos graciosos.
Inúmeras estâncias decantaram
Seu rosto peregrino
Que os jaspeados lírios escurece.
Que soneto divino
Eu rendilhara com sutis lavores
Sobre o seu coração... se ela o tivesse!

V
Puseram-te no rosto o aéreo véu nupcial.
Bem sei que te perdi, mas não te quero mal.

Brilham do teu colar as pedras luminosas,
Mas no teu coração que noites lutuosas!

Em sonhos eu desci, ó mísera mulher,
Às sombras da tua alma, e vi-te o padecer...

Bem sei que te perdi, ó minha doce amada,
Mas não te quero mal, és muito desgraçada

VI
Sei-o; a tua vida é sem ventura,
É-nos comum esta funérea sorte.
Cai sobre nós a mesma noite escura,
E isto não finda sem que chegue a morte.

Se vejo nesse olhar um rir travesso,
E em teu lábio a insolência costumada,
E o orgulho inflar teu coração... padeço,
E murmuro: “és como eu, tão desgraçada!”

Bem sei que ris, mas o teu lábio treme:
Nos teus olhos azuis o pranto brilha:
Tens orgulho, e essa voz suspira e geme...
Como nós somos desgraçados, filha!

VII
Se as flores do balsedo
Pudessem ver meu peito alanceado,
Como alívio ao meu áspero degredo,
Mandar-me-iam, das moitas do balsedo,
De seus prantos o bálsamo sagrado.

Se os rouxinóis da floresta
Soubessem quanta dor me rasga o seio,
Para espancar a minha noite mesta,
Mandar-me-iam, das sombras da floresta,
O seu mais terno e encantador gorjeio.

Se as estrelas do espaço
Soubessem tudo quanto sofro em vida,
Para embalar desta alma o vil cansaço,
Mandar-me-iam, dos côncavos do espaço,
Uma doce palavra condoída.

E essa que sabe tudo,
O inferno e o horror da minha mocidade,
É a dona das tranças de veludo,
E das unhas rosadas... sabe tudo
E apunhala-me a vida sem piedade!

VIII
Não me sabes dizer, ó minha amada,
O motivo, a razão
Por que pendem a face desmaiada
As rosas para o chão?

Não me sabes dizer porque, no meio
Do vasto prado em flor,
Das violetas cai no roxo seio
Um véu de luto e dor?

Diz-me por que ouço a voz das cotovias
Hoje lúgubre assim?
E por que exalam mortes e agonias
As urnas do jasmim?

Por que motivo o sol tão claro e puro
De crepes se vestiu?
Por que um sinistro pesadelo escuro
Sobre a terra caiu?

Bem sei eu porque vejo tudo triste
Sem luz e sem calor...
É que tu, pomba branca, me fugiste
Meu amor, meu amor!

IX
Disseram-te de mim feios horrores,
De imaginárias culpas me crivaram,
E sobre as minhas lastimáveis dores
Um negro véu lançaram!

Distenderam os lábios sacudindo
Com grave e sério gesto a fronte, e ao cabo...
(E acreditaste-os tu, meu anjo lindo!)
Chamaram-me o Diabo!

O que há de mais escuro e de mais feio
Na minha vida, ignoram-no os sandeus,
Tão oculto este amor vive em meu seio,
Ó luz dos olhos meus!

X
Naquela manhã ditosa
O sol mandava-nos beijos;
Do rouxinol os solfejos
Suspiravam na amplidão.

Se me lembro, ai! se me lembro
Desse amplexo demorado,
Com que tu, meu lírio amado,
Uniste-me ao coração!

Grasnava o corvo agourento,
As secas folhas caíam,
E uns tristes raios desciam
Da plúmbea curva dos céus.

Se me lembro, ai! se me lembro
Da fria e grave mesura
Que, naquela tarde escura,
Fizeste ao dizer-me —  adeus!
XI
Foste fiel, no caminho
Doloroso que eu seguia,
Deste-me alentos, carinho,
Meu consolo foste, e guia.

Deste-me tudo, ó consorte,
Roupa branca e até dinheiro!
E ao partir para o estrangeiro
Compraste-me o passaporte!

Deus to pague, meu amor!
E um viver te dê tranquilo!
Mas que te não faça aquilo
Que tu me fizeste, flor!

XII
Enquanto eu andava viajando, a minha
Noiva gentil, o meu tesouro amado,
Julgando que eu tardava e que não vinha,
Fez à pressa o vestido de noivado,
E um dia, ao pé do altar, entrega ansiosa
A um fofo peralvilho a mão de esposa.

Nada no mundo a minha amada iguala;
Nem eu sei a que a possa comparar!
Que doce é o aroma que o seu lábio exala!
Que gesto lindo! e que formoso olhar!
Suspende a queixa, coração traído,
Deixaste o céu, do céu foste banido!

XIII
Quando morreres, filha, ao teu jazigo
Descerei taciturno e alucinado,
E abraçando esse corpo delicado,
No frio mármore dormirei contigo.

E tu muda, e tu fria, e tu gelada!
E eu nos meus braços a apertar-te ainda!
E nas sombras daquela noite infinda
Clamo, estremeço e morro, alma adorada!

Os mortos, alta noite, pouco e pouco
Erguer-se-ão, ao luar, rindo e dançando;
E eu ficarei na sombra, ó sonho louco!
No teu seio de jaspe repousando.

E quando a hora chegue em que as trombetas
Do Juízo Final se ouvirem todas,
Não surgirás, inveja das violetas,
Do escuro leito das eternas bodas!

XIV
Do Norte sobre um monte,
Alto frio e gelado,
Um pinheiro isolado
Ergue entre o gelo a merencória fronte.

Todo trêmulo, o mísero deseja
Ser a esbelta palmeira viridente
Que em terra adusta odeia a luz ardente
Que sobre ela o implacável sol dardeja.

XV
Das minhas penas fiz canções aladas
De alegre jeito e jovial feição.
Vi-as partir em doidas revoadas,
E vi-as procurar teu coração.

Partem alegres, voltam lacrimosas,
Perdido o fresco riso ingênuo e ledo,
Mas do que viram guardam, silenciosas,
O mais profundo e lúgubre segredo.

XVI
Eu não posso esquecer, perdão, minha senhora,
— Estes laços de amor custam a desatar— 
Eu não posso esquecer, ó minha doce aurora,
Que subjuguei teu corpo e essa alma singular...

Teu corpo, ai! o teu corpo esbelto, moço e branco,
Já foi meu, já foi meu... mas neste instante, flor,
Da tua alma prescindo, e escuta, serei franco,
Basta-me a que possuo, ah! basta, meu amor!

Se um dia suceder, que esse teu seio trema
De novo junto ao meu, hei de insuflar-te, doido,
Metade da minha alma, e então, glória suprema!
De ambos nós, meu amor, faremos um só todo...

XVII
É domingo: o burguês deixa os asfaltos,
Dando o braço à burguesa;
Procura o campo, e, ao vê-lo, exclama aos saltos:
“Ó filha, que lindeza!”

E pasma do verdor febril, romântico,
Da múrmura floresta;
E a sua longa orelha absorve o cântico
Da passarada em festa.

