3/07/2023

Pecados (Poesia), de Medeiros e Albuquerque


PECADOS



À ENTRADA
(A meu pai)

Este meu livro devia
ser um livro de criança,
todo verde de esperança,
todo rubro de alegria.

Devia conter somente
ilusões da mocidade,
abrir-se róseo e fremente
numa doida alacridade.

Contar amores... amores
como nós, os moços, temos:
cheios de êxtases supremos
e de infantis dissabores.

Alar-se todo, cantando
os doces hinos da Crença,
ser casto, ser meigo e brando,
ter sonhos de paz imensa... 

E não é. E mau; é rude;
não guarda nobres encantos;
prefere aos Risos os Prantos,
prefere o Mal à Virtude!

E filho duma alma aflita
presa da dúvida insana
desta idade, em que palpita
na treva a Consciência Humana.

Sofre de enorme tormento
que lhe rouba a seiva ardente:
desta moléstia inclemente,
que se chama “o Pensamento!”

Se busca o riso vivace
para afastar os pesares,
convulsa, ruga-se a face
em agourentos esgares.

Tem sob a rima sonora
— cadência que prende e agrada
muita queixa desgraçada
que estua, que geme e chora.

São versos de quem não soube
achar ainda um afeto
que toda a su’alma arroube
num sonho nobre e completo.

Versos de quem muitas vezes
buscou o amor doce e brando
e o viu partir, só deixando
ressaibos de amargas fezes;

de quem a amante procura
que resuma o que se exprime
— na Luxúria a mais impura!
— na Quimera a mais sublime! 



PARA O NADA
(A delgado de Carvalho)

Sempre ao Bem excede a impura
legião negra do Mal!
O Gênio, o Crime e a Loucura
são faces de um só cristal... 

A escala, pois, que nos leva
à perfeição mais sublime
— da insânia avizinha a treva,
— fica bem perto do Crime.

E é tudo assim... Quem é forte,
quem sabe fazer-se grande,
em torno de si a Morte,
a Dor e a Cólera expande.

Os bons, os meigos, os santos
são seres fracos, mesquinhos;
vivem em queixas e prantos,
vivem pedindo carinhos.

À natureza só arma
as gerações vigorosas
p’ra correrem ao alarma
de batalhas pavorosas.

O Homem tem a grandeza
lúgubre e imensa do excídio:
sua mais alta nobreza
é este dom: o suicídio!

Assim, pois, o esforço todo
da Natureza grandiosa
é o desejo imenso e doido
a ânsia profunda e raivosa

de ver — da Dor sucumbindo
na eterna tragédia insana —
todo o Universo caindo
na paz sem fim do Nirvana!

 

ANTE UM CRUCIFIXO
(A Alfredo Coelho Barreto)

Há dois mil anos — rude carpinteiro
que o nosso louco desespero fundo
nos consome, segundo por segundo,
num desgraçado e negro cativeiro...
 
Há dois mil anos teu olhar profundo
desse infamante e trágico madeiro
nos promete sereno e sobranceiro
bálsamo aos desconsolos deste mundo.

Há dois mil anos — lúgubre e daninho —
teu vulto posto ao meio do caminho
para a Ventura nos impede os passos... 

Há dois mil anos que teus lábios mentem... 
Basta! Os povos prostrados hoje sentem
ânsia de novos céus, novos espaços...

 

A DOMADORA

Ela era loira e branca e pálida e formosa;
tinha no olhar azul a chama caprichosa
do domínio, do mando altivo e senhoril.
Quando assomava, ousada, o mágico perfil
à jaula, onde rugia a multidão das feras
dobravam docilmente hienas e panteras
a ferina cerviz ao gesto tentador.
Do seu olhar de fogo ao lúcido esplendor,
sentiam-se tremer — tremer como crianças —
as feras tropicais afeitas às matanças,
às fúrias e ao calor dos líbicos sertões.
Rojava-se por terra o dorso dos leões,
e ela afagava a rir com suas mãos mimosas
as jubas colossais, sanhudas, temerosas.
Os reis das solidões eram vassalos seus.

Feras que tinham visto a luz de estranhos céus,
que as florestas, à noite, a percorrer, andavam,
que livres, sem temor, as selvas dominavam,
tigres rudes e maus, de coração feroz:
todos, na jaula, ao vê-la, ao som da sua voz,
passivos, sem vigor, tremiam mudamente.
Uma vez, ante o olhar do público fremente,
a domadora entrou na jaula colossal,
dos aplausos febris ao coro triunfal.

Entrou calma e gentil.
No seu formoso seio
nem houve a pulsação mais leve do receio.
Ao seu gesto de fada, as feras dominou;
com a mão nervosa e branca o dorso acarinhou
das panteras cruéis de peles marchetadas.

Viu, porém, ao clamor das massas assustadas,
um leão, frente a frente, o seu perfil erguer
e no sanhudo mar da juba a estremecer
perpassar o furor tremendo da revolta,
agitando os anéis da cabeleira solta.

Luziu em seu olhar a chama do terror;
mas logo, recobrando as forças e o valor
pôde, enfim, novamente, após longos instantes,
ver o monstro baixar as jubas palpitantes.

Frenética ovação no circo restrugiu.

Mas parece que a fera em seu semblante viu
um riso de desprezo... E, brusca, num arranco,
às garras lacerou-lhe o colo fino e branco,
num desespero insano, a ulular de furor.

