3/07/2023

Poesias (Poemas), de Múcio Teixeira


POESIAS



AOS MEUS QUERIDOS FILHOS
ÁLVARO E ALDA



O MEU ÁLVARO

O que um pássaro canta, uma criança papagueia. O hino é o mesmo. Hino indistinto, balbuciado, profundo. A criança tem de mais que o pássaro o sombrio destino humano diante de si... O cântico mais sublime que se ouve na terra é o balbuciar da alma humana nos lábios da infância.

Victor Hugo — “Noventa e Três”

Ter um filho assim é ter na terra
Um dos anjos do céu! e um céu-aberto
Limitado no lar que esse anjo encerra...

Quando ele vem, tão lindo e tão esperto 
Espalhando sorrisos e brinquedos
Bulindo em tudo quanto encontra perto...

Nada resiste ao toque de seus dedos:
Nem os jornais, de que ele faz navios,
Nem meus cigarros — de que faz torpedos!

Seus grandes olhos castos, erradios,
Nostálgicos, talvez, de outra existência
Enchem-me a alma de clarões bravios...

Encerram tudo os nadas da inocência 
E eu leio mais nos olhos de meu filho
Do que em todos os livros de ciência...

Aquele doce e brando e claro brilho
Dos seus olhos azuis bons, carinhosos,
Iluminam as sendas porque trilho;

Aos seus vivos lampejos gloriosos
Eu retempero as armas para a luta
E sinto os pulsos meus mais vigorosos.

Temos dentro de nós alguma gruta
Povoada de feras famulentas,
Cujo estranho rugir ninguém escuta...

São as aspirações vagas, sedentas,
Famintas de ideal e de utopias,
Que nos assaltam pelas noites lentas...

Que seria de mim, se destes dias
De um prolongado inverno de tristeza
Não brilhasse este sol das alegrias?

Caio, às vezes, em antros de incerteza,
Quando, por ele, penso no futuro:
E vejo só o espectro da pobreza 

Ah! mas com esse olhar por palinuro,
Quero ver se inda vejo-o que antevejo
Na cerração deste presente escuro...

Ou cegarei por ver o que não vejo 

24 de outubro de 1886.

 


À MINHA FILHINHA

Tenho medo de morrer; acobardo-me
diante desta ideia, que vem a espaços
desfazer todas as minhas esperanças,
sobretudo as que doiram o futuro de
meu filho, que é uma criança...

Guilherme Braga— Cartas.

Da minha noite és a aurora,
Doce filhinha inocente,
Que ensaias risos... agora
Que eu cismo, triste e descrente...

Enquanto tu balbucias
Meu nome — que a inveja insultei,
— Ao gelo das ironias
Meu tédio profundo avulta.

Se tu viesses mais cedo,
Como o Álvaro, há três anos...
Não verias meu degredo
Tão cheio de desenganos.

Vieste tarde: a rajada
Do meu destino é tão forte,
Que não me resta mais nada
Senão a ideia da morte!

Ideia atroz, que não dorme...
Nem a fé me resta ao menos!
— Assusta-me a noite enorme,
Por ter dois filhos pequenos...

Ai! se eu me conservo mudo
Quando repetes meu nome,
É que vejo o nada em tudo...
É que o tédio me consome!

E o que me dói mais ainda
— O medo que esta alma encobre —
É ter nascido tão linda
A filha de um pai tão pobre...

7 de abril de 1887.


***


O SONHO DOS SONHOS
(Ao prezado amigo Dr. Aníbal Falcão)

Quanto mais lanço as vistas ao passado,
Mais sinto ter passado distraído
Por tanto bem — tão mal compreendido,
Por tanto mal — tão bem recompensado!...

Em vão relanço o meu olhar cansado
Pelo sombrio espaço percorrido:
Andei tanto — em tão pouco... e já perdido
Vejo tudo o que vi, sem ter olhado!

E assim prossigo sempre para diante,
Vendo, o que mais procuro, mais distante,
Sem ter nada — de tudo o que já tive...

Quanto mais lanço as vistas ao passado,
Mais julgo a vida — o sonho mal sonhado
De quem nem sonha que a sonhar se vive!...

 


A AURORA
(A Teixeira Bastos)

Posso vê-la e ouvi-la, finalmente,
Senhora D. Aurora... Eu bem queria
Há muito tempo vir pessoalmente
Cumprir este dever de cortesia,
Trazer-lhe o meu cartão modestamente.

Como sou refratário às etiquetas,
Deixei na quente alcova silenciosa
Ao lado da casaca as luvas pretas...
E vim beijar-lhe os dedos cor de rosa
Como quem beija um ramo de violetas.

Vibrei nervoso e cautelosamente
A campainha elétrica, ruidosa;
Ninguém me viu entrar, ninguém; somente
Sua irmã, a Estrela d'Alva, curiosa,
Sorriu-me — da janela do Oriente.

Transpus o corredor, sem que me visse
Nenhum dos seus criados: — com certeza
Dormem ainda os preguiçosos, — disse;
E vim assim causar-lhe esta surpresa
Tão agradável... para mim! Sorri-se?

Perdoe esta imprudência. Que selvagem
Que eu sou, minha senhora! Mas, em suma,
Eu só vim tributar-lhe esta homenagem;
Ah! nada tema, pois pessoa alguma
Viu-me, a não ser o seu alado pajem,

Aquele sabiá que está cantando...
Viu-me, quando transpus a galeria
Que dá para o jardim; mas, mesmo quando
Ele fosse indiscreto... — o que podia
Dizer um pássaro? até mesmo um bando?...

Sei que Vossa Excelência não se cansa
A dar ouvidos ao que dizem... Ora!
Somente um louco ou mesmo uma criança
Poderia estranhar que D. Aurora
Recebesse um poeta... Que lembrança!

Demais, seu claro boudoir parece
Ter paredes de vidro transparente,
Pois seu leito de nuvens aparece,
Através das cortinas do ambiente,
Numa nudez de virgem, que adormece

Sobre a areia das praias resguardadas
Pelos juncos, que as ondas embalançam,
Qual Vênus, entre espumas agitadas,
Enxugando os cabelos, que se entrançam
Nas formas — inda d'água borrifadas...

Já do salão nos candelabros de ouro
Apagam-se as estrelas cintilantes,
A cuja luz fulgura o seu tesouro
De pérolas, rubis e diamantes
Da auréola do seu noivo, o astro louro...

O sol! — Príncipe alegre e triunfante,
Ele deve vir vindo... sim, parece
Que aquele prisma que transluz distante,
Como um rosto de noiva que enrubesce,
Reflete o vivo olhar do seu amante...

Bem; agora, que tenho a felicidade
De merecer-lhe a fina cortesia
De poder vir, com toda a liberdade,
Vê-la — depois da noite... antes do dia...
Beijo-a: na sombra... quase à claridade!

 

TU... SÓ TU!
Tu, só tu, puro amor!...

Camões

Ouçam outros as notas peregrinas
De Schubert, Massenet, ou Berlioz;
Da alma de Mozart às cavatinas,
Do Boito às mais fantásticas surdinas
Prefiro a tua voz!

Vejam outros as telas cintilantes
De Murilo, do Sânzio, ou de Makart;
Do florentino às deusas triunfantes,
Da Fornarina às formas palpitantes
Prefiro o tu olhar!

Gozem outros de instantes que lhes sejam
Suaves como o orvalho é para a flor,
Sorriam, como os noivos que se beijam,
Que eu, a tudo o que os mais tanto desejam,
Prefiro o teu amor!

 

NINHO MISTERIOSO

Scribitur ad narrandum, non ad probandum.

Tenho um castelo, escondido
No fundo duns arvoredos,
Oculto como os segredos
Que são comprometedores...
Lá poderei resguardar-te
Dos olhares indiscretos
Desses eunucos abjetos.
Que intrigam nossos amores.

Ante as marmóreas colunas
Dos altos portões fechados,
Dois leões domesticados
Passam as noites alerta;
Ou vagueiam, lentamente,
Pelas ruas de palmeiras,
Contemplando horas inteiras
A estrada larga e deserta.

Escutando, em horas mortas,
Rodar minha carruagem,
Eles abrem-me passagem,
Encrespada a juba ao vento;
E quando desço do carro
Deitam-se, humildes, na areia,
Enquanto que uma sereia
Canta no lago, ao relento.

Lá dentro... há muita riqueza,
Há muita coisa esquisita,
Que ninguém viu, acredita,
Mas que hás de ver algum dia:

São os secretos tesouros
Que eu herdei dum visionário
— Que viajou solitário
Pelo país da Utopia...

Diante dos grandes espelhos
Dos salões alcatifados,
Verás — por todos os lados —
Teu vulto reproduzido:
Teus risos e meus olhares,
Meus beijos e teus encantos
Multiplicados por quantos
Não deixa ver... teu vestido!...

No meu castelo, escondido
No fundo dos arvoredos,
Oculto como os segredos
Que são comprometedores,
Vem depressa resguardar-te
Dos olhares indiscretos
Desses eunucos abjetos
Que invejam nossos amores.

 

A MULHER
(Ao Conselheiro Franklin Dória)

Quando a Mulher é bela, pode a rosa
Ser comparada à formosura dela;
Nem há na terra coisa mais preciosa
Do que a Mulher, quando a Mulher é bela!

Quando a Mulher é casta, ao vê-la, a gente
Os pensamentos maus para longe afasta... 
E as almas vão, num êxtase eloquente,
Cair-lhe aos pés, quando a Mulher é casta!

Quando a Mulher é boa, irmã ou filha,
Esposa ou Mãe; o pássaro — que voa,
A flor — que aromatiza, a luz — que brilha,
Tudo é melhor, quando a Mulher é boa!

E tu, que vês na esposa virtuosa
Tão peregrinos dons, Bardo! por ela
Vibra constante a cítara gloriosa,
A boa e casta, inteligente e bela!

 

DOIS EDIFÍCIOS
(A Betencourt da Silva)

I
 Passo sempre sombrio e silencioso e só
Por entre as multidões que se arrastam no pó;
O confuso rumor das turbas doidejantes
Não ousa afugentar os bandos palpitantes
Das minhas ilusões, que vão — de asas abertas —
A cantar pelo azul das amplidões desertas,
Onde adejam também as nuvens e os condores,
Em flutuante vaivém, boiando entre fulgores!...

Desço às vezes o olhar nostálgico e cansado,
Ao ver cair por terra um galho despencado
Das árvores em flor que ensombram meu caminho,
Donde um pássaro foge em busca de outro ninho...
Ouço um lamento — aonde ouvia um trino outrora,
Quando, ao tombar da tarde ou ao surgir da aurora,
Daquele mesmo ramo um pássaro voava,
Ia e vinha... é pousando, ali mesmo, cantava!...

Uma vez, ao passar por um palácio aberto,
A orquestra seduziu-me e eu quis ouvir de perto
Aquelas vibrações nervosas, violentas,
Que expiravam sutis em harmonias lentas;
A música tem isto em mim, como os perfumes:
Enche-me de paixões, de crenças, de ciúmes,
De loucuras, de amor... de tudo o que há de bom
E tudo o que há de mau: abre-me o Pantheon,
E atira-me, depois, dentro dum cemitério...
Fala-me pela voz profunda do mistério...
Vejo Osório, apertando a mão dos veteranos;
E Álvares de Azevedo expirando aos vinte anos!...

Entrei pelos salões de estátuas povoados,
Respirando ofegante aromas amornados;
Vi flores e cristais sobre opulentas mesas,
Um dilúvio de luz a espadanar surpresas!...
Mulheres ideais de formas peregrinas,
Afogueando ao calor das bocas purpurinas
A alvura glacial das taças cintilantes,
Cheias a transbordar de vinhos espumantes...

E no altivo solar do orgulho e da vaidade
O D. Juan do Prazer beijava a Ociosidade!

II
Desviei, silencioso, o meu olhar austero
Dessa imagem pagã das saturnais de Nero;
Afastei bruscamente o reposteiro; e ia,
Triste, sombrio e só, descendo a escadaria,
Quando avistei ao longe o templo do trabalho,
Onde uns abrem o livro, outros erguem o malho.

Que alívio!... Como é bom passarmos de repente
De um ruidoso salão a transbordar de gente
Para uma sala extensa e larga e arejada,
Com janelas para o mar e flores para a estrada!...

Como eu me sinto bem na habitação modesta
Onde batem de manso os corações na festa
Dessa alegria calma, íntima, forte, sã,
Dos que semeiam hoje os frutos de amanhã!...

Aquela habitação, fechada noite e dia
À ostentação, que humilha; ao gozo, que enfastia;
Abre-se para a luz: — é como que uma ponte
Por onde as almas vão de Cristo a Augusto Comte:
Da crença à convicção, da fé ao raciocínio,
Cheias de aspirações, — como um repleto escrínio
Onde os raios do sol firam no mesmo instante
A esmeralda, o rubi, a opala, o diamante!

É lá dentro que estão, alegres, as crianças,
Que são de tantas Mães tão vivas esperanças,
Recebendo lições e vendo, com surpresa,
O que a ciência mostra em toda a natureza.

E a mulher — essa luz do céu, que nos fascina, —
Quando esposa — sagrada; e quando Mãe — divina!
A mulher também acha ali o seu lugar,
Para bem completar sua missão no lar.