Eu que não saio, escondo a gelosia
Com negros cortinados,
E recebo a visita, em pleno dia,
Dos espectros amados.

E aquele amor que eu vi morrer outrora.
No meu quarto aparece!
Senta-se ao pé de mim, beija-me e chora,
E treme e desfalece!

XVIII
Rompia a manhã, rompia
Alegre como um trinado,
E eu ia triste e calado,
No meio dessa alegria,
Por entre as flores do prado...
Rompia a manhã, rompia...

Vendo-me, as flores do prado
Mais as rosas do silvedo
Cochicharam em segredo...
E erguendo os olhos, a medo,

Num tom de voz repassado
Da mais branda languidez:
“Como ele vai irritado,
Os olhos fitos no chão!
Perdoa por esta vez,
Não ralhes com ela, não?”
XIX
Na tua face ardente e aveludada
Encandeia-se a luz do quente Estio,
Mas no teu coração, ó minha amada,
Habita o Inverno enregelado e frio.

Mas quem assim te vê bela e formosa,
Verá mais tarde o Inverno torvo e feio
Nessa tua gentil face mimosa,
E o rubro Estio no teu branco seio!
XX
No momento do adeus sucede que os amantes
Se abraçam, a chorar, com vozes soluçantes.
Força, é força partir; a mão prende-se à mão,
E uma infinda tristeza inunda o coração.

Para nós, meu amor, nessa hora de agonia
Não houve o padecer que as almas escrucia:
Foi grave o nosso adeus e frio, e só agora
É que a dor nos subjuga, e a Angústia nos devora.

XXI
Sonhei: de novo suspirava o vento
Das tílias sob a cúpula odorante;
E como outrora ouvia o juramento
Do teu amor constante.

Que protestos de amor nesse momento!
Mas na febre dos beijos que me deste,
Como para gravar teu juramento
Em meus dedos mordeste!

Dona do riso alegre, ó meu tormento!
Dona de olhos azuis, ó minha amada!
Já me bastava o doce juramento,
Foi de mais a dentada!

XXII
Chorei: sonhava e era contigo, estavas
Morta num cemitério, fria, fria...
E, ao despertar, senti que o pranto, em lavas,
De meus cansados olhos escorria.

Chorei: sonhava e era contigo, rosa;
Havias-me, sem dó, abandonado:
E, ao despertar da noite tormentosa,
Tinha o rosto de lágrimas banhado.

Chorei: sonhava, e era contigo, ó linda!
Dizias-me, a sorrir, “como eu te adoro!”
Desperto, e logo numa angústia infinda,
Eis-me a chorar de novo e ainda choro!

XXIII
Batido do torvelinho
O bosque palpita ao açoite
Do vento outonal; é noite.
Monto a cavalo e meto-me a caminho.

E este inquieto pensamento,
E esta fantasia errante
Levaram-me nesse instante
Ao teu virgíneo e Cândido aposento.

Os cães ladram; nas sonoras
Escadas assoma gente,
E eu no mármore luzente
Faço tinir as rútilas esporas.

No teu quarto da baunilha
Voam cálidos aromas;
Tu dormes, soltas as comas,
E eu nos teus braços caiu, minha filha!

Soluça o vento magoado:
Diz um carvalho altaneiro:
“Cavaleiro, cavaleiro,
Suspende o teu sonhar alucinado!”

XXIV
Eu enterro as canções de amor e o fel amargo
Do meu triste sonhar:
Quero um caixão profundo, imenso, vasto e largo;
Depressa, ide-o buscar!

Um caixão formidando, um féretro-portento,
Que sobre-exceda e vença
O peso sobre-humano e o enorme comprimento
Da ponte de Maiença.

Trazei-mo sem demora; eu hei de enchê-lo em breve;
Vereis a prontidão.
De Heidelberg o tonel será pequeno e leve
Ao pé desse caixão.

Doze gigantes quero, o aspecto feio e rudo,
E de um vigor sem conta,
Que me façam lembrar Cristóvão, o membrudo,
Que em Colônia se aponta.

Gigantes, balouçai o féretro lutuoso!
Vamos! agora, ao mar!
Cova maior existe? Abismo assim grandioso
Difícil é de achar.

Sabeis por que eu desejo um féretro assim largo,
De vastas dimensões?
É que enterro, infeliz, o amor, o fel amargo
Das minhas ilusões.

 

O MINUETE
(Ao Dr. Tomaz de Carvalho)

Espaçoso é o salão: jarras a cada canto;
Admira-se o lavor do teto de pau Santo.

Cadeiras de espaldar com fulvas pregarias:
Um enorme sofá: largas tapeçarias.

O purpúreo tapete aos olhos nos revela
Entre as garras de um tigre ansiosa uma gazela.

Retratos em redor: olhemos o primeiro:
No Toro as mãos de Afonso o armaram cavaleiro.

Era Arcebispo aquele: esta foi açafata...
Que frescura sensual nos lábios de escarlata!

Olhos revendo o azul que sobre a Itália assoma:
Em finos caracóis, a loura e ondada coma:

Colo robusto e nu: cabeça triunfante:
Consta que certo rei... passemos adiante!

Este, que vês, morreu num africano areal
Por vingança cruel do áspero Pombal.

Desse olhar na expressão infinda e inenarrável
Desabrocha uma dor profunda e inconsolável.

Defronte, uma donzela, o rosto meigo e aflito,
Num êxtases adora o pálido proscrito.

O teu sonho nupcial, franzina morgadinha,
Tão cedo se desfez, ó mísera e mesquinha!

No burel escondeste o viço e a formosura,
E desmaiaste, flor, no chão de uma clausura!...

Repara nos desdéns do fofo conselheiro,
Que sorridente aspira a flor de um jasmineiro!

Em cânones doutor: no Paço foi benquisto:
Orna-lhe o peito a cruz de um hábito de Cristo.

Esse outro combatendo às portas de Baiona,
Como um bravo, alcançou a rútila dragona.

Vibra flamas do olhar; cabeça ereta e audaz;
Ilumina-lhe o rosto a glória de um gilvaz.

Assistimos, ao vê-lo, às pugnas carniceiras,
E ouvimos o clangor das músicas guerreiras...

No antiquíssimo espelho, à sombra das cortinas,
Reflete-se o primor de argênteas serpentinas.

Sob o espelho se aninha um cravo marchetado,
Mimo outrora da casa, e prenda de um noivado.

Ao lado um cofre encerra, em amorável ninho,
Antiga partitura em velho pergaminho.

Uma noite estendi a música na estante,
E o cravo suspirou... naquele mesmo instante

Da ebúrnea palidez doentia do teclado
Manso e manso evolou-se o aroma do passado.

E vi descer do quadro a lânguida açafata
Que, ao discreto palor das lâmpadas de prata,

A fimbria alevantando azul do seu vestido
O rosto acerejado, o gesto comovido,

A sorrir, deslizou graciosa no tapete,
Dançando airosamente o airoso minuete...

