3/07/2023

Poesias Líricas (Poesia), de Gustavo Teixeira


POEMAS LÍRICOS



À MEMÓRIA DE MEUS PAIS


CANTO REAL DA GLÓRIA

Sob o régio dossel do heleno firmamento,
Donde os Titãs revéis foram precipitados,
Homero, a lira à mão, celebra o valimento
Dos argivos heróis por Palas aureolados:
— Canta os feitos de Ajax e Ulisses, a bravura
De Aquiles, o esplendor marcial e a formosura
Da deusa belatriz de graça peregrina
Que brande contra Ílion o gládio que fulmina...
Com dois versos conduz o plaustro da vitória!
E cores, luz e sons o semideus combina
Para alcançar o beijo olímpico da Glória!

Paganini dedilha o quérulo instrumento...
Uma nota suspira e evola-se... Abafados,
Vão subindo primeiro os sons num choro lento,
Como um flébil planger de corações magoados!
Dir-se-ia que o violino uma oração murmura
Para depois clamar! A humana desventura
Acorda, soluçando em trêmula surdina,
E logo sangra numa angústia repentina,
Que esmaece e desmaia em queixa merencória...
É uma alma que se entrega à febre que a domina
Para alcançar o beijo olímpico da Glória!

Sânzio, mudo, a cismar, num embevecimento,
Deixa o espírito alar-se a mundos encantados:
E no radiante céu do seu deslumbramento
Brilham sideralmente uns olhos adorados!
E, no enlevo feliz, traça, com mão segura,
Tênues linhas de luz, e em breve, na brancura
Da tela, resplandece, assim como a imagina,
Num halo de turquesa, a loira Fornarina
Que lhe enche de perfume a vida transitória,
E em cujo seio busca inspiração divina
Para alcançar o beijo olímpico da Glória!

Fídias contempla o alvor do Paros um momento,
E rasga-o: — e logo vão surgindo, arredondados,
Contornos feminis de um claro polimento,
Da venusta feição dos mármores sagrados.
Saltam lascas do bloco, estala a pedra dura:
— Um par de seios mostra a rara cinzelura,
Das curvas de Afrodite o encanto predomina,
E as pernas do brancor ondeante da neblina
Sustêm do torso grego a perfeição marmórea
Com que o gênio imortal as gerações fascina,
Para alcançar o beijo olímpico da Glória!

Ardem os camafeus num vivo irisamento.
Pelas pátenas d’ouro e hostiários rendilhados
Fulge a safira azul, chispa o rubim sangrento,
Entre o glauco esplendor dos prásios abrasados...
Cellini, com ardor, faceta opalas, fura
Caros metais, e crava o sol em miniatura
De um berilo oriental numa custódia fina.
De um carvão desengasta a estrela matutina...
Assim, com gemas abre um sulco astral na história,
Manejando o buril de ponta adamantina
Para alcançar o beijo olímpico da Glória!

OFERTÓRIO
Egrégia Athene! Tu, que à terra pequenina
Lanças do Olimpo o olhar, que é bênção opalina,
Protege os que, durante a humana trajetória,
Haurem o fel que o mundo ao Sonhador propina,
Para alcançar o beijo olímpico da Glória!

 

À SOMBRA DOS MONTES

No exílio deste vale, onde me entumbo
Sob o velário das neblinas frias,
Meu coração é o pêndulo de chumbo
Que marca as horas destes longos dias.

Morro de tédio, de pesar sucumbo!
O vento, que enche as solidões sombrias,
Vai propagando o fúnebre retumbo
Pelas furnas e alpestres serranias.

Sol! Tu que tinges de carmim as rosas
E para a glória da alvorada existes,
Rasga nas brumas amplidões radiosas!

Quero escalar os píncaros dos montes
Porque meus olhos vão ficando tristes
De saudade dos amplos horizontes!

 

ÂNGELUS

Quando Vésper irradia,
Num lento rumor de prece.
Tange o sino: — Ave Maria

No azul, a astral ardentia
De súbito resplandece
Quando Vésper irradia.

Por detrás da serrania,
Rezando, a lua aparece...
Tange o sino: — Ave Maria

Ao sopro da aragem fria,
Ondula, oirejando, a messe,
Quando Vésper irradia.

Cada estrela um beijo envia.
Depois que o ninho adormece,
Tange o sino: — Ave Maria!

Dentro da sombra macia.
Sonhando, a flor estremece
Quando Vésper irradia.

Num tom de voz que inebria,
Que de tão doce enternece,
Tange o sino: — Ave Maria!

Numa suave nostalgia,
A alma feliz se embevece
Quando Vésper irradia.

Um véu de melancolia,
Tecido por anjos, desce...
Tange o sino: — Ave Maria!

Cheiram flores na agonia...
A tarde é morta. Anoitece...
Quando Vésper irradia
Tange o sino: — Ave Maria!
 


BORBOLETA PRESA

Em frente à escola paro, às vezes, por acaso,
E, lançando um curioso olhar pela janela,
Descubro (pobre flor a fenecer num vaso!)
Um busto de menina excelsamente bela.

Na mão o livro aberto, a fronte baixa, estuda
Exalando um discreto aroma de violeta.
E o dia que não passa! E o quadro que não muda!
Que sombria prisão para uma borboleta!