E foi sobre um montão de heroicos sacrifícios
Que te ergueram à luz, Liceu de Artes e Ofícios...
Mas de pé ficarás altivo a olhar para tudo:
Tendo a um lado — o Trabalho, ao outro lado — o Estudo!

 

A LORD BYRON

Anch'io son pittore!

E um manso lago a superfície calma
— Ferida pela seta sibilante —
Mil círculos desenha nesse instante,
Ferve, borbulha... mas por fim se espalma.

Há um Iago, porém, que não se acalma,
Que nunca mais reflete o azul distante
Desde que nele a aresta dum diamante
Fere o cristal, que vibra... É a noss'alma!...

Compreendo-te, Byron! — Forasteiro
No teu próprio país, — o mundo inteiro
Percorreste, sombrio, a largos passos...

Cantaste, dos baldões aos tiroteios:
Ah! mas uma princesa — abriu-te os seios!
De um povo a liberdade — abriu-te os braços!...



O AMOR

I love and hate her.

Shakespeare — Cymb. III, 5)

Quando o amor se prende a um ser
único, atinge então tal intensidade, tal
grau de paixão, que, se não pode ser
satisfeito, todos os bens do mundo e a
própria vida perdem o seu valor.

Arthur Schopenhauer

Amor! — esse prodígio misterioso
Que ora nos torna uns grandes desgraçados,
Ora nos leva — em êxtases sagrados —
A um céu aberto, a transbordar de gozo!

O Amor! o Amor... a esplêndida loucura
Que nos deixa a sorrir como crianças...
Enchendo a minha mente de esperanças
E alagando-te os seios de ternura!...

O Amor, que fez Camões morrer de amores
E solitário andar por entre a gente,
Nesse contentamento descontente...
Em que vivia — cego de esplendores!...

Essência — que embalsama todo o espaço;
Relâmpago — que fulge a todo o instante;
Visão divina, — a Beatriz do Dante!
Sonho de um louco — a Eleonor do Tasso!...

O Amor nos faz cantar mesmo gemendo...
Bandido! que nos fere e nos socorre;
O Amor... o Amor é a vida de quem morre
Por viver dessa morte revivendo!...

A virgem, que num sonho vaporoso
Vê passar, de um exército seguido,
Um guerreiro, inda moço, mas ferido,
Morrendo aos sons de um hino vitorioso...

Ou então, numa noite constelada,
Fica no ermo, a sós com seu poeta,
Que lhe recita a estrofe predileta,
Ambos sob a folhagem da ramada...

A noiva, que se entrega vergonhosa
Às súplicas do noivo alucinado;
Quando o pudor palpita, arrebatado
Numa vertigem negra e luminosa...

Nessa luta suprema e sem repouso,
Sentindo muita sede e muito medo,
Quando os olhos conversam em segredo,
Dizendo o que com a voz dizer não ouso!...

Os amantes, que se olham insofridos,
Temendo tudo — e todos provocando
No mais rápido olhar, de quando em quando,
Sentindo que se sentem sem sentidos!...

Prolongando num beijo, uma existência,
Noutro beijo esgotando a vida inteira;
Sem nunca se fartar dessa maneira
De viver a morrer nessa veemência!

Pedindo ao céu que as horas passem breves,
Somente enquanto esperam encontrar-se;
Maldizendo do céu — por separar-se
Sem perceber que as noites correm leves...

E ela... ter de mostrar-se indiferente
Ao olhar dele, ao ver outros olhares:
Quando sabem os céus e terra e mares
O que saber não deve a sabia gente...

Oceano — que se agita na procela!
Sonho — que se desmancha em pesadelo!...
Meu Amor! pois, se é meu, devo escondê-lo?
É que — sendo só meu — é todo dela!...

Amigo — que nos salva... nos perdendo,
Bandido — que nos fere... e nos socorre...
O Amor! o Amor é vida de quem morre
Por viver dessa morte revivendo!

 

PÚRPURA NEGRA
(A Alfredo Falcão)

Sobre o divã de púrpura sombria
O Sultão, a fumar, cisma contente
Na flor mais peregrina do Oriente,
Que há de essa noite perfumar-lhe a orgia...

Quando, porém, o eunuco lhe anuncia
Que a noite tem caído lentamente,
Corre-se o reposteiro... E de repente
Brilham na sombra os olhos da Judia!

— Vem! — “Não irei! Prefiro a sepultura
Aos beijos de uma boca sem ternura,
Aos amores de quem não sente amor!”

Degolou-a o Sultão! E com furor
Deflorou-a nas ânsias da agonia
Sobre o divã de púrpura sombria...

 

O RELÓGIO
(Ao meu amigo Dr. João Henrique Vieira da Silva)

 Ever! Never!

Longfellow

Es una verdad que parece sueño.

Zorrilla

Quer vogue na amplidão a lua silenciosa,
Quer seja escura a noite e a praça erma e sombria,
Ouve-se sempre, sempre! aquela voz saudosa,
Como se alguém gemesse em horas de agonia.

É o relógio da torre, imperturbável, triste,
Sentinela-perdida, alerta no seu posto;
Parece um olho aberto a tudo quanto existe,
Monge a pestanejar, sem que desvie o rosto...

Quem passa por ali, às vezes, estremece
Ante o nada de tudo: — a única verdade:
É que o tempo se encurta à proporção que cresce...
E a esperança, por fim, transforma-se em saudade!

É o relógio da torre, ali na treva densa,
Move tranquilamente o pêndulo pesado;
Fazendo-nos lembrar a fúnebre sentença
Lida numa prisão, diante do condenado!

Parece-nos até que uma visão dantesca
Sopra a trompa fatal de Ernani ao nosso ouvido...
E que nos corações de Paolo e de Francesca
Range ainda o punhal do trágico marido!...

É que o velho relógio, altivo e só na torre,
Diz a reis e plebeus, a Lucrécias e Vênus:
— Tudo passa; isto é pó; tudo que vive morre...
Cada instante de mais um instante de menos! —

E fica sempre ali, sem que ninguém se afoite
A esperá-lo de pé... se nem o sol o espera!
O sol é o olhar do dia, ele é o olhar da noite...
E impera no Ocidente e no Levante impera!

A criança, a donzela, o velho, o moribundo,
Viu-os nascer, sonha... para morrer um dia!
E imperturbável, calmo, o seu olhar profundo
Vendo tudo o que vê — nada vê do que via...

Símbolo da verdade: a nossa vida inteira
Jaz limitada ali num limitado espaço;
Erguemo-nos à luz ao tempo em que a poeira
Ri-se, talvez, de nós... seguindo-nos o passo.

E enquanto a morte afia a foice fria, adunca,
Com que nos vem ferir mais tarde fatalmente,
A alegria, a voar, passa— e não volta nunca...
— Nunca!— diz o relógio: e — sempre — espera a gente!...

 

NÚMERO DOS NOTURNOS
(Ao amigo M. Cotta)

Tive esta noite um sonho
Fúnebre, extravagante:
Era um baile de máscaras,
Onde encontrei uma esquecida amante.

Ofereci-lhe o braço,
Enquanto os mais, voando,
Iam, aos sons da música...
E assim fomos alegres passeando.

Num ângulo da sala
Parou a feiticeira
E, levantando a máscara,
Deixou-me ver... horror: — uma caveira!

Quando acordei, os sinos
Dobravam lentamente...
E eu lembrei-me em silêncio
Dessa mulher que amei antigamente!...

 

ÁRVORE FUNESTA
(A Carlos Ferreira)

I
A árvore fatal da minha vida,
Que eu vi tão cedo rebentar em flor,
Deitou-se à sombra a Musa, enlanguescida,
E sonhou, sem dormir, sonhos de amor!

E da árvore em flor por entre as franças
Suspiravam as brisas dos sertões:
Chegavam, a voar, as esperanças...
Pousavam, a cantar, as ilusões!...

II
Mas o vento espalhou pelos caminhos
Os aromas e sons... De cada flor
Rebentou um espinho: e dos espinhos
Brotou um fruto venenoso — a dor!

E da árvore, então, por entre as franças 
Sibilavam, crescentes, os tufões:
Voavam, a fugir, as esperanças...
Caíam, a tremer, as ilusões!...

III
E da árvore à sombra, nas devesas,
Sonhava a Musa — exposta às tempestades
Voavam, assustadas, as tristezas...
Pousavam, silenciosas, as saudades!...

Caiu mais tarde o temporal medonho,
A árvore esfolhou-se... De tal sorte
Passou a Musa, sempre entregue ao sonho,
Do ermo da vida à solidão da morte!

IV
Ó mulheres, que andais pelas devesas,
Ó moças, quê cismais nas soledades:
Passai, — que aí só pousam as tristezas...
Fugi, — que aí pernoitam as saudades!...

— Jaz, agora, sem folhas e sem flores,
Mas sempre erguido, o tronco solitário,
Que foi outrora o ninho dos amores
Do coração do moço visionário!

V
Como grupos travessos de crianças
Que apedrejam as aves dos sertões,
A intriga — afugentou-me as esperanças...
A inveja — espavoriu-me as ilusões!...


 

O FIGURINO E A ESPADA
(A Mendonça Cardoso)

Sinite parvulos venire ad me.

Jesus Cristo

Eu sou quase criança ao lado das crianças,
Esses anjos do céu — que passam pela terra
A trazer-nos a paz nesta existência em guerra,
Onde vão de vencida as nossas esperanças.

Como é bom conversar acerca de mil nadas
Com essa multidão de crédulos atentos,
Que nos mostram no olhar os seus deslumbramentos,
Pensando noite e dia em príncipes e fadas!...

Gostam tanto de ouvir contar histórias... tanto!
E é tão fácil, por fim, fazer-lhes a vontade,
Que todo o que tiver um filho, ao menos, há de
Nisso tudo — que é nada — achar um novo encanto.

Eu tenho uma sobrinha, um sonho florentino,
Que bem cedo há de ser um anjo entre as mulheres!
E ontem, ao sair, perguntei-lhe: — “Não queres
Outra boneca?” — Não... Eu quero um figurino. —

Nisso, ouviu-se lá dentro uma infantil risada...
E o Álvaro, a correr dos quartos para as salas,
Gritava-me: — Papai! hoje eu não quero balas...
Vou guardar meu tostão pra comprar uma espada!

 

A CRUZ DE ÁTALA
(A César Raposo)

Quando te vi, mancebo, à vez primeira,
Esta cruz cintilava no meu seio
A frouxa claridão duma fogueira...
Que prazer que eu senti! que doce enleio,
Quando te vi, mancebo, à vez primeira!...

Nesta cruz esbatiam-se, trementes,
Da fogueira sinistra os revérberos...
E de teus olhos fundos, pacientes,
Uns lampejos nostálgicos, severos,
Nesta cruz esbatiam-se, trementes.

É esta cruz a única riqueza
Que possui Átala. Deixando a vida,
Deixo-a em teus braços, nos seus braços presa;
Conserva-a, que da amante estremecida
É esta cruz a única riqueza!...

Foi colocada aqui no meu pescoço,
Por meu pai, que por mim saudoso chora,
Talvez pensando em ti, errante moço!...
Pela mão — que beijávamos outrora —
Foi colocada aqui no meu pescoço.

Lego-ta, meu irmão, como lembrança
Do nosso triste amor imaculado;
Pudesse encher-te a vida de esperança
De um futuro melhor, qual do passado
Lego-ta, meu irmão, como lembrança!...

Nos transes dolorosos desta vida
Ela te há de ensinar a ter coragem;
Iluminando a sombra indefinida
Da noite de tua alma de selvagem,
Nos transes dolorosos desta vida.

Cumprirás o meu último pedido?
Cumpres, não é?... Pois bem: quando pensares
Em mim, pensa no mártir— estendido
Nesta cruz!... Toda vez que o adorares
Cumprirás o meu último pedido.

Este é o Grande Espírito; eu não minto...
Ai!... que sinto o veneno em minhas veias
Inflamado correr... que fogo eu sinto!...
Se te faltarem de outro Deus... não creias:
Este é o Grande Espírito, eu não minto!...

Nas cristalinas águas do batismo
Banha a fronte altaneira, meu amante,
Que um céu aberto, em vez de fundo abismo,
Hás de ver refletido nesse instante
Nas cristalinas águas do batismo.

Eu não posso pedir-te um juramento,
Mas exijo de ti uma promessa.
Adeus! És livre, mas... neste momento...
Morro, com esta ideia na cabeça:
Eu não posso pedir-te um juramento!...

 

SERENATA

Où va l'homme ? Où son coeur l'appelle.
L'hirondelle suit le zéphyr,
Et moins légère est l'hirondelle
Que l'homme qui suit son désir.


(Alfred de Musset

I
E tu me visses sonhando,
Sonhando sempre contigo,
Querias andar voando,
Voando sempre comigo?
Querias?...

Fala, criança! responde,
Se nos meus voos sonhasses
E nos teus sonhos voasses,
Aonde irias?
— Aonde?...

II
Irias ter a Sorrento,
Minha madona ideal?
Numa gôndola ao relento
Sobre as águas do canal...
— Irias?...

Fala, criança! responde,
Se nos meus voos sonhasses
E nos teus sonhos voasses...
Aonde irias?
— Aonde?...

III
À Itália? sim! que é a terra
Das mais ardentes paixões;
Aonde o Amor tudo encerra:
Músicas, beijos, vulcões!...
Não rias...