 

O COVEIRO
(A Alberto Braga)

Ele entrou cabisbaixo e silencioso
Na imunda tasca, e foi sentar-se a um canto;
Deram-lhe vinho, recusou, o espanto
Cresceu no olhar do taberneiro oleoso.

Ele era o mais antigo e o mais ruidoso
Dos fregueses da casa: ao obsceno canto
Ninguém prestava mais lascivo encanto
Ao som magoado de um violão choroso.

Mas o velho sentara-se distante
Da alegre turba, a vista lacrimante
Mergulhada nas chamas do brasido...

Disse um da roda: “espanta-me o coveiro!”
— Morreu-lhe há pouco a filha...— distraído
Volveu da bisca um contumaz parceiro.

 
ADEUS!

Uma vez, numa Câmara elegante,
De um contador no mármore de rosa,
Entre os mil nadas feminis que exalam
Uns aromas sutis que nos embalam,
Vi uma concha pálida e graciosa.

Sentira eu nela um som confuso e triste,
Como o dos sinos em remota aldeia;
Pobre concha! morria de saudade
Daquela vaga e triste imensidade
Do mar que chora na deserta areia.

Olha, querida, como nessa concha,
Anda chorando em mim continuamente
Essa tímida voz que tu soltaste,
Essa palavra ADEUS que murmuraste
Aos meus ouvidos lânguida e tremente!

 
(CAMONIANA)


NA IGREJA DAS CHAGAS
(Ao Dr. A. A. de Carvalho Monteiro)

Próxima vinha a nobre Catarina
Da porta principal da igreja, quando
Seu olhar encontrou suave e brando
O olhar de um moço de presença fina.

E, ao fulgor desse olhar ardente, inclina
A dama o rosto, tímida, corando...
Arfa-lhe o níveo seio, palpitando,
Em doida e estranha comoção divina.

Camões, que outro não era o moço, ardido,
Num gesto de galã desvanecido,
“Quem vos pudera merecer!” murmura.

E a dama, ao ouvi-lo, lânguida sorria,
Pois que em todos os tempos a ousadia
Ao amor nunca trouxe desventura.

 

A LEITURA DOS LUSÍADAS
(A Vicente Pindela)

Do moço rei defronte, esbelto e cavaleiro
Camões recita; a corte, silenciosa
Ante a rubra explosão do cântico guerreiro,
Admira essa Epopeia enorme e prodigiosa.

“...Ruge a elétrica voz do Adamastor furiosa;
Nas amuradas canta o alegre marinheiro;
Do Oceano à flor cintila a esteira luminosa
Dos pesados galeões do Gama aventureiro.

Terra! grita o gajeiro; e à praia melindana
Desce doida e febril a gente lusitana
Desfraldam-se os pendões ao claro céu do Oriente...”

Da glória ante o esplendor o olhar del-Rei fulgura;
O Câmara no entanto, alma sombria e escura,
No rei os olhos crava, e ri felinamente.

 
ANOS DEPOIS
(A Bernardo Pindela)

Junto de um catre vil, grosseiro e feio,
Por uma noite de luar saudoso,
Camões, pendida a fronte sobre o seio,
Cisma embebido num pesar lutuoso...

Eis que na rua um cântico amoroso
Subitâneo se ouviu da noite em meio:
Já se abrem as adufas com receio...
Noite de amores! que trovar mimoso!

Camões acorda, e à gelosia assoma,
E aquele canto, como um antigo aroma,
Resuscita-lhe os risos do passado.

Viu-se moço e feliz, e ah! nesse instante,
No azul viu perpassar, claro e distante,
De Natércia gentil, o vulto amado...

 

ESFINGE
(Tradução de uns versos de Alexandre Dumas escritos num leque em que estava pintada uma Esfinge)

Que me queres, Esfinge? O que procuras? diz-mo:
Se do poeta o segredo intentas penetrar,
Desce dos anos meus ao tenebroso abismo,
Verás o amor aos Vinte e aos Sessenta o Pesar.

Sim, Pesar, não de haver lançado aos quatro ventos
Com pródiga loucura o verbo triunfante,
A ambição, o dinheiro, os risos e os tormentos,
E as auroras de abril que passam num instante!

Mas Pesar de sentir dentro em meu peito agora,
Como aceso vulcão em gelos sepultado,
Do juvenil desejo a flama que devora,
E de não poder mais, amando, ser amado!

 

A CEIA DE TIBÉRIO
(Ao Dr. J. Frederico Laranjo)

Opulento é o festim: em todo o vasto império
Outro não houve igual. Caprea a dissoluta,
O retiro de amor do pérfido Tibério,

Iluminada ri. Ao longe Roma escuta
O confuso rumor da tenebrosa orgia:
Assim geme, assim ronca o mar em funda gruta.

Fascina, atrai, seduz, e os olhos extasia
A imperial vivenda: a sala é deslumbrante:
Ouro e gemas sem fim confundem-se à porfia.

Das lâmpadas rebrilha o lume coruscante;
Nos triclínicos esplende a púrpura escarlata,
A fina tartaruga e o sândalo odorante.

Aos ângulos da sala, em primorosa prata,
Erótico escultor grupos fundiu lascivos,
Em cujos membros nus Volúpia se retrata.

Ressaltam da parede os sátiros esquivos
Sob o pâmpano alegre: as ninfas, em coreias,
Dançam na riba, em flor, de arroios fugitivos.

Em marmórea piscina enroscam-se as mureias,
Dos patrícios de Roma o pábulo dileto,
Vezes sem conto, escravo, ali rompeste as veias!

Pendem verdes festões do primoroso teto,
Pirrhéico ali pintara um matagal folhudo,
E um lago cristalino, encantador, discreto.

Diana ao sol enxuga as tranças de veludo,
Acteon espreita ansioso, e, ó rápida alegria!
Aos poucos se transforma em cervo ramalhudo.

Em Mileto foi tinta a azul tapeçaria,
Que nas mesas se estende e nos mosaicos dorme;
Dos velarios se escoa o aroma que inebria.

A festa é no pendor: num áureo prato informe
Eis que entra um javali, formosas gaditanas
Dançam em derredor. Ulula a grita enorme.

Jorra o vinho de Kós purpúreas espadanas;
Dos convivas na fronte enlaça-se a verbena,
Preludiam no entanto as frautas sicilianas.

Adoudada suspira uma canção obscena:
Fervem beijos no ar, os seios pulam, crescem
E desnudam-se à luz, Tibério assim o ordena.

As matronas, ao ver o duro gesto, obedecem,
E lá passam gentis, deslizam mansamente
Dos mármores à flor; são nuas, endoidecem!

Um retiário nervudo, e um gladiador valente
Combatem, são leões; o pálido vencido
Mistura o sangue rubro ao vinho rescendente.

Ora Tibério ri... Mas súbito um gemido
Longo e triste chorou nos paços de Caprea...
Indagam: talvez fosse o gladiador ferido...

Nesse instante Jesus morria na Judeia!
 