Como aborrece a escola! É sempre a mesma coisa:
Sempre o mesmo rumor de vozes em surdina,
Na mesma estreita sala a mesma negra lousa
E o horror da preleção que nunca mais termina!

E que festa há por fora! Um pintassilgo canta
E é tal a melodia estranha do seu hino
Que toda de cristal parece a áurea garganta
Que de gotas de luz faz notas de violino!

E a prisioneira sonha... Inveja a livre pomba
Que, abrindo como um leque as asas rendilhadas,
Se perde na amplitude e das distâncias zomba,
Na cristalinidade azul das alvoradas.

Distrai-se a ver o sol que a pino resplandece
E acende nos vitrais gemíferas miragens,
E defronte o jardim virente, que floresce,
Numa palpitação contínua de folhagens.

Não cessa de adejar sua alma de andorinha.
E ela presa! Que tédio horrível desde as onze!
E tão breve o recreio e o tempo não caminha!
Parece que Saturno anda com pés de bronze!...

Depois pega na agulha e borda mais de uma hora
Das suas alvas mãos brotam vermelhas flores.
Nunca nas nuvens d’ouro a rósea mão da aurora
Com seus fios de luz bordou iguais primores!

E que alegria quando a injusta pena é finda!
Das crianças em meio às chusmas pressurosas
Sai de branco, irradiando, a sua imagem linda
Como um lírio de jaspe entre um florir de rosas!

 

HORA AZUL

Todos os dias, mal desponta a aurora,
Porque ela disse que há de vir, desperto
E olho o caminho que num rumo incerto
Vai serpenteando pelo vale a fora.

E espero. Ela há de vir. O dia ao certo
Não sei: mas sei que, alegre como outrora,
Neste recanto, que setembro enflora,
Hei de em seus braços ter o céu aberto!

Em honra da mais pura das violetas,
A primavera abre as mais lindas rosas
E pinta d’ouro e azul as borboletas.

Aves darão concertos cristalinos:
Tocarão sabiás flautas maviosas
E pintassilgos tocarão violinos...

 

BALADA DAS ROSAS

Quando se esgarça o véu das últimas neblinas
— Gaze que o inverno tece em misterioso tear, —
E o ledo gaturamo entoa cavatinas
E os pombos nos beirais arrulham a noivar;
Assim que a estrela d’alva abre o radiante olhar
E entre nuvens assoma a aurora ao varandim,
— A cigarra, que é a nota errante de um clarim,
Vibrando com alarde as asas harmoniosas,
Chia aqui, chia ali, até que um dia, enfim,
Anuncia a triunfal ressurreição das rosas!

Narcisos e cecéns, papoulas e boninas,
Finda a estação glacial, começam a mesclar
De branco e rosicler o glauco das campinas
Que rolam docemente ondas de um verde mar;
Flora sorrindo põe o flórido colar;
Borboletas azuis com manchas de nanquim,
Ou desmaiados tons de pérola e rubim,
Irrompem não sei donde em chusmas pressurosas
Quando, de surto em surto, o débil volantim,
Anuncia a triunfal ressurreição das rosas!

As torrentes que vão em curvas serpentinas
Rumorejando, vale a fora, a recitar
As baladas de amor que bocas nacarinas
Cantam ao pé da fonte à luz crepuscular;
A nuvem, que se irisa aladamente a voar
De púrpura tingindo a cauda de cetim;
A aragem, que dedilha eólio bandolim
Fazendo farfalhar as árvores frondosas,
Tudo, dando expansão a um júbilo sem fim,
Anuncia a triunfal ressurreição das rosas!

OFERTÓRIO

Quando eu te beijo, ó linda, a boca de carmim,
Que encerra o mel de um cravo e o aroma de um jasmim,
O amor te ruboriza as faces veludosas...
Assim, o beijo meu, pousando num jardim,
Anuncia a triunfal ressurreição das rosas!

 

RONDÓ

Louro Lírio celeste, que amo tanto,
Vê: não tenho repouso um só momento!
No silêncio da noite arde o meu pranto
Como as estrelas pelo firmamento.

Ouve a aragem noturna o meu lamento
Que reboa através deste recanto...
E não vens abrandar o meu tormento,
Louro Lírio celeste, que amo tanto!

Para adorar-te a imagem de almo encanto,
Por alta noite, exposto ao frio e ao vento,
Me ajoelho ao pé de um lírio, como um santo...
Vê: não tenho repouso um só momento!

Dou a este amor combate mais violento
Do que os de Salamina e de Lepanto:
Em vão! o amor me vence, e, em fios, lento,
No silêncio da noite arde o meu pranto!

Do etéreo riso que me pôs quebranto
Não cicatriza nunca o ferimento.
As rimas lacrimejam no meu canto
Como as estrelas pelo firmamento!

E não há de findar o sofrimento
Que o olhar me cobre de uma névoa, enquanto
Não me envolveres, como em pálio bento,
Do teu cabelo no macio manto,
Louro Lírio celeste!
 

BALADA LÍRICA

Mal eu te vi o grego aspecto
E a graça régia, Eros falaz
Cravou sorrindo no meu peito
Todas as setas do carcás.
Perdi a calma e o sono, mas
Bendigo o amor que esta ânsia gera,
Pois ele é o sol que luz me traz
Ao fim da minha primavera.