Anjo da crença e da fé!
Se nos meus voos sonhasses
E nos teus sonhos voasses,
À Itália irias...
— Não é?...

 

A SARAH BERNHARDT
(Recitada na noite de sua festa artística no Rio de Janeiro)

Ei-la diante de nós, ó povo brasileiro,
A Mulher que assombrou o velho mundo inteiro!
E que espalhando glória e luz por toda parte
Se ostenta como um sol no firmamento d'Arte!...

— Esplêndida visão dos ideais modernos!
Tu, que roubaste o fogo aos antros dos infernos
E o gelo às criações da antiga estatuária,
Peregrina do gênio! — errante e solitária
 
Pelas plagas da terra, onde andas foragida,
— cansada de buscar uma rival em vida —
Já que só tens irmãos, émulos e rivais,
Na necrópole aberta aos mortos imortais...
Que vieste fazer à terra das montanhas?

Ver as coisas ideais, fantásticas, estranhas,
De um mundo inda não visto? Ou quiseste ofuscar
O nosso sol —com a luz dos sóis do teu olhar?...

Eu dizia comigo, a sós, nas solidões,
Quando ouvia cantar as aves dos sertões:
“Não pode haver no céu músicas mais suaves
Que o gorjeio sutil das palpitantes aves...”
Mas ouvi tua voz: — e percebi então
Que há músicas assim... só no teu coração!

Povo! eu tenho aplaudido, em silencioso pasmo,
As fortes explosões do sagrado entusiasmo
Com que tens te atirado, exânime, sem pulso,
Aos pés desta Mulher: como o jaguar convulso
Que lambesse a ferida, a rolar, no deserto,
Com a seta fatal no largo peito aberto.

É a força subjugada à sombra da fraqueza.
Os homens, o valor; e a mulher, a beleza,
Numa luta sublime, um duelo sem morte,
Onde o belo se impõe às ovações do forte!...

E sobre todos paira o anjo da vitória,
Pois todos vemos nela: — o Gênio, a Arte, a Glória!

Ao ver essa Mulher, que passa triunfante,
Eu me lembro que a lua, além, de tão distante,
Também encrespa o mar em noites transparentes,
Agitando-lhe, calma, as líquidas correntes...

E ao satélite frio, envolto em leves brumas,
O mar atira, exausto, um turbilhão de espumas!...

Salve! Mulher sublime, assombro do proscênio!
Salve! Povo feliz, que vês de perto — o Gênio!...

 

PRIMEIRA AUSÊNCIA

Por que não vejo os olhos sedutores
Que me ferem a vista quando os vejo?
E os seios, onde dorme o meu desejo,
Num leito de perfumes e de ardores?...

Onde dos lábios rubros os licores,
Que embriagam no êxtase de um beijo?
E essa volúpia, disfarçada em pejo,
Das horas em que mostra — só primores!...

— Sou tua! — ela me disse: e nesse instante
Deu-se-me em corpo e alma, delirante,
Por me ver doido por seguir-lhe os passos...

Deu-se-me assim... para roubar-me a calma:
Pois, tendo-a dia e noite na minh'alma,
Não posso tê-la sempre nos meus braços!

 

ONDE SE LÊ... LEIA-SE...
(A Felix Ferreira)

Estão lendo as crianças,
E o mestre tosse e ralha, sem cessar;
— Escuto cá de fora o soletrar,
Como um vago rumor de coisas mansas.

Eu paro e depois sigo
Pela margem do lago: — é primavera;

Ao longe, o louro canavial antigo
Treme ao vento sutil que o refrigera,
Como as noivas nos êxtases de amores.

Estende a Natureza pelas selvas
Frescos lençóis de flores
Sobre coxins de aveludadas relvas...

Essências e fulgores
Boiam no ar e passam abraçados,
Como casais de alegres namorados
Que pensam não ser vistos por ninguém.

Inda escuto daqui o soletrar,
Como ó zumbir vibrante dum enxame
De vespas, revoando na abelheira...
E o zangão a mordê-las, sem voar...

Eu soletro também!...
Ah! mas doutra maneira,
Pois já leio por alto — e fiz exame;
E se fui reprovado... é porque o lente,

Além de impertinente,
Temia que eu tirasse a tal cadeira...

Soletro a eterna página secreta
Do livro sem igual, maravilhoso,
De um velho sábio: —Deus!...

Que estilo poderoso!
Onde se encontram versos de um poeta
Mais belos e suaves
Que o gorjeio das aves
Voando à tarde pelo azul dos céus?

Que hipérbole arrojada de obra prima,
Com as asas fantásticas da rima,
Voou mais alto do que as águias voam?...

E que onomatopeias — que atordoam!

Ah! mas agora vejo, aqui no texto,
E mesmo nas gravuras,
Desta vasta edição da Natureza,

Coisas graves, em páginas obscuras,
Erros de palmatória;
Não citando arcaísmos... que num cesto
Não sei se os meteria com certeza.

Por que hão de rebentar sempre os espinhos,
No pedúnculo das rosas?
Por que dormem os pássaros, nos ninhos,
Mesmo ao pé das cavernas tenebrosas
Onde rugem, as feras?...

Por que há dias de chuva e tempestades
Em plenas primaveras?
Por que sentimos nós tantas vontades,
Vivendo tão sujeitos
À tanta gente e a tantos preconceitos?...

Por que foram as pérolas lançadas
À profundez dos mares,
Quando nas recepções das embaixadas
Eu peixes nunca vi... nem sem colares?...

São ligeiros descuidos ortográficos
Do incansável autor da... criação;
Podem ser simples erros tipográficos,
Eu não digo que não.

Quem não faria tanta coisa chata
Em sete dias só?... Meu Deus! que pressa!
— Mas o livro é tão bom, que eu sentiria
Uma grande alegria
Se houvesse uma outra página: e se nessa
Eu encontrasse... a Errata!

 

RIVAL DE PENÉLOPE

És duma fina distinção radiosa;
Mas a minh'alma foge do teu lado
Receando que o verme do pecado
Lhe sugue o mel das pétalas de rosa...

És a estrela funesta e misteriosa,
De que resta um lampejo avermelhado
Num pedaço da noite do passado
Da minha vida curta e tempestuosa!...

Quando passas altiva, nem presumas
Que há quem chore (que amor! e que ciúmes)!
Por ver... que te não vê como te eu via!...

Penélope gentil, vaidosa e rude!
Vais a teia invisível da virtude
Tecendo e destecendo noite e dia...

 

IN TERMINIS

Ganz spat, nachdem die Theilung langst geschehen,
Naht, der Poet, er kam aus weiter Fern';
Ach, da war uberall nichts mehr zu sehen,
Und alles! hatte seinen Herm.

Schiller—Die Theilungder Erd

Deus, quando viu completa a humanidade, outrora,
Disse-lhe: “O mundo, é vosso; é reparti-lo agora.”

Correram nesse instante as virgens e as crianças,
Em busca de ilusões, de crenças, de esperanças.
 
As mulheres, então, encheram com presteza
De mistérios a alma e o corpo de beleza.

A mocidade, forte e audaz e alucinada,
Lançou-se atrás de tudo — em tudo vendo o nada!

Os velhos, tropeçando ao peso atroz dos anos,
Mal puderam colher lições e desenganos.

Entregaram-se ao vento os rudes marinheiros,
Expostos dia e noite a rijos aguaceiros!...

Via-se o lavrador a semear as terras;
Coroaram-se os reis... começaram as guerras!

Muito tempo depois da terra partilhada,
Vem de longe, a cantar, um homem pela estrada...

“O meu quinhão?” — Pois que! só vens buscá-lo agora?
Eu andava, Senhor, perdido lá por fora,
Cantando o teu poder; e em mística cegueira
Admirava o criador na criação inteira!”

— Poeta! os teus irmãos levaram tudo, tudo!... —
O visionário ficou alguns instantes mudo:

“Pois bem, já que não há mais frutos nem mais flores,
A quem deste, meu Pai, as lágrimas e as dores?”

— Pedes-me justamente o que ninguém queria. —
“A própria morte, ó Deus, de ti — eu bendiria!”

— Dou-te a dor e a morte. Ah! mas terás, depois,
A eternidade e o céu. —

E afastaram-se os dois...

 

CORTEJO EM GRANDE GALA
(À Exma. Sra. D. Ambrosina C. de Menezes)

Luzidos batalhões e inquietos regimentos
Se estendem, pela praça à luz do meio-dia;
Nas armas de aço fino esplêndida irradia
A claridão do sol nuns ímpetos violentos.

Ao clangor dos clarins e ao rufo dos tambores
Desdobram-se no azul as triunfais bandeiras;
E à frente da legião das belas vivandeiras
Passa a Princesa Ideal, entre ovações e flores!...

Assim também eu formo os meus alexandrinos,
Vendo-te atravessar um ano mais de vida:
E rompe em honra tua a orquestra de meus hinos!

Bela, como Raquel no grupo das crianças,
Da existência transpões a quadra mais florida,
Entre os filhos e o esposo, — o amor e as esperanças!

 

A UMA SENHORA CATÓLICA

Pulvis, cinis et nihil.

Vossa excelência perde inutilmente
Seu precioso tempo em discutir comigo
Questões de fé; no entanto, eu me confesso um crente.
Porque creio no nada... e as coisas investigo.

Tudo o que existe eu considero eterno,
Mas tudo é submetido às leis do transformismo;
Há chuvas no verão, o sol brilha no inverno;
E a flor, que se abre à luz, nasce também no abismo.

A Dúvida levou-me de vencida
Pela escura extensão de um árido deserto:
Sei que a Transformação me espera ao fim da vida...
E sinto sempre a Dor — a me seguir de perto!

É bem feliz quem crê noutra existência,
Onde a Virtude encontra o merecido prêmio,
Sendo o Vício punido; e eu sei, Vossa Excelência
Desses fiéis está no religioso grêmio.

Eu não pertenço a grêmio algum; trabalho
Por dar aos filhos meus o exemplo do meu nome;
E tudo quanto aspiro e tudo quanto valho
É só por altruísmo. A crença abandonou-me...

Dirão, talvez: “Que excêntrico! que louco!”
E eu sondo a profundez do mar por onde vogo...
É que analiso tudo: — e acho tudo tão pouco...
Que só no tédio enfim é que eu me desafogo!

Deve ser realmente delicioso
Acreditar num céu — iluminado e vasto —
Aonde voe, a cantar, o bando glorioso
De Arcanjos... e onde o Amor seja perene e casto!

Deve ser muito bom pensar que a vida
É o dormir — a sonhar — da incauta humanidade;
Que do sonho voraz da noite mal dormida
A gente, ao despertar, entra na eternidade!

Mas eu não posso crer nessas quimeras;
Mirrou-se-me na alma a flor das alegrias:
Flor— que tanto reguei de lágrimas sinceras
Ao vê-la sobre o gelo, exposta às ventanias!...

O Desalento é noite de geada.
Onde uiva como um cão o vento da descrença;
Rasga mais tarde o sol as brumas da alvorada,
Mas brilha e não aquece: — é uma ironia imensa!

É bem cruel, bem triste, bem pungente
Ver que não se vê mais que cinza, pó e nada...
Creia, eu não posso crer que a existência presente
Venha a ser noutra vida, ao menos, relembrada.

Tudo acaba no chão do cemitério;
Embora tudo, aí, reviva em seres vários;
A ciência invadiu a Noite do Mistério...
Do crânio de um ateu fazem-se relicários!

 

ESCRÍNIO POR ESCRÍNIO

Abriste aos olhos meus, rapidamente,
Um escrínio de pedras fulgurantes;
E sem pena de súplicas constantes
Fechaste-o, caprichosa, de repente...

Assim ele te disse... E ele, que mente,
Não mentiu dessa vez... Pobres amantes!
Que nem sonham que são esses instantes
As horas de prazer que tem a gente!...

— Deste-me o teu escrínio precioso;
E ambos, rindo do triste sem repouso,
Deitamos fora as pedras e os colares...

De que servia aquele escrínio cheio:
— Se tu tinhas de amor vazio o seio...
Se eu só queria ver os teus olhares?

 

TRAGÉDIA NO OCEANO
(À memória dos 120 náufragos do paquete Rio Apa)

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se é mentira... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...

Castro Alves

Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos boiam sobre as águas frias!

FAGUNDES VARELA

A dúvida de Hamleto, a dúvida suprema
Dos que tentam vencer esse fatal dilema
Do ser e do não ser; — a enervante ironia
Que às gargalhadas ri, num choro de histeria;
A febre que nos mina e que não tem remédio,
A insônia, o desalento, o desespero, o tédio...
— Eis o mal que lateja e cresce surdamente
No aflito coração da inconsolável gente
Que entregou as porções mais caras de sua vida.
A esse Navio-Esquife! — a máquina homicida
Que houve quem atirasse à solidão deserta
Do mar — que não é mais do que uma cova aberta:
Onde o mastro é a cruz, e os ventos os coveiros,
Que passam, a cantar, por entre os derradeiros
Estertores e ais dos náufragos: — que rolam
Na revolta extensão das vagas, que se empolam
E saltam, rebentando... e fervem, marulhosas,
Espumando e rugindo, em convulsões teimosas;
Ora erguendo-se ao céu, em líquidas montanhas,
Ora se retraindo ao fundo das entranhas
Do imenso abismo em treva, escancarado, eterno,
Onde há monstros! onde há vulcões! onde há o inferno!...