(TRIO DE POETAS)

I
JOÃO DE LEMOS
(Ao Visconde de Pindela)

Na cidade gentil do austero estudo
Sobranceira ao Mondego sossegado,
Em cuja riba o sinceiral folhudo
De rouxinóis suspira gorjeado,

Foste erguido no côncavo do escudo
Pelos moços de outrora, e celebrado
Trovador, cavaleiro, e namorado...
Tempo de glórias! Como passa tudo!

No entanto às vezes, na província, quando
A um doce, honesto e feminino bando
Digo a LUA DE LONDRES, de repente

Da infância volvo à cândida simpleza,
E ondulam na minh'alma vagamente
trêmulas notas de fugaz tristeza.
 

I
JOÃO DE DEUS
(A Antero do Quental)

Sempre que o leio, sinto-me cativo
De um não sei quê, de infinda suavidade,
E entram comigo uns longes de saudade,
Que me deixam sisudo e pensativo.

Sonho: quisera, em triste soledade,
Viver das gentes apartado e esquivo,
E erguer-me a esse planeta primitivo
Onde resplenda a eterna mocidade.

Já o seu nome é tão suave e brando,
Tão eufônico, meigo e delicado,
Que fica nos ouvidos suspirando...

Diz a lenda que vive descuidado,
RAMOS tecendo, e FLORES emoitando,
Da Quimera nos seios reclinado.

 

III
JOÃO PENHA
(A Augusto Sarmento)

Nervoso mestre, domador valente
Da Rima e do Soneto português,
Não te iguala a perícia de um chinês
Na pintura de um vaso transparente.

Há no teu verso a música dolente
Da guitarra andaluza, e muita vez
Rompe em meio da estranha languidez
O silvo estriduloso da serpente.

No vinho e fel traçaste o escuro drama
Em que soluça e ri, na extensa gama,
Teu desgrenhado amor, doido e fatal...

Mas se do peito ansioso o dardo arrancas,
Teu canto exala as alegrias francas
De uma rubra Kermesse colossal.

 

QUIMERAS
(A meu tio João de Almeida e Albuquerque)

O mar já me tentou: aspirações fogosas
Fizeram-me idear fantásticas viagens;
Eu sonhava trazer de incógnitas paragens
Notícias imortais às gentes curiosas.

Mais tarde desejei riquezas fabulosas,
Um palácio escondido em múrmuras folhagens,
Onde eu fosse ocultar as cândidas imagens
Das virgens que evoquei por noites silenciosas.

Mas tudo isso passou: agora só me resta
Das quimeras que tive, uma visão modesta,
Um sonho encantador, de paz e de ventura.

É simples; uma alcova, um berço, um inocente,
E uma esposa adorada, envolta, a negligente!
De um longo penteador na imaculada alvura...

 

ODOR DI FEMINA
(A Alberto Pimentel)

Era austero e sisudo; não havia
Frade mais exemplar nesse convento;
No seu cavado rosto macilento
Um poema de lágrimas se lia.

Uma vez que na extensa livraria
Folheava o triste um livro pardacento,
Viram-no desmaiar, cair do assento,
Convulso, e torvo sobre a lájea fria.

De que morrera o venerando frade?
Em vão busco as origens da verdade,
Ninguém ma disse, explique-a quem puder.

Consta que um bibliófilo comprara
O livro estranho e que, ao abri-lo, achara
Uns dourados cabelos de mulher...

 
EM CAMINHO DA GUILHOTINA
(À Senhora Condessa de Sabugoza)

A viúva Capet vai ser guilhotinada.
Ora naquele dia o povo de Paris
Formidável, brutal, colérico, feliz,
Erguera-se ao primeiro alvor da madrugada.

No caminho traçado ao fúnebre cortejo
O povo redemoinha;
Que todos sentem n'alma o trágico desejo
De ver como Sansão degola uma rainha.

Da carreta em redor ondeiam os soldados;
De cima dos telhados
Da rua, dos portais, dos muros, dos balcões
Chovem sobre a rainha as vis imprecações.

Ela contudo altiva ereta e desdenhosa
Olha tranquilamente
Para o revolto mar da plebe tumultuosa.

E enquanto aquele povo inquieto e repulsivo
Anseia por ouvir o grito convulsivo
E o derradeiro arranco
Dessa mulher, e ri abominavelmente,
Um homem só, o algoz, vai triste e reverente.

Pode nascer ao pé da forca um lírio branco.

A carreta parou. Desce a rainha. Nisto
Viram-se uns braços nus
Erguerem para o ar, à flor da multidão,
Uma loura criança, alegre como a luz,
Suave como o Cristo,
A quem talvez faltando em casa a enxerga e o pão,
A mãe quisera dar aquela distração.

No primeiro degrau da escura guilhotina
A rainha de França
Ergueu o olhar e viu essa gentil criança
Levar a mão à flor da boca pequenina,
E atirar-lhe, a sorrir, um beijo doce e honesto...

E ela que fora audaz, heroica e resoluta,
E ouvira, com desdém, da plebe a injúria bruta,
Ante a esmola infantil, graciosa, desse gesto,
Chorou.
“Chorou, enfim! A infame sucumbiu!”
De entre o povo uma voz selvática rugiu.
 

A VIÚVA
(À Senhora D. Margarida Street)

Fora de portas vive. É silenciosa
A modesta vivenda em que ela habita,
Ali correu-lhe a vida bonançosa,
Ali golpeou-lhe os seios a desdita.

Raro de quando em quando uma visita
Novas lhe traz da vida tumultuosa,
E ela sorrindo a furto, descuidosa,
No azul os olhos em silêncio fita.

Sozinha e triste a pálida viúva,
Por essas noites de invernia e chuva,
A um honesto e feminil labor se entrega.

E, alta noite, levanta, em dor sepulta,
O olhar, que fixa, e demorado prega
No eterno Ausente que num quadro avulta.

 

FLOR DO PÂNTANO
(A Bulhão Pato)

É pequenina e séria,
E tem o gesto grave
Da filha de um burgrave,
A cândida Valeria.

Não há flor mais suave,
De essência mais etérea,
E abriu-lhe a vida a chave
Do Vício e da Miséria!

Na sua loura coma
Nunca passou o aroma
Dos beijos maternais.

Ó crédula Ignorância,
Esconde aquela infância
O nome vil dos pais!

 
A RESPOSTA DO INQUISIDOR
(A meu tio Luiz de Almeida e Albuquerque)
I
A sala em que medita El-Rei é silenciosa,
Apainelada e fria, o largo reposteiro
Ondula brandamente à aragem preguiçosa.
II
À cátedra real um Cristo sobranceiro
Mesto, lívido, nu, ferido e ensanguentado
Exala sobre o seio o alento derradeiro.

III
El-Rei medita e cisma: o seu olhar turbado,
O seu oblíquo olhar, o seu olhar de fera,
Vibra irrequieta luz, parece alucinado.

IV
Nisto à porta assomou a calva fronte austera
De um velho, e logo atrás um pajem que murmura:
“Eis o monge, Senhor, que Vossa Alteza espera!”

V
Curvara, ao entrar, o monge a trêmula estatura:
Mãos dispostas em cruz no largo peito ansioso,
E humilhada a cerviz na ascética postura.