Por ti, que eu amo com respeito,
Meu coração — pombo torcaz, —
Alvoroçado e satisfeito,
Todo em arrulhos se desfaz.
Esta paixão, funda e roaz,
Embora abrase, é uma cratera
Que deita flores, pertinaz,
Ao fim da minha primavera.

Se da tua alma eu sou o eleito,
Leva-me logo ao céu! Na paz
De um ninho ideal de plumas feito,
Plumas e rendas, sonharás
No seio meu... Ó flor vivaz!
Deus te abençoe os braços de hera
Que hão de prender-me em nó tenaz
Ao fim da minha primavera!

OFERTA

Lírio de amor! Teu beijo faz,
Na alma que em êxtase te espera,
Florir um ramo de lilás
Ao fim da minha primavera...

 

O SALGUEIRO
(Lenda)

Não logrando acalmar o ódio dos insensatos
Que uivavam em redor do cândido Cordeiro,
Ordenou ao Lictor, então Pôncio Pilatos,
Que o mandasse açoitar, despido o corpo inteiro.

E atado a uma coluna o Mestre, entre os maus tratos
E as vociferações do bando carniceiro,
Sem que batesse um só dos corações ingratos,
Fez-se a flagelação com ramos de salgueiro...

Desde então ficou sendo essa árvore a mais triste
E a mais digna de dó que neste mundo existe,
Curvada como Cristo a arfar com o Lenho às costas.

Sempre e sempre a chorar o seu viver mesquinho,
Nunca mais o infeliz pode embalar um ninho
Nem contemplar o céu, rezando, de mãos postas!

 

A FEIA

Tão feia! Vive quase sempre triste,
Mal disfarçando a angústia que a alanceia,
Porque, em verdade, a dor maior que existe
Para a mulher que é moça — é a de ser feia!

Ser feia é a morte! É inferno que resume
Tudo o que neste mundo mais crucia:
A sede, a fome, o desespero, o ciúme,
A ânsia de Hero, de Agar e de Maria!

Entre os espinhos desta vida, todos
Sentem às vezes um florir de rosas:
Não ela — a pobre vítima de apodos,
Que se oculta nas sombras silenciosas.

Se acaso vê nalgum espelho o rosto
Onde não brilha o mais fugaz encanto,
Empalidece de íntimo desgosto
E os seus olhos inundam-se de pranto!

Nunca ao braço de um noivo, prazenteira,
Há de passar a “mísera e mesquinha”
Coroada de botões de laranjeira,
Arrastando uma cauda de rainha!

E é tão radiante o dia do noivado!
Pensa no amor como num céu distante
Em que, dentro de um sonho arcoirisado,
Nunca há de entrar sua alma soluçante!

Jamais se lhe abrirão as portas d’ouro
Do Paraíso — aspiração infinda
Dos que na terra buscam o tesouro
Do qual o beijo é a pérola mais linda!

Mas se algum jovem pousa os olhos nela,
Sente-se envolta numa claridade
E a sua face em púrpuras revela
A inenarrável sensação que a invade!

Rindo, transfigurada de ternura,
Sonha, esquecendo a condição de lesma!
Sonha... mas quando acorda — que amargura! –
Pranteia de vergonha de si mesma!

Sorte cruel! Não pode ser amada!
E é uma coisa que punge e dilacera
Fazer a humana e lúgubre jornada
Sem ter um dia azul de primavera!

Dói-lhe ver a alegria dos felizes,
Dos que, a sonhar, no turbilhão do mundo.
Vão com sorrisos de aurorais matizes
Arrebatados num amor profundo!

À noite chora inconsolavelmente
Na pequenina câmara que habita,
E vê todo o porvir, como o presente,
Através de uma lágrima infinita!

Contudo, a sorte injusta, por esmola,
Vestiu aquela trágica pobreza
De um encanto que às vezes a consola:
O torrencial cabelo de princesa!

Ontem a vi. Errava numa aleia
De rosas brancas: e o seu vulto louro,
Sob o cabelo solto, dava ideia
De uma mendiga envolta em manto d’ouro...

 

BALADA DA AGONIA
(Jesus, sangrando pelas chagas vivas, clama dolorosa¬mente)

“Para salvar a humanidade impura
Da voragem de tenebras ferais,
Subi a longa Rua da Amargura
Num círculo de monstros infernais,
Vertendo o suor das aflições mortais...
Vai parando em meu peito o coração
Que muita vez sangrou de compaixão
Da própria flor que fenecia na haste!
Ardo de sede! Abrasa-me um vulcão!
Senhor! Senhor! por que me abandonaste?

Não tem mais fim a bárbara tortura!
Abafo a custo dentro da alma os ais
Da angústia que me abala e transfigura!
Meu corpo, cheio de úlceras fatais,
E um jardim de violetas funerais,
Orvalhadas de sangue... E choro em vão
Vendo uma rosa aberta em cada mão...
Depois do triunfo, a morte... Que contraste!...
Que é desses que eu guiei na escuridão?
Senhor! Senhor! por que me abandonaste?

Ó minha Mãe! ó Santa Criatura,
Que neste mundo não verei jamais,
Enxuga o pranto dessa face pura,
Porque a dor dos teus olhos celestiais
Vem fazer que estas chagas doam mais!...
Meu Deus! meu Deus! que atroz flagelação!
A coroa de espinhos, a irrisão
De um cetro não bastaram! E deixaste
Pregarem-me na cruz da execração...
Senhor! Senhor! por que me abandonaste?”