Eu naufraguei: eu posso imaginar horrores!
Posso pintar ao vivo as explosões de dores,
Os presságios, o espanto, a rápida esperança
Que surge, para mais fundo ir enterrando a lança
Do medo, do terror, — dessa mortal tristeza
Que nos invade a alma em face da certeza
De um perigo iminente, horrível, sobre-humano,
Vendo tão longe o céu... e tão vasto o oceano!...

Estou vendo a correr dum para o outro lado
Um pequeno, que ri, vendo o pai espantado...
Outro, que pede à Mãe um doce — no momento
Em que ela crava mais o olhar no firmamento!...

É horrível de ver-se a nau desarvorada:
A corda, que rebenta ao choque da lufada,
Sibila, estala, zune... O pano, que se rasga,
Tem não sei quê da voz da fera que se engasga
Com os ossos da presa, enquanto ruge, rouca,
Sentindo-a espernear por lhe fugir da boca!...

Estoura o raio!... estoura a embarcação!... estoura
A onda — que de espuma o Armamento doura!...

— Empina-se o navio — e range surdamente...
Cai o mastro, esmagando uma porção de gente!

Uma vaga, que lambe a proa, cospe n'água
O homem do leme... uma outra inunda a viva frágua...
Oh!... rebenta a caldeira em nuvem de estilhaços!...
Uns — nem soltam um ai... outros, ficam sem braços,
Sem olhos, sem saber da esposa idolatrada,
Do filhinho gentil, da Mãe — que de assustada
Nem podia rezar...

Já ninguém mais se entende...
E um coro sem igual de súplicas se estende
Da vasta solidão dos implacáveis mares
Á vasta solidão dos insensíveis ares!...

Aonde está Deus? — Não sei...

Ah! mas se Deus existe
Como é que ele não vê aquele quadro triste,
Horrível, monstruoso?!... Esse naufrágio bruto
Que a tantos leva a morte e a tantos traz o luto!...

Como é triste morrer de um modo tão pungente
— A virtuosa Mãe, o filhinho inocente,
O esposo honrado e bom, a esposa casta e bela,
E a virginal irmã — que virginal capela
Ostentava, gentil, tão cheia de esperanças!...

E os bandos infantis das tímidas crianças,
Com lágrimas na fala e súplicas nos olhos,
Que a onda arrasta... atira, esmaga nos escolhos!...

Há um confuso lutar, como as visões dum sonho.
E tudo se afundou num turbilhão medonho!...

Mas nem todos aí morreram nesse instante;
Para maior angústia e dor mais lacerante,
Dizem... é espantoso! — e dizem a verdade:
Que rolaram do mar na imensa soledade,
Dia e noite a lutar — lutando tantos dias —
Uns míseros, que após tão lentas agonias
Deram à costa... e lá, de todo abandonados,
Uns morreram à fome... outros — apunhalados!...

O cão, que encontra o cão ferido em seu caminho,
Lambe-lhe o ferimento e leva-o com carinho;
A formiga, que vê as outras esmagadas,
Deita-lhes terra em cima e toma outras estradas...
— Os elefantes têm necrópoles sombrias:

E só o Homem deixa, assim, por tantos dias,
Tantos homens, oh! Deus! naquelas águas frias!...

 

NAUFRÁGIO DO CORAÇÃO
(Ao poeta e amigo Dr. Bitencourt Sampaio)

Triste, Poeta! a nau das minhas alegrias
Ir bordejando além, por esse mar afora?
Foi cheia de ilusões, de crenças, de utopias.
E o que há de ser de mim, sem ter mais nada, agora?...

Como é triste lembrar que se foi tudo embora,
Nessa nau, tão pequena e frágil, que ontem vias
Ancorada na praia, alegre como a aurora,
Tremendo ao perpassar das rijas ventanias!...

Agora, no alto mar, os vagalhões do oceano
A lutar e a rugir, num desespero insano,
Lançam-na à solidão da eterna profundez!...

Que naufrágio!... E ao mar as naus se precipitam...
O mar — é esta existência, onde as paixões se agitam:
E a nau — é o coração, que enchi de mais, talvez!

 

13 DE SETEMBRO — DIA DE MEUS ANOS
(Ao ilustrado amigo Barão de Nogueira da Gama)

O mar já me tentou: aspirações fogosas
Fizeram-me idear fantásticas viagens,
Eu sonhava trazer de incógnitas paragens
Notícias imortais às gentes curiosas.

Mais tarde desejei riquezas fabulosas,
Um palácio escondido em murmuras folhagens,
Onde eu fosse ocultar as cândidas imagens
Das virgens que evoquei por noites silenciosas.

Gonçalves Crespo — Noturnos

Que nos resta depois das lutas desta vida?
A tristeza do adeus no instante da partida...
Uma lágrima nossa e a lágrima chorada
Por quem irá, depois, cair também no nada.

Amamos? mas o amor é uma ilusão que passa;
Sonhamos? mas o sonho é a sombra da fumaça
Que cedo se desfaz no azul da imensidade.
Dos seios da esperança aos braços da saudade
Passamos, sem sentir, como a folha que o vento
Lança do galho em flor ao pó do isolamento.

Só há nesta existência uma verdade pura:
O amor de nossa Mãe! o amor da criatura
Que parece feliz — por nós julgar felizes —
E em nós mostra um sinal de fundas cicatrizes.

O mais tudo é mentira!... As gerações de agora 
Hão de passar, bem como as gerações de outrora;
O futuro começa onde acaba o cassado;
O presente... nem sei se existe: é um estado
Veloz, de transição imperceptível, vago,
Como as ondulações concêntricas dum lago
— Onde caia do ar um pássaro ferido,
Que estremece no azul, rolando sem sentido,
Com a cabecinha na asa, arrufada a plumagem,
Mergulhando da luz nas trevas da voragem.

Tudo é velho na terra, ó triste humanidade,
Que hás de trocar por lodo orgulhos e vaidade!
O que mais penetrar nos báratros da ciência,
Mais aproxima o pé do abismo da demência.

Sinto a doença atroz para que não há remédio:
Dúvidas, saciedade e desespero e tédio...

Entretanto eu já tive as mesmas esperanças
De que vivem ainda as virgens e as crianças;
Quis gozar: prelibei mais favos que as abelhas
Das moças mais gentis nas bocas mais vermelhas!
Viajei: — percorri fantásticos lugares,
Por montanhas azuis e por virentes mares;
Sonhei nas capitais palácios suntuosos,
Abrindo às multidões seus pórticos faustosos;
E em macios coxins de alcovas confortáveis
Os membros repousei depois dessas viagens,
Cismando, embriagado entre os sutis vapores
Do ópio, do xerez, e aromas de mil flores;
E sonhei, sem dormir, em noites enervantes,
Como o rei Salomão, outrora, entre

Imaginei, mais tarde, uma cabana oculta
Entre a vegetação duma floresta inculta;
Árvores colossais, ubérrimas, daquelas
Que só no meu país ostentam-se tão belas!
E uns lagos cor do céu... e ao longe umas montanhas...
Umas coisas ideais, quiméricas, estranhas!
— Ter ali a família, o sonho do acordado:
A esposa — o amor sublime, o filho — o amor sagrado!
E uma espingarda, um cão, um poncho para o frio,
O cavalo — no campo, e a canoa — no rio...

Aí posso encontrar, (disse eu), a felicidade.
Pensei... Vejo que em tudo apenas há vaidade!...

Lembrei-me de estudar; cansei, vendo que os sábios
— Com a dúvida n'alma e o sarcasmo nos lábios —
Acabam como acaba o néscio, de maneira
Que é inútil gastar tão mal a vida inteira.

De que nos serve, então, seguir por essa estrada,
Calçada pela dor, que nos conduz ao nada?...
Oh! por que nasci eu?... Para viver — morrendo
Por ser o que já fui: e o que hei de ser... não sendo!...



LINS DE ALBUQUERQUE
(Poesia recitada no cemitério, ao dar-se o cadáver do poeta à sepultura)

A morte não me sai do pé do leito!
Esta mulher, que dita leis tiranas,
Já me resfria o coração no peito...

Lins de Albuquerque

Ei-lo afinal vencido pela morte,
Depois de ser vencido pela vida;
Vencido sempre, um coração tão forte!
Mais um herói — levado de vencida!...

Ele era bom e meigo e generoso,
O nosso companheiro, o nosso amigo!
E a morte, ao vê-lo alegre e descuidoso,
Cruel lembrou-se de o levar consigo.

— Ó divindade trágica do nada!
Por que procuras tu, de preferência,
Toda a fronte que vês engrinaldada
Pelos verdes lauréis da inteligência?...

Por que hão de sempre aqueles que mais sentem
Ser os que, sem sentir, se vão mais cedo?
E assim — as nossas esperanças mentem...
E assim — o forte há de tremer de medo!

Pobre Lins! quando os outros passam rindo
Nos ruidosos festins da mocidade,
Sentiste, uma por uma, irem fugindo
Todas as ilusões da nossa idade!...

Como foste roubado pela sorte!...
Tiraram-te o amor, a glória... tudo!
E neste leito esquálido da morte
Vais ficar só, enregelado e mudo!...

Quando alguém me pedir notícias tuas
— Recitarei teus versos de memória:
Louco! que andaste à toa pelas ruas...
Como hás de andar mais tarde pela história!

 

AFONSO PEIXOTO
(Falecido a 17 de março de 1887)

E a crença? a meiga voz que nos embala,
Como uma voz de Mãe, e que nos fala
Desse além ideal, da vida nova?...

Neste lugar... recua, empalidece;
Ante cada cipreste ela estremece!...
E segue, a tropeçar, de cona em cova!...

Dr. Afonso Peixoto — O Cemitério

Parece-me que a Morte anda pelas estradas
A procurar os bons — para os levar consigo,
Tantas são entre nós as vítimas sagradas!...

Meu pobre companheiro! ó meu saudoso amigo!
Bem pressentias tu que havias de ir, tão cedo,
Pedir a um cemitério o derradeiro abrigo!...

Assim, o Casimiro, o Freire, o Azevedo,
O Castro, e tantos mais, que pranteamos tanto,
Foram-se, como tu, cheios de febre e medo...

Julgo ainda escutar as vozes do teu canto:
E no entanto bem sei que dormes, frio e mudo,
No ermo onde pernoita a legião do espanto!...

Quebrou-se-me da crença o derradeiro escudo;
A dúvida invadiu-me: e eu vejo agora o nada
Povoando o vazio — onde renasce tudo!...

Tinhas de aspirações a fronte engrinaldada;
E era o teu coração um ninho, de esperanças
Onde pousava o amor, cantando, na alvorada!

Voavam-te da mente em bandos as lembranças
Pelo passado adentro... e sorrias, cismando,
Com esse riso ingênuo e meigo das crianças!

Teu nostálgico olhar, seguindo o alado bando,
Nem via que só via o que se vê — não vendo...
E ficavas, assim, olhando à toa, olhando

Para o mundo, talvez: este oceano tremendo,
Onde uiva o temporal e o turbilhão delira,
Enquanto a vaga espuma, estrelejada!... Ou tendo

Ante o olhar o passado inteiro: essa mentira
De vinte anos de vida, — um sonho mal sonhado,
Rápido como o som ferido numa lira

Aos vinte anos, porém, quase não há passado;
Tem-se o berço tão perto, e o lar inda vibrante
Da voz de nossa Mãe que vela ao nosso lado!

Concentravas-te, eu sei, num martírio constante
Entre o tédio e a dor, entre a dúvida e o susto,
Vendo o abismo do naca escancarado adiante!...

Lançou-te o desalento ao leito de Procusto;
Espremeste na boca a esponja do Rabbino:
Resignado sorriste ao teu destino injusto...

E tua Mãe — por ti ouve dobrar o sino!...

 

QUADRO BÍBLICO
(Versão)

Dorme a Cidade Eterna; — só, Tibério
Sente o fundo temor de insônias tredas.
No leito de marfim, envolto em sedas,
Da púrpura levanta o rosto sério.

E de Belém nas sombras dum recanto,
— Por entre as palhas de um modesto asilo 
Cheio de amor, destaca-se tranquilo
Perto de mansos bois, um grupo santo.

Ali, Jesus — nuzinho — alvo e formoso,
Esconde os lábios no materno seio;
E São José contempla-o num enleio,
Inclinando a cabeça, silencioso.

Um Anjo bate as asas sobre flores,
Levando a nova do natal distante...
— Trazendo os seus presentes, num instante.
Batem à porta e entram os pastores.

E longe, ao longe... religiosamente
— Uma estrela seguindo solitários —
Montados em seus grandes dromedários
Assomam os Reis Magos do Oriente.



VERSOS A UM FETO

To be, or not to be, that is te question.

Shakespeare — Hamlet

Invejo-te!... Se tu entrasses pela vida,
Serias, como eu sou, levado de vencida
Na inconsciência fatal do ser e do não ser.
Tudo é dúvida e dor!... Como assusta o não ver
Nem um raio de luz por trás da sepultura!...