VI
E contudo esse frade humilde e respeitoso,
De olhos fitos no chão, tão frágil como um vime,
Na presença de um rei, de um César poderoso,

VII
É fanático e audaz; com mão de bronze oprime
O Sólio, a Igreja, o Lar, e os corações dos crentes;
Flagela a sombra e o amor, condena a luz, e o crime!

VIII
Quando ele vai passando, as timoratas gentes
Benzem-se com pavor e param de improviso
As canções juvenis nas áleas rescendentes.

IX
Nunca nos lábios seus florira o alegre riso,
Tem cem anos, jamais beijara uma criança,
E crê subir, talvez, morrendo, ao Paraíso!

X
Na Espanha, no Peru, em Nápoles, na França
Paira como o sinistro espírito do Mal,
O negro inquisidor, feroz como a Vingança.

XI
Sisto quinto, o cruel, fizera-o cardeal,
E a Espanha pôde ver com assombroso espanto
Junto do rei-pantera o inquisidor-chacal.

XII
E Filipe dizia ao monge no entretanto:
“Sentinela da Lei, piedoso inquisidor,
Tu que falas com Deus e és padre, e és bom, e és Santo

XIII
Arranca-me este peso, afasta-me este horror!
Ah! dize-me, cardeal, se é um vil, se é um precito
O rei que é justo e mata o filho que é traidor...”

XIV
E mais não disse o rei, torvo, sombrio e aflito.
No entanto o inquisidor erguendo imperturbável
O seu hediondo olhar das lájeas de granito,

XV
Assim tornou com voz vibrante e formidável:
— Ó príncipe, e apontava o lívido Jesus,
— Para acalmar dos céus a cólera implacável

XVI
— O Eterno fez morrer seu filho numa cruz!— 

 

FERVET AMOR
(Ao dr. Antônio Cândido)

Dá para a cerca a estreita e humilde cela
Dessa que os seus abandonou, trocando
O calor da família ameno e brando
Pelo claustro que o sangue esfria e gela.

Nos florões manuelinos da janela
Papeiam aves o seu ninho armando,
Vêm-se ao longe os trigos ondulando...
Maio sorri na pradaria bela.

Zumbe o inseto na flor do rosmaninho:
Nas giestas pousa a abelha ébria de gozo:
Zunem besouros e palpita o ninho.

E a freira cisma e cora, ao ver, ansioso,
Do seu catre virgíneo sobre o linho
Um par de borboletas amoroso.

 

NA ALDEIA
(A Cristóvão Aires)

Duas horas da tarde. Um sol ardente
Nos colmos dardejando, e nos eirados.
Sobreleva aos sussurros abafados
O grito das bigornas estridente.

A taberna é vazia; mansamente
Treme o loureiro nos umbrais pintados;
Zumbem à porta insetos variegados
Envolvidos do sol na luz tremente.

Fia à soleira uma velhinha: o filho
No céu mal acordou da aurora o brilho,
Saiu para os cansaços da lavoura.

A nora lava na ribeira, e os netos
Ao longe correm seminus, inquietos,
No mar ondeante da seara loura.

 

ESTUDANTINA

Acorda, minha Tereza,
Descerra a janela tua!
Espalha-se a luz da lua
Pela poética deveza...
Entre os sinceiros da margem
Murmura o claro Mondego,
A noite corre em sossego...
Acorda, minha Tereza!

Não dorme quem tem amores,
E o teu postigo é cerrado!
Deixa o leito perfumado,
E o travesseiro de flores,
Se queres que eu acredite,
Ó minha pálida amiga,
Nas palavras da cantiga:
“Não dorme quem tem amores!”

Por isso eu velo cantando,
E esta guitarra suspira,
E o meu coração delira
Mal vem a lua apontando...
É que, à noite, lírio branco,
Os astros guardam segredo
Dos beijos dados a medo...
Por isso eu velo cantando...

Quero ver-te, como outrora
Nesse postigo inclinada,
Conversando enamorada
Até ao raiar da aurora...
Um lenço posto no liso
Dos teus ombros jaspeados,
Os cabelos destrançados...
Quero ver-te como outrora.

Não te assustes, Julieta,
Que a manhã te encontre ainda
Bebendo a canção infinda
Que soluça o teu poeta.
Cantará de entre os loureiros
Uma alegre cotovia,
Mal venha rompendo o dia...
Não te assustes, Julieta!

Mas dorme a branca Tereza,
Cerrada a janela sua;
Espalha-se a luz da lua
Pela poética devesa...
Entre os sinceiros da margem,
Murmura e corre o Mondego,
Que tristeza e que sossego!
Ai! dorme, dorme, Tereza!

 

AS ONDINAS
H. HEINE
(Ao Visconde de Castilho II)

Na praia tranquila murmuram sonoras
As ondas do mar.
E, ao doce das águas murmúrio palreiro,
Na areia dormita gentil cavaleiro
À luz do luar.

As belas ondinas emergem das grutas
De vivo coral,
Acorrem ligeiras, e apontam, sorrindo,
O moço que julgam deveras dormindo
No argênteo areal.

Vem esta, e perpassa do gorro nas plumas
As mãos de cetim.
E aquela, com gesto divino, gracioso,
Nos ares levanta do jovem formoso
O áureo telim.

Ess'outra, que lavas, que fogo não vibram
Seus olhos de anil!
Debruça-se e arranca-lhe a rútila espada,
Nos copos brilhantes se apoia azougada,
Travessa e gentil.

A quarta, saltando, retouça, lasciva,
Do moço em redor;
Suspira mansinho, de manso murmura:
“Pudesse eu em vida gozar a ventura
Do teu fino amor!”

A quinta rebeija-lhe as mãos, enlevada
Num sonho feliz,
E a sexta, com trêmula e doce esquivança,
Perfuma-lhe a boca, formosa criança!
Com beijos sutis...

E o moço, fingindo que dorme tranquilo,
Não quer acordar.
E deixa que o abracem as belas Ondinas,
E lânguido goza carícias divinas
À luz do luar...

 

NO JOGO DAS CANAS
(A Camilo Castelo Branco)

Em garbosos corcéis da Arábia cavalgando
Entram na larga arena os próceres luzidos;
Corusca a pedraria, e esplendem, flutuando,
Dos cocares a pluma e a seda dos vestidos.

A quadrilha gentil dos Távoras ardidos,
Com os lacaios da Torre um prélio simulando,
Terça galhardamente; o aparatoso bando
Deixa os olhos da turba em êxtase embebidos.

Nas janelas do paço é toda a fidalguia:
Que jucundo prazer, que risos, que alegria!
Espetáculo augusto, e nobre, e singular!

O sexto Afonso aplaude: entanto, maliciosa,
Maria de Nemours, sorrindo, a incestuosa!
No cunhado, sutil, pousa o lascivo olhar...

 

NUNCA EU TE LESSE, BALADA!

Suspende a dura sentença
Que de teus lábios ouvi.
E ergue do chão os quebrados
Teus negros olhos magoados,
Quando me acerco de ti.

Ergueste-os, encantadora!
Mas antes do teu perdão,
Atende-me, e ouve, senhora,
Com todo o teu coração.

