3/07/2023

Rosas Negras (Poesia), de Luís Delfino


ROSAS NEGRAS



VÊNUS MORTA

Acabou. — De joelhos nos caminhos
Iam ficando as árvores, ao vê-la;
Ao vê-la, havia sons trepando os ninhos;
Buscavam nela os céus fugida estrela.

Não tinham para as suas mãos espinhos
As roseiras; o vale sem conhecê-la,
Se aveludava em púrpuras e arminhos,
Dizendo aos vales: — Vamos recebê-la.

É minha mágoa; foi meu pesadelo.
Amo-a assim mesmo, mesmo assim! — que importa?
Quero esse corpo frio em mim retê-lo...

Que grande dor todo universo corta...
Dor outra igual não houve entristecê-lo...
Ela morreu!... Vênus de novo é morta!...

 

VIA SMARRITA

Perdi-me, há pouco, em curvas do caminho,
E achei-me, como Dante, em selva escura,
Ante velhas sinistras de figura,
Batendo, urdindo, desdobrando linho.

Sem surpresa, o olhar delas escarninho
Furou-me, como pua o ferro fura:
Tragava a teia o antro da espessura;
Hirto fiquei ao ver-me ali sozinho...

Disse entre mim: — Que amplíssima mortalha!...
Uma megera à outra uivou: — Trabalha!
Pingava nisto o luar sutil fulgor.

Pensei: — Que morto irá naquele pano?
Elas: — Tu, e contigo, e nele ao oceano
O mundo extinto do teu grande amor.

 

A TÚNICA DE NESSUS

Quero fugir-te: fujo; —  e vais comigo:
Vais, como a sombra do meu corpo, adiante,
Atrás, ao lado, como pede o instante:
Tu me segues, mau grado, ou eu te sigo.

Arrancar o punhal não é bastante;
Isto só não me livra do perigo:
Nem o perfume à flor tirar consigo,
Nem cerrar da ferida a boca hiante.

Teu gesto embalde à cólera me atira:
Embalde rasgo em fúria os teus vestidos...
Se em teu olhar a lágrima suspira,

Ruem em meu sangue os fluidos teus diluídos...
É túnica de Nessus, Dejanira,
Este amor agarrado aos meus sentidos...

 

TERROR

Quando vejo o teu corpo doentio
Tremer, como haste branda a vento forte,
Amortalha-me um hirto calafrio,
Como se me tocasse a asa da morte.

Um pensamento lôbrego e sombrio
De alguém, que o doce e tênue fio corte
De tua vida, assalta-me; mas rio,
Pensando que hei de ter a mesma sorte.

Tu não podes descer à sepultura,
Sem que leves as horas de ventura,
Que em ti achou minha alma, um vasto arneiro.

Em teu trespasse, pois, quando tu fores,
Morram os sóis no céu, no campo as flores...
E, olha, espera, até logo, eu vou primeiro...

 

O MAL GERAL

Vou tendo horror dos homens e das coisas...
Fui colher hoje rosas à balseira,
E entre os dedos vi sangue a vez primeira:
Em vez de aromas, tuas garras pousas,

Pousas as garras, flor, de tal maneira,
Que, como fera, tu morder já ousas!
E inda o teu corpo augusto e quente cheira:
E inda beijam-te a boca as mariposas...

No ar anda um qualquer veneno oculto
Que põe na terra e céu o espanto e o enleio,
Que não dá paz ao ninho, ao lírio indulto...

Será do mal, que em tudo deu, que vejo
O andar rindo em teu riso um vago insulto,
E o ter cada olhar teu punhais no meio?!...

 

ESTRELA CADENTE

É triste sempre; — algumas vezes chora;
Zêuxis em tempo viu o ideal: revela
Na forma pura esse buril de outrora,
Que em si guardou todo o segredo dela.

Falta-lhe a calma. — Alado cão devora
Pedaços quentes da manhã mais bela,
Que em seu corpo gentil de moça alvora;
Sai dele um grito de íntima procela:

Águas, nuvens põe fora, e vento e neve...
E alga murcha do mar sobre um rochedo,
Bate-lhe um riso branco a boca breve.

Não: o naufrágio não lhe mete medo:
Mas há de alegre alguém viver, se deve,
Sendo formosa assim, morrer tão cedo?!...

 

ESTÁTUA DE MAUSOLÉU

Tem a estatura regular da Milo,
E a alma dela também: foi de bem cedo
Que a vi como Imortal; e tive medo,
Parando em frente ao tétrico sigilo.

Embalde indago e tento descobri-lo:
É mais fácil ouvir de algum penedo,
Da dor que o imobiliza, o atroz segredo:
Houve um novo mistério em tudo aquilo.

Minha esperança está desenganada:
Mulher, — seu frio orgulho nada explica;
Deusa, — tem em desprezo o ser amada.

Ao dia, à noite aí vive, aí anda, aí fica,
Como por mãos de mestre esculturada
Num mausoléu, ao tempo, estátua rica...

 

O INSTINTO DAS COISAS

Que susto!... Um grito agudo, e hirta, deforme
Precipita-se ao leito, inda fremente
Geme, convulsa, esfria; e algente... algente
Crê-se que acaba num delíquio enorme.

Se entra quem passa, e pede a alguém que informe,
Que tem ela, o que foi tão de repente?
É irritável? caprichosa? mente?
— Sim — Então não está morta; ela então dorme.

Céus e sóis lhe caíram da pupila;
Jazem as mãos ao longo em tronco extinto;
Como é mais bela, vendo-a assim tranquila!

Se ela se fosse, encantador instinto!
Com ela tudo quanto aqui cintila...
A alma de cada coisa iria... Eu sinto.

 

NOITE BRANCA

A noite branca, a noite enluarada
É tua irmã: Aonde ela dorme? Aonde?
Em que astro canta? Em que lagoa nada?
Em que pedaço azul do céu se esconde?

Em toda parte os vossos olhos ponde;
Buscai a egípcia lúbrica e estrelada:
Há quem seu ninho de águia negra sonde?
Mar infiel, em teu seio anda enterrada?

Destino, foi assim que ma fizeste:
Pairam-lhe os sóis aos pés em muda prece;
Um peplo sideral seu corpo veste.

Donde vem tanta sombra então? Parece
Que é toda luz a pérola celeste,
E é dela que em minh’alma a noite desce.

 

MORITURA

É tarde, e sopra a viração tão forte!
Vossa excelência expõe-se a algum sereno:
Além disto, está úmido o terreno,
E traz, diz o anexim, desculpa à morte.

— Obrigada, senhor; mas não se importe:
Talvez cure um veneno outro veneno.
Eu sou como o esvaído som de um treno
Que, muito antes do fim, o leva o norte.

Acabando, tomou-a a tosse rouca,
Levou ligeiramente o lenço à boca
E manchado o tirou de um sangue rubro.

Riu-se e tornou: — Não viu a boa nova?
Olhe, já ouço a enxada abrir-me a cova,
E entre as névoas da morte o sol descubro.

 

FLIRT

Vem cheio dela: — deu-lhe o seu aroma,
Encostou-se ao seu peito; os brancos dentes
Mostrou, rindo com risos inocentes:
Ele o anel da cintura aperta, e a toma:

Em torno a sala o par rodando assoma;
Fundem os dois os hálitos ardentes;
Um freme ao olor das tranças rescendentes,
Outro frui ao sentir enfim que o doma...

Então lhe digo: — Louvo-lhe a atitude;
Tê-la em meu colo assim jamais eu pude:
Pode o primeiro, que chegou, e a quer...

Chora só, não responde, e não se exalta:
Pois logo o instinto, por salvar-lhe a falta,
Esconde numa lágrima a mulher...

 

MÃOS DE LADY MACBETH

Como a Macbeth, — eu sei, as mãos manchadas
Não tens de sangue: o coração teu puro
Vai, vem; é como um pêndulo seguro;
Passam-lhe as horas calmas, sossegadas.

Mas quando beijo as palmas delicadas
Encontro aí sempre um ponto, um ponto escuro;
E minhas esperanças sepultadas
Na cova sua deixo, e o meu futuro.

Que dor profunda dentro em mim eu sinto,
Ao vê-la e ouvi-la, alheado, inquieto, absorto!
Digo-lhe então: — Tu crês, talvez, que minto?

E ri: porém com tanto desconforto
Que o riso tem a cor de um riso extinto,
E é túmulo o seu lábio, e o riso um morto...

 

NADA MAIS

Não ter saudades desses tempos? Tenho.
Davas o azul ao céu, o canto ao dia,
Rir todo em mim o riso da alegria,
Era, criança, o teu maior empenho.

Chorar em vão o que perdi não venho:
Sou como a terra sáfara e baldia,
Que não dá mais o que já deu, e cria
O erval, que a invade, inútil e ferrenho.

Passou o vento, e não achou, passando,
Mais rosais e mais pássaros na leira,
Não teve a luz mais luz do olhar teu brando.

Por que seguir-te na fugaz carreira?
Que hei de querer eu mais agora, quando
Atravessaste a minha vida inteira?

 

A MÃE DAS MÁGOAS

Parece a imagem da inocência; é vê-la
Chorosa adrede, e derramando em fráguas
Serpes de ouro de lágrimas; esmago-as:
Ressurgem: uma só não há prendê-la.

A intriga tece, sabe concebê-la:
Tem a perfídia das profundas águas;
É a mãe, que amamenta as grandes mágoas;
É a luzerna, parecendo estrela...

Ri de mim minha austera consciência,
Sei que este amor é tortuoso espinho,
Que tem em si uma letal essência.

Mas... não posso viver sem seu carinho:
Ela caiu-me dentro da existência,
Como uma vespa dentro do meu vinho...

 

PÉRFIDA COMO A VAGA

Ela é o amor, ela é a Maravilha:
Quem a vê, ouve a música de um canto;
E sente a um tempo um tal terror e espanto,
Que já não sabe mais por onde trilha.

Abraça-a a luz, que em torno lhe fervilha...
Asas baixas, a um lado, o Anjo do Pranto
Condoer-se dela ali parece entanto:
Vênus com um riso mau a olhá-lo, o humilha.

Ela, num abandono de rainha,
Lânguidamente ao céu azul caminha,
Levando aos pés o universo em queixa.

Tudo prostra num olhar voluptuoso:
Cria o desejo, e o ardor de tê-la, e o gozo...
O gozo vão de amá-la, é só que deixa.

 

QUEIXA

Mulher, confias muito em tua eternidade:
Pensas que hás de prender nas mãos a primavera,
Que as rosas da manhã durarão, que não há de
Ter para ti o tempo o rugido da fera,

Que entre as garras mutila a carne sem piedade,
E os lírios brancos do rosto gentil lacera:
Entre um beijo e um sorriso aí ruge a mortandade
Dos sonhos de ouro, que cria em nós a quimera!...

Hão de fugir de ti, como ao inverno que chega,
Em longas cordas vão fugindo as andorinhas:
Cobrirão lençóis d'água o cadáver da veiga...

E então te lembrarás das lindas canções minhas,
Cheias daquele meigo olhar da noite meiga,
E para as quais o teu olhar de sol não tinhas. 



RETRATAÇÃO

Como em incude cai e bate o camartelo,
A golpes desdobrando o fio de ouro fino,
Vênus, que, como um mestre em mármore, cinzelo
Em sonoroso verso, e em ritmo peregrino,

Eu, em cólera cega, eu hoje te revelo
O que traço, o que crio, ergo, animo e imagino:
Para mim jamais foste este sonho divino,
Não copiei jamais de ti o ideal do belo.

Para minha vingança eterna, eu quero agora
O que de grande e bom, para viver, precisas:
E enquanto dentro em mim tudo soluça e chora,

Sopre-te o céu em roda o aroma azul das brisas,
Encadeie-te o corpo aurora sobre aurora,
Sol após sol te enleie e doire o chão que pisas...

 

RECORDAÇÃO SINISTRA

Tens de arrastar silênciosamente
Por toda vida a lúgubre agonia,
E esconder a ti mesma, e a toda gente,
Da garra a mancha desse triste dia.

Numa insídia aleijaram-te a alegria...
Ri-te um sarcasmo essa visão dolente:
E mal tu pensas ir ficar contente,
Tange a hora fatal, que então tangia.

O sol ao mal as almas encadeia...
De venenosos polens se enche a esfera,
A cada passo canta uma sereia;

E é quando mais recende a primavera,
E é quando a brisa matinal gorjeia
Que o nosso coração tem fome e é fera.

 

TUDO É PASSADO

Há em mim, há em ti um desgraçado,
O que vive e não vive: em vão forcejo
Por ver durar alguma coisa; vejo
Que em relâmpagos o mundo é arrastado.

Minuto em breve raio iluminado,
Um beijo dado; — o que ficou do beijo?
O beijo não: recordação, desejo
De dar outro, que morre apenas dado.

Uma boca de sombra engole tudo;
Rumor de pranto, endechas de alegria
Vêm, já deixando em torno o espaço mudo.

Como se esvai uma hora de agonia,
O fio de ouro, ai! rompe em soído agudo,
E acaba... acaba o mais formoso dia!...

 

UM DEUS DE RASTO

Foras minha sultana favorita,
Mas em ti só eu tendo o meu serralho
Sendo de todas sempre a mais bonita,
Não me deras na escolha algum trabalho.

Em teu cálix de neve o branco orvalho
Bebera, ó lírio, que esta terra habita:
Vales os sóis da abóbada infinita,
E o pó, que pisas, para ti não valho...

Fosse eu um Lear, rei inda que louco,
Vulcano, um deus inda que coxo, a troco
Do que tenho a viver; — rei, deus, sim! eu

De rasto, humilde, curvo, ao chão bem rente,
Tu me negaras desdenhosamente
O lamber-te um dos pés, como um lebreu...

 

A VÊNUS LOURA

Essa tristeza sempre em ti me espanta!
Que tens na cinza dessa cisma toda?
Minh'alma fica ao ver-te assim mais douda,
Minh'alma, Ofélia, que chorando, canta.

Que colhe a flor a esmo, e a junta à planta
Espinhosa do campo, e corre à boda,
E vai à morte, e nos ervais enloda
A alva veste de noiva e o olhar de santa...

Por toda parte, à mão aceso facho,
Como Eudimião, Diana — a Caçadora,
Busco o que és tu, e em ti, o que és, não acho...

Que segredo em ti mora, ó Vênus Loura?
Quem me dera descer por ele abaixo...
Oh! quem dentro de ti morrendo fora...

 

ÚLTIMO ESFORÇO

Não basta o coração, a vida, o sangue dar-te;
Nem o pequeno céu oculto, que desenho:
O meu esforço todo, o meu supremo empenho,
É poder para aí ir eu só, e levar-te.

Que compaixão de mim eu tenho por amar-te:
Por me amares, que dor intensa eu por ti tenho!
Quem colhera num bosque o necessário lenho
Para queimar-me nele, e nele a ti queimar-te!

Toma este amor, entanto, ó bela criatura,
Este pedaço bom de sólida brancura,
Um resto virginal de um sol jamais servido...

Com eles veste, filha, os ombros nus da vida
E os rotos bissos da alma ingênua e combalida,
E ante a estátua da dor ergue a estátua do olvido.

 

UMA DIFICULDADE

Roja-se ao esterquilínio, assim que amarga, o pomo;
Corta-se ao galho em flor a rosa desmaiada;
Mas ao amor, que acabou, ao amor já morto, como
Se há de tirar à entranha, e arremessá-lo ao nada?

Do grão de areia a todo espaço azul, que domo
A um gesto meu, bastava, a tinha encadeada:
Por testemunho disto, alma que foste amada,
A ti, ao próprio céu, e aos sóis, e aos deuses tomo.

A ti mesma de mim é bem fácil pôr fora;
Mas do teu corpo o gosto, o saibo delicioso
Dos beijos teus de dia, e desde a noite à aurora,

Que me cobriu de um velho e áureo musgo de gozo,
Vício e luz do meu sangue enfim, como hei de agora
Arrancá-lo, sem ir o coração? — Não ouso.

 


Dizes talvez de mim: —  Quem me procura?
Que quer? num tom impaciente e rudo;
Eu busco em ti a flor da formosura;
E em como havê-la, humildemente estudo.

Vou arrastando o meu amor insano
Por maus caminhos, por urzais, e abrolhos,
Por tudo que faz dor, ou perda, ou dano.

Então meu verso espuma sobre escolhos:
Meu verso imenso como o imenso oceano,
Só refletiu o negro dos teus olhos;

Dos mundos estrelados de ventura,
Que deles vêm, iluminando tudo,
Tu só me deste a grande noite escura,
E o abismo enorme, ilimitado e mudo...