E este sonho voraz extingue-se ou perdura?...
Nada sei; nada vejo. Entro na escuridão
Como o cego que entrega o seu destino a um cão.
Antes não ter nascido, ou nascer como nasces,
Com o sangue arterial gelado até nas faces...
Que lucrarias tu em ser homem por fim?
Terias de sentir o que hoje sinto em mim,
Ou então ser um néscio, uma alma satisfeita
Em ressonar depois da digestão já feita.

A vida não é mais que um rude batalhar
Por manter uma luz que a morte há de soprar.
Tarde ou cedo, na terra, em pó nos tornaremos:
Eis tf que ontem se viu... eis o que sempre vemos!

Admitamos, porém, a hipótese de que
Nasceste para a vida: — o que é a vida? Vê...
Olha o sol no Levante; ergue-se vitorioso,
Altivo, porém, cai no ocaso silencioso...
Passou entre ovações, como os antigos reis,
Mas submetido à ação de misteriosas leis;
E é esse mesmo sol — a auréola do horizonte —
Quem a sede te inflama e quem te abrasa a fronte.

O vento, que suspira e geme ao perpassar
Pelas flores, não tarda a vi-las desfolhar;
Ele também suspira e geme aos teus ouvidos,
Mas amanhã, a uivar, sobre os mares varridos,
Se o teu lenho encontrar na líquida extensão,
Vira-o... e vai cantar mais longe outra canção!

À nuvem, que desenha agora pelos ares
Castelos, torreões, paisagens singulares,
A nuvem não é mais que o transparente véu
Que mostra o temporal, sem deixar ver o céu...

A terra, que ora agita um leque de mil flores
Ao sol da primavera, às aves multicores,
Também veste a mortalha alvíssima e fatal
Dos gelos de que faz a túnica hibernal...

No templo, onde teus pais iam rezar, outrora,
Verás os teus irmãos a blasfemar agora!

A mão, que te embalou e abençoou-te, a mão
De tua Mãe — apodrece oculta sob o chão...
O seio, onde bebeste a nutrição primeira,
Dele Sugam o sangue os vermes, na poeira...
O ser, que mais amaste, o ser que mais te amou,
Jaz no lodo... e ao teu lábio o riso inda voltou!...
 
Lembras-te que tiveste uns loiros companheiros
Nos brincos infantis? Hoje... uns, são conselheiros,
Outros calcetas; um, morreu na guerra; dois
Enriqueceram; três formaram-se: é depois
Trataram, no poder, de liquidar a pátria:
Quem puder— faça assim... quem quiser — idolatre-a!
O mundo é um carnaval ruidoso, atroador,
Onde o vício afivela a máscara do valor.

E entre tantos heróis e tantos salteadores,
Gênios, mortos à fome; e justos, sem louvores;
Entre os bons e os maus, príncipes e plebeus,
Nem um só é feliz!...

Há muitos Prometeus!...

 

O CÂNTICO DA ESCRAVIDÃO
(Expressamente escrito para o drama abolicionista a “Corja Opulenta”, de Joaquim Nunes; e posto em música pelo maestro Dr. Abdon Milanez)

Funesta escravidão!... Terrível sorte
A dessa triste raça perseguida,
Que é arrojada aos paramos da morte
Pelos tufões mais ríspidos da vida!...

E dizer que inda existem criaturas
Que escravizam seus próprios semelhantes:
E lhes infligem bárbaras torturas,
Matando-os em suplícios lacerantes!...

O escravo é na pátria um forasteiro,
Curvado sempre ao jugo de opressores;
Arrastando os grilhões do cativeiro,
Lera n'alma só lágrimas e dores.

Leva n'alma só lágrimas de sangue,
Leva as carnes de látegos feridas;
Até que um dia cai, exausto, exangue,
Como as feras — que morrem esquecidas...

O cativo não acha um peito amigo,
Risos de irmã, nem beijos de consorte:
E ou tem de errar nos ermos, sem abrigo,
Ou de rastros, no eito, espera a morte!

A escrava... nem lhe é dado ser esposa!
E se é Mãe: — nas senzalas, às risadas,
Arrancam-lhe o seu filho! E há quem ousa
Violentar-lhe as filhas... a pancadas!...

E dizer que inda existem criaturas
Que escravizam seus próprios semelhantes:
E lhes infligem bárbaras torturas,
Matando-os em suplícios lacerantes!...

 

SURGE ET AMBULA
(Ao companheiro e amigo Dr. Barros Cassal)

Fora belo, talvez, em pé, de novo,
Como Byron surgir, ou na tormenta
O herói de Waterloo!

Álvares de Azevedo

Não vibras mais as cítaras divinas?
Não cantas, na penumbra do repouso?
Onde estão as estrofes peregrinas,
Artísticas, vibrantes, heroínas,
Do teu estro potente e radioso?...

É crível que de tantas fantasias
Só ficasse uma ideia, — um esqueleto
Amortalhado em sombras de utopias,
Deixando apenas, entre cinzas frias,
Uma caveira — a rir-se para Hamleto?...

Deixa ao príncipe enfermo da legenda
O monólogo trágico e funéreo
Do ser e do não ser... Por outra senda,
Investigando, a analise desvenda
Das duvidas mentais todo o mistério...

Quando eu pensava vir achar-te erguido
Ao topo do Sinai da Ideia Nova,
Venho encontrar-te mudo, foragido,
Como um templário em cismas embebido
Sob um cipreste, à boca duma cova...

Que fizeste da chusma de quimeras
Que espalhavas, outrora, como flores?
Pois quem voava rente das esferas,
Quem investia ao sol das primaveras,
Pôde fugir ao bando dos condores?

Vem de novo falar-me de esperanças, 
Com esse ardor com que falavas dantes,
Nos tempos — de que restam só lembranças —
Alegres como grupos de crianças,
Ardentes como os beijos dos amantes!...

Falemos do porvir, que nos espera...
A nós, que trabalhamos impolutos!
— As alavancas de aço retempera,
Que do fumo das lavas da cratera
Saltam às vezes diamantes brutos!...

Nós somos doutro Inferno os novos Dantes:
Já que vamos caminho das ideias,
Seguiremos o rasto dos gigantes,
Como esses caçadores de elefantes
Que dos desertos erram nas areias.

Se encontrarmos Virgílio ao fim da estrada,
Sub tegmite fagi pousaremos:
A glória é uma deusa imaculada;
Sem ofuscar-lhe a auréola constelada,
Aos seus beijos de fogo sonharemos!...

Se ao subir à coluna de Vendome
Ralarmos pelo chão, no duro asfalto:
Onde outrora Gilbert morreu de fome,
Quem tomba assim — pode dizer seu nome,
Deve orgulhar-se de cair... tão alto!...

Bem vês, a mocidade tem loucuras,
E há loucuras divinas nesta idade!
...Vamos do polo às regiões escuras,
Ver se encontramos nas geleiras duras
Um deserto mais triste que a saudade!

Se à noite a tempestade no Oceano
Sacudir pelo ar seus elementos,
Soltaremos o barco a todo o pano:
Vendo se os raios num duelo insano,
Correm com a rapidez dos pensamentos!...

Deixa o teu confortável agasalho,
Quando, em noite hibernal, a chuva teima
Em cair, lentamente... e vê do atalho
Se há gota d'água ou pérola de orvalho
Mais fria do que a lágrima— que queima!...

É tempo. Olha, que os nossos companheiros
Nos esperam, de pé, no chão da liça:
Somos valentes, fortes, brasileiros;
Vamos — como do Pampa os cavaleiros —
Lutar entre as fileiras da justiça!...

Quem não sente os pulmões oxigenados
Pelo vento que varre estas montanhas?
— Tonifica-te ao sol dos descampados,
E segue avante, assim como os soldados
Que vão cantando às regiões estranhas!

Sopra de Homero a trompa bronzeada
Ou de Camões a tuba sonorosa,
Mas não fiques parado em meia estrada,
Como a Niobe vil, marmorizada,
Da fantástica lenda religiosa.

 

CAMPO SANTO

Não tarda muito o dia de finados,
Dia em que os vivos vão, em romaria,
Visitar os que jazem enterrados
Na cova escura e fria.

Também mais tarde hão de ir nossos vindouros
Ver nossas campas, nesse mesmo dia,
Sem ver na lama os teus cabelos louros...
Na cova escura e fria!

Eu sou daqueles que se vão bem cedo...
Assim, bem cedo irás, triste, sombria,
Visitar o meu último degredo,
A cova escura e fria!

Queres ir à necrópole?... E te cansas
Em ir?... Não é preciso... olha, Maria,
Meu peito é um cemitério — de esperanças,
Meu coração — é cova escura e fria...

 

O LEÃO ENFERMO
(A augusta Princesa Imperial)

À semelhança dos Heróis antigos
De que rezam as lendas gloriosas,
Que tombavam nos braços dos amigos,
Contemplando com vistas dolorosas
As montanhas, o espaço, a natureza,
— Tudo cheio de nuvens de tristeza —
E o Oceano — a lutar eternamente...
E o sol, que é sempre o sol, mesmo no poente!

Ei-lo prostrado, o forte — não vencido —
Lucrando sempre por se erguer de novo;
Às vezes, cai exausto, — adormecido
No coração sincero do seu povo!
Depois — ergue-se, forte como outrora,
Qual águia altiva pelo azul distante,
Dourando a pátria com clarões de aurora
O seu olhar de olímpico gigante!

Nas horas em que a febre lhe marulha
Em confusão no cérebro as ideias,
Um alvo pombo no seu peito arrulha,
E há nos seus lábios versos de epopeias!...
Ele não tem os tétricos delírios
Desses que espalham prantos e martírios;
Tem sonhos de poeta: e voga, em cismas,
Num lago manso de serenos prismas.

Só nas horas de acesso, quando o susto
Nos assalta (pois nós nada sabemos),
É que pôde sonhar tranquilo o justo:
Sem sofrer por saber quanto soaremos!...

Nesses momentos trágicos, sinistros,
É que ele vê, por um aspecto novo,
O sarcástico rir dos seus ministros...
E as lágrimas sentidas do seu povo!...

Vi-o de perto em horas de descanso,
Vi-o de perto em rápidas viagens;
E fosse no tumulto ou no remanso,
Sempre colhendo bênçãos e homenagens;
Mas homenagens espontâneas, santas,
Como rosas — abertas às suas plantas —
E bênçãos tão altivas e tão puras
Como os astros que giram nas alturas!...

Nunca pensei que fosse tão completo
O ideal supremo do altruísmo:
Ele parece, neste meio abjeto,
A luz batendo em cheio num abismo!
Como lâmpada acesa em templo escuro,
— Espancando as visões que a sombra gera,
Ele há de erguer-se aos olhos do futuro,
Como o sol nas manhãs de primavera!...

Ei-lo agora em repouso... Inda mais bela
Que a sua coroa — de dois Imperadores —
É a grinalda alvíssima e singela
De seus cabelos brancos pelas dores.
“Os reis são tão felizes!” diz a gente...
E o destino dos reis como é pungente!
Assim, também os montes mais erguidos
Pelo fogo do céu são mais feridos!...

Ei-lo ainda em repouso... Dorme e sonha
“Tendo no lábio um riso de criança;”
Não há um só remorso que se oponha
À paz da consciência. E na lembrança
Surge-lhe claro o seu passado inteiro,
Arqueado num íris de vitórias!
— Nobre Herdeira do Trono Brasileiro!
Tens em Teu Pai um símbolo de glórias.

 



DIALOGO DE DÁFNIS E A DONZELA
 (Ao meu saudoso amigo Conselheiro Azevedo Castro)

A DONZELA
Páris, que como tu era um vaqueiro,
Da Prudência de Helena triunfou...

DÁFNIS
Dize antes, foi Helena quem primeiro
Com seus beijos de fogo o desvairou.

A DONZELA
Não sejas fátuo; um beijo, confessemos,
Consequências não traz... mata o desejo...

DÁFNIS
Nem diminui os êxtases supremos...

A DONZELA
Eu limpo os lábios meus: cuspo o teu beijo.

DÁFNIS
Ah! enxugas os beiços? — Mais desejos
Eu tenho agora de beijar-te a boca.

A DONZELA
Vai beijar teus novilhos. — Os meus beijos
Guardados para um Sátiro!... Estou louca?

DÁFNIS
Não sejas tão soberba; olha, vaidosa,
A mocidade é sonho que esvoaça...

A DONZELA
A uva madura — se transforma em passa;
A rosa, mesmo murcha, — é sempre rosa!

DÁFNIS
Vem cá para este lado... Ao teu ouvido,
Quero dizer mil coisas diferentes...

A DONZELA
Não quero; já assim me tens prendido
Com teus belos discursos eloquentes.

DÁFNIS
Debaixo das silvestres oliveiras
Tu ouvirás os sons da minha flauta.

A DONZELA
Eu não gosto de músicas fagueiras:
O canto da sereia ilude o nauta.

DÁFNIS
Toma cuidado, moça; olha, que Vênus
Costuma se vingar, com fúria insana...

A DONZELA
Bem pouco se me dá! e muito menos
Estando sob as graças de Diana.

DÁFNIS
Pede aos Deuses que Vênus te não fira
Com uma seta ou prenda-te em seus laços

A DONZELA
Pode Vênus seguir-me, acesa em ira,
Que eu de Diana abrigo-me nos braços.

DÁFNIS
Tu não lhe escaparás. Nenhuma virgem
Logra eximir-se à lânguida vertigem.
Do sentimento a que a prudência é vã:
Vê que é sina de todas as mulheres...