OFERTÓRIO
(Jesus, quase a expirar, volve os olhos para o céu)

Abre-se o azul da Mística Mansão...
Descem anjos... É a Glória!... Ó Pai, perdão
Se eu, esgotando o Cálix que me enviaste,
Ousei clamar, numa hora de aflição:
“Senhor! Senhor! por que me abandonaste?”
 


VISITA NOTURNA

À noite, na alcova escura,
Tua imagem me aparece:
Minh’alma, que não te esquece,
Dentro de um sonho, fulgura!

Vens, nas horas de saudade,
Consolar-me, se estou triste,
Com a voz mais doce que existe,
Toda meiguice e bondade.

Surges com o halo do Empíreo,
Envolta no véu de neve
Que ondula, sutil e leve,
Como o perfume de um lírio...

Alada e loira, sorrindo,
Pões a mão sobre o meu ombro:
Se eu te olho com mudo assombro
O olhar me volves mais lindo!

Como uma flor que se inclina.
Sentas-te ás bordas do leito
E pousas sobre o meu peito
O alvor da fronte divina!

Recobro aos poucos a calma:
E o meu olhar longamente
Se embebe no teu, que, ardente,
Enche de estrelas minh’alma.

Eu tenho a visão radiante
De uma noite de noivado!
Do teu cabelo ondulado
Sobe um perfume ebriante!

Uma frase de carinho
Com que me encantas e enlevas,
Abre clareiras nas trevas
Do círculo em que caminho.

Quando me falas, parece
Que um anjo, piedoso e louro,
Embala, num berço d’ouro,
Meu coração, que adormece...

Vieste do céu com certeza!
Baixaste do azul profundo
Para mostrar neste mundo
Uma celeste beleza!

Por isso, à luz do teu riso,
Fico sorrindo e sonhando
Que és um dos anjos do bando
Que voa no Paraíso...

 

CÉU DESERTO

Percorro toda a habitação vazia:
A sala azul, os amplos corredores
Onde, nuns lábios cheios de ambrosia,
Do amor colhi as mais preciosas flores!

A imagem dela — sombra fugidia
Que julgo ouvir, falando-me de amores, —
Atirando-me um beijo que inebria,
Se desvanece em espirais de olores...

Levaram tudo: os quadros, os espelhos
E a cinzelada lâmpada custosa
Que junto dela já me viu de joelhos.

Só eu fiquei neste ermo céu fechado
Sofrendo o horror da Plaga Tenebrosa,
Onde já fora bem-aventurado!

 

BALADA DAS FOLHAS MORTAS

Outono... As árvores magoadas,
Dentro da tarde que esmaece.
Murmuram místicas baladas
Numa tristeza que enternece:
Sofrem porque ave alguma tece
O ninho em suas ramas tortas...
E a sua mágoa avulta, cresce,
Vendo cair as folhas mortas!

— Noivas de flores coroadas
Em hora azul que não se esquece,
São hoje monjas desoladas
Que a luz lilás já não aquece.
A folha cai, sobe uma prece...
(Por que, minh’alma, te transportas,
Chorando, ao céu que empalidece,
Vendo cair as folhas mortas?)

Asas palpitam em revoadas...
Um sino plange, plange... Desce
Por estas horas enevoadas
Uma saudade que entristece!
E o coração, que a loira messe
De ideais perdeu do Éden às portas,
Ter dó das árvores parece
Vendo cair as folhas mortas...

OFERTA

Alma, que em mundo atro e refece
Desilusões cruéis suportas,
Olha como a arvore padece
Vendo cair as folhas mortas!

 

ÁGUA QUE FOGE

Entre oblongos calhaus, torcicolando,
Flui a nívea torrente serpentina,
Ora beijando os pés de uma colina,
Ora a mole dos montes contornando.

Aqui, sobre ela uma árvore se inclina,
O cabelo de folhas ensopando,
Além, das borboletas o áureo bando
Brinca esfrolando o azul da tremulina.

Dá de beber a pássaros e flores.
E docemente, em líricos rumores,
Some-se no horizonte que se esfuma.

Assim, cortando gândaras e searas,
Foge, levando à flor das águas claras
Um diadema de pérolas de espuma...

 

A VIOLETA

Sob o espesso dossel de folhas de esmeralda,
Do sonho do botão acorda, abre a corola,
E uma lágrima ardente as pálpebras lhe escalda
Vendo a triste penumbra em que o destino a isola.

O sol, que um raio d’ouro e púrpura desfralda,
Tênue raio lhe envia, às vezes, por esmola;
Se sai da sombra é presa em fúnebre grinalda
Onde a última ilusão no aroma se lhe evola.

Fugaz como o corisco, o beija-flor de leve
Roça o tufo sem ver a lírica violeta,
Que guarda a candidez de um floco de neve.

As rosas com seu régio orgulho a martirizam...
Por isso é roxa como o seio de Julieta,
Como as chagas de amor que nunca cicatrizam!

 

AS HORAS MORTAS
(A uma grega)

Dentro da noite, a sombra de Alighieri
Passa rezando... Choram as neblinas.
Fúnebre plange como um miserere
O sussurro das velhas casuarinas.

Só no meu leito, ouvindo a voz do inverno,
Que guaia sob a abóbada de chumbo,
Rolo nos sete círculos do inferno
Desta infrene paixão de que sucumbo!