Houve por todo o circo um momento de horror.

Quando o leão caiu das balas às feridas,
havia pelo chão um monte de esparzidas
carnes alvas, em sangue, ainda a gotejar.

Nas órbitas sem luz do leonino olhar
sentia-se que a raiva, a cólera fremente,
fizera ressurgir a líbia fera ardente.

Tu, minha doce amada, ó cândida mulher
que me vês, a teus pés curvado, estremecer,
que fizeste de mim, de mim, fera altaneira,
servo dócil e bom, que à sua vida inteira
só busca inspiração do teu olhar na luz;
tu, cuja doce voz todo o meu ser reduz
à passiva e fiel obediência louca,
às despóticas leis da tua rubra boca;
tu, celeste mulher, mulher casta e gentil,
a cuja lei me curvo humílimo e servil,
— não me lances jamais o teu desprezo frio,
que hás de me ver erguer, e pálido, e sombrio,
como o leão cruel, de líbico furor,
despedaçar por ti o meu imenso amor!

 

COTINHA
(Exma. Sra. D. Eugênia de Negreiros Roxo)

Tinha nove ou dez anos. Era fina
e graciosa e gentil e delicada.
Uma esbelta criança, tão franzina,
como flor mal aberta, à madrugada.

Chamavam-na Cotinha.
Era a alegria
a teteia da casa. E, tio pequena,
tinha caprichos tais, tal fantasia
que a mãe se enchia de uma imensa pena
a cismar no futuro: “... se algum dia,
ela ficasse pobre... ao desamparo... ”

E era tão carinhosa!
Amava tanto
o pequeno irmãozinho que, não raro,
se debulhava em pérolas de pranto,
se o castigava a mãe.
Nunca a Cotinha,
zangada e pesarosa, se queixava
quando o irmão, por acaso, a maltratava... 
Dava-lhe até razão a pobrezinha!

Uma vez que o pequeno ficou doente,
longas horas velou sempre a seu lado
e — pode-se jurar — tão desvelado
jamais houve enfermeiro diligente.

E quando o viu curado?
Mal podia
caber em se, vibrando de alegria,
enchendo de barulho a casa toda.
Quebrou na sala duas jarras finas... 
Pintou!... pintou a manta... E tão traquinas
e inquieta andou, que parecia doida!

Pobre Cotinha! Esta afeição ardente,
afeição de criança, meiga e pura,
ninguém diria que, sinistramente,
lhe fosse um dia abrir a sepultura...

E talvez fosse um bem... A Morte, em suma,
é o repouso infindo de noss’alma
e não há bem na vida que resuma
a eterna solidão, a eterna calma!

Perto da casa da Cotinha, havia
uma lagoa. À tarde, iam crianças
brincar aí. E sobre as águas mansas,
soltavam barcos de papel, à toa,
e gostavam de vê-los, vagarosos,
irem de leve, brancos e garbosos,
à superfície calma da lagoa.
E outros muitos brinquedos que eu agora
já nem mesmo recordo... 

Mas um dia,
em que o pequeno só, se distraia,
tendo a Cotinha estado o dia fora,
afogou-se o menino.
Tal desdita
ninguém sabia como se passara,
nem o corpo se achara até então.
Quando a Cotinha veio, esbelta e clara
e risonha e mimosa e pequenita,
quando sentiu a mãe, lívida e aflita,
e viu, e soube que morrera o irmão,

— ela cambaleou... branca... tão branca
como um jasmim que o vendaval arranca
e, de rastos, atira nas estradas
e nas estradas rola pelo chão!

E, alucinada, e trágica, e demente,
prorrompeu... prorrompeu em gargalhadas,
rindo nervosamente, estranhamente.

Como chorava a mãe! Absorvida
na grandeza da dor que nada apouca,
vira de um filho sucumbir a vida... 
temia ver a sua filha louca... 

E por fora — o sossego. Branda e amena,
a viração no perpassar, serena,
mal enrugava a placidez dás águas... 
A Natureza... a Natureza fria,
a Eterna! indiferente não sentia
dois tristes corações cheios de mágoas!

E é sempre assim.
Se folga em plena festa,
a alma, em flor, numa doida alacridade,
ela solta, raivosa, a tempestade,
como a dizer-nos, cínica e funesta:
— “Ah! tu rias, bandido?! Geme agora!
Geme, que em trevas eu mudei a aurora,
e esfolharei os teus mais belos cantos,
teu amor, teu porvir, tua esperança... 
E, quando a Dor se chega e os vãos encantos
do coração desfaz, ai! a bonança
abre-se, como um riso nos espaços... 
Tudo canta e sorri! tudo floresce!
toda a sombra nos céus desaparece
e a alma, sangrando, cai-nos aos pedaços...
 
Mas a Cotinha, súbito, parando
a gargalhada atroz do sofrimento,
sentiu brotar-lhe um novo pensamento:
— “Quem sabe?! Ela acharia certamente
o pequeno irmãozinho... ”

E, mal cismando
nesta ideia infantil, em um segundo
correu... correu veloz, rapidamente
e atirou-se no lago imenso e fundo... 