Escuta:
"A um rei namorado
Sincera e fiel amante,
Ao morrer, tinha deixado,
De antigo afeto em penhor,
Cinzelada taça de ouro
Do mais subido valor.

O rei preferia a tudo
Aquela doce lembrança
Que lhe trazia os aromas
De umas flutuantes comas,
E de uns lábios de veludo,
Que ele beijara em criança.

Toda a vez que ele bebia
Por esse vaso sagrado,
Uma extática alegria
Como flor ideal sorria
No seu turvo olhar cansado.

Um dia sentiu-se o pobre
Mais triste, velho e abatido,
Abraçou-se comovido
À taça, o trêmulo amante:

E as lágrimas, uma a uma,
Deslizaram nesse instante
Nos rudes flocos de espuma
Da longa barba flutuante.

Aquela hora de agonia,
Chamou seus filhos e herdeiro,
Deu-lhes tudo o que possuía,
Ouro, palácios, riquezas,
O seu castelo roqueiro,
E as suas largas devesas.

Dividiu tudo, contente;
A taça guardou somente.

Sentindo fugir-lhe a vida,
Manda o triste convidar
Seus pares, filhos e herdeiro
Para um festim derradeiro
No castelo sobranceiro
Às verdes águas do mar...

Em meio da festa, o velho
Ergueu a taça e, sorrindo,

Embebido o olhar no infindo,
Um frouxo canto soltou...

E mal o canto findara,
No leito da onda amara
A taça de ouro lançou...”

Eram profundos ciúmes
Os desse rei namorado,
Que não fosse alguém beber
Por esse vaso sagrado,
E viesse a conhecer
Os cariciosos perfumes
Que o tinham embriagado...

Ontem, à tarde, beijando-a
De teu lábio a viva rosa,
Lembrou-me a história singela
Dessa balada amorosa;
E dentro em mim de repente
Tão estranha dor senti,
Que num ímpeto demente
De teu lábio úmido e ardente
Com torvo aspecto fugi!

Lembrou-me, cabeça louca!
Que se eu acaso morresse,
Talvez um outro sorvesse
Os beijos da tua boca...

E no azul indefinido,
Ó minha piedosa anêmona!
Cuidei ouvir o gemido
Da moribunda Desdemona...

Ai, desavisado amor!
Perdoa, sombra adorada!
Nunca eu te avistasse, flor!
Nunca eu te lesse, balada!

 

A NEGRA
(Ao Dr. A. A. da Fonseca Pinto)

Teus olhos, ó robusta criatura,
Ó filha tropical!
Relembram os pavores de uma escura
Floresta virginal.

És negra sim, mas que formosos dentes,
Que pérolas sem par
Eu vejo e admiro em rúbidos crescentes
Se te escuto falar!

Teu corpo é forte, elástico, nervoso.
Que doce a ondulação
Do teu andar, que lembra o andar gracioso
Das onças do sertão!

As lânguidas sinhás, gentis, mimosas,
Desprezam tua cor,
Mas invejam-te as formas gloriosas
E o olhar provocador.

Mas andas triste, inquieta e distraída;
Foges dos cafezais,
E no escuro das matas, escondida,
Soltas magoados ais...

Nas esteiras, à noite, o corpo estiras
E, com ânsias sem fim,
Levas aos seios nus, beijas e aspiras
Um Cândido jasmim...

Amas a lua que embranquece os matos,
Ó negra juriti!
A flor da laranjeira, e os níveos cactos
E tens horror de ti!...

Amas tudo o que lembre o branco, o rosto
Que viste por teu mal,
Um dia que saías, ao sol posto,
De um verde taquaral...

 

MATER DOLOROSA
(A Rangel de Lima)

Quando se fez ao largo a nave escura
Na praia essa mulher ficou chorando,
No doloroso aspecto figurando
A lacrimosa estátua da amargura.

Dos céus a curva era tranquila e pura:
Das gementes alcíones o bando
Via-se ao longe, em círculos, voando
Dos mares sobre a cérula planura.

Nas ondas se atufara o sol radioso,
E a lua sucedera, astro mavioso,
De alvor banhando os alcantis das fragas...

E aquela pobre mãe, não dando conta
Que o sol morrera, e que o luar desponta,
A vista embebe na amplidão das vagas...

 

AS PRIMEIRAS LÁGRIMAS DE EL-REI
(A M. Pinheiro Chagas)

I
O príncipe morrera, e logo os cortesãos,
Em prantos derredor do mortuário leito,
Erguem a voz em grita aos céus levando as mãos.

II
El-Rei, João segundo, a fronte sobre o peito,
Contempla dos brandões à luz ensanguentada
O filho, e a dor lhe avinca o grave e duro aspeito.

III
E eis que, a um gesto do rei, a turba consternada
A pouco e pouco sai, reina o silêncio, apenas
Cortado pelo uivar longínquo da nortada.

IV
Sobre o filho curvado, imerso em cruas penas,
Aquele rei sinistro, enérgico e tigrino,
Tinha na frouxa voz modulações serenas.

V
E o filho inerte e mudo! então num desatino
Deixou-se El-Rei cair, ao acaso, num escabelo
E quedou-se a pensar no seu atroz destino.

VI
Um enorme, um confuso e brônzeo pesadelo
Caiu-lhe sobre o enfermo espírito enlutado,
E o suor inundou-lhe as barbas e o cabelo.

VII
Talvez que o triste visse, em sonho alucinado,
Do duque de Vizeu o espectro vingativo
Apontando-lhe, a rir, o Infante inanimado.

VIII
E escutasse a feroz imprecação que altivo
No cadafalso, outrora, o duque de Bragança
Às faces lhe cuspiu com gesto convulsivo.

IX
Súbito ergue-se o rei, e para o leito avança,
E uma lágrima então, embalde reprimida,
Das barbas lhe caiu no rosto da criança...

X
A vez primeira foi que El-Rei chorou em vida.

 

O CURA SANTA CRUZ
CONTO DE A. DAUDET
(Ao Dr. Sousa Martins)

O implacável carlista, o Cura Santa Cruz,
Que em nome do seu rei, e em nome de Jesus,
Da Navarra febril leva do sul ao norte
O ódio, a perseguição, o incêndio, o estrago, a morte.

Nessa clara manhã risonha do Natal,
Tendo sobre o uniforme a veste clerical,
Na montanha, ao ar livre, à luz do sol, diz missa
À guerrilha que o escuta extática e submissa.

Como um rebanho vil, a um lado, os prisioneiros
Ouvem-no, a tiritar, cheios de um medo atroz:
Olham-se mutuamente os torvos companheiros,
E murmuram: “meu Deus, o que será de nós?”

Porque enfim toda a vez que o sanguinário Cura
Se volta, e o oremus diz, segundo o ritual,
Da sacra vestimenta avultam na brancura
De pistolas um jogo e a forma de um punhal.

Quando afinal chegou o instante, a ocasião
Em que a missa termina, o Cura, erguendo um braço,
Grave traçou no ar e na mudez do espaço
O clemente sinal da paz e do perdão.

A missa terminara.