Que desespero insano me tortura!
Que pungente saudade me crucia!
Sem teus olhares — como a noite é escura!
Sem teus abraços — como a noite é fria!

Que sorte hedionda, que fadário infando
Me afasta dos teus braços, do teu seio?
No céu, um dia, adormeci sonhando,
Para acordar na treva em que pranteio!

A todo instante, pálido, suspiro
Por essas gregas formas de alabastro,
Pelo tempo em que este álgido retiro
Se enchia todo do fulgor de um astro!

Não sonha mais com os ecos dos teus passos
Esta alma que deixaste quase louca...
E tantas vezes te apertei nos braços!
E tantas vezes te beijei na boca!

Foi-se o bando das minhas esperanças.
Não conto mais, num beijo, como outrora,
Soltando os fios d’ouro dessas tranças,
Envolver-te na túnica da aurora!

E enquanto a noite, gélida, caminha,
Teu nome invoco em lágrimas desfeito,
E, ao pensar que não mais tu serás minha,
Com as próprias unhas dilacero o peito!

 

BALADA COR DE ROSA

Desde que vieste, foragida
Estátua da Hélade pagã,
Quebrei a lira enternecida
Em que gemia como Ossian.
Minha esperança não foi vã!
A iluminar meu Paraíso,
Esplende a estrela da manhã,
A doce luz do teu sorriso!

Se a tua fronte enlanguescida
Beijo num gesto de galã,
O olhar me volves, comovida,
Do rosto — em púrpura a maçã.
E em tua boca de romã,
Onde alvas pérolas diviso,
Fulge outra gema em brilho irmã:
A doce luz do teu sorriso.

Tu és o sol da minha vida!
O teu amor de castelã
De um antro faz jardins de Armida
E dá-me a força de um Titã...
Eis-me, afinal, na Canaã
Dos sonhos d’ouro, onde improviso
Loas a Deus e odes a Pã,
À doce luz do teu sorriso!

OFERTA

Será de espinhos amanhã
O chão de flores que hoje piso,
Se me faltar, Aldebarã,
A doce luz do teu sorriso!

 

A TORTURA DA ESPERA

Quase noite e não vem! Que tarde longa e triste!
Desde que a aurora abriu o róseo cortinado
Espero ao longe ver surgir teu vulto amado.
De azul como no dia infausto em que partiste.

Desce a noite. E não vens! De dúvida alanceado,
Estremeço ao pensar que, certo, me iludiste!
E dentro do meu peito, onde um altar existe,
Plange um sino feral em dobres a finado...

Crescente inquietação me agita e me tortura!
Em vez de um beijo, em vez da edênica ventura,
Esta febre, esta angústia, este queimor de brasas!

E enquanto a voz do inverno ulula à minha porta,
No silêncio desta alma, onde a esperança é morta,
O corvo do presságio abre as sinistras asas!

 

A HORA DA MORTE
(Num pesadelo)


Em breve eu parto para outros mundos!
Que desconforto! Que desconforto!
Daqui a instantes (talvez segundos!)
Estarei morto!

Meus olhos choram fios de sangue,
Cavos gemidos truncam-me a voz...
Abutres bicam meu corpo exangue
Com fúria atroz!

Sussurram vozes... Escuto passos
Lentos... É a morte que me procura
Para levar-me nos hirtos braços
À sepultura!

Macabramente batem martelos...
Amplos sudários tremulam no ar...
Surgem sinistros polichinelos
A gargalhar!

Certo ao inferno sou condenado
(Ai de minh'alma!) por ter, não poucas
Vezes, de beijos ensanguentado
Cheirosas bocas!

No quintalejo chorões farfalham,
Descabelados, beijando o pó;
Álamos fremem, cedros ramalham...
Agouros só!

Daquela que a alma sem fé me engoiva
Lembro-me e o pranto meu rosto orvalha!
Ah! quem me dera seu véu de noiva
Para mortalha!

Nenhum amigo (tantos eu tinha!)
Me vale neste lance cruel!
Hei de sozinho sorver a minha
Taça de fel!

Visões me assaltam... Estranha gente
Ri dos meus gestos desesperados...
Ao longe, um sino, plangentemente,
Dobra a finados...

Já que não posso fugir da Morte
(Já vai gelando meu coração!)
Quero que seja bem largo e forte
O meu caixão!

Rondam fantasmas com ar funéreo...
As trevas descem, a luz me foge...
Sei que no fundo de um cemitério
Vou dormir hoje!

Hão de deixar-me no Campo Santo,
Num abandono desolador,
Sem epitáfio, sem cruz, sem pranto,
Sem uma flor!

Torvo coveiro me espera rindo,
Cantarolando sombria trova.
Já ouço os ecos da enxada abrindo
A minha cova...

Soltam corujas pios insanos...
Ninguém na terra chora por mim...
Ah! como é triste na flor dos anos
Morrer assim!

 

OCEANO DA ALMA

Meu coração te espera há quase um ano! E um ano
Para quem ama é a eternidade!
E à tona deste amor, que é um agitado oceano,
Se enfuna a vela da saudade!

No fundo deste mar habita uma Esperança,
Canta uma lírica sereia
De voz de filtro, olhar cerúleo e fluida trança,
Que os sonhos prende em brúmea teia...