E que mais vos direi?
Do pequenino
o cadáver sumiu-se.
E, quando, fria
despontou, calma e branca, no outro dia,
a Lua, o astro lânguido e divino
que resvala no azul, indiferente,
viu da Cotinha o lívido corpinho,
como um berço de plumas e de arminho,
como um ninho,
do lago à superfície transparente,
a boiar, a boiar, placidamente... 

 

A UM SUICIDA

Tu, sim; tiveste a trágica coragem
de ir procurar a morte, ousadamente.
Não te agarraste às bordas da voragem,
misérrimo e tremente... 

Viste que não há nada nesta vida,
onde não brote a sensação da Dor
e que a nossa existência vai perdida,
frágil embarcação sempre batida
num mar cheio de horror.

Viste e tiveste a nobre heroicidade
de quebrar os grilhões de tua sorte:
seguiste firme, com serenidade,
à procura da Morte!

Dizem que é covardia... E, no entretanto,
tremem junto do lúgubre cairel... 
Dizem que é covardia... E o medo é tanto
que — só para viver — negam o pranto,
negam a dor cruel... 

Eu quisera lhes dar o calafrio
que me sacode os nervos doloridos,
que me agita a medula e que, sombrio,
me entorpece os sentidos,

quando eu penso no fim desta existência;
na Morte: a tétrica: a feral visão!
e sei que há de extinguir-se a Consciência
e as Formas rolarão na turbulência
do eterno turbilhão!

De que serve lutar? ser justiceiro?
ser virtuoso e nobre e corajoso?
se a todos traga o abismo derradeiro
do Nada pavoroso... 

Este é o espinho agudo que me irrita:
este medo da Morte... este terror... 
Pensar que tudo que minh’alma agita
há de tragar enfim — ninguém o evita —
do Inconsciente o negror!

E não me apego aos ídolos que mentem... 
E não procuro as ilusões brilhantes... 
Meus olhos, sempre abertos, negras, sentem
estas sombras hiantes!

Por isto eu te saúdo... a ti, que a Morte
ousaste sem receio procurar!
Vencendo o medo que me deu a Sorte,
eu, covarde — quisera, ousado e forte,
teu arrojo imitar!

 

RESPOSTA A ARTUR AZEVEDO

O Pessimismo deste tempo insano
não é feito de lágrimas fingidas;
já nem cabe do Verso nas medidas,
tanto ele inunda o coração humano!

Foi tão profundo o triste desengano
das mortas crenças afinal perdidas,
que no vácuo das almas doloridas
cresceu o tédio — lúgubre tirano!

Nada ficou de pé... Veio a certeza
de que tudo na imensa Natureza
é simplesmente uma ilusão terrível.

Hoje até mesmo o pranto já nos cansa
nesta medonha e trágica e impassível
bancarrota suprema da Esperança!

 

QUESTÃO DE ESTÉTICA

Eu assistia à eterna discussão
de uns que querem a Forma e outros aldeia,
mas a minh’alma, inteiramente alheia
cismava numa intima visão.

Cismava em ti... Pensava na expressão
do teu lânguido olhar, que em nós ateia
um rasto de volúpia e em cada veia
coa as lavas ardentes da paixão.

Pensava no teu corpo, maravilha
como igual certamente outra não brilha,
e lembrei — argumento capital —

que não tens, animando-te o portento
da imperecível Forma triunfal,
nem um nobre e sublime pensamento!

 
 
NIRVANA

E pois que o teu olhar
Senhor, não vem, não desce
e como um sol brilhante não aquece
a alma, em meio da Dúvida, a hesitar,

pois que é baldado e vão
tudo o que a mente aspira
e sentimos apenas a mentira
ao cabo da mais lúcida ilusão;

pois que não vemos Deus
que nossa rota aclare
e nas sendas da vida nos ampare
e nos levante os olhos para os céus;

pois que soçobra o Bem,
como um baixel perdido,
e nas vagas da Dor o homem caído
nem, um gozo sequer, lutando tem:
 
pois que o Belo se esvai
— sonho brilhante e puro —
e das auroras negras do Futuro
outro brilho quimérico não sai;

pois que a Verdade até
— única luz restante —
também treme e vacila agonizante,
entre os escombros do porvir, em pé,

que se extinga afinal
a vida derradeira!
e role e caia a Natureza inteira
num aniquilamento universal!
 
 

DOMADORES

Há quem pasme dos fortes domadores,
cujo esforço valente e decidido
faz que se curve, de pavor transido,
dorso de fera má, de olhos traidores.

E, contudo, dominam-se os furores
e impõe seu jugo o braço destemido
com qualquer ferro em brasa enrubescido
e artifícios banais e enganadores.

Outros há, todavia, mais valentes,
que a populaça rude não conhece:
são os que domam, vultos imponentes,

esta fera: — a Palavra, que carece
para acalmar seus ímpetos insanos
— seiva e sangue de cérebros humanos.
 
 

CÉREBRO E CORAÇÃO

Dizia o coração: “Eternamente,
eternamente há de reinar agora
esta dos sonhos teus nova senhora,
senhora de tu’alma impenitente.”

E o cérebro, zombando: “Brevemente
como as outras se foram, mar em fora,
ela se há de sumir, se há de ir embora,
esquecida também, também ausente.”

De novo o coração: “Desce! vem vê-la!
Dize, já viste tão divina estrela
no firmamento de tu’alma escura?”

