4/09/2023

A história do narrador (Conto), de Rodrigo Paganino


A HISTÓRIA DO NARRADOR

Por mais de um mês procurara também saber a história do tio Joaquim. Havia na tristeza, em que o velho descaia tantas vezes, quando parecia mais alegre, razão sobeja para me aguçar a curiosidade. Tentara interrogá-lo; mas debalde sempre.

Não era porque o tio Joaquim deixasse de me estimar deveras.

Conhecera-me de pequeno e tivera-me sempre por seu companheiro constante nos passeios melancólicos, em que, após o seu pensamento, caminhava horas sem dar palavra.

Ia com ele, calado também. Respeitava a grande dor que nessas ocasiões parecia oprimi-lo; e não me atrevia a perturbá-lo com perguntas indiscretas, ou observações fúteis.

Pressentia, que um padecimento grande o envelhecera bem cedo, e receava tanto mergulhar a vista nas profundezas daquela mágoa, como trepidava sempre ao aproximar-me de um precipício. Era o desconhecimento que me sobressaltava, o que quer que era estranho, que me impunha respeito.

O tio Joaquim lembrava-me um desses livros antigos de bruxedos e encantamentos, que fechado poder-se-ia confundir aos olhos de um observador qualquer com um ripanço de semana santa; aberto porém espavoria a imaginação povoando a com os quadros temerosos de castelos encantados, florestas mágicas, sortilégios infernais, feiticeiros, trasgos, almas penadas e cemitérios.

Levava-me o desejo a folheá-lo; a dúvida afastava-me de lhe tocar.

Aventurara perguntas tímidas em varias ocasiões; mas o velho, sem que empregasse na resposta a natural rudeza, com que despedia os importunos triviais, afastava-me brandamente do ponto a que eu desejava chegar.

— Quando no jardim ou no prado colhe uma flor não cuida das profundezas onde as raízes mergulham para a alimentar; quando tira da fonte uma pouca d'água para abrandar a sede, não indaga por que extensões corre a veia que alimenta a fonte. Não cuide em devassar segredos, que de pouco lhe podem importar; mas que uma vez sabidos lhe hão de trazer desgosto. A amêndoa de muitos frutos trava, enquanto eles são doces, aproveite-se da polpa e não queira saber do caroço.

E assim, mudando rapidamente de assunto, evitava sempre que insistisse.

Entretanto íamos muitas tardes para um lugar da praia, que de preferência escolhíamos por ser mais recatado e só.

Entre ambos havia como que uma comunhão de tristezas. Ele pelo passado, eu pelo futuro; ele por o que já experimentara e sentira; eu porque receava experimentar e sentir também.

Enquanto o velho passava horas silencioso e triste a rever as paginas da sua vida, a rememorar dores, alegrias, saudades, e amores: eu que ia conhecer o mundo, eu que deixava de ser criança e não começara ainda a ser homem, cismava no futuro para que caminhava, e devaneava conjecturas sobre essa vida nova, que ia encetar. Agradava pois a ambos a solidão, e ambos procurávamos de preferência os sítios, onde menos nos podiam inquietar os conhecidos.

A praia da nossa predileção estendia-se desde Cabo-Ruivo e o recolhimento do Moinho. Em frente espraiava-se o Tejo pelos juncais, que, mesmo em preamar, erguiam os cimos arrouxados sobre as águas; detrás a costa subia quase a prumo para os olivais do Casal das rolas.

Uma ou outra pedra enegrecida pelo tempo, pelo quebrar das ondas, pelos limos e pelas ostras que a revestiam destacava-se na areia da praia, ou avultava por meio dos juncos. O rio, naquelas alturas quase sempre só, parecia não terminar no lado oposto; porque a outra margem se confundia com o céu. De cima, como torre de vigia de castelo antigo entrava pela água dentro o pavilhão quadrado e de teto esguio do antigo recolhimento. Debaixo o cabo a que pela vermelhidão do terreno tinham dado o nome de Ruivo, limitava o horizonte, e tirava a vista da parte do rio mais cheia de navios e de animação.

Tudo ali era silencioso, tudo infundia sentimento, tudo convidava para a meditação.

Torcendo-se por entre os alcantis da ribanceira, escondendo-se umas vezes por detrás de moitas de rosas carrasquinhas e de giestas, outras caminhando entre pequenas matas de congoças, outras descobrindo-se de todo num terreno escalvado e nu, um caminho de pé posto conduzia dos olivais à praia, e estabelecia comunicação entre o mundo e aquele retiro. Avistávamos pois a grande distancia, quando ali estávamos, qualquer, que do Casal descesse para a praia, e haveria por conseguinte facilidade de mudar de conversação, sem que nos perturbassem de imprevisto.