Este mar, minha linda, encerra maravilhas,
Assombros, coisas fabulosas:
— Procelas de perfume, ondas de néctar, ilhas
D’ouro, arquipélagos de rosas;

Claras constelações de acesa pedraria,
Conchas de nácar, búzios e cárdeos,
Grutas de malaquite, enseadas de ambrosia,
Sirtes de ônix, parcéis de sárdios;

Tudo encerra este mar, que espuma e se encapela
E vagalhões de prantos rola,
Mas que, sereno e azul, de pérolas se estrela
Se um teu sorriso me consola...
 

CANÇÃO DA NOITE SEM AURORA

A noite é fria, muito fria,
É fria e triste... A voz do vento
É cheia de melancolia.
Gris, lacrimeja o firmamento.

Que noite! É o Horto da Agonia!

De longe vem, fugaz e fino,
O olor de um cravo... O frio corta.
No alto da curva do destino
A lua beija a noite morta...

Na voz do vento dobra um sino...

E enquanto o vento plange fora
E acorda o ninho um calafrio,
Dentro da noite sem aurora
Tu jazes frio, frio, frio...

Meu coração, sangrando, chora!

Em funda paz dorme a cidade,
Fechadas portas e janelas.
Da lua à tênue claridade
Rolam as folhas amarelas...

E eu penso em ti com que saudade!

Branqueja ao longe o cemitério
— Feral jardim de cruzes pretas
Onde não se ouve um riso etéreo,
Onde não brincam borboletas...

Chora o luar... Que céu funéreo!

Não te pranteou de um sino o dobre
No escárnio dessa tarde de ouro,
Nem jaspe ou mármore recobre
O teu esquife de anjo louro.

Só flores, só, tiveste, pobre!

Mas, na urna estreita que te encerra,
Não estás só! Toda a ternura,
Minh’alma, que entre sombras erra,
Vai-te embalar em noite escura,

Vai-te aquecer dentro da terra!

Da sorte o sopro álgido e tredo
Gelou-te as mãos, fechou-te os olhos.
Teu berço, azul como um segredo
De amor, partiu-se em mar de escolhos.

Antes de um ano! Era tão cedo!

E eras tão belo! E eras tão forte!
E já sabias rir, contente,
Abrindo os braços num transporte
Para cingir-me docemente!
E suportaste a dor da morte!

Que graça tinhas! Com que encanto
Gestos fazia a mão querida!
Eu te adorava tanto, tanto!
Eras o enlevo desta vida

Que naufragou num mar de pranto!

Em vez do tépido conforto
De um seio e do calor materno,
Tens hoje, no silêncio do Horto,
As frias lágrimas do inverno!

E para todo o sempre és morto!

Mas, num altar onde alvorada
Não luz, por ti, que és mudo, exangue,
Sempre há de arder, da dor brotada,
Sempre! uma lágrima de sangue,

Como uma lâmpada sagrada!...

 

FELICIDADE

Os faustosos castelos que eu sonhara
Hoje possuo, rei feliz, possuindo
Teu coração, que é a pérola mais rara
E todo o jaspe desse corpo lindo!

É meu o sol dessa pupila clara,
E o mel dos beijos que me dás, sorrindo
E o ouro que rola da odorante seara,
Da undosa seara do cabelo infindo...

Contudo, às vezes, punge-me o receio
De perder o hibernáculo do seio
Que para mim tem o calor dos ninhos!

Quis ser por ti de rosas coroado,
Sem me lembrar, de amor embriagado,
Que as coroas de rosas têm espinhos.

 

AO VIR DA NOITE...

Ao vir da noite, que se ajoelha e chora,
Ao longe plange a angústia de um violino...
Minh’alma lembra o tempo azul de outrora
Enquanto a fronte pálida reclino.

Ao longe plange a angústia de um violino:
Põe um tremor de lágrimas na lua.
Enquanto a fronte pálida reclino,
A saudade em minh’aima se insinua.

Põe um tremor de lágrimas na lua
A tristeza elegíaca das notas.
A saudade em minh’alma se insinua
Como um perfume de épocas remotas.

A tristeza elegíaca das notas
Enche de pranto as pálpebras dos lírios,
Como um perfume de épocas remotas,
Evoca sonhos mortos e delírios.

Enche de pranto as pálpebras dos lírios
Aquela queixa que compunge as flores.
Evoca sonhos mortos e delírios
E os meus fatais e trágicos amores!

Aquela queixa, que compunge as flores,
Faz sangrar as mais velhas cicatrizes!
E os meus fatais e trágicos amores
No meu peito mergulham as raízes!

Faz sangrar as mais velhas cicatrizes
O áureo enxame de abelhas melodiosas.
No meu peito mergulham as raízes
Roseiras más, que nunca deram rosas!

O áureo enxame de abelhas melodiosas
Acorda a paz da terra adormecida.
Roseiras más, que nunca deram rosas,
Enchem de espinhos toda a minha vida!

Acorda a paz da terra adormecida
Aquela ardente música de pranto.
Enchem de espinhos toda a minha vida
As lembranças daquela que amo tanto!

Aquela ardente música de pranto
Transporta as almas à mansão celeste.
As lembranças daquela que amo tanto
Palpitam como a sombra de um cipreste!