E o cérebro por fim: — “Todas o eram... 
Todas... e um dia sem amor morreram,
como morre, afinal, toda ventura!”
 
 
 
ESTRANHO MAR

Vênus, deusa imortal da formosura,
quando surgiu do glauco sorvedouro
trazia às pontas do cabelo louro
pérolas d’água cristalina e pura,

mas do oceano de amor, que bate a escura
prisão dest’alma, que de sonhos douro,
se — desprezando-o como vil tesouro —
surgisses, nua, em deslumbrante alvura

— bem certamente nos anéis dos soltos,
longos cabelos negros e revoltos,
onde brinca ditoso o meu desejo,

tu não terias d’água leves bagas... 
— Surgirias trazendo dessas vagas
em caia fio pendurado una beijo!
 
 

CANÇÃO BÁQUICA
(A Régulo Fausto)

Conviva, enchamos as finas taças
dos claros vinhos no louro rio!
deixem-se as mágoas vãs das desgraças,
do Pensamento negro e sombrio:
seja a Alegria quem do horizonte
derrame os gozos na nossa fronte;

Bebe! Se sentes no arfar do peito
nome de virgem casto surgindo,
verás — do Vinho sublime efeito —
ela a teus braços chegar, sorrindo... 
Então, no afeto dos puros beijos,
serão cumpridos os teus desejos.

Bebe! Se queres a eterna glória
para teu nome de luz banhar,
nos olhos baços — febre ilusória —
o Mundo inteiro verás clamar... 
 Vivas, aplausos, gritos ardentes... 
as turbas loucas dirão frementes... 

Bebe! E se ao cabo da noite escura
— hora de crimes torpes, medonhos —,
o brilho vivo da razão pura
varrer-te acaso da mente os sonhos,
cerra os ouvidos à voz do povo!
— ergue teu cálix, bebe de novo!
 
 

TRISTES A ALEGRES... 
(Resposta a versos de Artur Miranda)

Tu, jucundo cantor das alegrias,
alma forrada de estendais de luz,
que não levas das torvas agonias
a desumana e pungitiva cruz,

vai da existência pelo trilho brando
cantando o sol que te redoura a fronte!
Alegre hás de sentir todo o horizonte,
enquanto, alegre, fores tu andando... 

Felizes esses que não têm a funda
tortura atroz da ideia, que, cruel,
mesmo os sorrisos da ventura inunda
de um ressaibo amaríssimo de fel!

E olha: eu não amo os velhos romantismos,
que usam do pranto, como joia cara,
e cujas rimas de perícia rara
são crises vãs de sentimentalismos.
 
Vejo a miséria, a insipidez da vida,
que é como um verde e pútrido paul,
e sei que é sobre nós a desmedida
curva do céu: uma mentira azul.

Então eu vergo irremissivelmente
— sem que a tal mágoa possa achar remédio —
ao negro peso colossal do tédio
por tudo quanto minha vista sente.

E, pois, se creio todo o mundo triste
é que a Tristeza na minh’alma habita;
nela, entre escombros, funeral, crocita
um corvo: o Spleen que dentro em mim existe.

Tu, no entretanto, canta a vida em festa,
canta a alegria que teu peito tem... 
Canta depressa! Lembra que, funesta,
pode a amargura te empolgar também!

Deixa-me... Eu vivo para o desalento... 
Irei levando pelos meus caminhos,
sob a fronte, viúva de carinhos
a alma de um velho triste e macilento... 

 

ÚLTIMO REMÉDIO

Se tu chegaste enfim aos termos da Verdade,
se viste quanto o Mundo é mentiroso e vão,
se já não crês no deus da velha cristandade,
nem crês também no Amor: o louro deus pagão,

— sabe ser rude e forte. Ao impassível rosto
ata a máscara audaz do cínico impudor,
aprende a recalcar teu íntimo desgosto
e a fingir a quem chora a mais sincera dor.

Mas — dentro de tu’alma — à torpe hipocrisia
de tudo — porque tudo é refalsado e vil —
lança, como um cautério, implacável e fria,
a ironia mordaz, herética e sutil.
 
 

RESPONDENDO A UMA CARTA

É simplesmente um músculo mesquinho
o coração que existe no meu peito.
Por mesquinho, por frágil, por estreito —
não tem espaço para o teu carinho.

Outro, Senhora, deve ser o eleito:
alma onde as ilusões procurem ninho.
Não eu, que não as tenho em meu caminho
para enfeitar do teu noivado o leito.

Eu poderia, eu poderia ainda,
essa afeição, que dizes ser infinda,
pagar com a infâmia de cruel mentira.

P’ra quê?! Tu’alma que de luz se enflora
na minha em sombras seu fulgor sumira... 
Risca-me, pois, do coração, Senhora!

 

CONTEMPLAÇÃO

Tenho nos olhos o deslumbramento
de quem o brilho de vivaz estrela
por muito tempo contemplasse atento:
— agora mesmo eu acabei de vê-la!

E é tal meu gozo, meu contentamento
quando eu consigo conversar com ela
que em meus ouvidos conservar intento
a sua voz harmoniosa e bela... 

Fico mirando num dormente e vago
sonho, que eu mesmo nem sequer defino,
seu vulto airoso, seu perfil divino... 

E o só desejo que na mente afago
era ficar como um faquir do Oriente
fitando sempre essa visão clemente.
 