 

AO DEIXAR DE CANTAR

Para que o ouvisse toda eternidade,
Começara a lidar segunda-feira
Até domingo, em frente a ti, na leira,
Cantando tua loira mocidade,

Sem te pedir um beijo só: não há de,
Dona de tudo quanto é bom e cheira,
Alguém pedir-te coisa que não queira
Qualquer deus para si, mesmo a piedade?

Mas logo que emudeça, então, querida,
Abrirá, como um sol, uma ferida
Em ti, tardo sinal do teu afeto:

E hei de ouvir teu lamento, como o grito
Que solta o oceano a dar contra o granito,
Com que o monte lhe rasga o flanco inquieto... 



A COVA

Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro;
Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito?
É preciso que caiba um longo travesseiro,
Para dormirem face a face, e peito a peito.

Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito
Sem que nos braços meus a carregue primeiro:
Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito;
Que é muito longo sempre o sono derradeiro.

Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica,
Quero roseiras só, quero muitas roseiras;
Que ardam rosas em que seu corpo multiplica.

Que os pássaros aqui cantem horas inteiras:
Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica,
Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras.

 

MOCIDADE VELHA

Estás tão velha, ó jovem minha amada!
Quando os sonhos nos vão pela corrente
São como as folhas secas, e igualmente
Água os leva, cantando e descuidada.

Como sem cordas lira desmontada,
Oco tronco esgalhado, e já pendente,
Como sombra que deixa o sol no poente,
A nossa vida é festa abandonada.

Cada passada é numa sepultura,
Onde está podre tudo que é quimera:
Nem há mais para dar-lhe a formosura.

Não ri a primavera que nos ria.
A pedra dura é cada vez mais dura,
A terra fria é cada vez mais fria.

 

AINDA

Teve de anjos o céu um largo êxodo,
Como de quanto é bom tu tens do mundo:
E assim teu ódio anônimo e profundo
Vê na existência tudo ou vil ou doudo.

Donde és tu, verme esquálido, oriundo?
A alma branca aos teus pés caiu no lodo?
E as lágrimas, que solto, e em que te inundo,
Não são água a lavar-te o corpo todo?

Minha vida, mulher, por que não finda?
Amo-te assim: e amar-te assim devia?
Oh! tu és sempre encantadora e linda!...

És minha noite, e minha cobardia,
Noite... noite, onde encontro a luz do dia,
Luz melhor do que a luz do sol ainda!...

 

HORIZONTES AO LONGE

Quem sabe se não ‘stás ouvindo em meu semblante
Cantar o rouxinol, que só de tarde canta?
Quem sabe o que estás vendo em mim e o que te espanta?
Há muito mortos sóis sobre nós neste instante.

Mas se souberas tu o que estou vendo adiante
De mim, no rosto teu de palidez de santa!...
Ninho vazio da beleza ingênua e infante,
Quanta diferença em ti dos tempos idos... quanta!...

Horizontes ao longe... e ainda aí perto, suponho-os.
Tu eras loura e criança e andavas no colégio:
Dias de raios de ouro, e eternos céus risonhos!...

Como inclinavas séria em mim teu corpo régio,
Só para ouvir passar por cima dos meus sonhos
As Venezas de Cardi e os anjos de Correggio...

 

ESTRELA PRETA

Questão eterna, e dúvida!... — A procela
Nasce e acaba no céu; tanto mais breve,
Quanto mais forte: a violeta deve
À maior sombra o que há mais puro nela.

Esta mulher? Que sei? Não sei. — Revela
Contudo uma alma de anjo, alma de neve,
Tendo um par de asas pequenino e leve,
Como deles Murillo enchia a tela.

Um lírio é assim: é casta. — A gente pensa:
O olhar complica-a, o olhar, que lhe mistura
Nódoa quente de noite azul... e imensa...

Como a luz será ela porventura,
Que em foco dando em cheio é mais intensa...
Tem barulhos de luz de estrela escura?...

 

ABYSSUS ABYSSUM

Sei o espaço sem fim que nos separa;
Não enche todo mar seu vácuo imenso,
E o céu, que tem à abóbada suspenso
O candelabro, que só Deus plantara,

E nos braços azuis dependurara
Lâmpadas mil, que nem as contar penso;
Nosso abismo é mais fundo, e mais extenso:
Cheio de amor, maior inda ficara.

Esse, que entre nós se abre, e abaixa, e alteia,
É um pavor sinistro, que derramo
Em tudo o que nos fala e nos rodeia:

É o dever, — e, miserando, exclamo,
Por ver que o pode encher um grão de areia,
E estar sempre entre nós, mulher que eu amo...

 

DALILA

És como o mar, és como o céu, és tudo
Que se parece com o abismo, e o finge:
És formidável como a antiga esfinge;
És obra para o sonho, e para o estudo.

Às vezes cravo em ti olhar tão rudo
Como um machado, que mordendo ringe:
À lua dos astros, e o luar que o cinge,
Teu rosto é belo, ó deusa! — E não me iludo.

Preferes os Sansões, que amam chorando,
E ajoelham quando o teu olhar cintila:
Dos cílios, tens a grande sombra, orlando...

Mas... também tens, no fundo da pupila,
Uns raios fulvos, trêmulos, pingando
Sangue, que coalha em tuas mãos, Dalila!...


 

O MAL

Eu não imploro nunca aos deuses superiores:
No meu orgulho sei que rirão de piedade;
Eles conhecem bem a pobre humanidade,
E a jaula onde está preso o cão de nossas dores.

Ninguém sai de si mesmo, e sai dos seus horrores,
Somos isto: não há mudar na eternidade:
Há para nós em tudo uma cumplicidade;
Levas contigo o mal sem fim, para onde fores.

O mal, obra que acusa um grande pensamento,
O mal, que prende o céu à terra, o mar ao vento,
O mal, do qual um deus foi exímio escultor;

Que é deus mesmo, — e será? eu dentro em mim pergunto, —
Que encosta o dia à noite, e o pranto ao rir põe junto,
O mal único, o mal, que é todo o mal, — é o amor.

 

É PRECISO MORRER

O que consola a dor de amar é ser amado:
Mas ser amado só, sem dúvida ou cansaço;
Poder dormir um sono inteiro no seu braço,
Viver do leite do seu corpo perfumado.

Aquecer-se na luz do seu olhar dourado;
E não ter outro céu, e não ter outro espaço,
Senão o que ela tem, senão esse pedaço
De chão que pisa, ou chão que vem de ser pisado.

Vivi de um sonho, sei; — vivi duma quimera;
Ela não pode amar-me: ela me diz: — Espera:
Porque não quer matar-me, e não, dizer tem medo.

Mas... preciso morrer já de qualquer maneira,
À sombra dela, como a da mancenilheira,
Ou esmagado sob o seu divino dedo...

 


DESFORÇO

Ir degrau a degrau para a esperança,
Chegar ao fim da longa escadaria,
E escondida detrás da luz do dia
Ver e ouvir rir de nós alguém... Criança,

Por que tu fazes isto? Tudo cansa:
A pedra quente pelo sol esfria,
Quando o sol todo céu, que ele alumia,
Num véu vermiculado de ouros lança...

Serás sempre a visão radiosa e bela
Que eu tenho ao pé de mim contente agora?
Olha, o orgulho do amor o amor debela.

A manhã da existência é linda: embora...
Passa; verás: — e então irá com ela
Meu mal cantando após mais nova aurora...

 

A DOR ACOMPANHANDO

É a vida real um charco infecto,
Uma lagoa pútrida e medonha,
Onde não há ninguém, que os pés lá ponha,
Que não sinta atacá-lo oculto inseto.

Forma-se às vezes o gentil projeto
De ir-se um dia a outro céu, com que se sonha,
E na esperança, embarcação risonha,
Das azuis regiões faz-se o trajeto.

Mas vai o corpo em chagas descosido,
Por venenosos vermes lacerado,
Vermes, que só nos deixam, quando enchido

Longo fio de anéis, de sangue inchado:
E no país do sonho estremecido
Guardam-se as dores do país deixado...

 

A ESPERANÇA

Quanta fadiga custa-nos a vida!
Vivemos entre túmulos; vivemos
Num largo mar, em barca ao som de remos
Fechando e abrindo o leque na corrida.

A onda é mansa, a onda é desabrida,
E incerta a praia branca, onde aportemos:
Mas... a que vamos? mas... o que queremos?
Nos chama ao longe alguma voz querida?

Vem talvez lá dos píncaros do monte,
Onde canta a visão de loura trança?
É vapor... voa... foge do horizonte.

Quem olha ao largo outra visão alcança,
Visão formosa!... chega-se defronte,
É nuvem... nuvem... nuvem da esperança...

 

O FIM

Endechas de calhandra à luz da aurora,
Feixes de ouro a tinir por sombra atados,
Que iam rolando por vergeis em fora:

Raios de sóis de amor na chã deixados,
Mortos, e ainda quentes muito embora;
Choros de riso aos lábios pendurados;

Existência, que em horas foi diluída;
Taça, em que resta o aroma, mas vazia:
Cadáveres de instantes da alegria,
De rosas negras, sem olor, cingida...

O que recorda a festa da partida,
Treno surdo, que chega ao fim do dia
Sem mais alva, e mais outra cotovia...
Sabeis... que é isto, ó náufragos da vida?...

 

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SERTANEJAS
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O CARREIRO

Desde a alva anda o carreiro a trabalhar cantando,
Chapéu de palha à orelha, alta a aguilhada, e ao lado,
Roupa branca da terra, um cinturão floreado,
Ao mugir de dois bois, que vão a passo brando:

O braço livre à canga, ele os conduz: o arado
Corta a leiva, abre o sulco, avança, freme, ondeando,
Tece o ninho ao trigal; envolve-o aéreo bando,
E ouve um flavo rumor de luz batendo o prado.

Pensa. — As bocas, que rasga, um fogo intenso engolem,
Fogo que coalha em vivo, em palpitante pólen!...
Chia-lhe o ouvido. — Para; e, as mãos pondo às ilhargas,

Sorri-se ao imaginar que cai tanto pó de ouro
Da transparência azul das asas de um besouro,
Largas, como a campina... e inda talvez mais largas!...

 

À HORA DO ALMOÇO

Pelo sapé furado da palhoça
Milhões de astros agarram-se luzindo;
O pai, há muito, madrugou na roça:
A mãe prepara o almoço. — O sol é lindo.

Canta a cigarra; o porco cheira; engrossa
O fumo dos tições; — anda zunindo
À porta um maribondo; e fazem troça
As crianças com um ramo o perseguindo.

Correm, chilram, vozeiam, tropeçando
Num velho pote; — a mãe, zangada, ralha,
A avó lhes lança o olhar inquieto e brando.

No chão um galo ajunta o milho e o espalha,
Enquanto a um canto, as penas arrufando,
Põe a galinha num jacá de palha.

 

O NINHO

O moleque abre a boca enorme, e uns dentes
Brancos, como os marfins que há em Ceilão,
Mostra dentro de uns beiços salientes;
O corpo é magro; a roupa de algodão.

Segue-o um menino de olhos reluzentes,
Com ares de senhor, e pés no chão,
E ambos esperam trêmulos, silentes,
Outro que desce — e já lhes mostra a mão.

Saltam de laranjeira sacudida
Orvalho e flores brancas desfolhadas,
Em torno dessa troça ali reunida.

Um ninho! clamam!... Súbito a risadas
Partem os três... e a luz desinsofrida
Parte atrás deles rindo a gargalhadas.

 


A PINGUELA

Há muito a chuva cai torrencial: o rio
Ruge, e levanta o colo engrossado à barranca,
Toma agora o caminho, enche agora o desvio,
E põe aos ombros os velhos troncos, que arranca.

Tem largas convulsões histéricas de frio
A mata, aos verdes pés brame-lhe a espuma branca;
Tudo empolga a torrente: uma passagem franca
Tem contudo este abismo indômito e sombrio:

É a pinguela: um tronco estreito atravessado
Sobre a água: o sertanejo afaga o companheiro,
Belo animal que monta, e o despe, e o lança a nado;

Cantando, e a pé viril, de um velho fauno herdeiro,
Com o selim que sobraça, e a coma ao vento irado,
Pisa-o como se fosse um sólido carreiro...

 

A SAÍDA

O galo canta: o ar, que freme, é quente:
Desce ruflando pelo vale o vento;
Há no horizonte os rolos de uma enchente
Do mar, que invade e doira o firmamento.

Toca a sineta; vem saindo a gente
Da senzala, num jorro sonolento:
Depois da reza, a passo tardo e lento,
Enxada ao ombro, dois a dois em frente,

Ao eito vão pelo carreiro aberto:
O mato cheira, rumorejam ninhos
No cafezal, de branca flor coberto...

Há um grande chilrar de passarinhos...
E enquanto o escravo vai... segue-o de perto
A risada da luz pelos caminhos...

 

O JANTAR

Põe-se a mesa, isto é, deita-se a esteira
De tábua no chão batido: os pratos
De louça em roda; e a grande farinheira
De cuité cheia... A ondulação dos matos,

O acre perfume da floresta inteira,
A orquestra, a voz dos trêmulos regatos,
E um galho em flor de secular mangueira
Cobrem a mesa, — comensais exatos. —

Enrolada na nuca a negra coma,
A mãe com a panela às mãos assoma,
Zangada e alegre; o pai entra com um filho;

Os outros correm... grupam-se: a soslaio
O velhaco do sol, a rir, com um raio
Seu lambe o pó do lourejante milho...

 

NO BOSQUE

Uma bromélia colossal; um quiosque;
Quatro janelas; — uma só aberta,
De trepadeiras a florir coberta;
Crê-se que a casa continua o bosque.

Quando do ferro a trepa desenrosque
Os cem braços gentis, nos quais o aperta,
Já talvez seja a casa então deserta,
E hera nova também seu flanco enrosque.

Inda hoje para vê-la à mata corro...
E à sombra úmida e larga da mangueira,
Na água em madeixa, que entra em um tanque a jorro,

Ela as mãos molha e folga a tarde inteira...
E ali, noite que espera um astro, eu morro:
E ela vive, a calhandra da balseira...

 

REVOLUÇÃO NA FLORESTA

E é que estão vivos!... Fala-me a floresta;
E a água, que os pés desnus em flores lava:
Mas... nada desse humor com que eu contava!...
Sombras, nem vós? — Rochas, nem vós? — E esta!...

Brandiu-me um tronco um galho, e, zás... na testa!...
O rubro fruto da miuçalha brava
A vista em sangue em mim raivando crava!
O outro dia era tudo um grito em festa...

Em estar mal com vocês eu nada ganho;
Prefiro em cada cara um gesto amigo;
Gentes, não há um crime assim tamanho...

Eu vos entendo, e vosso espanto sigo
Em cada verde olhar, que em vós apanho,
Paz! que ela vem: não sois seu templo antigo?!...

 

AINDA PELA MONTANHA

Quero que tu nesta montanha gozes
De um retiro, que visto ida não tinhas:
Ali há um vale, e há uma gruta... adivinhas:
É o sítio augusto das metamorfoses.

Não sai como um ferver de surdas vozes
Por onde pões os pés, quando caminhas?
Fazem coisas (que horror!) estas florinhas...
Não têm vergonha estes moitais ferozes...

Arregaçam a túnica sem pejo:
Ais... pequeninos ais... beijo e mais beijo!...
E este motim é desde a madrugada.

Pã... não vês a correr? não vens de ouvi-lo?
Ora... vai indo, não é nada aquilo:
É atrás de um gemido uma risada...

 

A PRIMAVERA

A hora, que chega, vê que é tempo, e deixa
A solta a mata, filha predileta:
E logo o verde rolo da madeixa
Desata ao vento, que ela aspira inquieta.

No vento um silfo oculto o afago enceta,
Ninhos e aromas, que nas mãos enfeixa,
Põe-lhe no seio e trança: a pobre é queixa,
Queixa em cio, como alma azul de poeta.

Toda carícia, ardor, canções, perfume,
Geme de gozo, como se a beijasse
Boca cheia de beijos de algum nume.

E a erguer-se na alva a arfar, se crê que nasce
Noiva tímida ao sol, e ante o seu lume
Nua, em flores e renda esconde a face...

 

DOLOR

Nas manhãs largas de Janeiro passo
Às vezes triste pelo campo em fora:
Por que há mais brilho no esplendor da aurora?
Por que cantam mais pássaros no espaço?

Ela ao meu lado, então lhe aperto o braço:
E agora inquieto, e mais irado agora,
Sinto que um fogo interno me devora,
E ouço um rir de ironia a cada passo.

Fala-lhe o lírio, as mãos beija-lhe a rosa;
O sol a envolve, e eu sei que é de justiça,
Numa grande arcaria luminosa.

E vendo a luz... a própria luz submissa,
Ela da mágoa dos meus zelos goza,
E eu sofro a dor de tudo que a cobiça.