O Cura nesse dia
Como sentisse n'alma uns raios de alegria,
De bondade e de amor, foi-se direito ao bando
Dos cativos, e assim falou circunvagando
A vista em derredor: “Hermanos, viva Dios!

Corre aí que sou mau, fanático e feroz...
Pois em breve ides ver como se engana, quem
Diz que eu sou o anticristo e que abomino o bem.
Como é dia de festa e é dia de Natal,
Dou-vos a liberdade, e não vos quero mal!

Mas haveis de primeiro, e isto, pronto e sem custo
De joelhos beijar o pavilhão augusto
De El-Rei nosso senhor...”
E mandou desfraldar
O carlista pendão, branco como o luar...

Todos logo à porfia atiram-se por terra
E um grito: Viva El-Rei! ecoou de serra em serra.

No entanto um prisioneiro, um moço imberbe ainda,
Firme ficou de pé, e olhava com infinda
Expressão de desdém a estranha vilania...
Braços postos em cruz, e intrépido sorria.

“E tu?” surpreso disse e transtornado o Cura.
— Padre, volveu-lhe o esbelto jovem, com brandura,
— Mata-me! aqui me tens! rio-me desse pano!
— Ao teu rei não me curvo... Eu sou republicano...— 

O Cura um aceno fez; formou-se um pelotão:
“Vamos! inda uma vez, viva D. Carlos!”

— Não!— 

E havia nessa voz tamanha heroicidade
E uma energia tal, que uns longes de piedade
Cintilaram no olhar do torvo guerrilheiro.

Muito bem, morrerás: mas dize-me primeiro,
O que desejas tu? Queres beber, fumar?...

— Padre, se vou morrer, quero-me confessar...
“Ouvir-te-ei!” disse o Cura, e, ao acaso, num granito
Assentou-se.

O cativo, olhos no chão, contrito
Os joelhos dobrou... Nesse fugaz instante
Ele viu, ele viu, num sonho lacrimante,
A sua infância, o lar, o teto de seus pais,
Os choupos do seu rio, os plácidos casais:
Viu a noiva gentil, a igreja, os arvoredos
E os parentes e irmãos, sócios de seus brinquedos.

Ah! quem pode esquecer o seu país natal!
Ah! quem pode esquecer a bênção maternal!

Em distância a guerrilha os dois observa... Então
Enquanto o padre escuta atento o prisioneiro,
Súbito uma descarga estoura na amplidão.
Tremem a serra e o vale, treme o desfiladeiro.

“Às armas! o inimigo!” a sentinela brada.
De golpe ergue-se o Cura, e à joldra amotinada
Voa, dá ordens, clama, enquanto as balas chovem.
Nisto viu que inda estava ajoelhado o jovem!
Para.
“Que fazes tu?” indaga em tom severo
— Padre, diz a criança, a absolvição espero— 

E em meio da febril convulsão da batalha,
Enquanto rompe e rasga os ares a metralha,
Viu-se o Cura depois de abençoar, ligeiro,
A fronte juvenil do heroico prisioneiro,
Pegar de uma clavina, e dando um passo ao lado,
Varar tranquilamente o crânio do soldado.

 

A VENDA DOS BOIS
(Ao dr. J. de Vasconcelos Gusmão)

I
O velho entrara triste: ao pé, junto do lar,
Estava a companheira, absorta, a meditar.

— Mulher, a fé perdi, falei a toda a gente,
E ninguém me valeu! — E ela com voz tremente:
“Dize-me, e o brasileiro?”
— Esse foi o primeiro.

— Bati, fui ter com ele à casa do jantar.
Expliquei-lhe ao que vinha... entrou a gracejar:
“Com que então você quer livrar o seu rapaz?...
Vizinho, tão mal faz!
Deixe-me ir cada qual à sorte e ao seu destino!
Seu filho é um mocetão valente e muito digno
De servir o país...”

— E descascava um fruto...
— Desatei a chorar... “— Homem não seja bruto!
A farda não é morte...”
— E disse mais e mais
— Coisas de quem não sabe a dor de uns tristes pais!

E enquanto o velho punha a vista lacrimosa
Nos brasidos, a voz da mãe aflita e ansiosa
Perguntou: “e o prior?”
— Negou, negou também!— 
A angustiada mãe
Retorcia o avental com mão febril, ardente.

No silêncio da noite então distintamente,
Um profundo mugido,
Triste como um gemido,
Longo e longo chorou no lúgubre aposento...

Entreolharam-se os dois...
Nisto acode à mulher um estranho pensamento...
“Temos ainda os bois!
Vendamo-los!” E ria...
O entristecido olhar
Do velho lavrador de lágrimas nublou-se.
E entrou a suspirar:
— Vender os infelizes!
— Uns pobres animais, a quem só míngua a fala
— Para serem Cristãos! Parece que me estala
— No peito o coração... Vender os infelizes!...
— Pois seja assim, mulher! Farei o que tu dizes...

II
Vinha rompendo a aurora
Risonha, virginal, feliz como um noivado,
Das aves à compita o trêmulo trinado
Entre as balsas gorjeava. Era em descanso a nora.

No entanto o lavrador, tremente e vacilante
Como um ladrão noturno, ou como um namorado,
Abriu, de par em par, as portas do curral.
Súbito nesse instante
Volveram para a entrada os bois o olhar leal,
Bondoso, humano e franco.

Que festiva alegria
O frequente menear das caudas traduzia
Resvalando em seu forte e musculoso flanco!

O velho antigamente
Tinha sempre, ao chegar, uma palavra amiga,
Um dito, uma cantiga,
A que sempre um mugido alegre respondia.
Mas naquela manhã, silenciosamente,
Fatal como o dever
O velho foi buscar, a um canto, uma correia,
E lançou-a a tremer
Dos anafados bois às pontas recurvadas.

E saíram os três.
Nos côncavos da aldeia
Choviam as canções das aves namoradas.

III
No cais há o mourejar das fábricas ruidoso;
Feroz e discordante
Junta-se à voz humana o arfar estrepitante
Dos valentes pulmões das máquinas inglesas.

Em novelos, ansioso,
Golfam as chaminés o denso e o escuro fumo
Que ascende e toma o rumo
Do claro e vasto azul, vazio de tristezas.

Como um cetáceo ingente, encarvoado e feio
Um enorme Vapor
De outros avulta em meio.
Em seu largo convés a marinhagem canta
E na faina febril as ancoras levanta.

Naquela espessa nau, um velho, um lavrador
Entre a faina do cais, fita o dolente olhar...
É que ali dentro vão os bois, o seu amor...
E aquela mágoa intensa
E inenarrável dor
Responde a descuidosa e gélida indiferença
Dos Homens, e dos céus, e do profundo mar...

 

AO RABEQUISTA EUGÊNIO DEGREMONT
(Recitada na noite de 25 de fevereiro de 1876 no teatro de São João do Porto)

Vede-o! É tão criança! ó mães, olhai-o!
Como é vivo o fulgor e ardente o raio
Que vibra nesse olhar!
Faz gosto vê-lo assim tão pequenino
Enlevado nos sons do violino
A sonhar, a sonhar...