A DONZELA
Suporta tu seu jugo, se assim queres,
Que hei de fugir-lhe, sim, — pelo deus Pan!

DÁFNIS
Receio que te entregue ele a um marido
Menos digno...

A DONZELA
Não tenhas tal cuidado:
Bastantes pretendentes tenho tido,
Mas nenhum inda foi do meu agrado.

DÁFNIS
Pois eu venho aumentar neste momento
A lista dos que aspiram essa mão...

A DONZELA
Não quero, meu amigo: o casamento
Traz o trabalho, a dor, a obrigação...

DÁFNIS
O casamento não tem isso; — apenas a
Traz alegria e danças!

A DONZELA
E no entanto
Dizem que anda a mulher ante o marido
Tremendo à toda hora...

DÁFNIS
Não é tanto
Assim como tu dizes ter ouvido...
Pelo contrário, eu posso de dizer
Que o marido é quem vai sempre a tremer.

E aqui, que não nos ouve mais ninguém,
Pois a mulher pôde tremer de alguém?...

A DONZELA
Eu receio ter filhos... tenho medo
Das feridas cruéis que Ilítia faz!...

DÁFNIS
Diana, a quem adoras, em segredo
Diana não protege e auxilia
As mulheres de parto? Essas mulheres
Foram o que tu és...

A DONZELA
Ainda mais,
Os filhos devem engrossar um d ia
Minha bela cintura...

DÁFNIS
Se tiveres
Uns filhinhos formosos, bem-queridos,
Encantadores, fortes, — parecidos
Contigo, verás neles, ó ventura!
Renascer tua própria formosura!...

A DONZELA
Se eu consentir, que dote é que tu tens
Para o nosso casal?

DÁFNIS
Os dons de Flora:
Meus rebanhos e bosques serão teus.

A DONZELA
Jura que não te irás, depois, embora,
Deixando-me sozinha e com saudade.

DÁFNIS
Pelo deus Pan!...

A DONZELA
Terei bem preparado
O nosso quarto? Acaso tens cuidado
Na casa e nos currais? Sinto vontade...

DÁFNIS
Tudo terás. E é pensando em ti
Que os meus rebanhos apascento ali

A DONZELA
Pois bem; mas... a meu pai que hei de dizer?

DÁFNIS
Dir-lhe-ás o meu nome; e é de crer
Que o velho aprove o nosso casamento,

A DONZELA
Há nomes que nos dão contentamento,
De tão doces de ouvir: qual é o teu?

DÁFNIS
Sou de Lícidas filho e de Noméia,
Chamo-me Dáfnis.

A DONZELA
Sim, tenho ideia,
És de boa família; também eu
Não tenho que invejar tão fina casta.

DÁFNIS
És filha de Menaba, é quanto basta.

A DONZELA
Mostra-me os bosques teus casa e curral.

DÁFNIS
Ei-los... Vê como cresce com vigor
Meu esbelto e sombrio ciprestal.

A DONZELA
Minhas cabras, pastai, enquanto estou
Percorrendo os domínios do pastor...

DÁFNIS
Pastai, ó touros meus, enquanto vou
Mostrar meus bosques à gentil donzela!

A DONZELA
Sátiro!... Como é isso?... Mais cautela!
Tira esses dedos dos meus seios duros...
Que procuras aí, impertinente?...

DÁFNIS
Ora t quero mostrar-te simplesmente
Que esses pomos do céu já são maduros.

A DONZELA
Pelo deus Pan! Sossega... não insistas...
Não vês?... eu desfaleço... Desditosa!

DÁFNIS
Virgem, que é isso?... Assim, tu me contristas,
Porque tentas fugir?... És tão medrosa!...

A DONZELA
Lanças-me sobre a terra úmida e fria...
Amarrotas e manchas meus vestidos...

DÁFNIS
Olha, tu não quiseste... eu bem queria...
Mas, inda é tempo, espera: são compridos
Teus saiotes, meu bem, mas... estás vendo?
Ainda é mais longo o velo que eu estendo
Por debaixo de ti...

A DONZELA
Ai! Não, vaqueiro!...
Não desates meu cinto...

DÁFNIS
— É o primeiro
Presente que ofereço à Vênus!...

A DONZELA
Não!...
Detém-te, desgraçado!... Ouço rumor...

DÁFNIS
Nada receies... olha, doce flor,
E o meu ciprestal, que enamorado
Canta em hinos de amor nosso noivado
Aqui na solidão!...

A DONZELA
Rasgaste os meus vestidos... — Estou nua!...

DÁFNIS
Formas tão belas nunca viu a lua!...
Dou-te vestidos novos, doce amante!

A DONZELA
Sim, tu prometes tudo, neste instante...
E depois... e depois,... Sinto-me exangue!...

DÁFNIS
Dou-te alma, vida, coração e sangue!

A DONZELA
...Ó Diana! — não fiques irritada:
Bem vês, nestas montanhas desgarrada,
Por mais que em ti se tenha confiança,
Não se encontra nos ermos segurança!...

DÁFNIS
Á Vênus uma vaca, e ao Amor
Uma novilha — sacrificarei!

A DONZELA
Quando cheguei aos bosques do pastor
Era donzela: agora... que farei?!...

DÁFNIS
Não és mais virgem, mas não tenhas medo,
Porque és esposa e serás Mãe bem cedo.

Assim, doces palavras murmurando,
Foram a mocidade os dois gozando,
Beijando-se a sorrir;
E ali, unidos num furtivo leito,
Alma com alma, peito contra peito,
Sonharam... sem dormir!

Ao recolher as cabras esquecidas,
Ela voltou com as faces incendidas
E o seio palpitante...

Ele, voltando a recolher os touros,
Passava os dedos nos cabelos louros,
Feliz e triunfante!



O CÂNTICO DOS CÂNTICOS
DRAMA HEBRAICO
(Ao meu amigo Dr. Luís Antônio da Silva Santos)


ATO I
(Harém de Salomão)

CENA I
A Sulamita e as mulheres do harém.

UMA MULHER
Quem me dera que eu ficasse
De amores perdida e louca,
Contanto que assim lograsse
Um beijo da sua boca!...

CORO DAS MULHERES
Os violentos perfumes,
Acres, sutis, enervantes,
Dos teus seios palpitantes,
Causam vertigens e ciúmes...

Os teus nervosos carinhos
Matam, a todos de amores:
Tens mais aroma que as flores,
Embriagas mais que os vinhos!

O teu nome, — nós pensamos
Ouvir um hino encantado,
Vendo um óleo derramado...
Eis porque todas te amamos!

A SULAMITA
(Com enfado, faltando consigo mesma)
Vamos! eu quero, além,
Viver contigo! embora
O rei me prenda agora
Neste sombrio harém...

CORO DAS MULHERES
Formosa rival das flores,
Que embriagas como os vinhos!
— Terás os nossos carinhos,
Ouvirás sempre louvores!...

A SULAMITA
Sou trigueira, mas formosa,
— Filhas de Jerusalém!
Sem inveja de ninguém,
Eu me comparo, orgulhosa,

Aos pavilhões triunfantes
E às tendas em profusão
Que ostentam de Salomão
As riquezas deslumbrantes.

Não zombeis com ironia
Por ver minha cor morena:
É que eu andava, sem pena,
Exposta ao sol todo o dia.

Além disso, com as vizinhas
Os meus irmãos passeavam,
Enquanto a mim... me deixavam
Nos campos guardando as vinhas.

Eu mil modos empreguei
Por bem guardá-las; eu tinha
Tal intenção: mas a minha...
Ai, dela me descuidei!...



CENA II
(As mesmas e Salomão)

A SULAMITA
(Cismando)
Dize-me tu, bem-amado,
Por que lado
Conduzes os teus rebanhos,
Para que eu não vague errante,
Tão distante,
Entre pastores estranhos.

Quero ver, sempre às parelhas,
As ovelhas
Cor de espuma, dê tão brancas;
Que eu via passando, outrora,
Campo fora,
Ou a saltar nas barrancas.

Dize à tua bem-amada
Por que estrada
Te desvias da floresta,
Quando conduzes ao banho
Teu rebanho
Nas quentes horas da sesta.

Vem dizer ao meu ouvido,
Comovido,
Teus juramentos de amores,
Para que eu não vá, saudosa,
Vergonhosa,
Procurar-te entre os pastores.

UMA MULHER
Ó formosa entre as formosas!
Se és tão simples e modesta,
Vai nos campos correr lesta
Como as cabras mais fogosas.

Vai colher frutos e flores,
Expondo-te ao sol, aos ventos;
E entre ovelhas e jumentos
Enamorar os pastores!...

SALOMÃO
Bela!... Comparo-te só
Á minha égua luzida
Quando arrasta à toda a brida
Os carros de Faraó!

As tuas faces rosadas
Aos brilhos dos teus olhares
São como ao sol os colares
De pérolas agitadas.

Os contornos triunfais
Do teu pescoço comprido
Lembram-me um galho florido
Todo enleado em corais.

Formosa entre as mais formosas!
Morena — inveja das claras!
Terás as coisas mais raras
E as joias mais preciosas!...


CENA III
(A Sulamita, depois Salomão)

A SULAMITA
(Só)
Enquanto o rei no seu divã macio
Jaz sonolento,
Eu penso nele... que anda exposto ao frio,
Ao sol e ao vento.

O nardo, que perfuma os meus cabelos,
Tem seu aroma;
Os mais pastores enchem-se de zelos
Quando ele assoma!

O meu amado é para mim um ramo
De mirra; é flor!
Há de em meus seios repousar: que o amo
Com muito amor!...

É o cacho das vinhas que eu, outrora,
Longe daqui,
Colhi, cantando, ao despontar d'aurora,
Em terras de Engaddi.

SALOMÃO
(Entrando)
Como que a formosura
Dos meus desejos zomba,
— Dando ideal doçura
Ao seu olhar de pomba!

A SULAMITA
(Pensando no Pastor ausente)
Antes que meus beijos colhas,
Previno-te, ó bem-amado,
Que o nosso leito de folhas
É de flores perfumado.

SALOMÃO
Meu palácio se reveste
De arvoredos e cascatas:
Os tetos são de cipreste,
São de cedro as colunatas.

CENA IV
(A Sulamita e o Pastor)

A SULAMITA
(Cantando)
Minh’alma sabe os segredos
Que o perfume diz ao som...
Sou a rosa dos silvedos,
Sou o lírio de Saron!...

O PASTOR
(Entrando)
Como o lírio no meio dos espinhos
Assim és tu no grupo das donzelas:
Teus seios — são dois pombinhos,
Teus olhos — duas estrelas!

A SULAMITA
Como a árvore altiva da floresta
Assim és tu na roda dos pastores:
Macieira, à cuja sombra
Quero, nas horas da sesta,
Cansada de colher frutos e flores,
Dormir, deitada sobre a verde alfombra.

(Reúnem-se os amantes)
O meu amado, com mimo e arte,
Introduziu-me no seu celeiro,
Na sua adega deu-me vigor;
Sobre nós ambos seu estandarte
Flutua ovante, belo, altaneiro...
E esse estandarte — chama-se Amor!

(Ao coro das mulheres)
Dai-me uvas e frutas,
Que eu sinto o langor
Das feras, nas grutas,
Morrendo de amor!...

(Cai meio desmaiada nos braços do amante)
A sua mão esquerda ampara-me a cabeça,
Com a direita aperta ao seio os seios meus;
Ai! sinto-me morrer... Que tem que eu desfaleça,
Se desmaio de amor, feliz, nos braços seus?...

O PASTOR
(Às mulheres)
Pelas corças e gazelas
Que andam errantes além,
— Filhas de Jerusalém,
Deixei-a, mulheres belas!

Deixai-a dormir, sonhando,
Que é bom sonhar a dormir:
Quem sonha — acorda a sorrir...
E o sono dela é tão brando!

 

ATO SEGUNDO
(O mesmo harém)

CENA I

A SULAMITA
(Só, como em sonho)
É a voz dele, a voz do meu amado!
Ei-lo que vem, pulando nas montanhas,
Saltando nas colinas...
Ouço nos ares vibrações estranhas:
São as notas suaves, argentinas,
Do seu canto inspirado!

Não saltam mais ligeiros os cabritos,
Nem correm com mais ímpeto os veados,
Do que ele, quando vai, cantando, aos gritos,
Por esses descampados...

Ei-lo que vem: encosta-se à parede,
Olha pela janela,
A espreitar pelas altas grades dela,
Esgueirando-se... vede,
A ver se vê quem vive só por vê-lo!...

Como é bom desejá-lo e merecê-lo!
Que bom que é vê-lo, em plena liberdade,
Livre correr para quem quer prendê-lo...
Por presa se sentir — e por vontade!...

Ei-lo que vem, correndo, a olhar para mim,
Dizendo alegre assim:
(Imita a voz do Pastor)
— Levanta-te, formosa!
Ó minha amiga, vem!...
Já longe vai a quadra nebulosa
Das chuvas e dos ventos; já ninguém
Espera que o sol doure as penedias
Para nos dar bons-dias...

As flores já rebentam novamente
Nos galhos oscilantes,
Onde pipilam delirantemente
Leves aves de penas fulgurantes.