Transporta as almas à mansão celeste
Aquele choro cada vez mais triste...
Palpitam como a sombra de um cipreste
As lágrimas do amor maior que existe!

Aquele choro cada vez mais triste
E como o adeus de um náufrago entre escolhos.
As lágrimas do amor maior que existe
Vão subindo em torrentes aos meus olhos.

É como o adeus de um náufrago entre escolhos,
Essa canção que suplica murmura,
Vão subindo em torrentes aos meus olhos
Os prantos de uma longa desventura.

Essa canção, que suplicas murmura,
Lembra um terceto fúnebre de Dante.
Os prantos de uma longa desventura
Descem a fio, queimam-me o semblante.

Lembra um terceto fúnebre de Dante
Aquele grito de uma dor sem calma.
Descem a fio, queimam-me o semblante:
As lágrimas irrompem de minh’alma.

Aquele grito de uma dor sem calma
Misericórdia ou beijo extremo implora...
As lágrimas irrompem de minh’alma,
Ao vir da noite, que se ajoelha e chora...

 

LIRA AZUL

I
Vagueio pelas florestas,
Pelo vale, pelo prado,
Colhendo lírios e giestas
Para ofertar-te, anjo amado.

Vê quantas acerbas dores
Me custam os teus carinhos:
Para cercar-te de flores,
Vivo cercado de espinhos!

II
Quando desfia o atro inverno
Glaciais nebulosidades.
Procuro o teu seio terno
Para matar as saudades.

Mas, logo que deixo a calma
Estância em que asas palpitam,
Uma por uma, em minh’alna
As saudades ressuscitam...

III
No livro do céu profundo
Eu lia, em letras radiantes,
A sorte dos que no mundo
Sonham dias fulgurantes.

Li a tua: num transporte,
As estrelas mais brilharam.
Quando fui ler minha sorte,
As estrelas se apagaram...

IV
Amo o silêncio. O lamento
Da água que foge, a canção
Das aves, a voz do vento,
— Tudo me causa aflição.

Busco o silencio do leito:
Mas, com acerbo pesar,
Descubro dentro do peito
Um velho sino a dobrar...

V
Desde que a terra baixaste
Num crepúsculo opalino,
— Pobre flor vergada na haste
— Pelo tufão do destino! —

No meu vergel, entre os frouxos
Adejos das borboletas,
Só floriram lírios roxos,
Só se abriram rosas pretas...

VI
Névoa... Névoa... O céu negreja...
Mas nem sempre a noite é escura:
Se hoje Vésper não lampeja,
Mais linda amanhã fulgura.

E em minh’alma — noite aziaga
Que mais e mais escurece, —
Quando uma estrela se apaga,
Essa não mais resplandece!

VII
Em cada folha de rosa
Do teu jardim perfumado,
Com letra leve e graciosa,
Deixei meu nome gravado.

Gravei meu nome, rezando,
Para ver se alcanço a palma
De o ver um dia brilhando
No fundo azul de tua alma.

VIII
Como dois rios que infundem
Medo a correr num fracasso,
Na embocadura se fundem
Num só, num eterno abraço,

— Nossas almas se buscaram
E, num lírico transporte,
Na foz do amor se juntaram
Para a vida e para a morte!

IX
Amei-te. Que amor profundo!
Que celeste embriaguez!
Eras a única no mundo,
Linda como a linda Inês!

O meu peito era uma frágua,
Ardia o meu coração.
Mas bastou um pingo de água
Para apagar o vulcão...

X
Propalas com riso terno
Que odeias as flores tanto
Como as árvores o inverno
Que lhes rouba o glauco manto.

Como crer nas tuas frases
Si tu, flor das mentirosas,
Nas faces de neve trazes
Duas esplêndidas rosas?

XI
Uma gárrula andorinha
Chilreia no meu telhado:
Celebra a ventura minha,
A glória de ser amado.

E enquanto, alegre, chilreia,
Eu, mudo, porque estás longe,
Sinto a alma de brumas cheia,
Tenho a tristeza de um monge!

XII
Quando chove e a noite augusta
Com majestade aparece,
No céu, de um negror que assusta,
Nem um astro resplandece.

Mas os teus olhos — amados
Céus noturnos — quando choras,
Ficam de chofre estrelados!
Causam inveja às auroras!

XIII
Quando tu ontem, formosa,
No meu rosal, cauta e esquiva,
Corrias de rosa em rosa
Colhendo as de cor mais viva,

Quase te prendi nos braços,
De amor num extremo arroubo,
Para cobrar em abraços
Todas as rosas do roubo...

XIV
Ao descer a noite algente,
Do seu colar de rainha
Caiu uma estrela ardente
Com certeza foi a minha!

XV
Sem os meus ternos carinhos,
Dizes que sofres. Eu creio.
Quem guarda flores no seio
Há de sentir os espinhos...

XVI
Salgueiro, que te debruças
Para chorar sobre as águas,
Em vão sobre elas soluças!
Não se vão as tuas mágoas!

XVII
Por uma hora de venturas
Tantos dias de pesar...
Há tantas noites escuras
E tão poucas de luar!

 

VAIDADE

Porque eu, num madrigal, te comparei às rosas,
Ficaste crendo que és das flores a rainha:
E já queres subir a alturas prodigiosas,
Ter surtos de condor com asas de andorinha!