 

ANOITECENDO
(A delgado de Carvalho)

É quase noite. Crepuscula o dia
na mortalha da treva se enrolando.
Da aragem vespertina, leve e fria,
passa o queixume vaporoso e brando.

Traços d’asas no céu... Na serrania
troncos mirrados erguem-se, estacando.
Os galhos nus semelham a sombria
posição de quem clama deprecando... 

Arma-se a eça fúnebre e suspensa
do dia morto... A multidão imensa
das estrelas recama o enorme espaço... 

Sobem dos negros as canções magoadas... 
Mal se distinguem, longe, nas boiadas,
lentos, os lentos bois marchando a passo... 
 
 

VERSOS SOBRE EDGAR POE
(A Araripe Júnior)

Grande Poe, eu quisera nesta idade
erguer teu vulto como o de uma estátua
para mostrá-lo em toda a claridade
à geração moderna, à mocidade
frívola e fátua!

Sim, eu te entendo sonhador exótico,
estranho sonhador,
eu compreendo teu pensar nevrótico,
a tua imensa dor.

Eu compreendo em meio do tumulto
desta profunda agitação humana
que não coubesse teu heroico vulto
ante o labor desassisado e estulto
da nossa idade insana... 
 
De que serve esta febre, que nos leva,
de Verdade e Real?
Não vale mais sentir brilhar na treva
o lume do Ideal?

Pois não é esta vida tão mesquinha,
tão estúpida e vã, tão desgraçada,
que a alma deva querer no espaço, asinha,
despedaçando esta prisão daninha,
pairar desassombrada?

Sim. E, no em tanto os ídolos quebramos
da alegria vivaz,
e nossas forças todas anulamos
num labor contumaz... 

Sonhar!... É abrir velas às esplêndidas
lufadas da ilusão, mansas, macias... 
Sentir em doces, em estranhos cânticos
embalarem-se os dias... 

E como una janela debruçada
sobre outro mundo, sobre novos céus:
— sentir a Fantasia escancarada
sem cortinas! sem véus!

E a delícia extrema, é a grandíloqua
aspiração mais alta da noss’alma!
vogar do azul na imensidade olímpica
ora em sonhos terríveis, ora em calma!

Beber! Sentir o Vinho que alastrando-se
no percurso febril das nossas veias,
em rutilantes catadupas vívidas
nos despenca as ideias!

Ó beber é quebrar os laços todos... 
é desprender a nossa mente êxul... 
é cavalgar sobre os terrenos lodos
do Sonho o grifo azul!

Só quem sabe o que vale o vinho rútilo
são os que têm os corações magoados... 
A púrpura do Vinho é toda a púrpura
que têm para cobrir-se os desgraçados!

Seja o delirium tremem muito embora
quem teu espírito espantoso enleva:
— és como o impossível de uma aurora
em que brilhasse um sol feito de treva!

Se houvesse, como tu, dez criadores
dessas visões nevróticas e ardentes,
da insânia nos sublimes esplendores
todos nós rolaríamos contentes!

A loucura cruel que te feriu
se me empolgar o cérebro algum dia:
— tu e eu, nós iremos da amplidão
contra os sonhos falazes da Razão
semeando a Ironia!

 

TERMINANDO MENSONGES
(De Paul Bourget)

Eu não creio que o Dante haja sabido
sofrimento maior que o desta idade
que mina a pouco e pouco a mocidade
e nos tortura o coração ferido.

É um suicídio lento... a crueldade
de arrancar cada dia decorrido
algum sonho vivaz e estremecido,
que a alma enchia de luz e alacridade.

Cada livro que lemos é certeza
de novo desabar de intima crença
de esperança ilusória de beleza... 

Nem para Deus erguendo nossos braços
podemos apelar... Deus — dos espaços
fugiu, deixando a solidão imensa... 
 
 

ARTISTAS

Senhora, eu não conheço a frase almiscarada
dos formosos galãs que vão aos teus salões
nem conheço também a trama complicada
que envolve, que seduz e prende os corações.

Sei que Talma dizia aos juvenis atores
que o Sentimento é mau, se é verdadeiro e são.
e quem menos sentir os ódios e os rancores
mais pode simular das almas a paixão.

E, por isto talvez, eu, que não sou artista,
nem nestes versos meus posso infundir calor,
desvio-me de ti, fujo de tua vista,
porque não sei dizer-te o meu imenso amor.
 
 

CANÇÃO

Por onde quer que, seguindo,
trilhes da vida os caminhos,
ninguém te verá sentindo
como os meus — outros carinhos!

Cerquem teu rosto tão puro
de longos beijos secretos,
não terás mais — eu te juro —
como os meus — outros afetos!

Forrem-te os passos mimosos
de gozos, sonhos e flores,
não terás tão deliciosos
como os meus — outros amores!

Cinjam-te embora, trementes,
novos amantes nos braços,
não sentirás tão ardentes,
como os meus — outros abraços!
 
Eu, porém... Eu, nas sombrias
horas de loucos desejos,
não sentirei nos meus dias,
como os teus — os outros beijos!
 
 
MÁGOAS ALHEIAS
(A Pardal Mallet)

Olham: A vida inteira é qual batalha,
cheia de trevas e de desenganos.
Um deus iníquo sobre a Terra espalha
sofrimentos insanos... 