Brincam raios de luz nas amplidões;
Tremem fios de prata
No lago e na cascata...
É este o tempo alegre das canções!

Já as rolas arrulham no arvoredo...
Já os novos rebentos da figueira
Enrubescem ao sol;
Como é belo acordar de manhã cedo
E saltar pelos campos, de carreira,
Aos raios indecisos do arrebol!...

A vinha em flor exala o seu aroma;
Levanta-te, formosa!
Chega à janela, assoma
Ao balcão dessa casa misteriosa,
Tão cheia de grandezas e primores...
Que só me inspira zelos e temores!...

Levanta-te, formosa!
Ó minha amiga, vem!...
Minha pomba inocente e carinhosa,
Que voaste dalém,
Indo pousar no côncavo da rocha,
Dura e fria, onde a flor não desabrocha!...

Escondida no alto do rochedo,
Nos buracos das pedras aninhada,
Deixa-me ouvir a tua voz a medo
E ver teu rosto, minha bem-amada!
Pois tua voz — é um canto
E o teu rosto — o meu suave encanto! —

(Canta)
Arma o laço às raposinhas,
Arma o laço, ó caçador!
Que elas devastam as vinhas:
E eu tenho uma vinha em flor.

(Cismando)
Não sei de nada
Que mais me encante
Do que isto: a amante
Ser muito amada!...

E o meu amado é meu, é meu somente,
Como eu sou toda do meu bem amado,
Que doura o meu porvir no seu presente
Desde o nosso passado!...

Como eu gosto de vê-lo!... E como estranho
Que as mais todas não sintam meus delírios
Ao vê-lo apascentar o seu rebanho
Por entre os lírios...

Onde estás, brando sonho da minh'alma?
Onde estás, meu amor, que eu te não vejo?
Não vês que sem te ver não tenho calma?
Voa... — nas asas deste meu desejo!...

Quando as sombras caírem, vacilantes,
Do sol poente aos últimos arrancos
Volta, como os cabritos saltitantes,
Ou os enhos das corças nos barrancos.


CENA II
(A Sulamita, depois o Pastor)

A SULAMITA
Acordando, esta noite, achei-me só no leito;
Senti o coração querer saltar do peito
De medo e de ciúme... Ergui-me, alucinada,
Fui à porta, saí... “Onde está ele?” Nada...
Debalde andei à toa, errante, pelas ruas,
Ó ingrato! ninguém me deu notícias tuas!...

Estrelas, que expirais à luz da aurora...
Onde está ele, o que a minh’alma adora?

Voltei, quase sem ar; mas, ao entrar em casa,
Não pude mais (se eu tinha esta cabeça em brasa),
Desatei a chorar... Saí de novo; errante,
Fui, correndo, ao mercado, às tendas do Levante,
E às cisternas do sul... Chegando ao fim da praça,
Vejo a ronda; mas, nisso, um vulto ao longe passa.

Soldados! tende pena de quem chora...
Onde está ele, o que a minh'alma adora?

Eu perguntava assim, por ti, no mesmo instante
Em que te vi passar, meu adorado amante!...

Eras tu! eras tu! nem ninguém mais podia
Ser visto em horas tais senão só quem eu via:
Não com os olhos, não, mas com os meus sentidos
Todos num só, por ti, contigo confundidos!...

Ei-lo comigo, o que a minh'alma adora!...

Vamos à minha casa sem demora,
Antes de amanhecer, meu bem-amado!
Abraça-me! inda mais! beija-me, louco!
Olha-me... — num olhar bem demorado!
Ai! que saudade que eu sentia há pouco...
E que feliz já sou, por ser contigo!...
Anda, leva-me, vamos, vem comigo!...

Como eu me sinto bem, por ter agora
Nos braços meus o que a minh’alma adora!

Eu quero que antes que desponte o dia
Minha Mãe abençoe esta alegria
Que já transborda dos meus seios nus...
Quero que ela nos deixe, sem cuidados,
— Sozinhos, venturosos, aninhados —
No mesmo quarto onde me deu à luz!...

(Os amantes se reúnem. Aparecem as mulheres do Harém. A Sulamita desmaia nos braços do Pastor)

O PASTOR
(Às mulheres)
Pelas corças e gazelas
Que andam errantes além,
— Filhas de Jerusalém,
Deixai-a, mulheres belas!
Deixai-a dormir, sonhando,
Que é bom sonhar a dormir:
Quem sonha — acorda a sorrir...
E ô som no dela é tão brando!

 

ATO TERCEIRO
(Ruas de Jerusalém)

CENA I

CORO DE HOMENS
(Aparece ao longe o cortejo de Salomão)
O que é aquilo
Que se levanta
Em espirais da banda do deserto?...
Ah! é decerto
A coluna de fumo, ardente e santa,
Subindo em nuvens pelo ar tranquilo.

E que aromas suaves, penetrantes!...
— Boia no ar o cheiro das resinas,
Como de incenso e mirra os odorantes
Vapores sobre brasas purpurinas.



(Passa cortejo)

PRIMEIRO BURGUÊS
Eis o andor de Salomão... Garbosos,
Rodeiam-no os guerreiros vitoriosos
Do povo de Israel;
Passam todos altivos, triunfantes,
Com elmos de penachos oscilantes,
Arrastando as espadas em tropel.

Ante o sereno aspeto dos valentes,
Dessa coorte aos vivos resplendores,
As mulheres sorriem-se, contentes;
Fogem da noite os tétricos pavores.

SEGUNDO BURGUÊS
O régio palanquim foi todo feito
Das madeiras do Líbano mais raras;
E que riquezas se gastou com isso!...
Vede... que finas púrpuras no leito!
São só de prata essas colunas claras
E os balaústres são — de ouro maciço.

No fundo, entre nuvens de sedas e rosas,
Sem que ouse fitá-la de perto ninguém,
Vai—cheia de argolas e pedras custosas —
A filha mais bela de Jerusalém!

CORO DE HOMENS
(Às mulheres, que estão dentro de suas casas)
Correi, donas e donzelas,
Chegai depressa às janelas,
Para ver a bela das belas
A esposa de Salomão:
Ei-lo... em seu trono sagrado
— Com sua coroa coroado —
E o manto de ouro bordado,
Ó meigas filhas de Sião!


CENA II
(Harém)

SALOMÃO
Minha amiga, como és linda!...
— Os olhares que me lanças
São mais suaves ainda
Que os olhos das pombas mansas 

Teu cabelo, em fios solto
Da cabeça aos pés, revolto,
Quase no chão a roçar,
Lembra as cabras penduradas
Pelas íngremes quebradas
De Galaad, a pastar...

Teus dentes têm mais brancura
Do que a lã suave e pura
Das ovelhas
Que às parelhas
Saem do banho, apressadas,
Todas d'água borrifadas...

— Lanígeros singulares:
Que aumentam sempre o rebanho,
Pois têm os filhos aos pares,
E os gêmeos dum só tamanho.

Os teus beiços cor de rosa
Lembram vermelhos corais;
E a tua boca mimosa
É uma fruta cortada,
Por uma aresta afiada,
Em duas partes iguais.

A tua fala é suave
Como o gorjeio duma ave.

Não sei quem te terá posto
Romãs e rosas no rosto,
Bois se beijo — com vistas desinquietas —
Essas faces macias e cheirosas,
Penso estar a morder romãs abertas...
Penso estar a sorver pétalas de rosas!...

 Teu colo altivo, ofegante,
É o pedestal triunfante
Do torreão deslumbrante
Desse pescoço — enleado de colares,
Pescoço mais belo ainda
Que a muralha antiga e linda
Da torre de Davi, onde os heróis gloriosos
Penduravam os seus escudos vitoriosos,
Perdendo-se nos ares!...

Teus peitos duros, cheirosos,
Palpitantes, voluptuosos,
Onde parece que apenas
Pousaram duas abelhas
Na polpa, foram deixando
Essas pontinhas vermelhas;
Ai! os teus seios, criança,
Trazem-me sempre à lembrança
Duas corcinhas pequenas
Entre lírios ressonando.

Quando a sombra rolar nos descampados
E a luz crepuscular, tremeluzindo,
For as nuvens dourando...

Sairemos nós dois de braços dados,
A colina do Incenso ambos subindo
E no monte da Mirra pernoitando.


CENA III
(Noite)

SALOMÃO
És toda linda!... Também
Como tu não há ninguém.

O PASTOR
(Fora, junto da torre do serralho)
A mim, a mim, querida da minh’alma!
Desce daí — do píncaro elevado
Desse Líbano escuro... e ao meu lado
Vem ver nos ermos como a noite é calma!

A um lado o Sanir se ostenta,
Fica o Hermon sombrio além...
Vê se foges: olha, intenta
Quebrar as grades... e vem!...

Fugiremos os dois para o fim do mundo!
Desce desta montanha do leopardo...
Estás da caverna do leão no fundo...
Sem que te possa defender meu dardo!...

Olha pra mim, ao menos!...

(A Sulamita debruça-se para ele)
Arrancaste
Meu coração de dentro deste peito
No derradeiro olhar que me lançaste
Debruçada desse alto parapeito!

Minha irmã! minha esposa! minha amiga!
Teu olhar trespassou-me o coração
De forma tal, que eu já não sei que diga
Para pintar ao vivo esta paixão!...

Os teus lânguidos carinhos
Me embriagam mais que os vinhos,
Doce amor!

As tuas carnes cheirosas
São mais suaves que as rosas,
Linda flor!

Há bálsamos odorantes
Dos teus seios palpitantes
Na frescura!

Em teus lábios encarnados
Há leite e mel derramados
De mistura!...

Tuas roupas, agitadas
Quando rijo sopra o norte,
Têm o cheiro ativo e forte
Dessas resinas queimadas
Do Líbano entre a folhagem,
E que se embebem na aragem
Que a gente ao longe respira:
E para... e sorve... e aspira...
Como flores machucadas.

Às vezes eu fico mudo,
Pensativo, ansioso, triste,
Porque vejo em toda parte
Que na terra nada existe
A que eu possa comparar-te:
Pois tu vales mais que tudo!

Mas teimo, medito, insisto.
E apenas lembro-me disto:

Do jardim cheio de flores,
 Onde voa o passarinho,
Cantando ao fazer o ninho
Para esconder seus amores.

Da cisterna bem guardada,
Toda noite e todo dia,
Cheia d'água descansada,
Muito clara e sempre fria.

Duma fonte vagarosa,
Vagarosa e transparente;
Transparente e buliçosa,
Buliçosa e negligente...

Dum bosque muito entrançado.
Onde ninguém penetrasse,
E nem sequer avistasse
Do monte mais elevado
As suas sombrias grutas
E os mil ramos tentadores,
Cheios de folhas e flores,
Vergando ao peso das frutas.

Dum regato que manasse
Do Líbano, e que, de rastros,
Num lago se transformasse,
Servindo de espelho aos astros.

Isso me vem à lembrança
Ao ver teu corpo, criança!

Ah! mas como o meu desejo
Não se limita só nisto,
E nada tão belo eu vejo
Como o teu corpo, — desisto

Desse propósito louco,
E triste, sombrio, mudo,
Vejo apenas que é bem pouco,
Depois de ver-te, ver tudo!...

(Aparece Salomão, perto da Sulamita)

O PASTOR
Brisas do sul e virações do norte!
Vinde, correi, voai!... Quero que um forte
Tufão violento agite o meu jardim:
Antes que um outro sorva os seus odores,
Quero ver derramadas estas flores
Numa chuva de aromas sobre mim!...

A SULAMITA
Pois entra na tua gruta
E come da tua fruta.
(Dá-lhe um beijo)

O PASTOR
(Comigo mesmo é que luto
Por abrandar meus ardores)...
Primeiro dá-me das flores,
Depois me darás do fruto

(A Sulamita salta da janela, caindo-lhe nos braços; beijam-se)

O PASTOR
Não mais meus ímpetos domas!
— Dá-me os teus seios morenos:
Quero sorver-te os aromas,
Embora tenham venenos!...

Sonho — acordado — em teu seio,
Como é bom sonhar assim!...
O bálsamo, — respirei-o...
A mirra, — colhi-a enfim!...

Comi meu favo gostoso,
Meu vinho e leite bebi;
Oh! não se morre de gozo...
E a prova é que eu não morri!...

(Desprendendo-se dos braços da amante)
Venham agora os guerreiros!
Já posso afrontar perigos!...

(Ao coro)
Bebei, bebei, companheiros,
Embriagai-vos, amigos!...

 

ATO QUARTO
(Harém)

CENA I

A SULAMITA
(Só)
Mesmo dormindo eu velo, porque vela
Sempre o meu coração;
Quantas vezes no leito perfumado
Não ouço as falas do meu bem-amado,
Dizendo-me: — Formosa! minha bela!
Tira-me desta densa escuridão!...

Minha irmã! minha esposa! minha amiga!
Se estás dormindo, acorda, os sonhos corta...
E corre a abrir-me a porta,
Que o vento a chuva sobre mim fustiga!...

Tenho os cabelos todos ensopados
E as roupas gotejantes...

— Vens tão tarde: já cantam, vigilantes,
Os matutinos galos;
Já me despi, já tenho os pés lavados;
Hei de agora sujá-los? —

Teimoso, então, o meu querido amante
Quis abrir a janela nesse instante:
Empurrando-a, fez bulha... quando eu via
Que o ferrolho rangia,
Faltou-me o ar, — e de alegria tanta
O coração saltava-me à garganta!...