 

ÉDEN

Olha, o momento é curto, e esvai-se de repente;
Neste trabalho audaz, nesta eviterna luta,
Ou é logo apanhá-lo, audaciosamente,
Ou perdê-lo na mó da natureza bruta.

Não o deixar, ser pronto, agarrar o presente,
E em cima de um gramado, ou dentro de uma gruta
Escondê-lo e fruí-lo, o tempo nos escuta,
E quem goza, e é feliz, vê-lo ir indo não sente.

Ris: stás pálida, e enfim me perguntas: — que fazes?
Nosso leito estrelado embaixo entre os lilases,
Éden novo, que nuns palmos de relva traço,

Enquanto em derredor de ti cantam as flores...
Quero só estar contigo, ir só onde tu fores,
Silfos ao pé de nós; deuses, sóis pelo espaço... 



BIANCA

São dez: vai alto o sol: a sombra é quente;
Dobra em pálio a mangueira a copa imensa;
— Senta-te um pouco; estás cansada: — pensa.
— Em quê? — Bem sabes no que pensa a gente.

Gostas de ouvir os trilos da corrente?
Um fio de água é bom na mata densa:
O ar... Não fujas... — Olha: é voz, é crença,
Que o bosque, o cheiro... este acre cheiro ardente...

(Jamais hauri-lo só contigo pude!...)
Quem sabe, diz que tem uma virtude,
Que é como um vinho azul, bebe-se bem.

— Por que taça? — Ora! a taça é boca e boca...
Mas isto agora assim de chofre, louca?...
Ó Bianca! Bianca! que não venha alguém...

 

PAVOROSA ILUSÃO

— Há qualquer coisa que este campo iguale?
De logo abrange-o todo em quadro a vista;
O monte azul não deita o pé no vale;
E aqui à caça não se perde a pista.

Onde há de amor, que mais sentido fale,
Que neste verde escrínio embalde exista?
Raio de luz de um céu cor de ametista
Não tem sombra melhor, que o esconda e o embale.

Único és triste em toda a veiga: eu sinto...
— Sim! triste, sim!... mas não por ti somente,
Por mim o sou também: no labirinto,

Em que tu vais e eu vou, — inconsciente
Tu mentes sempre, e inconsciente eu minto...
Ou é Deus... Deus então, que em tudo mente?!...

 

UMA CONFISSÃO

Que eu não pensava em ti? Quem dizer ousa?
Queres saber que fiz pelo caminho?
Em doidas voltas uma mariposa
Seguia a companheira: ao vento um ninho

Caiu piando: saltei a água, que pousa
Por entre o jarro, o lírio, e o rosmaninho:
Cada flor me falou de ti baixinho;
E o céu não me falava doutra coisa.

Levava à boca o acre perfume e a nota
Do último beijo; o cheiro do teu seio,
E o de erva ali por nós pisado à grota,

Onde rasto deixara alguém, que veio
Breve noite de amor já tão remota...
Deuses?... não sei quem foi, dormir, —  eu creio...

 

FRUTA SILVESTRE

Mas... como a fruta assim madura cheira!...
Do Éden pisou-se a rútila soleira,
— Larga esmeralda; — estava aqui conosco

A natureza, a cega companheira:
Cantava o rio, o pássaro, a balseira...
Para nós era a pedra um fulcro tosco.

E o nosso sangue ali também gorjeava:
Tapava um riso as voltas do caminho;
A luz das franças pelo cimo espiava,
E do ar nos via o odor do rosmaninho...

Eu nos braços em círculo a apertava:
Ela caía um pouco em desalinho...
Eu a beijava e ela me beijava...
A selva toda parecia um ninho.

 

ACASO NA ESPESSURA

Achei-me só com ela na espessura:
Como? não sei. — Quisemos conhecê-los,
Os cantos todos desse bosque; vê-los,
Como quem outra coisa não procura.

Como polido a tórculo, vidrento,
Transparente, lustroso, o azul profundo
Estava em cima de nós nesse momento.

De um largo beijo rápido a circundo;
Não era um gozo já, era um tormento;
E era o céu aos meus pés, não era o mundo.

Como esmagado sob essa ventura,
Eu me escondia atrás dos seus cabelos:
Deus, dos felizes, tem por certo zelos,
Pois que tudo que é bom tão pouco dura!...

 

O CRIME DA PRIMAVERA

Vamos depressa, que arde tudo; vamos:
Lá funambula saturnal tremenda;
Haja somente ali quem os entenda,
Que há de ouvir os tiés e os gaturamos

Sob os arcos, que alonga o bosque em tenda,
Vaiando a dança e os ósculos dos ramos;
Cobrem mesmo da moita a verde renda
Largos idílios de répteis, que odiamos.

O campo é um vasto leito de noivado:
Fala-se baixo, o riso é soluçado,
A voz das coisas trêmula e queixosa.

Do conúbio a açucena melindrosa
Vai da açucena dar um céu ao prado;
Quantas rosas vão vir de uma só rosa!

 

EM FUGA À SERRA

Gostas mais de estar lá, bem sei; confessa.
Aqui a gente deita-se e desperta
Grande o céu, preso ao monte, por coberta...
E há em tudo um bom cheiro e em ti começa.

Mas só uns dias? hein?... Foi vir com pressa!
Sem ti como a cidade está deserta!...
É isto a sala, que encontrando aberta,
Fugindo ao frio, um pássaro atravessa.

Cansava fora o vento, que farfalha,
Silvava, como um dia de batalha,
Ou como ronca o mar nas praias dando...

Nem pestaneja a luz, que ela dormia:
E por seu quarto, a medo, a andar, se ouvia
Só a voz calma do seu sono arfando.

 

PASSEIO MATINAL

Como és formosa em frente da alvorada
Trepando as altas serras pedregosas:
Tu tens a idade dela, e estás coroada,
Como ela está, de lírios e de rosas.

Um pajem pronto; a égua aparelhada;
Vais ser a luz das veigas deleitosas:
Montas no meio de uma revoada
De sons de agrestes frautas ramalhosas.

Um fio de água esfuma-se distante,
Cinde a montanha: o céu vidrado cheira,
Céu que a Boêmia poliu em rocha iriante.

Por ver-te, parte em grita a cachoeira,
E da floresta espiam-te o semblante
Titãs em grupo, faunos da carreira...

 

ENTRADA NA FLORESTA

Há uma nódoa branca na verdura:
Um novo aroma bom a seiva exala:
Troncos, de pé!... Quem vai, quem vai buscá-la?
Honra-vos, bosque, a sua formosura!

Ei-la aí. — Esta mata ou treme ou fala:
Tem cada galho um êxtase; ternura
A sombra; o sol ebria-se a fitá-la,
Num voluptuoso espasmo de ventura.

Traçam-lhe um ninho os pássaros; de esguelha
Olha-a um fauno; enche-a a luz de pedrarias;
O ar a oscula, a aquece, a faz vermelha.

Metem-se em liquens de ouro as penedias;
Para ouvi-la, o grotão lhe estende a orelha;
Cantam, para embalá-la, as ramarias. 



CIÊNCIA DA VIDA

Por este vale aí fora, entre o silvedo,
Entre os tortuosos troncos da floresta,
Sob esta sombra grossa, que se presta
Às carícias de amor, vai ter sem medo...

Toda esta gente a reconhece, e em festa
Anda tudo; anda alegre, anda em folguedo:
Uns olhos brancos buscam-na com cedo,
Querem-na uns olhos rubros vê-la à sesta...

Há querela e rumor nalguns lugares:
Aos ramos prendem verdes rumorejos,
E arcarias de luz da cor dos mares.

Ei-la que chega: engrossam-se os desejos...
Mas não há nada mais no chão, nos ares...
Não lhes dá nada mais a não ser beijos...

 

INTERRUPTED PARADISE

Olha aqui neste vale, aqui à beira
Desta corrente, aqui nesta frescura,
Aonde a água, que canta, e a grama fura,
Rebola em brocadilhos de ouro e cheira.

Sentemo-nos. — Que história! — A vez primeira
Que o acaso aqui nos trouxe, a pedra dura
Embrulhamos em ostros de ventura:
Lembras-te bem, não é? de que maneira?...

Hoje? — Os deuses não querem. — Lenhadores
Vêm por atalhos; rindo há perto gente:
E um rubro aroma, e uns beijos procriadores

Mexem folhas, que acende um pólen quente;
E a abundância dos ninhos e das flores
É contra nós inconscientemente...

 

IDÍLIOS MATINAIS

... sunt numina amanti...

TIBULLO — ELEGIA

I – EMBAIXO
Vem. — Entremos por estas alamedas,
Onde a aurora amolece a treva a custo:
Leva-te o corpo um furacão de sedas,
Que vão cantando e zombam do teu susto.

Sim!... teu palor — é cedo, há frio — é justo.
O mais... Vê bem: as árvores estão quedas,
Só as aves, que saltam das veredas,
Dão um gesto ardiloso a cada arbusto.

Daqui a instante, ali na volta, um manto
De luz verás cobrir o sonorento
Rio, a artística ponte, o espaço; a um canto,

À esquerda, ao sol, num seixo, inculto assento
Terás, enquanto o ar te aroma, enquanto
Rola em teus olhos rindo o firmamento!...

II – EM CIMA
Olha além, para cima do penedo:
Vês a linha que vai fazendo o fumo,
Nodoando a luz, riscando o ambiente a prumo?
Saibamos quem madruga ali tão cedo.

Ora!... não digas não... não tenhas medo;
Pelas pisadas acharemos rumo:
Há qualquer trilho oculto entre o arvoredo...
Vamos subir... subamos, em resumo.

Embora traço algum recente o indique,
É irmos: o teu braço ao meu apoia,
Não penses tu que o sol te prejudique;

E enquanto eu vou mostrar-te aquela joia
Feita de palha e quatro paus a pique,
Mostra em ti um retrato em pé de Goya.

 

PRIMEIRA AUDÁCIA

De muitas vozes abafado grito;
Labor no campo ao longe: — na antessala
A mãe está como estátua de granito;
E, como estátua, é gesto só, não fala.

Eu converso: — Este céu como é bonito!
Que branco aroma o cafezal exala!
Enquanto um galho ali colhido agito
Contra vespa, que vai, vem, a azoiná-la.

A filha olha o ondulado espaço imenso
Brandindo o leque, quando o inseto vinha:
Cismo então: mas que cismo, e sinto, e penso?

Se um instante a pudesse ter sozinho!...
E nisto o vento ao chão lhe pondo o lenço,
Beijei-lhe, erguendo-o, a mão que nele tinha...

 

O PÁSSARO AZUL

Tem-se o pássaro azul por alva, em antes
Do sol romper, um pouco escuro, cedo,
A erva orvalhada, os galhos ressonantes,
Sombra mais doce em torno de arvoredo;

As choças mudas, os moitais distantes
Na névoa; fora as pontas do penedo;
Morta de frio, a estrela dos amantes
Deve inda estar no céu molhado e quedo.

Hemos passar o rio, e além da ponte
Descer, ladear o pasto, e ir ter ao monte:
Nós sós, vê bem, nós sós pelo caminho.

Sê, como a aurora, a tua irmã, exata:
Fico ao telheiro, ouvindo arfar a mata,
E a água roncando em roda do moinho...

 

PACIFICAÇÃO

Ei-la aqui está... Vês... como tudo muda?
Não há no bosque mais conspiradores:
E cada tronco perfilando, ao pores
Os pés no chão, em curva nos saúda...

Estuda tudo, árvore, e rocha; estuda
O rio, o musgo, o ninho, o aroma, as flores:
Nota a atitude ao vale, o gesto às cores,
E os verdes gritos da canalha miúda...

Ouve o pássaro, o inseto, o odor: repara
Num ar bondoso, com que a pedra escuta
A alma das coisas, e a alegria rara

Da lágrima chorada, há pouco enxuta...
Entra a selva: eis o templo, ó deusa, e em ara
Brilha a arcada em festões, mais longe a gruta.

 

A GRANDE BÊNÇÃO

Mesmo o que vive em funda escuridade,
Ruge, morde, envenena, —  uma hora alcanças
Em que é formoso, e aroma de bondade
O ar em torno, cheio de esperanças.

O dilúvio de amor, que tudo invade,
Põe manso o tigre ao pé das pombas mansas:
E um lírio agarra noutro, e ao tom das danças
Lá roda o beijo numa tempestade...

Beijos que vão, que vêm nuns ais lascivos,
Queixas de gozo ou dor dos seres vivos,
Que as dizem só mais alto as bocas doudas:

E esse conúbio em plena primavera
Era como uma grande bênção, era
Como uma longa paz nas almas todas...

 

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ERGÁSTULOS
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AOS VENÂNCIOS

Perguntaram: —  Quem é? —  quando ia percorrendo
A descuido e sem fim qualquer sítio agradável;
E respondeu um pobre eunuco detestável:
—  Um monstro. —  E ouvi-o, sem parar, não me detendo.

Mirou-se na minh'alma o réptil, se revendo
No mais puro cristal; pareceu-lhe provável
Ser o próprio cristal o verme, o miserável,
O caluniador infame, a serpe se estorcendo.

E eu passava levando em mim o firmamento,
O ideal do bem, o azul do dever, a harmonia
Dos Édens a florir, que acaricia um vento

Vindo da exalação dos deuses: que eu podia,
Dentro em nimbo estrelar, na paz do meu contento,
Senão deixá-lo roer sua imunda alegria?...

 

VÍBORA

Baba, víbora esquálida e medonha,
Triste réptil sem pejo e amor e crenças:
Transponho, enquanto escorre-te a peçonha,
Curvas, em capitéis de ouro suspensas.

Vou, — águia, onde não vais, nem, — céu, ir pensas.
Serena, como quem ou cisma ou sonha,
Furtando o casto rosto às trevas densas,
Ala-se a Musa acesa de vergonha;

Quem afrontá-la, quem feri-la pode,
Quando atrelando dois leões à ode
Sobe inda além das regiões eternas?

Fogem-lhe em grupo os sóis, como centelhas;
Rugem-lhe atrás constelações vermelhas,
Entrando as ígneas fauces das cavernas...

 

MISERRIMUS

Quem no tempo, que enverga as asas, não procura
Trabalho, que enaltece a alma humana e avigora,
Não acha, como achei, na terra essa ventura,
Que é meu crime, e só tu, e mais ninguém deplora.

Dizes que sou feliz, e irrita-te e apavora
Do pó teu ver-me em pé numa nuvem da altura,
Sem te lembrar que já nuns dias de amargura,
Ao dorso ergui-te, anão, como o faria agora.

Não tens tido esse orgulho indômito de moço,
Que não para, inda mesmo uma batalha ganha,
Cuja existência é toda ânsia, audácia, alvoroço:

Teu ódio eterno em vão de rastos me acompanha:
Serei eu, por acaso, aí qualquer colosso?
Terei o aspecto assim, que impõe, duma montanha?!

 

O CASTIGO DO ÓDIO

Deste malvado o leão éreo em brasa, o tormento
Do ecúleo, que o espedaça, o hediondo pesadelo,
Que o arrasta ao esgoto, à unha amarrado o cabelo,
Como folha que joga em redemoinho o vento;

A serpente, que o enrosca, e o torce num novelo,
Cuspindo-lhe na boca um visgo peçonhento;
Que às órbitas lhe arranca os dois olhos, num zelo,
Num luxo de quem quer pungir a fogo lento;

Essa dança macabra, onde ulula a tortura,
Onde o crime flagela o crime, e em horrendo bródio
A própria infâmia em si açoita a vil criatura:

É ver que há para o bom sempre um anjo custódio,
Que lhe anda a rir em torno a festa da ventura,
Enquanto, à alma agarrado, o rói um verme —  o ódio.

 

SUMMUM IUS

Non far tregua coi vili.

A. MANZONI

Não há desprezo para ti bastante!
Ninguém te dera a pena que imagino!
Nem a Torre, onde à fome inda Ugolino
Se ouve rugir tremendamente em Dante.

Maior....maior tormento eu te destino
Do que te ouvir a carne crepitante
Chiar ao fogo, e o teu uivar ferino
Terra e céu arranhando, instante a instante.

Maior... que as serpes sobre Laocoonte,
Nas escamas de bronze o retalhando,
Tendo os filhos entre elas fronte a fronte...

Maior... Outro qualquer castigo é brando.
Eu, como um deus, não te encadeio a um monte:
Eu te amarro a ti mesmo, é miserando!...

 

A UM MISERÁVEL

Nunca vendi a minha pena honesta,
Bufarinheiro de um jornal corrupto:
Onde o sol anda a rir de festa em festa,
Onde há luz a cantar, trabalho e luto.