E ao passo que a sua alma vae sonhando,
Vão-se ante nossos olhos desdobrando
Quadros a mil e mil.
A rabeca suspira? Assim amenas
São na longínqua roça as cantilenas
Das moças do Brasil.

Vibra ríspidos sons? E logo ouvimos
Curvar o vento da floresta os cimos
Com ruidoso fragor...
E uivam pintadas onças e as araras
Roçam, fugindo, as trêmulas taquaras,
E crocita o condor.

Enterrados nas húmidas pastagens
Mugem raivosos búfalos selvagens,
E por entre os sarçais
Pula a pantera; os jacarés astutos
Choram, fingindo lacrimosos lutos
Nos fulvos areais.

Soluçou a rabeca? Ouvi, formosas,
São os negros soltando as lastimosas
Canções do seu país;
Sem família, sem pátria, sem amores,
Ninguém mitiga o fel daquelas dores,
Triste raça infeliz!

Agora, como em namorado anseio,
Sae da rabeca um languido gorjeio
Que enleva o coração.
E a saudade repinta-nos ao vivo
Dos sabiás o cântico lascivo
Nas sombras do sertão.

Tudo isso e mais eu vejo, admiro e escuto,
Com meu olhar de prantos não enxuto,
Ó criança gentil,
Que em vez de perseguir as borboletas
Vens batalhar no meio dos atletas
E honrar o teu Brasil!

Não presumas, porém, prodígio das crianças!
Que basta o fogo, o estro, a viva inspiração;
É mister trabalhar, sem isso nada alcanças;
A glória chamarás, ser-te-á o apelo em vão.

Pois que! tu cuidarás, criança, porventura
Que sem lutar, sofrer, sem hórridos tormentos
O artista poderia erguer aos quatro ventos
A Epopeia, o Drama, a Estatua, a Partitura?

Vamos, trabalha pois ó meu precoce artista,
Dos precipícios ri, vinga-me o barrocal!
Para o profundo azul estende a larga vista.
Eis-te nos alcantis! Eleva-te ao ideal!

 

AS VELHAS NEGRAS
(A Mlle. Aline de Gusmão)

As velhas negras, coitadas,
Ao longe estão assentadas
Do batuque folgazão.
Pulam crioulas faceiras
Em derredor das fogueiras
E das pipas de alcatrão.

Na floresta rumorosa
Esparge a lua formosa
A clara luz tropical.
Tremeluzem pirilampos
No verde-escuro dos campos
E nos côncavos do val.

Que noite de paz! que noite!
Não se ouve o estalar do açoite,
Nem as pragas do feitor!
E as pobres negras, coitadas,
Pendem as frontes cansadas
Num letárgico torpor!

E cismam: outrora, e dantes
Havia também descantes,
E o tempo era tão feliz!
Ai! que profunda saudade
Da vida, da mocidade
Nas matas do seu país!

E ante o seu olhar vazio
De esperanças, frio, frio
Como um véu de viuvez,

Ressurge e chora o passado
— Pobre ninho abandonado
Que a neve alagou, desfez...— 

E pensam nos seus amores
Efêmeros como as flores
Que o sol queima no sertão...
Os filhos, quando crescidos,
Foram levados, vendidos,
E ninguém sabe onde estão.

Conheceram muito dono:
Embalaram tanto sono
De tanta sinhá gentil!
Foram mucambas amadas,
E agora inúteis, curvadas,
Numa velhice imbecil!

No entanto o luar de prata
Envolve a colina e a mata
E os cafezais em redor!
E os negros, mostrando os dentes,
Saltam lépidos, contentes,
No batuque estrugidor.

No espaçoso e amplo terreiro
A filha do Fazendeiro,
A sinhá sentimental,
Ouve um primo recém-vindo,
Que lhe narra o poema infindo
Das noites de Portugal.

E ela avista, entre sorrisos,
De uns longínquos paraísos
A tentadora visão...
No entanto as velhas, coitadas,
Cismam ao longe assentadas
Do batuque folgazão...

 

O RELÓGIO
(No álbum de Eduardo Burnai)

Ebúrneo é o mostrador: as horas são de prata,
Lê-se a firma Breguet por baixo do gracioso
Rendilhado ponteiro; a tampa é enorme e chata:
Nela o esmalte produz um quadro delicioso.

Rapara: eis um salão: casquilho malicioso
Das festas cortesãs o mimo a flor, a nata,
Junto a um cravo sonoro a alegre voz desata.
Uma fidalga o escuta ébria de amor e gozo.

Rasga-se ampla a janela: ao longe o olhar descobre
O correto jardim e o parque extenso e nobre.
As nuvens no alto céu flutuam como espumas,

Da paisagem no fundo, em lago transparente,
Onde se espelha o azul e o laranjal frondente,
Um cisne à luz do sol estende as níveas plumas.

 

A MORTE DE D. QUIXOTE
(Ao Conde de Sabugosa)

Roto o escudo, sem lança, a cota escalavrada,
Sozinho, abandonado e à toa como um cego,
Do crepúsculo à luz dolente e imaculada
Entra na sua aldeia o altivo herói Manchego.

O tênue fumo sai do colmo das herdades,
Riem ao pé da fonte as frescas raparigas,
E à clara vibração sonora das trindades
Juntam-se brandamente as vozes e as cantigas.

E o audaz Campeador, o Justiceiro, o Forte,
Que apelo mundo a combater os maus,
Defendendo a Mulher, desafiando a morte,
Do paterno casal sentou-se nos degraus.

Nos joelhos fincando o cotovelo agudo
E no punho cerrado a fronte reclinando,
Quedou-se largo espaço, ilacrimável, mudo,
Para o inútil passado os olhos alongando...

E ali, na doce paz da sua alegre aldeia,
Sentiu que o avassalava uma tristeza infinda,
Quando esta voz se ouviu: “morreu-te a Dulcineia,
Missionário do Bem, tua missão é finda!”

E ele a ouvir e a cismar! A trêfega sobrinha
Beija-o, fala-lhe, ri, abraça-o, mas o Herói
Destarte lhe volveu “A morte se avizinha,
Levai-me para o leito!” E ouvi-lo pena e dói.

Do leito à cabeceira o Bacharel e o Cura
Tentam ressuscitar-lhe os sonhos e as quimeras;
Pintam-lhe o negro mal triunfante, ó amargura!
O fraco aos pés do forte, o bom lançado às feras...

Contam-lhe o frio horror dos cárceres sem luz.
Que nas torres feudais pompeava o velho Crime.
Que os crescentes do Islã tinham vencido a Cruz,
Que a Injustiça era a Lei... Então feroz, sublime.

Inquieto, seminu, sinistro, o cavaleiro
Bradou como um trovão: “Enverguem-me a loriga!
Selem-me o Rocinante, ó Sancho, ó escudeiro,
Traze-me a lança, presto! e a minha espada amiga!”

Tinha em brasas o olhar, e truculento o aspeito,
E vibrava em redor a imaginária lança...
Logo depois caiu do respaldar do leito,
Morto: tendo no lábio um riso de criança!

 
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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