Levanto-me, dum pulo! e, por brinquedo,
Finjo opor-lhe uma leve resistência;
Do úmido ferro onde roçou meu dedo
Pingou de manso uma suave essência...

E eu recolhi a mão, no mesmo instante,
De orvalhos e de mirra gotejante.

Tomo a túnica às pressas, porque o frio
Me fazia tremer como um arbusto;
Abro a janela... e qual não foi meu susto
Ao ver-me a sós nesse lugar sombrio?!...

O meu amado desaparecera...
Tinha fugido!
E o brando som da sua voz morrera
No meu ouvido...

Perco a razão de todo:
Saio, de pés descalços sobre o lodo,
Enquanto a chuva molha-me os cabelos,
Ao vento embaraçando-se., em novelos...

Corri, alucinada, em ansiedade;
E desatei no pranto,
Pois perseguem-me os guardas da cidade,
Que me pisaram — ao tirar-me o manto!...

(Ao coro das mulheres)
Imploro-vos, suplicante,
Peço-vos, belas, insisto,
— Filhas de Jerusalém!
Se virdes o meu amante,
Dizei-lhe que a causa disto
É ele só, mais ninguém!...

Dizei-lhe que eu ando louca,
Cheia de prantos e dor!
Que ouvistes da minha boca
Estas loucuras de amor!...


CENA II

CORO DAS MULHERES
Que dotes tem esse amante,
Tão raros e tão sublimes,
Que num delírio constante
Tão viva paixão exprimes?

A SULAMITA
Olhem... a cor do seu rosto
É como a nata do leite;
Não há quem não sinta um gosto
Assim que os olhos lhe deite.

A sua cabeça é de ouro;
Os cabelos são escuros
Como o corvo. E tem de puros
Pensamentos — um tesouro.

Seus olhos são pombas mansas
Roçando n'água corrente,
Ou a voar sobre as franças
De arvoredo viridente.

Suas faces lembram rosas
Que vão se abrindo, orvalhadas;
— São frescas e perfumadas
Como as plantas mais cheirosas.

Os seus lábios, em se abrindo,
Vertem mirra; são dois lírios
Que a gente sorve, fruindo
Cheiros que causam delírios!

As suas mãos são uns aros
De ouro com pedras custosas,
Pedras de Társis, radiosas,
Como as dos anéis mais raros.

Os seus quadris opulentos
São redondos, são assim
Como as torres de marfim
Dos sagrados monumentos.

As suas pernas, iguais
Às dos deuses de mais glórias,
Lembram colunas marmóreas
Em seus áureos pedestais.

O seu aspeto formoso
É como o cedro altaneiro
Que se ostenta sobranceiro
No Líbano silencioso.

Tão belo e tão delicado
Como ele não há ninguém;
Tal é o meu bem-amado,
Filhas de Jerusalém!

O CORO
Ó formosa entre as mulheres!
É só dizer neste instante
Para que lado o teu amigo
Foi, — o teu formoso amante! —
Que nós iremos contigo
Buscá-lo, se assim o queres.

(Encontram-se os amantes)

A SULAMITA
Desceu o meu amante ao seu jardim,
No canteiro de bálsamos parou;
Seu rebanho entre os lírios dispersou
E voltou-se para mim.

O meu amado é meu, é meu somente,
Como eu sou toda do meu bem-amado,
Que doura o meu porvir no seu presente,
Desde o nosso passado!...

Como eu gosto de vê-lo!... E como estranho
Que as mais todas não sintam meus delírios
Ao vê-lo apascentar o seu rebanho
Por entre os lírios!... 



ATO QUINTO
(Harém de Salomão)

CENA I

SALOMÃO
Minha amiga! tu és linda
Como Tersa, e mais ainda
Que a bela Jerusalém!
És formosa!... Mas, também,
És terrível e bravia

Nesses teus ímpetos fortes;
E a tua cólera aterra
Como as tremendas coortes
E toda a cavalaria
Dum grande exército em guerra!

Já que te esquivas, bravia,
Resistindo a quem te afaga,
Teus olhos de mim desvia,
Que o teu olhar me embriaga!...

Teu cabelo, em fios solto,
Da cabeça aos pés revolto,
Quase no chão a roçar,
Lembra as cabras penduradas
Pelas íngremes quebradas
De Galaad, a pastar.....

Teus dentes têm mais brancura
Do que a lã suave e pura
Das ovelhas,
Que às parelhas
Saem do banho, apressadas 
Todas d'água borrifadas...

— Lanígeros singulares,
Que aumentam logo o rebanho,
Pois têm os filhos aos pares
E os gêmeos dum só tamanho.

Os teus beiços cor de rosa
Lembram vermelhos corais;
E a tua boca mimosa
É uma fruta cortada,
Por uma aresta afiada,
Em duas partes iguais.

O PASTOR
(Fora)
Sei que há lá dentro encerradas,
Neste inferno delicioso,
Umas sessenta rainhas,
Mais de oitenta concubinas,
Fora as donzelas votadas
Ao sacrifício do gozo!...

Mas a única inocente,
A única imaculada
É a minha bem amada,
O meu lírio florescente!

Alva e leve como a túnica
Com que dorme no seu leito,
É a mais bela: — é a única
Que a todos impõe respeito!...

Concubinas e donzelas,
As rainhas, todas elas,
Chamam-na a bela das belas,
A formosa sem rival!
E cheia de mimo e graça,
Prodígio da nossa raça,
Quando orgulhosa ela passa,
Rompe um coro triunfal!...


CENA II

CORO
Quem é aquela, que tem
A aurora no seu olhar,
Formosa como ninguém,
Rival do sol e do luar?

E tão linda flor da terra
É tão terrível e forte
Como a tremenda coorte
Dos exércitos em guerra!...

A SULAMITA
(À parte, voltando as costas ao coro)

Quem me mandou descer, naquele dia,
Ao pomar de nogueiras,
Indo ver se a romeira florescia
E se pendiam cachos das parreiras?...

Imprudente que fui!... Nem pressentia
Que o séquito do príncipe nessa hora
Passava estrada fora...
Quis vê-lo: e curiosa
Meti-me, na carreira,
Entre os seus carros, prendem-me: e saudosa
Eis-me aqui prisioneira!...

AS MULHERES DO HARÉM
Nuvem do céu ao sol posto,
Qual onda que vai e vem,
Sulamita! volta o rosto
Que queremos ver-te bem!

UMA DANÇARINA DO HAREM
Quem vai ver a Sulamita,
Quando pôde contemplar
O meu corpo — que palpita
Nas danças que eu sei dançar?
(Dança)

SALOMÃO
Que lindos são os teus pés
Nessas sandálias bordadas,
Filha de príncipe, que és!...

As curvas arredondadas
Dos teus quadris, meu tesouro,
São como as dum colar de ouro
Feito por hábil artista,
Como outro igual não exista.

O teu seio me recorda
Taça esférica e prismática
Que, cintilando, transborda
Doce bebida aromática.

Teu corpo, (que alucinado
Bem sei o que é, mas não digo).
Parece um feixe de trigo
Todo de lírios rodeado.

Os teus seios, ricos prêmios
Do teu amor, minha bela!_
São assim como dois gêmeos
De uma ligeira gazela.

Teu pescoço... como é bom
Vê-lo!... é a torre das campinas
Teus olhos são as piscinas
Das muralhas de Hesebom.

Teu nariz é afilado
Como o torreão que assenta
Sobre o Líbano, e se ostenta
De Damasco para o lado.

Tua cabeça é formosa
Como o Carmelo; e os cabelos
— Os grilhões dum rei — ao vê-los
Vejo púrpura sedosa.

Ah! mas que atroz crueldade!
Como fascinas e prendes
Nas horas em que te estendes
Com tanta sensualidade!...

Teu corpo é como a palmeira;
Teus seios são cachos de uvas,
Ora molhados das chuvas,
Ora rubros da soalheira.

Ao ver-te, eu disse: Pois vamos!
Embora sinta canseira,
Hei de subir à palmeira,
Hei de apanhar os seus ramos!

Encanto da vida minha!
Porque te esquivas?... Consente
Que sejam, para mim somente,
Teus seios cachos de vinha.

— A tua respiração
Suave e tranquila, cheira
Como se uma macieira
Tivesses no coração!...

Do vinho da tua boca
Deixa pingar um bocado
Neste meu lábio abrasado,
Que me abrande a sede louca!

A SULAMITA
(Persistindo na resistência)
Sou só do meu bem amado,
Sou só dele, que também
É só meu, de mais ninguém!


CENA III

A SULAMITA
(Correndo para o Pastor)
Vem, meu amado, vem!
Que eu sinto a alma de saudades cheia!
Assim que despontar a luz da aurora,
Correremos nos campos, como outrora;
E quando o sol for descambando além,
Dormiremos na aldeia!...

Vamos viver enfim nas solidões,
Onde há fios de prata
No lago e na cascata...
E é este o tempo alegre das canções!...

Já as rolas arruínam no arvoredo;
Já os novos rebentos da figueira
Enrubescem ao sol...
Como é belo acordar de manhã cedo
E sair campo fora, na carreira,
Aos raios indecisos do arrebol!...

Que bom!... Vou ficar doida de delícias!...
Vamos! mas corre, vem!...
E lá — onde não haja mais ninguém —
Lá te darei, então, minhas carícias!

Olha... o pomo do amor solta de si
Um perfume — que enerva e que conforta...
Cai o fruto e a flor à nossa porta...
Tudo eu guardo para ti!...

Ah! por que não és tu, meu bem amado,
O meu irmão, para eu poder beijar-te
E andar em toda parte
Contigo ao pé de mim, sem ser notado?...

Eu quero que hoje, vendo-te aos meus beijos,
Minha Mãe abençoe estes desejos
Que já transbordam dos meus seios nus...
Quero que ela nos deixe, sem cuidados,
— Sozinhos, satisfeitos, aninhados —
No mesmo quarto onde me deu à luz!

Das ovelhinhas mortas sobre as lãs
Tudo me ensinarás!... Devagarinho
Lá poderás beber todo o meu vinho...
La poderás comer minhas romãs!...
(Desfalece e diz ã meia voz)
A sua mão esquerda ampara-me a cabeça;
Com a direita aperta ao seio os seios meus.
Ai! sinto-me morrer... Que tem que eu desfaleça,
Se desmaio de amor, feliz, nos braços seus?...

O PASTOR
(Ao coro)
Pelas corças e gazelas
Que andam errantes além,
— Filhas de Jerusalém,
Deixai-a, mulheres belas!
Deixai-a dormir, sonhando,
Que é bom sonhar a dormir;
Quem sonha — acorda a sorrir...
E o sono dela é tão brando!


CENA IV
(Supõe-se já efetuada a jornada de Jerusalém para a aldeia)

O CORO
(Vendo a Sulamita, que o amante traz desmaiada nos braços)
Quem é essa que surge do deserto,
Sem sentidos, nos braços de quem ama?...

(Os amantes chegam à aldeia)

O PASTOR
Acorda... estamos perto
Da casa onde nasceste; vejo a rama
Das árvores da horta de teus lares...
Vê, com teus olhos, todos os lugares
Onde sempre a meu lado
Enchias de prazer nosso passado!...
 (Descansa a amante debaixo da macieira da casa materna e acorda-a)
Acordas mesmo embaixo da macieira
Aonde eu te beijei à vez primeira.

A SULAMITA
Une-me bem ao coração! — aperta
Meu seio contra o teu! passa o teu braço
Pela minha cintura!...

Ninguém nos vê... a aldeia está deserta,
Somente as aves, pelo azul do espaço,
Invejam nosso amor, nossa ventura!

Ai! — o amor é perenal e forte!
Ai! — a paixão é forte e perenal!...
O amor é poderoso como a morte,
Como o inferno é fatal!

O SÁBIO
(Aparecendo para tirar a conclusão do poema)
Sim! o amor não se apaga,
Nem sob a chuva que alaga
Toda a terra em todo o mundo;
Sim! o amor não mergulha
Na torrente que marulha
No rio mais grosso e fundo!

Ai do néscio, que pretenda
— Como coisa que se venda —
Querer comprar o amor!
O amor é dado: e é tão raro
Que, se o vendessem bem caro,
Tiravam — o seu valor!...




NOTA FINAL

Esta edição foi feita sob os auspícios de Sua Alteza Imperial, a Augusta Princesa Regente. 

Mais por uma predileção espontânea dos espíritos superiores, do que mesmo em observância às leis do atavismo, a graciosa Princesa, que na sua primeira regência redimiu os filhos das cativas e atualmente derrama lágrimas sagradas pela sorte dos foragidos do eito; aninha em seu coração de Mulher e Mãe os mesmos sentimentos altruístas de Seu Pai e nosso Mecenas, o sábio Imperador Dom Pedro II, tão magnânimo para com os homens de letras do seu vasto Império. Beijando, reconhecido, as mãos da Augusta Princesa, repito os últimos versos da poesia que consagrei à Sua Alteza Imperial, no dia de seus anos:

Ante o forte esplendor do Trono Brasileiro,
Mal ousam proclamar minhas estrofes rudes
Que herdaste de Tua Mãe Tesouros de virtudes,
Filha de um Sábio e Justo, Esposa dum Guerreiro!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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