Quem toma o nome e a máscara de um bruto,
Mais qualquer coisa inda a perder lhe resta?
Melhor fora, tremendo e resoluto,
Ser um ladrão que a larga estrada infesta,

Ou no oceano da vida tresmalhado,
Correndo mar e mar, audaz corsário;
Ser um herói do crime, enorme, odiado,

Mas um herói!... E tu, por vil salário,
Queres roubar-me do meu nome honrado,
Sem que enchas de ouro teu vazio erário?!...
 


AOS VERMES

Tendes também espaço no horizonte,
Vermes, que o eterno sol redoira e anima;
Dou-vos asas, subi: à minha fronte
Que sombra escassa e vã lançais por cima!...

Eu ato, quando quero, o vale ao monte,
O Olimpo ao céu, e o deus que a musa íntima:
E estrela a estrela amarro, e lanço a ponte,
Em que anda o grupo harmônico da rima.

É um coche de pérola o soneto:
E quando dentro dele os mundos meto,
A estrofe ala-se, e canta, e canta, e o tira.

No caminho saúdam-no as Quimeras:
E ao vê-lo, a um tempo, calam-se as Esferas,
Aos seios de ouro atravessando a lira.

 

A ESMOLA

Veio alguém orgulhoso e irado, e entanto
A obsecrar-me um óbolo mesquinho:
— Onde buscara a flor, achara o espinho;
Foi-lhe o prazer longínquos sons de um canto:

Ia após ele, e ele fugia tanto
Que nunca o teve à mão, em seu caminho;
Deu-lhe Deus dor, e o horror do esposo, — ó pranto, —
Dando ao pássaro céus, grãos, bosque e ninho.

Há tanta gente por aí ditosa,
Que sabe rir, que ri quando trabalha:
Que quanto mais trabalha inda mais goza.

Ganham dia por dia uma batalha... —
Mas de qualquer aparição radiosa
Era o seu ódio a esquálida mortalha...

 

HIPÓTESE

Se me levas à boca a taça da aventura
Só por ver onde vai minha credulidade:
Se é convite falaz que em teu olhar fulgura,
Há gazua em teu riso, e em ti perversidade.

Mas eu hei de sair da minha sepultura,
Inda morto, inda tarde ouvirás a verdade:
E empoeirando de medo a tua formosura,
Medirei pela tua a minha crueldade.

Eu te direi: — Ninguém turva embalde uma vida;
És da festa, que acaba, a sobra corrompida;
És a úlcera, e dela, o rubro incêndio, e o horror.

Sombra, o teu infortúnio é grande, é sem remédio;
Teu passado é remorso, o teu futuro é tédio;
És o espectro do beijo, és o espectro do amor....

 

A COMÉDIA DUCAL

Quando da raça torpe e envilecida
Ouço o ruído atravessando os mares,
E, no olvido das lutas seculares,
Que os velhos reis levaram de vencida,

Batem palmas a um louco, e dão guarida
A um senhor, que os jungir tenta em seus lares...
Grito humilhado, pondo as mãos nos ares:
— Oh! quem pudera vomitar a vida...

Deusa, que trajas túnica de linho,
Se há quem na terra dos Dantões te afronte,
Abra as asas azuis, põe-te a caminho:

Tens nesta pátria amplíssimo horizonte,
Em cada grão de areia achas um ninho,
Achas um coração em cada monte....

 

SEGUNDA CONFIRMAÇÃO DO INFERNO

Davam-lhe os olhos vesga expressão de bandido;
Basta, grisalha coma, emaranha-lhe a testa;
Um riso mau, desleal, a negra boca infesta;
Andam maldade, inveja, ódio em cada sentido.

Nadava em fezes ruins; e ouvia-se o estampido
Irromper-lhe da voz, que enquanto chega, cresta:
—A luz é negra; o sol é mais negro, e não presta. —
É da cloaca, onde habita, o fétido rugido.

Levando inda a direita o laureado poeta,
Dante passando ao rés dessa lagoa infecta,
Disse-lhe: —  Ó infeliz, é o teu mal eterno!

Tinha no olhar Virgílio a indignação sublime:
Rosnava o monstro: —  Eu amo o crime pelo crime. —
Dante voltou-lhe o dorso, e disse: —  Estás bem no Inferno...

 

EL GRAN GALEOTO

Estalou-te na cara, um dia, a bofetada
Da mão do amigo sério; um látego nojento
Mordeu-lhe o corpo todo, e em sangue a lacerada
Carne pendeu do torso, e balançou-a o vento.

A soluçar rugiste, e o rosto macilento
Escondeu pela barba insonte e arrepiada
A lágrima da dor; como a um ser odiento
Viu-se fugir de ti a terra amedrontada.

Onde a plebe urra, e dança, e sangra ao pugilato,
Ergueram alto um poste infame ao teu retrato,
Que oscilou aos baldões, aos sóis, às chuvas, nu.

E a calúnia somente, ó Mestre, apunhalou-te!...
E, como vens, como um bandido atrás da noite,
Golpear, ferir também, à sombra dela, tu?...

 

CROMWELL

Vejo-o às vezes passar, como em sinistro drama,
Como a sombra dos reis que Macbeth evoca,
Esse vulto de herói, vermelho, como a chama,
Mole, como o oceano, e duro, como a roca...

Sobe agora, e a cabeça estrelada o céu toca,
Agora desce, e imerge em vis sapais de lama;
E onde a razão a luz de auréolas derrama,
O delírio o gramão dos histriões coloca.

Soldado enorme e audaz, pai cobarde e sublime;
Haurindo a sorvo lento o horror do próprio crime;
Mesclando ao fanatismo a força e a reflexão...

Se a Cromwell castigara o poeta florentino,
Em que ciclo do Inferno o seu poder divino
Atirara este esboço... entre o colosso e o anão?...

 

NICOLÒ MACHIAVELLI

Nicolò Machiavelli, ó sábio, ó poeta,
Ó grande ébrio de amor e de verdade,
Quando peso a tua obra, imensidade
Rubra de luz de  tua musa inquieta,

Ouço passar, como uma tempestade,
Mundos e mundos, sóis e sóis, por meta
Tendo o tempo encostado à eternidade:
E quando penso que acabou, enceta

Novo abismo, e outros sóis, como um granizo,
Mancham de novo o azul da curva alteada...
Ao teu gênio em revolta era preciso

Essa áurea lira por um deus vibrada,
Onde ao seu canto a lágrima diviso,
Rompendo os sons de irônica risada...

 

TÁCITO

Quando Tácito às mãos terríveis de gigante
Na coma sacudia ao tempo Roma escrava,
E em lâminas de bronze eterno ele a cravava
Com estiletes de ferro e puas de diamante,

Tinha o incêndio e o esplendor dos Etnas em lava...
Como o oceano aquilões, e o infinito adiante:
Não quisera ser crime, o crime nesse instante,
Que em sua voz a voz dos deuses trovejava.

Porém quando aos heróis e ao justo erguia altares,
Parecia envolvê-lo em clâmides solares,
Dar à musa da história o amplo verbo de Homero:

Assim, quando através dos séculos assoma,
Vê-se que empalidece inda a sombra de Roma
Sob a rígida luz do seu olhar austero... 



A UM TRÂNSFUGA

Entra o lobo voraz em nossos baluartes,
E vai levando à boca as águias altaneiras:
Audazes campeões desertam das fileiras,
E levam força e luz aos velhos estandartes.

Tu também nos deixaste, e para sempre partes:
Mas olhar para trás, ó lutador não queiras;
Cegaram-te ambições de glórias passageiras...
Não voltarás jamais, em que delas te fartes...

Sim, para te lavar da negra infâmia, eu penso,
Que a goma Oriental, a mirra e todo o incenso,
Que vem colmando e enchendo as mais variadas jarras,

Não bastará por certo, ó ave aprisionada,
Que não te lembres mais do sol, e que domada
Lambes a jaula de ouro, e o pó das mortas garras.

 

A TIRANIA

Quando, da liberdade em nome, um clown num dia
Açaima um povo, e o avilta, e o junge em lida insana,
É que ele surpreendeu de rasto a cobardia,
E achou cega e sem guia a consciência humana.

Ódio todo e traição, tudo o trai, tudo o engana,
Tem medo ao sol, —  sorriso, asco à luz, —  ironia,
Só não vê junto a si de pé a tirania
Da virtude, que o julga, e o esmaga, e é mais tirana.

Com ele a história é ruína, é lágrima, é destroço.
Mete-o aí mesmo a justiça, ata-o aí mesmo em granito,
A gargalheira roxa e túmida ao pescoço...

Zurze-o a Hora, que passa; aspa o tempo o maldito;
Suja-o o vesgo rumor de um mar furioso e grosso
Da vasa e dos baldões, que enchem grito após grito...

 

CORRUPTA IUSTITIA

A corrupção lavrou e ardeu por toda parte;
O dilúvio do mal encheu e afogou tudo!
Pode um homem de pé ver isto, e ficar mudo?
Hidra, reinas segura e calma em teu baluarte!?

Não ouvirás a voz de maldição, que parte
De um povo revoltado, e que atrás de éreo escudo
Busca apanhar teu golpe audaz, teu bote rudo?
Serpe, não há ninguém que se erga, e ouse esmagar-te?

Brio, e honra, e fortuna, e vida afronta o crime!
Rota a espada em uma mão, noutra põem-te a balança,
Arrancando o fiel, deusa grande e sublime.

Uma concha e outra concha agora anda e balança,
Conforme o movimento adrede, que lhe imprime
A ignorância, a paixão, o ódio, o orgulho, a vingança...

 

CAIM

A lágrima protesta, o sangue em coalhos grita...
Não... não irás assim em triunfal parada:
Passarás entre nós como um ladrão de estrada,
Será teu Panteão ridícula guarita.

A traição, toda em luz de auréola bendita,
Chorará de vergonha ao ver-te, horrorizada:
E a baixeza, e a perfídia, e a infâmia interrogada
Contra ti dirá só um nome: — Israelita...

Pensas que hás de mentir à história, miserando?
Quem ainda a enganou? como a enganou? e quando?
Crês também iludir a morte, e não ter fim?

O silêncio tem voz, milhões de olhos a treva...
E a teu pai ser Adão, e a tua mãe ser Eva,
O teu nome, assassino, o teu nome é Caim...

 

AO PASSAR

Ei-la aí vai de rasto a esquálida carcaça,
Que o olhar da multidão colérica apedreja:
Caindo ao chão, traído em última peleja,
Tudo em sangue deixou, fez de tudo a desgraça.

Ergamo-lo, é dever, bem alto, em larga praça...
Alto, que o mundo inteiro o reconheça e veja.
Quer-se a estátua de bronze, em bronze eterno seja,
E o maldiga sem dó, quem vem, quem vai, quem passa.

Do meu ódio profundo à noite um astro arranco,
Para sempre ter luz, e pôr num clarão branco
No horror daquele crime o horror de um crime novo.

Olhai-o bem, fixai-o em vosso pensamento:
É mortalha mais vil, maior que o esquecimento,
A mortalha em que o cose o anátema de um povo...

 

A GRANDE LEI

Aequam...
Servare mentem...

Horácio — Odes

Não será a humildade uma doutrina
Vã, que ensinaste há dois mil anos, Cristo?
Desde então o que viste, o que hemos visto,
Depois que a disse a tua voz divina?

Hei de deixar a lâmina assassina
Cravar-me o peito? Posso, e não resisto?
Deixaste a cruz erguer-se, e a cruz domina:
Perdoar e esquecer: — a vida é isto?

Não sei eu. — Mas sem ódio, e sem cobiça,
O ideal do bem levanta-me e sorri-me:
E de alto haurindo de ânfora inteiriça

Sorvos de luz do teu amor Sublime,
Na calma fria e heroica da justiça,
Eu condeno o perverso ao próprio crime.

 

PERDÃO

Quando das nuvens do meu ódio ensaio,
Jove um dia, a faísca que fulmina,
E às mãos juntando raio sobre raio,
Agarrado de um astro em fogo à crina.

Um pouco desço da mansão divina,
E no vil com crotais ardentes caio,
Eu digo às chamas, que soltei: — Deixai-o:
E o meu perdão a cólera domina:

E a harpa doce de Hesíodo sobraço,
E os deuses canto, irmãos do poeta, e a ode
Feita de luz e amor, dando alma ao espaço,

Todo meu coração, que é bom, sacode:
Há, nesse instante, um leito em flor que faço,
E aí, sem sustos, dormir o crime pode...

 

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DOMÉSTICAS
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TO LOOK UP

Viver é ter sofrido só: convenho:
Ou de Procusto a dor haurir no leito,
Ou ir subindo ao Gólgota, suspeito
De um crime, — a vida, ao ombro o ignóbil lenho.

Pouco espaço ocupei na terra, e tenho
Intacto o orgulho disso: com efeito,
Conservo puro dentro do meu peito
Ter sido o bem o meu maior emprenho.

Superior ao destino, acaso, ou sorte,
Que a folha seca por azuis espalma,
Meu tamanho há de só medi-lo a morte.

Guardo entretanto uma ampla e funda calma,
Sem que a calúnia, e a inveja, e o ódio me importe,
Todos tendo a estatura de sua alma...

 

SAUDADE
(Ao Desterro)

Ilha gentil do Sul, filha misteriosa
De uma verde Anfitrite e voluptuoso poeta,
Que ampla saudade morde aqui minha alma inquieta,
Terra, em que o sol à fronte abre como uma rosa.

Dera-me um deus beijá-la, — assim como a queixosa
Onda, em que anda a estuar uma paixão secreta,
A oscula e agarra, e põe-lhe em curva graciosa
O anel de ouro e esmeralda ao cinto, que a completa.

Mãe, trouxeste ao nascer os ombros nus de Vênus,
E a concha onde só cabem teus dois pés pequenos;
Quando teu filho, em longo exílio abandonado,

Deusa, ninguém lembrar que foi teu filho, ainda
Terás dos Imortais a juventude infinda,
E o vasto amor do Oceano hirto, e jamais saciado...

 

UBI NATUS SUM

Na rua Augusta, em Santa Catarina,
A cama em cima duns pranchões de pinho,
Aí nasci, foi aí o humilde ninho
De uma criatura mórbida e franzina.

Nos fundos de uma loja pequenina,
O lençol branco a arder na luz do linho,
Da minha mãe, da minha mãe divina
Tive o primeiro tépido carinho.

Meu pai foi sempre a honra em forma humana,
Tinha a virtude máscula e romana,
Não era austero só, era feroz.

Trabalhava incessante, noite e dia,
Como um leão seu antro defendia,
E era uma pomba para todos nós...

 

SOB A MANTILHA
(A Oscar Rosas)

Uma senhora firme, alta, delgada,
Sob as dobras da sarja da mantilha,
Nas modas de Istambul ou de Sevilha,
Ia à igreja ouvir missa à madrugada.

Com todo o encanto que me dava, brilha
Mesmo nesta hora a sedutora fada:
Não tinha este país mais doce filha,
Nem nosso céu estrela mais dourada.

Era uma santa, oh! era uma rainha!
Deixando o altar o padre com voz lenta
A saudava, ao sair, dobrando a espinha.

Pois era minha avó com os seus noventa...
E inda hoje vejo a esplêndida velhinha
Na auréola que tão bem a um justo assenta...

 

VELHICE VERDEJANTE

Noventa e tantos anos ela tinha,
Sem ter as nuvens dessa grande idade:
Guardara a força, a chama, a mocidade
Da alma, que tanta gente perde asinha.

Viveu na paz da pérola marinha,
Que ouve de longe o grito à tempestade,
E foi da extensa vida à eternidade
Como quem para um certo fim caminha.

Por ser magra, mais alta parecia;
Era como uma seta na estatura:
— Flexível, grácil, longa, reta, esguia.

Fora, em moça, de esplêndida brancura;
E o áureo casco da trança, que a cobria,
Levou consigo intacto à sepultura.

 

AS MÃOS DE MINHA AVÓ

Como manhã dourada e cor de rosa,
Que as asas cortam de uma pomba mansa,
Da minha avó trinava a mão rugosa
Nos meus louros cabelos de criança.

A sua pele fora cetinosa,
Com reflexos que o sangue à neve lança;
Passou com os anos por total mudança,
Sem contudo deixar de ser mimosa.

A fina palma o tempo avermelhara,
E o dorso, que riscavam grossas veias,
Tinha o tremor de um pássaro que para.

— E eu me dizia: As suas mãos são feias,
Mas... quando as abre, abre-me uns céus, que enluara
A meiga luz de duas luas cheias.