E’ tão bom ser violeta, e, à sombra de uma leira
Em flor, guardar intacto o aroma azul! Pois olha:
A rosa de mais graça e púrpura é a primeira
Que a coroa real de pétalas desfolha...

 

SACRIFÍCIO INÚTIL

Diante do confessor te ajoelhas, e, tremente,
Uns pecados pueris contas com voz que chora,
Para ficar com a alma azul, resplandecente,
Como o céu ao tomar a comunhão da aurora.

Murmuras em seguida as mais ardentes preces,
Batendo com unção no imaculado peito:
Mas Deus não te ouvirá, por mais que te confesses,
Enquanto eu não perdoar o mal que me tens feito!

 

A DOR MAIOR

Quando eu te disse o adeus de extrema despedida,
Sob o caramanchel, num plácido recanto,
Tua alma soluçou de súbito ferida
E teus olhos azuis encheram-se de pranto!

Mudo, sem o fulgor de uma divina opala
Nos cílios, abracei-te entre um pungir de abrolhos:
Mas a dor que mais dói é aquela que se cala!
O pranto que mais arde é o que não sobe aos olhos!

 

A UMA MENINA

Nos teus olhares de doçura cheios
Palpita a luz de um místico delubro,
Mas sob a gaze que te esconde os seios
Flameja um sol esplêndido de outubro.

Teus seios... Diz o colibri mais lindo
Que sente, ao vê-los, a emoção sincera
Que agita as aves quando vão florindo
Os primeiros botões da primavera...

 

MORTA

Ia dormindo num esquife estreito...
Passara pela vida tão de leve
Como a violeta que levava ao peito,
Como impoluto floco de neve.

Aproximei-me de amargura preso,
E, encontrando-a tão diáfana e tão bela,
Peguei nas alças para ver seu peso:
— Meu coração pesava mais do que ela!

 

AO PÉ DE UM TÚMULO

Descansa em paz, formosa criatura!
Deus te proteja, cândida andorinha!
Quando eu morrer, a tua sepultura
Será também a minha!

Hei de dormir um sono perfumado,
Aninhando a cabeça no teu peito,
Para que os vermes, vendo-te a meu lado,
Se afastem com respeito!

 

O AROMA DOS TEUS BEIJOS

Quando, louca de amor, inteiramente louca,
Presa nos braços meus, me beijas fervorosa,
Teu beijo virginal deixa na minha boca
O aroma de uma rosa.

Beija, quando eu morrer, meu corpo inerte e frio,
Mil vezes, para que meu féretro sem flores,
Em viagem para o horror do páramo sombrio
Jorre ânforas de olores!

E tanto há de cheirar meu corpo miserando,
Onde hão de os beijos teus florir como violetas,
Que, atraído, virá seguir o enterro o bando
Azul das borboletas...

 

O BORDADO

No alpendre, onde palpita a colgadura
Das níveas trepadeiras trescalando,
Dentro de um sonho cheio de doçura,
Ela passa os crepúsculos bordando.

A sua mão, de gemas rorejada,
No azul da tela, rápida, passeia,
Como uma borboleta albirosada
Por sobre o tule de aracnídea teia.

Há dias, ela, carinhosa e grata,
Ofertou-me, corando como as rosas,
Um régio mimo: — um céu de seda e prata
Estrelado de pérolas custosas.

Gentileza de lírio! Como eu amo
Aquela Flor, que, evaporando olores,
Me ofereceu no meio do recamo
O coração bordado a sete cores!

 

AS ESTRELAS

Dentro da noite, haurindo o aroma agreste
Dos flóreos tufos, dos capões de rosas,
Contemplamos a abóbada celeste
Pontilhada de luzes buliçosas.

E a minha amada, descobrindo o colo,
— Região boreal de gélida brancura, —
A mirar a amplidão de polo a polo:
“Quantas estrelas tem o céu!”, murmura.

Causa-lhe assombro o número de opalas
Que Deus semeia pelo azul! E fica,
Longo tempo, no intuito de contá-las,
Olhando o espaço que o ouro astral salpica.

Contar estrelas, que loucura! Abete-a
A viva luz! E em rápidos instantes.
Sua alma, voando para a Via-Láctea,
Se perde numa poeira de diamantes...

E não se lembra a sílfide que adoro
Que não são as estrelas nem metade
Das cristalinas lágrimas que choro
No silêncio das horas de saudade!
 

NA PRAIA

Tarde. Fugia ao longe uma galera...
O glauco mar, aos nossos pés, na praia,
Desfolhava a flutuante primavera
De flóculos de espuma de cambraia.

Entre sorrisos de um celeste encanto,
Numa voz que era um choro de sereia,
Tu me juravas terno amor enquanto
Eu escrevia cânticos na areia.

Glorificava essa beleza eslava
Em rimas que floriam como rosas,
E que o mar, como pérolas, guardava
No seio azul das conchas marulhosas...

Logo, porém, tudo esqueceste... E agora,
Quando à beira do Atlântico divagas,
Hás de, escutando a voz do mar, que chora,
Teu nome ouvir na música das vagas.

São os meus versos que através das ondas
Pelas conchas ecoam de angra em angra,
Como suspiros desse mar que sondas,
Como o clamor de um coração que sangra!

Atende! São meus cânticos dispersos
Que em ecos plangem pela tarde calma!
O mar guardou nas conchas os meus versos
Como eu guardo teu nome dentro da alma!

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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