Vão cumulando as mágoas e as tristezas
dentro dos pobres corações chagados;
sentem da estrada as duras asperezas
sob os pés macerados... 

E um dia, em suma, vendo a dor mais forte,
têm a sublime e trágica coragem
de atirarem-se, intrépidos, da Morte
à terrível voragem.

Matam-se. Então dos peitos sem alentos —
vivos ainda, pelo azul voando,
como abutres cruéis, os Sofrimentos
saem: sinistro bando! 

Saem, batendo as asas... Nos espaços
seguem, negros, rasgando os horizontes... 
Quando descem enfim, pousam-se lassos
por sobre as nossas frontes.

E refletimos: “Por que causa andamos
com as nossas almas de pesares cheias?... ”
E sem saber dentro de nós guardamos
fundas mágoas alheias...  



VERSOS DIFÍCEIS

Faço e desfaço... A Ideia mal domada
o cárcere da Forma foge e evita.
Breve, na folha tanta vez riscada
palavra alguma caberá escrita... 

E terás tu, ó minha doce amada,
o decisivo nome da bendita
companheira formosa e dedicada
a quem minh’alma tanto busca, aflita?

Não sei... Há muito a febre me consome
de achar a Forma e conhecer o nome
da que a meus dias reservou o fado.

E hei de ver, quando saiba, triunfante,
o verso bom, a verdadeira amante,
— a folha: cheia, — o coração: cansado!

 

NO ENTERRO DE UMA CRIANÇA

Trago a blasfêmia nos meus lábios frios
— hei de lançá-la sobre o teu caixão!
Soltem os padres: — vendilhões sombrios —
o grasnido venal do cantochão!

Soltem, que, há muito, d’água benta os rios
correm das tumbas no gelado chão
e nos sepulcros, afinal vazios,
nada dos vermes diminui a ação.

Por isso, junto do teu corpo leve,
que à sepultura descerá em breve,
trazendo os roucos sacrilégios vim.

Se as preces vãs que sobre ti sacodem
nada alcançarem, quero ver, se, enfim,
pode a blasfêmia o que orações não podem.
 
 

A BEM DO SERVIÇO PÚBLICO... 

Chove há três dias — uma eternidade! —
longa, monótona, insistentemente... 
Debalde todos nós temos vontade
de ver de novo o sol brilhar fulgente.

E andam agora, assim, umas asneiras
de sol e chuva, que ninguém entende:
— se queremos o sol, chove em cachoeiras!
— se esperamos a chuva, o sol esplende!

É, pois, preciso, sem perder segundo,
desta incerteza p’ra que cesse o inferno,
por incapaz de governar o mundo
aposentar o velho Padre Eterno!
 
 

NA ROÇA

Penso em ti minha amada... A Natureza
se veste, junto a mim, toda de gala
e minh’alma a cismar, muda, resvala
às sombras da saudade e da tristeza.

É meio-dia. O sol no descampado
jorra termas ardentes de fulgor... 
Tudo tem vida, tudo tem amor,
— só eu não tenho teu olhar amado.

Oh! se estivesses a meu lado agora,
se em meu ombro pousasses tua fronte,
eu acharia luz neste horizonte,
afeto — em tua boca sedutora!

Nós iríamos juntos nos caminhos,
colhendo as borboletas infantis,
iríamos aos pássaros gentis,
ensinando os afagos e os carinhos.

E os lírios brancos do varzedo, quando
perpassássemos rindo entre cardumes
de quimeras e sonhos e perfumes,
tremeriam de inveja, murmurando.

Ao papear dos módulos arpejos
nas ramas dos silvestres matagais
— os passarinhos ledos, joviais,
glosariam, trinando, nossos beijos.

As trepadeiras, enroscando os laços
pelos caules pujantes e rugosos,
conosco aprenderiam os ditosos
ímpetos loucos dos febris abraços.

Ah! mas quem sabe se jamais a fronte
eu no teu colo pousarei, um dia?
Sei que do meu olhar a chama fria,
sem ti, não acha luz neste horizonte.
 
 

ILUSÕES
(No álbum de Ernesto Senna)

Velas fugindo pelo mar em fora... 
Velas... pontos — depois... depois, vazia,
a curva azul do mar, onde, sonora,
canta do vento a triste salmodia... 

Partem, pandas e brancas... Vem a aurora
e vem a noite após, muda e sombria... 
E, se em porto distante a frota ancora,
é, p’ra partir de novo em outro dia... 

Assim as ilusões. Chegam, garbosas.
Palpitam sonhos, desabrocham rosas
na esteira azul das peregrinas frotas... 

Chegam... Ancoram na alma um só momento... 
Logo, as velas abrindo, amplas, ao vento,
fogem p’ra longes solidões remotas... 
 
 

OUVINDO MÚSICA
(Ao Dr. Franklin Távora)

Não; tu não sabes traduzir as ânsias
doidas, frementes, que o meu ser agitam:
nas vagas da Harmonia não palpitam
meus anseios de amor.

Dizem que soltas pelo ar as pérolas
da mais ardente e esplêndida poesia,
que tens escrínios ricos de magia,
de vivido fulgor.