 

A TERESA

Teresa! e este sagrado nome é um grito
Que a alma toda atravessa, e o pensamento,
E o oceano em luta, e a vaga atrás do vento,
E a sombra vasta e longa do infinito;

Tudo enche. — Ergo-lhe um templo de granito,
Um panteão eterno, um monumento,
Que eu só vejo ir subindo, e acabo, e atento
A mole abraço, e o olhar na escrava fito.

É dela. — Luz-me em resplendor de Santa:
Viu-me nascer, e amou-me de maneira
Que em mim criou o amor, que o amor levanta;

Dela a saudade, em minha vida inteira,
Como uma árvore, acesa em ninhos, canta,
E, como um vale aberto em flores, cheira.

 

Ó PACA

Eu era inda criança e era já velho o gato:
Amava o sol; dormia um longo dia inteiro;
Tinha na luz, que entrava, assim como um regato
Pelas portas a dentro, áureo e bom travesseiro.

Já não corria mais ao saboroso prato
Com o miar doce e agudo e o salto prazenteiro;
Já não vinha enroscar o pelo ao nosso fato;
Já não pulava ao armário ao alvorar de um bom cheiro.

Porém quando o meu pai, com sua voz austera,
Bradava: — Ó Paca... então ouvia-se um trinado
Alegre, forte, extenso, amplo, a trepar na esfera,

E ele engolia o espaço, ardente, o colo alçado,
E o víamos passar, em plena primavera,
Pelo fundo de um grito, enorme e transformado...

 

O CANÁRIO DO ANTÔNIO

Éramos três então e o crioulo: este devia
Ser mais velho que nós, mas, como nós, viera,
Donde nos vem flor, ninho, espaço, primavera,
E o azul... o grande, o vasto azul que nos cobria.

Tinha um canário o escravo, um canário que enchia
De luz sonora e ondeante a nossa casa austera:
E ao entornar a manhã ouro e mais ouro à esfera,
Fazia rir o céu, rir o sol, tudo ria.

Um dia o pobre Antônio, o corpo rijo e duro,
Ficou na cama, e ao prego a gaiola no muro:
Mas enquanto um cantava, o outro, o dono, morria...

Por um barquinho novo, alto, esbelto, atraído,
Deixei ir, ébrio e imbele, o pássaro querido...
E assim... foram-se os dois, e a primeira alegria.

 

O JOSÉ DA SUMACA

O José da Sumaca era um preto, um crioulo,
Que, como nós, nascera em Santa Catarina,
Sofreu a infância, haurindo-a golo a golo:
Talhara um deus sua alma em rocha cristalina.

Como igrejinha azul em moital de colina
Pintou de céu seu barco, e em águas verdes foi pô-lo;
Daí essa criação graciosa e feminina
Foi-lhe vida, aflição, família, amor, consolo.

Furioso um dia o sul soprou de tal maneira
Que espetou-se o barquinho às pontas do rochedo;
Soube-se, e tudo veio à praia de carreira.

O dia todo, a noite até de manhã cedo,
Contra as ondas lutou-se; e assim que ele as vencera,
Abriu um grande voo branco ao vento tredo.

 

O CARDEAL

Tinha no olhar sinistro uma ferocidade,
Quando à noite o acordava inopinadamente,
Que eu pensava no olhar de um Deus onipotente
Com astros golpeando os titãs, sem piedade...

Mas ao reconhecer-me era logo ebriedade,
Parecia falar, saltava de contente:
A gaiola deixou um dia, de repente,
Faminto por azuis, por sóis, por liberdade.

Quem o soltou? Ninguém. Eu o amava, e perdi-o.
Isto no coração também faz um vazio!...
E era o meu cardeal a flor dos cardeais...

Busquei por tudo em vão o pássaro errabundo...
Que pedaço de céu, que pedaço de mundo
O tem, não sei: e como o saberei jamais?!...

 

NAVIO EM PERIGO

Saímos do colégio à tarde. O sol caía
Entre esqueletos de ouro e corpos de guerreiros,
Por átrios, penetrais, e os fumos derradeiros
De um incêndio, que em torno o vasto céu enchia.

E um corvo negro ali de súbito surgia,
E ia apagando o fogo e os colossais braseiros,
Num bater de asas surdo e lento de pampeiros:
Delas a sombra dura as serras envolvia.

Nós, crianças em bando, umas tímidas corças,
Queríamos medir no mar as nossas forças:
Mas em frente ao tufão de pé o mar bravio

Vaga e vaga arrojava em cima da procela;
Quando vimos, a rir, — sem rumo, e leme, e vela,
Gemer, no fundo, ao longe, a sombra de um navio...

 

A PEDRA ASSOMBRADA
(A Virgílio Várzea)

Mar implacavelmente azul e amarrotado
Soluçava e sorria a um tempo ermo e baixinho;
E a praia, como um leito enorme de noivado,
Ia por ali fora, entre rendas de linho.

Aroeiras em flor, ou vergando ao encarnado
Corimbo dos seus grãos, acima, em desalinho,
Cerravam-se em mata de pássaros coalhado;
Caracolava ao lado a fita do caminho.

As gaivotas, em bando, e duas ou três lanchas
Arremedavam longe a luz com grandes manchas:
Sobre o mar, sobre a praia, e sobre a mata, e a estrada,

Atravancando-a com seu bojo de granito,
Com seu olhar sinistro, em torno, e em tudo fito,
Rosnava o horror de um monstro: — Era a Pedra Assombrada!...

 

OS DIABRETES DE D. ANA

Temporis et prisci facta referre senem...

Tibullo — Elegia

Quem não teve entre os seus uma velha africana,
Que embala o berço, e canta, e acarinha, e vigia?
Que com histórias, que valem pérolas, grana
Quimeras de ouro, e as lança em nossa fantasia?

A nossa tinha atrás do morro uma cabana,
Vegetando agarrada à bronca penedia;
Junto dela o moital, no moital a alegria
De uma água que cantava ao ver chegar D. Ana.

Dizia a água a saltar: — a D. Ana já veio!...
E à meia noite a velha, o rosário no seio,
Feito o sinal da cruz, ia à ponte espiar.

Riam-lhe da água então grupos de diabretes,
Davam pulos no ar, jogavam-lhe os barretes...
Lindos!... feitos de prata, em nesgas do luar! 



A BENEDITA E A GEORGINA

Bendita sejas tu, mulher escrava,
Bendita sejas tu, bendita sejas,
Mais santa do que a santa das igrejas,
Em que o olhar indiferente a turba crava.

Alma feita de lírios, fogo e lava,
Há Edens onde quer que vás e estejas;
Em cada beijo um rouxinol cantava,
E inda hoje canta ao crer que inda hoje a beijas.

Só teu heroísmo pôde-me salvá-la:
Que berço a voz que busca adormecê-la!
Que ninho a mão de ônix que ao berço a embala.

E há uma estrela que sorri, estrela,
Que, enquanto ela de ti me encanta e fala,
Parece-me ser tu a ouvi-la e a vê-la.

 

O ACOMPANHAMENTO

Ao levarem-me enfim... pelos caminhos
Das cercas hão de os rostos ter de fora
Os lírios, cor dos lívidos arminhos,
As rosas, cor das faces de quem chora.

As cabecinhas erguerão dos ninhos,
Por ver-me, inda de longe, ir indo embora,
A multidão de implumes passarinhos,
E os que enchem de asas e dão voz à aurora.

Em luxuoso e rútilo cortejo,
Da luz os raios de ouro irão lançando
Em minha fronte, ermo acrotério, um beijo.

Hão de as coisas deitar-me o olhar mais brando,
E em todos há de haver um só desejo:
Ouvir-me inda uma vez cantar: — Mas quando?!...

 

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URNAS
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ALEGRE DEPOIS DE MORTA

Um dia ouvi-lhe a voz chorar... Não tome
O caso alguém por uma vã quimera:
Em cada som a lágrima sincera,
E em cada frase um pranto... Isso espantou-me.

Ela até ali não fora assim... não era...
E há dor que esta mulher altiva dome?
Mostrá-la a dedo aos séculos quisera,
Mas por piedade guardarei seu nome.

Que houve então?... Menos triste agora a vejo,
Vestes de virgem, quase a rir-se ainda:
Tem parco, mas tristíssimo cortejo.

Na face, que assim mesmo em morta é linda,
Leva fundo os sinais de um beijo... o beijo
Largo da boca azul da noite infinda...

 

O ENTERRO

O caixão era lindo e pequenino,
Forrado de cetim branco por fora:
Sobre cetim azul dormia a aurora
Dentro na forma esbelta de um menino.

Como festivo altar, que se decora,
Tinha o berço galões de ouro o mais fino:
Que sono fundo o pobre ser franzino
Ia nele a dormir, dormindo agora.

Quatro meninas lívidas de susto,
Segurando as argolas amarelas,
Vão-no levando a passo lento, e a custo.

Sob o véu branco e as rosas das capelas,
Acham que é tudo aquilo iníquo e injusto,
Podendo ir, depois dele, alguma delas.

 

PAQUITA

Esta, que aí vês, de face desmaiada,
Que inda está quente, que morreu agora,
Por quem a pobre mãe soluça e chora
E chora o pai, e que inda está deitada

Na mesma cama, em que sofreu, coitada!
A febre grande, a febre, que devora,
E vai sair por essa porta a fora,
De anjo, como foi sempre, amortalhada;

Tinha no olhar profundo uma infinita
Recordação do céu, a que voltava:
Foi sempre meiga, como foi bonita...

Ontem ria... eu a vi, quando chegava...
O doce nome dela era Paquita...
E a casa toda, em lágrimas, gritava...

 

A FILHA MORTA

Lembro-me dela, quando então vivia:
Era suave e meigamente bela;
Santa em um nimbo, ao vê-la na janela,
De pé, dentro de um nicho, à luz do dia.

Pouco depois, meu Deus, quem o diria?
Inda estava formosa, inda era ela,
Mas fria já, já pálida a donzela,
Lírio morto, que em lágrimas floria...

Virgem de Sanzio, imaculada filha
De um sonho de ouro e da visão mais pura,
Quem, ante a imagem dela, não se humilha?

Foi uma estátua de esplendente alvura,
Feita só para um túmulo, em que brilha,
Imóvel, doce, em plácida postura...

 

VOLTA AO PAÍS AZUL
(À Mãe)

Fugiu? — Espera: vamos ver. — Suporta
A dor: sossega.. — Mas por onde iria?
Quem, para o firmamento, abriu-lhe a porta?
Quem foi? quem é? — Quem, pobre mãe, seria?

Tão branca estava!... mas não estava morta...
E quando inda cantava, e quando ria,
Súbita mão dos laços de ouro a corta;
Foge... e a estrela subiu... subiu... subiu...

Como está longe!... — Agora tu que esperas?
Nossas leivas são curtas e maninhas:
E que rosais tem ela nas esferas!...

Ó mãe, andam os sóis e as andorinhas
Atrás de azuis e atrás de primaveras,
E o eterno azul em flor no lar não tinhas...

 

TAL ESTÁ MORTA...

Abriu a boca, e a rúbida golfada,
Que do seu peito exausto então rompia,
Desmanchava-se em rosas da alvorada
De um sol cor do lençol, que a cobriria.

Ofélia aflita sob a vaga fria,
Quebrando a nota da canção cantada;
Desdêmona no leito, amante e amada,
Idas? por quê? tão de repente um dia...

Dante e Beatriz, Romeu e Julieta,
Laura e Petrarca, Sanzio e Fornarina,
A coorte no céu, do amor eleita,

Guardam-na às portas da mansão divina,
Enquanto um anjo as asas brancas deita
De manso ao rosto, que ela ao colo inclina.

 

ESTEMA DE LÍRIOS
(Na morte de F. G.)

Subia esbelta, assim como a palmeira:
Parou na glória de uma vida intensa,
Como quem para de repente, e pensa,
E volta atrás, e busca o que esquecera...

Era o céu que deixara à cabeceira,
Onde dormiu com ela a fé e a crença:
Bela mulher, que nela abria, a doença
Fê-la sustar na esplêndida carreira.

Foi um sorriso o último transporte,
Fim do rumor dos últimos delírios:
Só tremeu para dar mais calma ao forte;

E à luz velada dos trementes círios
Luziu-lhe à fronte a palidez da morte,
Como se fosse um círculo de lírios...

 

EPICÉDIO
(A M.)

Santificou-te a tua vida inteira
Co’uma lágrima doce e cristalina:
Sinto que a tua sepultura cheira
A quanto vem dessa mulher divina.

Deu-te tudo na hora derradeira,
O que alma pede, quer, busca, imagina:
O perfume das rosas da balseira,
Regadas pela mão que nos fascina.

Ai! invejei-te! — E que fazer? se é belo
Saber que os duros golpes do martelo,
Dados sobre o caixão que o morto encerra,

Não enchem só dos ecos seus a cova,
E que a vida nos fica, e se renova
Na mágoa dos que amamos sobre a terra!

 

AUSÊNCIA PROLONGADA
(Na morte de Arhur de Barros)

Como não vem? Por quê? — Já tarda tanto!...
Olhem que é ele, vem subindo agora:
Não é? não foi? — Mas que fatal demora!
Enfim isto me faz encher de espanto!...

Está aí na rua, ou volta aquele canto...
Disse: até logo, quando foi-se embora:
E ele chegava, como chega a aurora,
Trazendo luz nas dobras do seu manto.

Não vem? Mas deve vir. — Era à noitinha,
Que, pela escada acima, a rir, me vinha
Falar de Comte, ou conversar de Homero...

Cortar-lhe a vida? Quem tal vida corta?
Vão vê-lo já; vai já bater-me à porta?
Ele vem sempre e como sempre o espero...

 

MANOEL MONTES DE OCA

Teu pai chegou às regiões serenas
Do ninho, onde nasci, ao sul; e vinhas
Com ele, e mãe, e irmãos, como andorinhas
Fugindo ao inverno, e sacudindo as penas.

Acaso um pouco te entendia as penas,
A dor da pátria, que perdido tinhas:
Voltando às terras do teu berço, as minhas,
Ai! só para morrer, deixaste apenas.

Náufrago tu, criança, e já destroço
Do ideal, pelo qual hoje inda ardo e luto,
Tínhamos na alma espumas de mar grosso;

Inda, vestido o coração de luto,
Tua voz de ouro, a alfaiar azuis, eu ouço,
E o riso, um soar de pérolas, escuto...

 

D. MARIANO MORENO

Oh! mestre, embalde a tua voz procuro;
Embalde busco o nome teu, e creio
Que nos anais do teu país o leio,
Vítima branca e heroica do futuro.

Quando da pátria tu voltaste ao seio,
Todo horizonte, que deixaste escuro,
Tinha os vastos clarões do sol mais puro,
Para viver não já num canto alheio.

Tua alma andava em fronte aberta e larga,
Onde passava muita vaga amarga,
E a dor do exílio a eterna queixa esconde.

Onde repousas tu, mais calmo agora,
Tu, que encheste de luz a minha aurora,
E hás de dormir... deves dormir... Mas onde?!...

 

O DOUTOR AGUERO

Cantava o oceano assim, batendo a penha,
Rendilhando de espuma a praia imensa,
Enquanto a luz pela amplidão desenha
O céu, que ri, o viso nu, que pensa.

E o velho padre, a mão na espessa grenha,
Embalado à mercê de funda crença,
Doirava a sorte aspérrima e ferrenha,
A alma à alegria boa e sã propensa.

Tal o búzio conserva a voz, que outrora
Ouviu nascendo ao mar em calma, e em sanha,
Guardou da pátria a voz, que ouviu lá fora.

Como a bondade a infância enleia e ganha,
Que entendíamos sempre o mestre, embora
Num rouco tom, e numa língua estranha...

 

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SANGUÍNEAS
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CABEÇA DECEPADA

Vi sobre o monte sangue, ao longe, à madrugada,
E começava o sangue a encher o espaço agora:
Crê-se em nuvens limpar alguém o sangue à espada
Com que tinham talvez decapitado a aurora.

Quem canta pelo vale, e pelo céu quem chora?
Há sangue embaixo, em cima: a relva está molhada;
Anda o sangue a escorrer mais e mais de hora em hora;
Que ninfa em ouro e luz desceu amortalhada?

E enquanto indago, vejo enrubescendo a crista
Da serra, como se um Valdês, se um grande artista
Lançasse à tela um crânio ainda palpitante,

O sol cair, rolar, como cabeça morta
De um deus vencido, que jogasse um deus triunfante
Pelo vão da arquivolta amplíssima da porta.

 

I

... et vis inimica propinquat.

Virgílio — Eneida

Um murmurinho lívido e tristonho,
Olha que cresce, engrossa, ecoa... Acorda:
Chega uma nuvem do teu lago à borda,
Pode nele cuspir tufão medonho;

Antes que finde o teu formoso sonho,
Antes que a lira, em que o luar transborda
Do hino azul de tua alma, a extrema corda
Rompa, — foge: inda aos pés teu céu suponho.

Quebrado o encanto à límpida lagoa,
Que tem sido de sóis eterna senda,
Sai: a espuma inda é branca: ala-te, — voa.

Enquanto a alvura tua o pó não tisne,
Enquanto o abismo as asas te não prenda;
Abre-as, é tempo de partir: vai, Cisne...

 

A VELHA SERPENTE

É quase louca; e sabe que a loucura
Ela transmite facilmente, quando
Ri de um rir quente, carinhoso, brando,
Que lhe ilumina toda a formosura.

O mal que dá, o mal que ela não cura,
Embrulha-o um cheiro pérfido e execrando,
E vive, criança, o mundo intoxicando,
Como a velha serpente da escritura.

Não há nada que a abale, a mova, e a excite:
Pode tiranizar os seus tiranos;
Cria, e não mata o anseio do apetite;

E inda lança dos olhos soberanos,
Olhos de invicta Vênus-Afrodite,
Todo sal que amargura os dois oceanos.

 

VÃ TENTATIVA

Com que chave eu abri aquela pedra fria
De um morto coração? Onde a achei? Foi preciso
Ter perdido a razão, ter perdido o juízo.
Ir ao fundo do mar, e encontrá-la? — Seria?

Foi, como foi. — Passai, vós, que a quereis. — Um dia
Ela acabou meu sonho, e continuou meu riso,
Deu mais ouro ao azul, pouco ao meu paraíso;
Sua alegria fez cantar minha alegria...

Fora empresa infeliz se agora alguém tentasse
Limpar o eco dos meus lábios na sua face...
Quereis lutar? Descei, deuses; vinde: eu desejo.

Mas sabei que embrulhado inda em tufões o oceano,
Passando e repassando ano e ano após ano,
Não lhe lava um sinal, que pôs nela o meu beijo...

 

UM GRÃO DE AREIA

O grão de areia, que entre nós medeia,
É mais fundo que o mar, que se não mede:
Tenho a boca de frases de ouro cheia
E a boca vai falar... fala e não pede.

Quem ousa então cortar esta cadeia?
À força humana esta cadeia excede?
Que abismo encerra em si, cavado adrede,
Fundo... tão fundo assim, um grão de areia?

E quantos sonhos amorosos sonho,
Para arrasar este vazio! — Forme
O mundo ideais deste penar medonho...

Que leão, sem dormir, lá dentro dorme,
Que com mundos e sóis, que dentro ponho,
Não encho o pequenino abismo enorme?!... 



PERGUNTA SEM RESPOSTA

Quero acaso apanhar teu segredo: o que resta
Dentro em teu coração, é verdadeiro ou mente?
Anda um vago perfume em ti perenemente,
Como em casa em que houvesse ou inda há de haver festa.

Há uma voz, que trina em nós, que de repente
Pode ouvir-se cá fora... Arreda-te da testa,
Ó floresta de trança, ó ouro da floresta,
Deixa Ofélia cantar em cima da corrente...

Na corrente de luz, que em tua fronte eu acho,
Alma, Ofélia em delírio, ó visão branca e pura,
Como no mar se busca um morto à luz de um facho,

Para ao menos ter ele em terra sepultura,
Alma... Ofélia gentil, alma da formosura,
Dize se ela me ilude, antes de ir água abaixo?...

 

FEBRE

Quando a vejo passar, taça límpida e cheia,
Que nenhum lábio humano até hoje tocou,
Sinto que febre intensa a minha alma incendeia,
E ardo por lha tomar, no delírio em que estou.

E ela passa por mim do meu mal tão alheia,
Sem saber da emoção que um louco atrás deixou;
E quero acometê-la, e sinto uma cadeia,
Que em meu leito de angústia em voltas me cerrou.

Eu tenho fome, vem, fruto do paraíso;
Eu tenho sede, em vão grito: formosa, vem;
Virá contigo, eu juro, o perdido juízo.

Do cíato, que o aroma impoluto contém,
Quero beber o céu, à sombra do teu riso,
E Éden novo e melhor ter eu nele também!...

 

UM PEDAÇO DO INFERNO

Ouço dentro de mim soluçar um queixume,
Quando a cobra dos teus dois braços se me enlaça;
Sofro nela tua força, e a tua força é a graça,
Graça enfim que te eleva às proporções de um nume.

O teu sorriso sai como o golpe do gume
De seta, que entra por alma a dentro e a espedaça;
Serei cinza, isto é, hei de ser antes lume:
E que amarga ventura! e que feliz desgraça!...

Veio comigo como Eurídice arrancada
Ao orco, e te deixou no abismo despenhada,
Por noite escura e funda, um anjo mau qualquer,

...E atravessaste o céu... e enfim chegaste à terra
Com pedaços de fogo e lágrimas, que encerra
O inferno, e dele o que arde e queima em ti, mulher...

 

NACHGEFUHL

Oh! como eu te amei sempre!... Eu bem sabia
Que era meu coração tão nobre e rico,
Que este velar por ti de noite e dia
Dava o amor fraternal, que te dedico.

Unir-te mais a mim tentei. — Queria
Um outro amor, e tudo sacrifico;
Igualou teu desdém à cobardia:
Quis um pouco de ti, sem nada fico.

Mas quando te sentires velha e gasta,
Vendo que para a vida o ouro não basta,
De mim te hás de lembrar, mas tarde então;

E talvez vás chorar-me, oculta, à porta,
Quando eu for indo, como folha morta,
Na torrente dos dias que se vão...

 

O SEGREDO

Vem mais gorda do campo; e quem duvida?
Alta a cabeça, o olhar mais doce, o gesto
Carregando uma ideia, e a dor diluída
Num abandono chão, gracioso e honesto.

Esta mulher mudou: é manifesto;
Outra veio, assim é, porém, vencida;
Trouxe, dizem, não creio, e não contesto,
Consigo e em si mais uma estranha vida.

Quem pode haver-lhe o íntimo segredo?
Traiu-a, ao vir do bosque, um grito agudo?
Ou cobre-a a sombra insólita de um medo,

Porque deu, que assistindo ao idílio, — mudo,
Labrusco Pã de pedra, no arvoredo
Ria cínico e mau, ao ver bem tudo...

 

ABISMOS QUE SE INTERROGAM

Vaga após outra vaga; e o seu olhar as via,
Como uma seda azul, que o vento amarrotasse,
Ir indo longe, e ao largo, em torno à serrania;
E aquela névoa toda andava-lhe na face.

Como um abismo, que outro abismo interrogasse,
Sempre que a um tufão novo o pélago rugia,
Via-lhe ao tumultuar, que morre, e que renasce,
Buscar a causa dessa inquietação sombria.

Noite arrastando um luar, como um amplo sudário
Errante além no oceano, acabava o cenário,
De que ela ia saindo, ou parecia entrar.

Eu atrás, quase ao pé, mais tristonho que sério,
Cria de ambos — talvez — compreender o mistério:
E o mistério maior, não... não era o do mar.

 

O TRAÇO DE UNIÃO

Não é o mar, que ocupa um vasto espaço,
Nem o intérmino céu, que o sol habita,
E a águia, que à garra o empolga, e o assalta, e o fita,
E, à volta, às asas dorme de cansaço;

Não Deus, cujos mistérios não devasso,
Não é o ódio, que queima, afasta, irrita,
Não o amor, que a união de almas incita,
Mulher divina, o único embaraço:

A vida é contra nós a arma mais forte;
O que me obriga a não beijar teu colo,
Nem talvez saibas, pálida consorte:

Olha, nós vamos, e hora e hora eu rolo
Para o último leito; eu sei que a morte
Há de unir-nos então, e me consolo...

 

AS DUAS BOCAS

Ri-te. — Na mocidade há a ilusão radiosa:
Freme-te ao flanco, deusa, essa primeira alvura
Da aurora augusta, que nasce e tão pouco dura:
Frui, criança: mulher, eis o sol, — canta e goza.

Amanhã... vê, já chega a tarde, e inda é formosa:
Rompe a noite estrelada, inda azul, inda pura,
Enquanto desce ao rosto, e o envolve, e à estrepitosa
Torrente de áurea trança, o luar que cai, fulgura.

A vida é esta sombra eterna e impertinente:
Há quem ainda contra o mal da vida grite?
Vem uma abelha à flor, e outra... e a flor contente!...

Farta-te, velha fome: incha, infame apetite...
Se queres tu contudo um beijo, que não mente,
Prende à boca da cova a tua boca... — Ri-te...

 

QUE É SER TRISTE?...

Hoje tens joias de oriental princesa;
Sim! hoje toda adoração é pouca;
Ninguém te diz que a rosa da beleza
É como a bolha lapidada e oca.

E hão de fugir-te todos de surpresa,
Depois de terem tua arqueada boca
À venenosa boca deles presa,
Num só momento de vertigem louca.

Verás que o tempo em nós jamais tolera
Alegrias sem fim; e hão de uma a uma,
Como andorinhas de odorosa esfera,

Fugir, logo que o inverno o ambiente esfuma;
E o que é ser triste saberás. — Espera,
Vênus, que a onda inda embala e oscula a espuma... 



A LOBA

É o amor uma loba; — os sóis devora;
Anda a estrugir com sua voz medonha
De noite à lua; e vela, e dorme, e sonha
Leitos de opala, como os tem a aurora!

A dor terrível pelo olhar lhe chora
Ante a extensão indômita, enfadonha,
Onde a caça esplendente arfando mora,
Sem que numa somente as garras ponha.

Olha inda o céu da gruta à borda, e um grito,
Em vez dos dentes, crava no infinito;
Crava um último olhar furioso e louco.

O amor é assim; — a famulenta loba,
Que os sóis, se pode, morde, apanha, rouba,
E enche os seios p'ra os dar, e inda acha pouco.

 

AS DUAS IRMÃS
(Depois de uma leitura)

Poisou na vida, como poisaria
Pássaro a um galho preso a tronco inciso,
Ou como pomba mal segura a um friso,
Que o vento as penas brancas arrepia.

Sempre estava a tossir, e em febre ardia:
Separá-la da irmã fez-se preciso;
Porém esta, iludindo os pais, um dia
Foi pôr-lhe um beijo no lugar do riso.

Acomodando com carícia e jeito
Na cama a doente, que adormecera, exorta,
Nos tenros braços seus chegando-a ao peito.

E quando abriram de manhã a porta,
E a alcova entrando, foram vê-la ao leito,
Uma dormia e outra... estava morta...

 

A CATÁSTROFE

É Ela, sim! É Ela!... mas despida
Do feérico encanto, que a envolvia;
Sem essa misteriosa luz do dia,
Em que andou sempre, ou cri andar, vestida.

Ela, sim! na penumbra de outra vida,
Numa mádida névoa doentia:
Noutro tempo invejava-lhe a alegria
O rir, no próprio rir ao ser vencida.

Caudava-a em festa um triunfal alv'roço...
Beijava-a o azul do céu em redemoinho!
Do hino a rasto aos seus pés já sons não ouço...

Vesgo Silêncio entrava-lhe o Caminho...
Não é assim que o furacão a um fosso
Lança o pássaro, e o canto, e o tronco e o ninho?!...

 

CÓPIA

O sol... o sol e o céu, e a revoada
Dos colibris cantando o etéreo canto...
(Abres os olhos com tão grande espanto?
Dize-me: deles não conheces nada?)

Vamos: o cedro, a fronte, a rendilhada
Mesquita, em cima a meia lua, o santo
Emir, à voz do muezim lançada
Do minarete, o lânguido quebranto

Das almeias, jardins, sultões ferozes,
Emas, corcéis, miragens, albornozes,
Tigres, leões, e a luz, que de ouro os tinge...

Tenho da Ásia uma cópia em ti somente:
Tu és todo esse amplíssimo Oriente...
Mesmo o deserto, e a ruína, e o vento... e a esfinge!...

 

A ETERNA DÚVIDA

Como tortura a gente o pensamento!
Como isto tudo infelizmente é feito!...
Ninguém se vê de todo satisfeito,
Nem tem completo o seu contentamento.

Quem nos perturba no melhor momento?
Tenho-a apertada, e bem, contra o meu peito:
É minha: mas é minha com efeito?
Lança nuvens no céu mais puro o vento;

Mesmo a sombra do pássaro, oh! desgraça,
Deixa sombras cair sobre a corrente:
Ao festim Banquo vem sangrento, e passa.

Dor... que dor grande imaginar somente
Que enquanto a beijo, e enquanto ela me enlaça,
Eva ri dentro em si, e ouve a serpente!...

 

MENTIRA

Circe fala-me então com tal despejo,
Que eu bem sei que ela mente, eu sei, bem vejo...
Mas... que filtro lhe cai da voz sutil!...

Amor dá-me ódio a tudo que ela toca;
Ele, que às mãos me pôs o fuso e a roca...
E olho-a de rastos, tímido e imbecil!...

Mente? — Que importa? — O que é toda cadeia
Das banais ilusões, que a vida inteira
Volve em pegões e envolve prisioneira,
Pondo lá dentro o sol e o grão de areia?!...

E como é suave essa canção traiçoeira
Com que ela nos embala, ebria, enleia!...
Amar alguém? Não há ninguém que o creia:
E aos pés morrer-lhe, amando-a, há quem não queira?...

 

COMO UM ESPÍRITO

Batem?... Quem bate de mansinho à porta?
É talvez um velhíssimo tormento!
Por qualquer fisga pode entrar o vento,
E ouço que ele lá fora o espaço corta.

E é de leão ferido o seu lamento!...
Mas... a mim seu gemido, a mim que importa?
Batem contudo, e perto do aposento:
Abro o meu quarto, e ela me surge... a morta!...

Como é formosa em seu falar ainda!
Palpo-a: como está fria!... a envolvo: indago,
Digo: — Deita-te aqui; — sê tu bem vinda.

É ela isto só!... um ser aéreo e vago!
Quero aquecer-lhe o corpo, e a visão linda
Foge mais uma vez, enquanto a afago...

 

DEPRECAÇÃO DO ABISMO

Eu, que à sombra vivi dos teus cabelos,
Eu, que sob os teus pés tenho vivido,
Eu não devo por ti morrer de zelos,
Nem o dizer, sentindo-me ferido.

Posso cair: tu me verás caído,
Outras me hão de os seus braços estendê-los;
Rindo ouvirás meu pranto, e o meu gemido,
Que alguns ouvidos só hão de entendê-los.

Ao réu de morte resta-lhe a palavra,
Juiz algum sem o ouvir sentença lavra;
Numa habitual, feroz tranquilidade...

Sem me ouvir, me mataste, eu te asseguro...
Abismo, abre-me o céu, que em ti procuro,
Tu tens, abismo, um coração, piedade...

 

O BOM

As grandes seduções tentam-me? Em vão: resisto.
Não há nada que veja, e me enleve, e contente,
Ou existência calma, ou gloriosa e ardente,
E a história triunfadora, o eco sonoro disto.

Forçado, a vida dentro em mim e fora assisto:
Ir, fora bom, sem ter a alguém que nos lamente,
Sem amor, ódio, inveja ir indo, ir indiferente;
Obrigado a passar, passar, porém não visto.

Assim na fuga rompe alígero cavalo,
Que os quatro ferros perde um a um em caminho,
E a sombra, a própria sombra ele a obriga a deixá-lo,

Tão de súbito arrasa o chão, e em torvelinho
Trepa colinas, desce, e despenha-se ao valo,
Ergue-se, e sobe, e chega, e morre, e cai... sozinho!

 


VIVER, ESQUECER

Viver, como Imortal no Olimpo esplendoroso,
Sem tentar conhecer por um acerbo estudo
Como tem fim o abismo, onde em cima andar ouso,
Grande, em larga ebriez, em vasto êxtase mudo,

Impenetrável, sem saber que a vida iludo,
Nem que há sombras no vale, a cuja paz me coso,
Achar o riso, a flor, o cheiro, e azuis em tudo,
Em tudo ter o belo, e resumi-lo em gozo:

Dos deuses eu quisera esta força, esta graça;
O esquecimento só, o esquecimento apenas
Do minuto que vibra a Hora alegre que passa;

Sentir sem ter jamais murchas as açucenas;
Ver meter, sem jamais azinhavrar-se a taça.
Nela as asas o amor, nela o beijo as antenas...

 

ESBOÇO DE PAISAGEM

Relvosa a veiga; aqui, ali coberta
De agrestes moitas a florir, termina
Em pedras soltas, como um cais em ruína,
Que a orla branca da areia enlaça e aperta.