Das valsas loucas nas cadencias lânguidas
t dizem que ora resumes todo o encanto
do meigo afeto indefinido e santo,
que o coração contém,

ora expandes, nervosa, das volúpias
os mais sutis e sensuais afagos
e um veneno de gozo em doces tragos
de cada nota vem.
 
só eu não posso navegar impávido,
por sobre as vagas do teu mar sonoro:
eu, que os encantos do Perfume adoro,
quero-o antes sentir!

O Perfume! O Perfume! O Som mais límpido
vos diz acaso o que sugere o Aroma?!
Um gênio sobre vós, lançando assoma
as pérolas de Ofir... 

Passam deidades a cantar, esplêndidas... 
Coro de beijos pelo ar flutua... 
Cada visão que surge — surge mia.
para vos vir beijar... 

Não. Na Harmonia não se tem os mágicos
abraços cheios de um amor ardente!
Como às ânsias do Aroma não se sente
a Carne palpitar!

Tudo perpassa sobre as ondas lúcidas,
as ondas turbulentas dos perfumes;
— beijos, carícias, gozos e ciúmes
giram em turbilhões... 

A mil quimeras de ventura incógnita
nas nossas almas o prazer desperta
e a barca da existência voga incerta
num mar de tentações... 

Quando sinto vergar meu corpo exânime,
dos Perfumes ardentes ao abraço,
creio dormir no lúcido regaço
de mulheres do céu... 

Oh! não me falem dos arpejos cálidos,
das delícias do Som sublime e brando.
Perfume! eu quero me envolver, sonhando,
no teu mágico véu!

 

SERENATA
(A Dario Freire)

Na insipidez moderna desta idade
já passaram de moda as serenatas... 
Esta, eu a fiz, lembrando a suavidade
das nossas noites tropicais, tão gratas
aos devaneios vagos do lirismo
dos velhos tempos bons do Romantismo:

“Vem! as estrelas brilham serenas,
brilham formosas no azul celeste;
geme nos campos, em cantilenas
nos milhos louros, o vento leste... 

As eglantinas,
ao curto termo das vidas breves,
as delicadas pétalas leves
soltam franzinas... 

Pelas estradas, agora escuras,
erram, voando, mornos perfumes... 
Das balsas verdes nas espessuras
há vagalumes... 
 
Vem! nós iremos de braço dado.
mudos de gozo, de um gozo ardente,
sentindo apenas em nós fitado
dos astros vivos o olhar luzente... 

Vibram nos ares
gorjeios de aves, divinos, ledos... 
Boiam abertos, nos lagos quedos,
os nenúfares... 

Vem! sobre as águas, que as ardentias
enchem de um brilho vago e saudoso,
meu barco espera nas ondas frias,
leve e garboso... 

Nós, abraçados, nele entraremos,
e, sem que busques no espaço vê-las,
hão de ao cadente bater dos remos
brotarem, ledos, milhões de estrelas... 

Vem! Enlaçados,
quem pode acaso saber, perdidos,
o que traduzem nossos gemidos
entrecortados?!

Os astros calmos verão somente,
rasgando as algas, do barco a proa,
vogar de manso... vogar silente... 
à toa... à toa... ”

 

PIOR, PIOR AINDA

Oh! Natureza! Natureza fria,
de cujos seios toda a vida pende!
Deusa que as flores nos rosais estende!
Deusa que os vermes aos rosais envia!

Mãe! quando chegue o derradeiro dia
da vida má que em meu olhar se acende,
e a luz que nele a refulgir esplende
apague a sua esplêndida ardentia,

Mãe! de meu corpo se sair aflita,
uma alma, a procurar, onde, maldita,
possa em teu dorso colossal pousar,

toma-a! revive-a mais cruel ainda!
faze que, animada de uma fúria infinda,
ruja na goela de feroz jaguar!
 
 

NAS RUÍNAS DE UM MOSTEIRO

Templo fechado ao labutar profundo,
nave deserta, solitária, enorme,
em ti dos prantos o vestígio dorme
de quanta virgem tu roubaste ao mundo!

Quando a floresta ramalhar sombria
murmure ao longe maldições tremendas!
Afaste o passo o viajor das sendas,
que a ti conduzem na soidão bravia!

Do altar fendido no vivaz granito
vegetem cardos derramando espinhos
e o solo em torno de sarçais maninhos
todo se cubra como um chão maldito!

Venham nos mantos das imagens tuas
corvos sombrios estercar à noite,
e o vento os rasgue com feral açoite,
deixando as virgens ao relento, nuas.
 
Há muito choro no silêncio triste,
nos claustros negros desta vil prisão:
quanta batina pelo mundo existe
não basta ainda p’ra limpar-lhe o chão!

  

NIHIL

Tanta luta cruel! tantos cansaços
agitam loucamente a Terra escura!
e nós vamos em busca da Ventura,
clamando embalde pelos vãos espaços.

Vamos pela amplidão erguendo os braços
a perscrutar dos céus a curvatura,
e da existência pela trilha impura
não acham pouso nossos membros lassos!

Olhos fitos ao longe, — ao longe vamos,
procurando o Ideal que desejamos
achar ao termo da cruel jornada...
 
Ei-lo que surge um dia: — É pó somente!
— Que nos pode restar, se tudo mente?
— A aspiração imensa para o Nada!
 
 

AMOR DEFESO

Há mulheres assim... Noss’alma ao vê-las
vai de rasto seguindo-as nos caminhos,
haja flores no chão ou haja espinhos,
tenha sombras o céu ou tenha estrelas.