Conchas rubras, que o mar aí deixa; a fina
Alforreca, a alga verde enche a deserta
Praia, que a sonolenta vaga incerta
Babuja, enquanto se espreguiça e inclina

O dorso azul, e arfando arqueja e morre
Ao longe o oceano, que se estende enorme,
Mete as unhas no céu, pondo-as de fora;

Arranca a luz, que à espádua inda lhe oscila,
E uivando e abrindo a lúgubre maxila,
Águia de ouro ferida, o sol devora.

 

A ALMA DAS COISAS
(A Osório Duque Estrada)

O rio, a pedra, a sombra, a relva, o tronco, o arbusto
Pensam. Uiva, convulsa a selva, no arvoredo,
Quando, em trapos de noite embrulhado, um vetusto
Monstro de luz, num beijo, a fecunda em segredo.

Há caras onde existe a contração do medo;
Decapitado, e em pé, freme um torso robusto:
Choram, aí pelo chão, cabeças de penedo...
Coxos deuses de rocha ao vale descem a custo.

Vento mau, barbas cor de ouro velho, arrebata,
— Liquens de um seixo — a um monge esgrouviado e ossudo,
Que eternamente rosna uma injúria insensata...

Enche a cólera a voz das coisas... Não me iludo:
Ouço a respiração asmática da mata...
Se Deus não desse a dor, dera acaso Alma a tudo?!...

 

CONVENTO DA BATALHA
(Em frente a um quadro)

Epopeia da pedra, hino em mármore escrito,
Cada estrangeiro arranca um pouco do colosso;
Cospe-lhe à fronte o raio o luminoso grito,
Ladram-lhe aos pés a fome e as iras do molosso.

Encostado aos poiais da escadaria, o moço
Campônio a frauta ensaia indiferente: — ao infinito,
— Águias negras — em um fantástico alvoroço
Alam-se as torres sobre as asas de granito.

E aquela mole imensa, arcos, aterradoras
Pontes, e botaréus, e zimbórios, — luzernas
De colunas trepando, orquestras triunfadoras,

Cantos, que os carrilhões lhe arrancam das entranhas,
Que fluem vales além, — e além enchem montanhas,
Tudo ela dá na paz das construções eternas...

 

CAPELA SUBTERRÂNEA

Descida por degraus e disfarçadas rampas;
Veem-se na cripta escura, em mármores de Paros,
Brasonados heróis, grandes duques preclaros,
Que andam rubros e sãos na glória das estampas.

Presos ao teto por anéis e curvas grampas,
Lampadários de bronze e prata, inda mais caros
Pelo desenho ideal, lavor de artistas raros,
Mal bruxuleiam sobre a ampla lájea das campas.

No altar único ao centro um lume triste e aflito,
Em vascas lambe e morde a auréola de um santo:
Cai da abóbada o peso enorme do granito;

Chora o mesmo silêncio em torno um mudo pranto;
E ouve-se acaso um plinto estremecer ao atrito
De um rei de pedra, austero, armado em pé, a um canto!

 

AS TORRENTES
(Ao Dr. Joaquim de Pausa Sousa)

Penedias, Briaréus a grandes traços
Feitos, e a golpes de cinzel gigante
Pelo escultor, que deixa nos espaços
Os pregos de ouro quente e chamejante

Das alpercatas, com que vai triunfante
Calcando, à noite, o azul a grandes passos,
Sem um sinal de esforço no semblante,
Levando os sóis debaixo dos seus braços...

De vossas rudes órbitas vazias,
Sob os sulcos de alvar e bronca testa,
Quem vos arranca as lágrimas sombrias?...

Quem vossa fronte enruga, escalva, cresta?
— Eu, disse o sol, eu mordo as penedias;
— Eu as faço chorar, disse a floresta.

 

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JAULAS
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A ÁGUIA

A águia negra, num voo, de repente
Fura o céu, desprendida da montanha,
E parece levar em feixe ardente
Luz, que às garras metálicas apanha.

Afronta o sol, provoca-o frente a frente,
Deixa as nuvens atrás, remonta em sanha...
E volta irada, triste, e lentamente,
Por ver tão longe a luminosa aranha.

Liso, e em fogo o areal, como um espelho
Amplo, se estende ao seu olhar vermelho...
Vermelho, como a espuma dos vulcões:

Desce; e por desenfado ao bico enorme,
Enquanto um grupo de gazelas dorme,
Folga arrancando os olhos aos leões.

 

LEÃO PRISIONEIRO

Foi uma insídia: ela atirou-o ao ignavo,
Amargo exílio, ergástulo de arame;
Gritou-lhe embora: — Rei da força, brame;
Darda-me os raios dos teus olhos, bravo.

Nada o exacerba; nada o irrita. — Exame
Cobarde sofre à juba, ao pelo flavo;
Chumba-o a implacabilidade alvar do escravo,
Quieto, calmo, sonolento, infame...

Como um vencido estúpido da sorte,
Encheu-se de mudez e de sigilo,
Que é outra morte, antes de vir a morte.

Desdenhoso, incolérico, tranquilo,
Guarda esse orgulho, púrpura do forte,
Régio trapo que o envolve em tudo aquilo.

 

A ARANHA

Quando na fina, complicada teia
A mosca prende as asas rutilantes,
E sente em cada pé uma cadeia,
Que ao céu lhe furta os voos iriantes,

Stringe... que quase o ergástulo baqueia:
Tempesteia, reluta alguns instantes:
Porém de longe a aranha escura e feia
Lhe alteia o muro, aos gritos lacerantes;

Stringe... revoa, cai: stringe, desata
As asas de esmeralda, e ouro, e prata,
Como lutara uma águia emaranhada,

E Prometeu: mas cede à força estranha.
Move-se então, caminha, chega a aranha.
E, antes que a empolgue, para inda aterrada.

 

O BOI

Não espantara o Olimpo inda a temeridade
De Prometeu; a vida era um problema escuro;
Alcides não domara a Hidra, e a enormidade
Do Centauro; ladrava o oceano ao palinuro.

Robusto como o leão, não tão nobre, é verdade,
O boi de nossos pais já suportava o duro,
Áspero jugo — bom, calmo, na austeridade
De quem carrega o tempo e as messes do futuro.

Amo-o por isso; e quando ele ergue o corpulento
Torso pela mudez glauca do vale, e afina
O quadro o sol no ocaso — águia ferida em lento

Rolar, descer, cair — então parece a ruína
De enorme construção, vetusto monumento,
Do qual resta uma torre em pé, sobre a campina.

 

A MORTE DO CAVALO

Rico cenário: um campo imenso e a emoldurá-lo
Os morros no calor glauco dos flamejantes
Raios de um sol rojando entre armados gigantes:
Em cima o rei; e embaixo, à mesma hora, o cavalo,

Que vasquejava ali, como um Sardanapalo
Entre mulheres, entre os sândalos fragrantes,
Um fumo de ouro em circo à fronte, como um halo,
Nativo e calmo orgulho em todos os semblantes.

Brisa, que deixa um fino e estranho aroma, passa,
E esse aroma à minha alma, em cimo azul, se enlaça;
E enquanto expira e acaba o monarca da luz,

A fremir do corcel o pelo, a cauda, a clina,
Dos olhos cai-lhe o céu, dos pés cai-lhe a colina,
Ao mesmo sopro que deuses e heróis conduz...

 

A MOSCA

Era um trabalho de divino artista,
Deslumbrante de luz e transparente,
De ouro, esmeralda, pérola, ametista,
E o que há de rico em pedras do Oriente.

Era um sol pequenino, e doce, e quente,
Joia viva, que noutra joia enrista,
Com voo doido, alegre, impertinente,
Beijando-a à boca, e a cintilar-lhe à vista.

De mel não era de colmeia tosca,
Que ia ali ebriar-se aquela mosca,
Grácil, ávida, trêmula, a fremir.

Mas os lírios das mãos gentis brandindo,
Viu-se, um céu ela toda, o inseto lindo
Cair do céu e inda no céu morrer.



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PAGÃS
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MOLLE TARENTUM
Quid latet...?

HORÁCIO — CARMEN

Não dá Tarento mais alguém que surta:
Tarde acorda, e em vil ócio esmói a sesta;
A vida breve a torna inda mais curta;
E dos homens, que teve, homem não resta.

Os de hoje! aí stão: Cabelo sobre a testa,
Que ao rosto oval a curva branca furta;
Cara de efebo, e em todo um cheiro a murta,
Como o olhar de uma deusa armado em festa.

Borzeguins cor de rosa, e fitas verdes,
Túnica fina, transparente, vasta...
Não os olheis, por Hebe, é vos perderdes;

Virgens do Lácio, ouvi: isto vos basta:
Fugi, para em vós só beijando verdes
A casta luz do sol em luz mais casta.

 

NO DICTERION

Péricles rindo e amigos vão às Cenas
Loucas da noite, em busca da hetaira.
Mesclam aos sons do kin, crotais e lira,
De Minerva e dos mais canções obscenas.

Solta a túnica verde, que condenas,
De um grande lírio o leito amor cobrira,
Igual àquela, que na espuma abrira,
E abriu nas pedras imortais de Atenas.

De pé nos largos ombros dos desejos,
Que asas de águia medindo os sóis semelha,
Chegavam dela à boca... Inda hoje vejo-os.

Ao sair do triclínio, a tez vermelha,
Ébrios, que ebriam mais e enturvam beijos,
Que os teus vinhos, Ligúria, e os teus, Marselha.

 

ORFEU

Há clamor nos rosais, há dança na montanha:
Valsa o arvoredo, rola em torno Pã, cintila
Enroscando-se o rio; o leão tem na pupila
Serpentes de ouro, o tigre uma fogueira estranha.

Cresce o delírio, sobe à esfera, e os numes ganha;
Entra o furor na turba há pouco inda tranquila
Dos planetas; e tudo anda em roda; vacila,
Precipita-se o Olimpo, e o ébrio ritmo acompanha.

Sobre as vagas do mar, por vez primeira quedas,
Netuno ergue a cabeça e o grupo das Nereidas.
Bóreas, filho da Aurora, as asas suspendeu.

Jove, os raios brandindo, os quer conter; aos brados
Surdos, deuses e sóis, em turbilhões levados,
Passam. — No Atos, de pé, cantava à lira Orfeu.

 

CONÚBIO

Na maciez da pele escura da pantera,
Que Mirila escorchou no ermo verde da mata,
Como quem nada teme, e Pã nem mesmo espera,
Num mole gesto nu, o corpo ela desata.

Permesso aí perto flui: — anda a enrolar-se a hera
Ao acanto, à rocha: um deus de mármore em cantata
Longa, eterna, águia entorna, e aljofra em torno a esfera;
Franja-lhe o azul do céu toda essa ondeante prata.

Pela aberta, a profunda abóbada flameja:
E, como boca arfando uma outra boca beija,
Das folhas, que abre Eos, a harpa as mãos lhe murmura.

Stratocles chega: — a deusa ou dorme, ou finge embora...
Ele é o sol, que surge atrás daquela aurora,
E em si funde dos dois a luz em luz mais pura...

 

OS FUNERAIS DE AQUILES

Foi numa urna de ouro, cinzelada
Pelo buril divino de Vulcano,
Que a mãe de Aquiles veio do Oceano
Guardar a cinza heroica e imaculada

Do filho de Peleu: a desgraçada
Viu misturar-se o lúgubre alarido
Dos Imortais à lágrima chorada
No ilustre pó do semideus vencido.

Jaz o Helesponto. — Ainda ouve-se a grita
Das deusas; chora-o o jovem Baco; aflita
Por ele, inda hoje as queixas vãs desata

Tétis, — princesa que dragões atrela
À concha ebúrnea do seu plaustro, — aquela
Que o mar esmaga aos seus dois pés de prata.

 

CIO

Não ouças, não, o soluçar do cheiro
Dos lírios brancos, dos rosais florentes...
Que te não fale ao ouvido o jasmineiro...
No vale Pã e os Sátiros não sentes?...

Olha. É cada perfume um mensageiro,
Que te enlaça nas asas transparentes:
Cantam teu nome os troncos e as correntes,
Dançando aos sons de um colossal pandeiro!...

Com junquilhos gentis prende-te os pulsos
Eros, morde-te estranho calafrio,
Antes carícia, o flanco, e aos seus impulsos

Verás irada a natureza em cio,
E os deuses desgrenhados e convulsos
Beijando em choro as Náiades do rio!...

 

CRUCIFICAÇÃO DE PROMETEU

Cratos brada: — O Destino, Hefáistos, odeia,
Não perdoa aos heróis; por mim eu nada faço:
Põe-no de alto, ergue-o em cruz; atravessa-lhe um braço,
Prende o braço ao rochedo, o rochedo à cadeia;

Solda os elos ao torso; enrola, aperta, enleia...
Prende o outro braço; a coxa, — a outra; assim: cerra o laço;
No peito um cravo: bate: — esmigalha-lhe a ideia
No crânio, — o fogo, que ele andou roubando ao espaço,

E aos efêmeros deu, o lume assim roubado:
Jove quer Prometeu ao monte agrilhoado;
Prometeu paga a Jove a rebelião sublime.

Sob as garras do abutre a espicaçar-lhe a entranha,
Não há um deus que tente arrancá-lo à montanha?!...
Homem, o Prometeu és tu, e é teu... seu crime...

 

HUGOANA
(Por ocasião da morte de Victor Hugo)
 


ÀS PORTAS DO INFINITO

Irrompeu de repente: a água assim sai de um monte:
Foi-lhe o primeiro voo o primeiro conflito,
Nas garras colossais rasgou o antigo mito,
E constelou de novo a amplidão do horizonte.

De escárnios, como a um deus, laurearam-lhe a fronte:
Rugiu, como um leão indômito, proscrito.
E fez, de estrofes, que são mundos de ouro, a ponte
Por onde foi subindo aos umbrais do Infinito.

De lá baixou sereno o olhar o enorme Poeta:
Tinha o oceano o estertor da fera irrequieta,
A terra inda insultava os deuses e os heróis!

Mas viu que, para ter chegado a tanta altura,
Transformara-se tudo, ódio, inveja, amargura,
Nessa áurea escadaria intérmina de sóis.

 

JOÃO VALJEAN E DEUS

Quando a nuvem, com que os olhos cerra,
O anjo da morte lha deitou num beijo,
E o poeta enfim deixou de ser da terra,
Houve no céu então um só desejo:

Queriam todos vir, como em cortejo,
Buscá-lo: era um barulho, era uma guerra!...
Deus porém asas cândidas descerra,
E diz: — Vou eu: já para abaixo adejo... —

Mas um, que o olhar humildemente fita,
Cheio de noite e estrelas da manhã,
Na imaculada luz... — que lhe permita...

(Com o olhar só, suplicava aquela dita...)
Deus tornou: — Pois vai tu, vai, João Valjean... —
Pondo mais sóis na abóbada infinita...

 

O VELHO LEÃO

Levando ao ombro a cruz dolorosa da vida,
Subi, à tarde, a erguido e escabroso caminho,
E me vi sobre o cimo aspérrimo sozinho,
Tomado de tristeza imensa, indefinida.

Havia na floresta escura um murmurinho;
Atravessava o azul uma nuvem perdida;
O sol, como medalha antiga despolida,
Deixava o céu, como um condor viúvo o ninho;

E eu disse: — Sofro! E o mundo ou sofre, ou sonha e dorme. —
Quando saiu do céu, do mar, e da montanha
Uma boca sinistra, e uma palavra enorme.

E a um tempo astros aos pés, e estrelas pela fronte,
Como quem busca a tenda, após a luta ganha,
Um deus, um velho leão, alto, enchia o horizonte...

 

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SOMBRAS E RELÂMPAGOS
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JESUS AO COLO DE MADALENA
(A Guilherme Bellegarde)

Jesus expira, o humilde e grande obreiro!...
Sobem já, pela cruz acima, escadas;
E nos cravos varados do madeiro
Batem os malhos, cruzam-se as pancadas.

Ouve-se o choro em torno. — As mãos primeiro,
Inertes, caem no ar dependuradas;
A fronte oscila; arqueia o tronco inteiro
Nos braços das mulheres desgrenhadas.

Soltam-se os pés. — Aumenta o pranto e a queixa.
Só Madalena ao ouro da madeixa
Limpa-lhe a face, que de manso inclina.

E no meio da lágrima mais linda,
Com o dedo erguendo a pálpebra divina,
Busca ver se Ele a vê... beijando-o ainda!...

 

O FORTE
(A Machado de Assis)

O varão forte mutilado a meio
É qual Deus, que o escultor em pé levanta,
Nessa atitude respeitosa e santa
Que a pedra guarda no divino seio.

O bárbaro pisou-o sob a planta;
Lançou-o o tempo ao chão, qual fraco esteio;
Mas o mármore — um dia — ergue-se, e canta
Belo, como das mãos de Fídias veio.

Basta que caia a gota de água em cima,
E que um raio de sol a enxugue instantes,
Para irromper a sonorosa rima

Do coro dessas linhas cintilantes;
E no meio da luz, que o beija e anima,
O Deus de pedra inda é maior que dantes.

 

A FORJA
(A Fontoura Xavier)

Um só ponto esburaca o manto à escuridão;
Uma fagulha ainda em cinza e no repouso,
Como uma estrela branca em fundo vaporoso,
Perdida em noite calma, além pela amplidão.

O fole ronca e sopra em torno um furacão:
Revoluteia a cinza, e o ponto duvidoso
Roja da boca enorme um mundo luminoso,
Que gira, como sangue, em rubra inundação.

Surgem daqui, dali, nas panóplias, — figuras,
Que parecem rolar astros das cataduras,
Batendo e rebatendo o ferro sem parar.

E forjam gravemente os trilhos das estradas,
As algemas dos reis, as folhas das espadas,
E o punhal que há de um dia um Bruto manejar.

 

A CALÚNIA
(A Reinaldo Carlos)

Fere a negra calúnia a fronte mais divina,
Como o céu mais azul o furacão invade;
E mais vezes o raio, o vento, a tempestade
As altas construções e as montanhas fulmina;

Porém, quando passado o mau tempo, ilumina
Seus frontões colossais o sol da imensidade,
À rocha no alcantil, na catedral à ruína
Dão-lhe à eterna grandeza a eterna majestade.

Ao fogo é que se arroja o bronze mutilado,
Que ferve, flui, e lança ao molde preparado
O herói que se levanta em meio à multidão.

Para o escultor erguer a criação mais bela,
Golpeia o monte, e espreme o mármore, e o modela
A pancadas de malho e a golpes de alvião...

 

O TAMBORZINHO DE ARCOLE
(A Artur Azevedo)

... ius valuit.

Tácito — Annalium

Quando um dia, lançada à guerra, a jovem França
Começou a parar sob Arcole esmagada:
E via as asas de águia, e as asas da esperança
Murchas na haste que as leva, e ela metralhada;

Quando Napoleão, general e criança,
Brandindo a tricolor bandeira, e erguendo a espada,
Bradava ante as legiões da República: — Avança!
E ele só parecia a França laureada...

Um rapaz louro, imberbe, ardente, entusiasta,
Tendo os sonhos da glória em sua fronte vasta,
Junto ao seu general, só... rufava o tambor.

Esqueceram-no... Um dia ao ver não estar no olvido,
Que o Panteão, em Paris, tinha-o em pedra esculpido,
Vê, cai, morre, exclamando: — A história tem pudor!!...

 

JESUS PANTOCRATOR

Há na Itália, em Palermo, ou pouco ao pé, na igreja
De Monreale, feita em mosaico, a divina
Figura de Jesus Pantocrator: domina
Aquela face austera, aquele olhar troveja.

Não: aquela cabeça é de um Deus, não se inclina.
À árida pupila a doce, a benfazeja
Lágrima falta, e o peito enorme não arqueja
À dor. Fê-lo tremendo a ficção bizantina.

Este criou o inferno, e o espetáculo hediondo
Que há nos frescos de Santo Stefano Rotondo;
Este do mundo antigo espedaçado assoma...

Este não redimiu; não foi à Cruz: olhai-o:
Tem o anátema à boca, às duas mãos o raio,
E em vez do espinho à fronte as três coroas de Roma.

 

JUDAS SEGUNDO A BÍBLIA

Poderia fugir à Divindade?
Era preciso um beijo fratricida
Que desse a morte; e à morte desse a vida...
Era um destino, uma fatalidade.

Marcou-te Deus da mais remota idade;
Para a traição tua alma conduzida
Assim ao crime, foi também traída
Por Cristo, um companheiro, e sem piedade.

Calvário em sangue, à cruz Jesus alçado,
Nada houvera, nem mundo resgatado,
Sem o teu crime, ó Judas traiçoeiro!

Deus marcou-te com um ferro em brasa o flanco.
Pois bem: o ferro a arder das mãos lhe arranco,
Para marcar a quem traiu primeiro...

 

A VOZ DO OCEANO

Tu estás ouvindo!... — Eu sei que tu estás ouvindo
A voz, que vem do abismo, a voz, que te seduz:
Que rubor em teu rosto!... amor, teu rosto lindo
Tem hoje sobre a neve estranho véu de luz.

Do pego de tua alma um eco está subindo,
Som vago e triste, como a solidão produz:
Que fala o coração no inquietamento infindo,
Que vida te aconselha, e aonde te conduz?

A tua consciência é como um vento solto
Por sobre um mar, que foi azul, e está revolto,
Que na encontrada mó dos rijos escarcéus,

Ora te faz descer a um báratro profundo,
Ora te arranca e leva acima enfim do mundo,
Para, apenas, mostrar-te a escuridão dos céus!...

 

VIDAS MISTERIOSAS
(A E. C.)

Há, minha amiga, a vida tenebrosa,
Sem sorrisos nem lágrimas na trama,
Bem como um tronco, que somente a chama
Arranca dele a cinza perigosa.

Ninguém lhe soube os sonhos cor de rosa,
Ninguém lhe soube o que deseja ou ama,
Razão, orgulho, dor misteriosa,
O que há dentro, por fora não derrama.

Tem sobre a face a máscara uniforme;
É como um mar de gelo ermo e tranquilo;
Atrás de um muro vive, acorda, e dorme.

Duro enigma de bronze à vista exposto,
Um ódio eterno deve ser aquilo...
O ódio deve ter aquele rosto...

 

UNHAS E GARRAS

Parecem-me de neve as tuas mãos voluptuosas:
Há tanta branca espuma em teus dedos pequenos,
E têm tão fino pó de pérolas e rosas
Que eu já vejo surgir de cada um deles Vênus.

Há neles tanto azul na teia transparente,
Tão vasto é o irradiamento intenso dessa alvura,
Que um céu desce e lhes põe um sol resplandecente,
E o que um grande Deus fez, lhes fez em miniatura.

Gorjeia-lhes a pele o sândalo tão baixo,
Como um trilo que sai de moita de lilases,
Remirando-se ao vítreo espelho de um riacho.

Porém quando com um só dedo um mau gesto fazes,
Detrás das unhas, onde auroras passam, acho
Ver garras de leões atravessando oásis.

 

A MÃE DAS SETE DORES

É velha; mas a hora que caminha,
Marca, a férreo ponteiro, a face dela:
Vê-se no gesto, inda hoje, que foi bela,
De uma beleza austera de rainha.

O tempo em rugas múltiplas se apinha,
Qual risca um lago a garra da procela,
Na tez, que foi esplendorosa tela,
E onde riu tudo, a mágoa enfim se aninha,

Tem hoje a cicatriz do desconforto,
No olhar, nos lábios, no sorriso morto,
Na fronte em pregas cheias de rumores.

Muda estátua de mármore estragado,
Parece que viveu por ter chorado,
Como a Niobe, a mãe das sete dores...

 

AS DUAS IRMÃS

Estas duas irmãs são velhas parasitas
Gafas, trepando o tempo, em roscas variegadas,
Que nos ficaram já das gerações passadas,
Sobras das virgens que no tempo eram bonitas.

Não resta delas flor: mulheres esquisitas,
Com raivas imbecis, lutam sempre arrufadas
Pela escolha da cor das sedas e das fitas,
De uns belos noivos, que inda hão de vir, embaladas.

É cada qual, que o acaso em chão sáfaro lança,
Sem ter jamais provado a fundo o gosto à vida,
Uma pobre, uma tonta e iracunda criança;

De uma conspiração delas só conhecida,
Contra um crime geral tramando ideal vingança
Rosnam ambas ao umbral da próxima jazida.

 

HORRIDA DOMUS

Chego: entrei. — Quatro cães emagrecidos,
Sujos, de instintos maus, saltam ladrando:
Em torno, um quadro à Holbein, ar miserando,
Tudo faminto: os trastes carcomidos.

Grossos de pó, estão como aturdidos,
Em confuso tropel: a custo ondeando,
Num choroso miar, e o olhar não brando
Dois gatos vêm ariscos e vencidos;

Com as unhas o chão desnu rompendo,
Sob um raio do sol alçando o dorso,
Rosnam baixinho, à luz adormecendo.

À sombra, ao lado oposto enfim me torço:
E eis que vejo a mexer-se um corpo horrendo,
Um trapo humano a rir num longo esforço!...

 

NIOBE

Via-a sempre. — Era um anjo fulminado,
Ou num longínquo exílio uma princesa;
E seu rosto comprido e desmaiado
Cobria o véu duma mortal tristeza.

No velho e nobre busto esculturado
Guardava o traço augusto da beleza,
No olhar de aço brilhante a chama acesa,
E o lábio, aos cantos, com desdém tirado.

Nas magras mãos, nos longos dedos tinha
Veias grossas, azuis; o andar sereno:
Do tronco um pouco já quebrada a linha.

O pé, calçado com primor, pequeno;
Boa, com graves gestos de rainha,
Que não quer mais reinar, nem quer mais reino...

 

O GRANDE HELIOGÁBALO

Em Deus um luxuoso Heliogábalo vejo,
Que abriu no espaço um circo, e do alto a luta assiste
De sóis vencendo os sóis; e o sangrento festejo,
Eterno e sem repouso, oh! jamais o fez triste.

Não tendo outro prazer, não tendo outro desejo,
Criou o amor, que equilibra o universo, e consiste
Em unir uma flor a outra flor num beijo,
Como eu me uni a ti, como a ti tu me uniste.

De venábulos, rindo, afiados de perguntas
Me encheste: eu tinha as mãos frias, trêmulas, juntas;
Abri, fechei um livro, olhei-te: olhei de fronte

E ao longe, ao poente; o sol entrava a áurea arcaria
De incendiada Alhambra; o ouro em brilhos fundia...
Voltei-me: e em teu olhar chameava inda o horizonte!...

 

OS SUPERBUM

Dizem que à mais audaz e mais sublime
Negar, — que o duvidar é triste e feio:
Se eu não descreio, se também não creio,
Com que palavra acusarei meu crime?

Vime sou, passa o vento, e dobra o vime:
Eu amo, eu sinto, eu sofro, eu não odeio,
E vou de céu em céu, de enleio em enleio,
Sem ver quem busco ou ver quem me redime.

Como é bom vosso orgulho, e um tal repouso!
Eu não espero, cínico e perverso,
Tirar da dor da vida o eterno gozo:

Eu sou triste, eu sou um vencido, e imerso
Nas sombras ouço o Nada temeroso...
Vós... tendes Deus, e as chaves do universo...
 


OS REBELDES

Tenho ouvido dizer que desde o homem primeiro
Houve o medo de Deus, o Deus bom da Escritura;
E sempre viu-se em todo o tempo a criatura
Ter o terror, que preso, acusa o prisioneiro.

Ante a dor um rebelde uivou um dia inteiro;
Perguntou: — Por que à dor a vida se mistura?
E um audaz Prometeu, grande, como um argueiro,
Foi, e mediu com Deus sua própria estatura.

Como fundo o céu todo, o céu todo e o horizonte...
Assim sondando o espaço, e olhando fronte a fronte,
Dois heróis devem ser, antes de uma batalha.

Talvez trema a montanha ao pé de um grão de areia,
Porque se ela inda agora o enorme dorso alteia,
Pode ser amanhã pó, que o vento ergue e espalha...

 

A RESPOSTA DAS COISAS

Grande alma universal, onipotente e boa,
Ouve: em vez de calçar com lágrimas, com riso
Aveluda o carreiro árduo e estreito que piso:
Um deus qualquer, vê bem, olha, um deus te atraiçoa.

Perdeu-se a âncora antiga, a vaga arrebatou-a.
Encarna-te de novo, um milagre é preciso;
Busca nova mulher, e, se inda é tempo, voa,
Dá-nos novo Jesus, e um novo paraíso.

Coalha de Alhambras de ouro o azul do teu caminho.
O mundo é jaula, a jaula, — anda, — transforma em ninho.
Numa das tuas mãos outro universo dorme.

Abre, arqueia outro céu, redoira-lhe a corola...
... Mas num grande silêncio outro silêncio rola:
E há no fundo da noite uma lágrima enorme!...

 

NON PLACET

Quem o explica? — Ninguém: — e ninguém me consola.
Estudo embalde livro e livro, e arraso o Oriente,
E busco, em toda a esfinge, e em todo o culto, a mola
Que abre e fecha, em segredo, os elos da corrente,

Que prende mundo a mundo, e cada mundo isola:
Cada qual passa, como um pássaro fremente,
Que em luta sai das mãos, que andam perenemente
Acusando um titão, que os cria, alenta, e os rola.

Um deus talvez?... — Que deus, ó raça enferma e triste?
Há quem afirme ou negue então que um deus existe?
Se há deus, é noutros céus: — céus que outros céus percorrem

Se há deus, que não acabe, é por si deus proscrito,
Fora da natureza, e fora do infinito,
Que é só dos deuses que morrem, como os sóis morrem...

 

À CATEDRAL

Rola cadentemente ao céu o monolito,
Amontoa-se, vai, sobe, e espalma-se ao lume,
E apanha pelos céus aterrados o nume,
Que prende no seu antro enorme de granito.

Amarraram-no ali: ali mora o infinito
Encadeado ao cinzel do artista, que o resume:
Tudo é mármore jônio, oriental perfume:
No meio de clarões coalhou aquele grito.

A alma humana assim dobra as grandes asas largas,
Bebe em cálix dourado as bebidas amargas,
Que envolvem a razão em crespos aranhóis.

Deus não enche a amplidão das catedrais escuras;
Deus andará por alto, em regiões mais puras:
Anda noutro universo, anda por outros sóis.

 

AINDA!...

Sempre o mesmo clarão desse eterno problema!
E a luz, com tanto orgulho impõe-se, enchendo a esfera!
E uma dúvida amarga a fluir desse estema!
E longo o abismo azul, insondável cratera!...

O diálogo do dia e da noite lacera!
Não há sol que não caia, estrela que não trema:
E a página, onde acaba o universal poema,
Não tem esta palavra em letras de ouro: — Espera.

Nessa abóbada azul de estranhas coisas cheia,
Delas só o prefácio está lançado e escrito:
E a sombra do porvir larga, profunda, enleia!...

Que mundo haverá entre dois grãos de areia?
O que haverá por todo o incógnito infinito?
Que novos céus um Deus por outros céus semeia?...

 

DEUS, RAZÃO, BONDADE

Razão imensa, que no céu cintila,
Dominadora de homens e de coisas,
Em teu poder magnânimo repousas,
Enquanto a dor me gasta e me aniquila.

A tua imagem lépida e tranquila
Mostrar, ó grande benfeitor, não ousas;
Só através do mármore das lousas
Poderemos um dia descobri-la.

Quando o sol, como alâmpada se apaga
Ao morto, e o morto é pavorosa chaga,
Quando é já podridão, não vê, não pensa;

Quando as rosas a terra, que ele engorda,
De cróceas rosas sorridentes borda
Tu te mostras, então, Bondade Imensa!!...

 

O CORAÇÃO

Tenho cá dentro em mim um pássaro que salta,
Que não repousa, que não dorme noite e dia:
Quem dentro do meu peito acaso o prenderia?
Por que não canta nunca? e o que quer? que lhe falta?

De que estranho tormento ele vive? o que exalta
Sua existência, que não me deixa, e porfia?
As asas, que ele estende em mim, estenderia
Ao mais profundo mar, à montanha mais alta.

Se o cárcere rompesse, em que abismo medonho
De rojo cairia, o céu todo inda estando
Muito aquém da ambição que o devora: suponho...

Nesse vórtice louco acabas, miserando...
Ó coração, tu és um hóspede enfadonho;
Quando, abutre, hás de em mim não mais fartar-te? Quando?

 

DEUS

Of Heaven, and from eternal splendours flung
For his revolt...

Milton — Paradise Lost

Deus existe? — ou é Deus somente um nome vão?...
E bato às portas de ouro e de opala da aurora,
Donde o sol — velho leão — noite e estrelas devora;
E às estrelas da noite em louco turbilhão...

Ao mar, ao vento, ao raio, ao tempo, ao abismo em fora,
Ao argueiro, e à montanha, às lavas, e ao vulcão,
Ao passado, ao porvir, ao berço, à cova.. Embora!...
Cala-se a natureza ou me responde: — Não.

Subo à minha alma então: chamo-a, interrogo-a... Nada...
E ela fica a oscilar, no abismo pendurada,
Vendo o espaço afundar-se em outro espaço sem fim...

Só entre o torvelim dos caos em labirinto,
Como com seu bordão na areia um cego, — o instinto
Sobre a poeira dos sóis grava um trêmulo — Sim.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.


 

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