Quem as pode evitar? Surgem-nos belas
e aos nossos tristes corações maninhos
vêm trazer a esperança de carinhos
e agitar-nos em intimas procelas.

Sentindo-as, nosso espírito na vaga
da paixão, ora surge, ora naufraga,
como nas sanhas de um bulcão desfeito.

Mas, quando as lutas serenando vemos,
aos arcanos mais íntimos descemos:
— vazio achamos de ilusões o peito!
 
 

TEMPESTADE
(A Guimarães Passos)

Andam por certo na floresta escura
sátiros ébrios sacudindo os troncos... 
Há pavorosos e terríveis roncos
na goela estéril da montanha dura... 

Chove... Desabam catadupas brutas
no dorso negro e funeral da terra... 
Chispas rebrilham de medonhas lutas
de mil titãs em temerosa guerra... 

A luz estende pelo ar funéreas
mortalhas brancas de esmaiada tinta;
dos astros logros e gentis — extinta,
não brilha a chama nas soidões etéreas.

O mar... o mar alucinado, doido,
urra, empolando os vagalhões irados,
que sobre as praias arremessa a rodo,
com lastimosos, com plangentes brados... 

E há quem agora a tiritar, medroso,
trema e, de prantos rorejando a prece,
a Deus implore que a bonança apresse,
que se desfaça o temporal iroso!

Oh! não!... Há sempre sob o firmamento
muito rugido! muita dor profunda!
Ninguém abafa o perenal lamento
que em vão de prantos a miséria inunda!

Tu, pois, Tormenta— p’ra que enfim acabe
da Dor o negro pesadelo infando —
vê se, em teus braços colossais a alçando,
fazes que a Terra com fragor desabe!

Vê se do Nada à solidão sombria
arrojas tudo com furor insano!
Só mesmo então nessa amplidão vazia
se há de apagar o sofrimento humano... 
 
 

QUADRO DE GOYA

Era um quadro de Goya, o tétrico pintor
que em seus painéis deixou a pavorosa traça
de um fantástico amor às telas da Desgraça,
cheias de um desusado e extravagante horror.

Um morto, levantando a lápide pesada
do sepulcro, erguia o corpo apodrecido,
e, p'ra dizer da Morte o mistério insabido,
lentamente traçava esta palavra: nada.

E como por minh’alma, então, um calafrio
de horror me perpassasse, uma esperança morta
murmurou dentro em mim: — “E a ti isso que importa,
se nada tens também no coração vazio?”
 
 

PROCLAMAÇÃO DECADENTE
(A Olavo Bilac)

(Carta escrita por um poeta a 20 de Floreal, sendo Verlaine profeta, e Mallarmé - deus real).
Poetas,
são tempo malditos
os tempos em que vivemos... 
Em vez de estrofes, há gritos
de desalentos supremos.

Se algum dentre vós, cantando
nos banquetes ergue a taça,
sente, convulsa, pesando,
a mão fria da Desgraça!

O Sorriso é tredo aborto
de algum soluço contido,
à beira dos lábios morto,
pelo Escárnio repelido.

E o Pranto — se o Pranto ardente
banha uma face sombria —
vem do excesso do pungente
riso mordaz de ironia.

Que resta? Todas as crenças...
todas as crenças morreram!
Ficaram sombras imensas,
onde lumes esplenderam... 

Que resta? A Dúvida horrível
os sonhos todos crestou-nos... 
A Natureza impassível
Só conta invernos e outonos.

Si, pois, na Glória inda crerdes,
há de enganar-vos a Glória!
Murcham-se os louros mais verdes
nas folhas éreas da História... 

Os Poetas do Sentimento,
que pintam a sua idade,
vão morrer do Esquecimento
na profunda soledade.

E neste tempo em que o Homem
se altera e diferencia,
breves, os cantos se somem
na indiferença sombria.

Pode a Música somente
do Verso nas finas teias
conservar no tom fluente
tênue fantasma de ideias;

porque é preciso que todos
no vago dessa moldura
sintam os estos mais doidos
da emoção sincera e pura;

creiam achar no que apenas
é tom incerto e indeciso
dos seus sorrisos e penas
o anseio exato e preciso.

Que importa aldeia, contanto
que vibre a Forma sonora,
se da Harmonia do canto
vaga alusão se evapora?
Poetas,
eu sei que, sorrindo,
zombam de nós os descrentes,
— Deixai! Ao pé deste infindo
ruir de ilusões ardentes,

nós, entre os cantos sagrados,
que só tu, Poesia! animas,
passaremos embuçados
em áureos mantos de rimas!
 
 

GRITO DE NÁUFRAGO

Se um feminino olhar formoso e brando
por estas folhas perpassou, bondoso,
e, aos poucos, doce e triste, foi sondando
deste meu coração o antro lodoso;

se viu das mágoas o agoureiro bando
abafar os meus cânticos de gozo
e, em rugidos sinistros ululando,
das blasfêmias o coro doloroso,

— que o saiba desse olhar a chama casta
— em minh’alma sem fé, perdida e gasta,
há lugares talvez puros ainda... 

— Quereis vê-los brilhando claramente?
— Dai-me, sublime luz! a luz ardente
de uma nobre afeição sincera e infinda!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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