A meio do carreiro numa lapa gotejava da rocha a água mais pura das vizinhanças e demorava-se num berço de relva e musgo verde como esmeralda, macio como veludo, e que forrava a cova, que a água havia feito. Junto à fonte algumas pedras polidas pelo roçar continuo dos cântaros das raparigas dos sítios, que ali vinham buscar água, ofereciam um bom pouso para descansar.

Era também ali que mais de hábito nos sentávamos. O mar diante de nós, o céu sobre nossas cabeças, as costas dadas ao mundo, e a imaginação a perder-se no espaço.

Depois, quando descaia a tarde, aquele silêncio perturbado apenas pelo surdo marulhar das águas, aquelas cores sombrias do mar e do céu, aquele espetáculo do infinito, que tanto nos confrange e oprime, e a indecisão, que nos balouça no espírito, as dúvidas que se apoderam de nós, sobre o que seremos, sobre o que nos tornará felizes, a luta com essa terrível e misteriosa esfinge que se chama futuro, tudo isso me levava a um estado especial que muitos talvez tenham sentido, mas que poucos poderão definir, em que desejava sem saber o que, em que sofria e agradava-me o sofrimento, em que amava e debalde queria fixar o grande amor que sentia, em que lastimava sem que pudesse explicar porque, não estar assim sempre, não passar daí para outro mundo, outra vida, outro que quer que fosse, para mim desconhecido, mas que me parecia fatalmente destinado para me dar a verdadeira felicidade após a qual voava a minha imaginação apaixonada.

Estes ataques de uma nostalgia particular traduzi-los-ia eu, se tradução pudessem ter, como o chorar da alma infinita dentro da sua tão limitada prisão, pelos espaços e pelos mundos infinitos donde veio, e onde deve ir um dia.

Sei, para em duas palavras me exprimir, que sofria muito, mas que era feliz sofrendo assim.

O meu velho companheiro, esse, apenas ali chegava sentava-se numa das pedras, carregava o cachimbo, feria lume, acendia o tabaco e entrava a fumar; depois o pau com que começara a traçar arabescos no chão parava gradualmente, os braços caiam-lhe sobre os joelhos, o cachimbo apagava-se, e os olhos cerravam-se-lhe como se tivesse adormecido.

Quando, passado tempo, parecia tornar a si, tinha os olhos vermelhos, o rosto abatido, o corpo quebrado. Levantava-se com muita dificuldade e mal se podia arrastar aos primeiros passos. Depois fazia como que um grande esforço sobre si, compunha a fisionomia, chamava um sorriso bastante rebelde nessas ocasiões, e tornava a ser o tio Joaquim da casa da malta e do canto da lareira.

Foi numa dessas tardes, e na praia de Cabo Ruivo, que consegui ouvir ao velho narrador a sua história. Andara triste todo o dia, acabara de jantar, dera conta da obrigação e convidara-me para sair em sua companhia. Não soltara meia palavra pelo caminho e mal chegara perto da fonte atirara consigo para uma daquelas pedras tão desalentado, que parecia não querer mexer-se mais dali. Ficara a cismar, como costumava; mas não seria passado ainda um quarto de hora, ao olhar para ele vi que lhe escorregavam as lágrimas pelas faces.

— Chora, tio Joaquim?...

— Não repare, atalhou ele rapidamente limpando as lágrimas, como envergonhado, eu também não reparava.

— Anda sempre triste, e assim sem desabafar, bem pelo contrário fingindo-se alegre quase sempre; há de padecer muito!

— Muito! Mas não tem dúvida.

— Diz-se que as mágoas contadas são aliviadas; porque me não dá parte das suas tristezas?

— Para quê? Com o andar do tempo não lhe faltarão próprias; deixe as alheias.

— Cuida que sou alguma criança, tio Joaquim?

— Bem sei que não é, mas...

— Seria a maior prova de amizade que me pudesse dar. Há tanto tempo que desejo saber a sua vida!

— Como deseja ouvir as histórias aos serões, não é assim?

— Não. Essas servem para passar o tempo, esta outra para o conhecer bem, e para o poder consolar.

— Pois seja para me conhecer, que para me consolar não, porque não pode. Hoje também, parece-me que rebentava, se não repetisse alto o que tem sido a minha vida. Quando conversamos conosco, a voz faz eco bem fundo na cabeça e no coração, repercute mais e sofre dobrado. Se não tivesse vindo consigo parece-me que entrava a falar só, para aí a essas pedras e a essas águas. Ouça-me pois, já que tanto deseja saber a minha vida.

E o tio Joaquim deu começo à sua história.

***

Meus pais viviam numa das províncias do norte, e se não eram ricos tinham com que passar menos mal. Meu irmão Filipe e eu éramos os dois únicos filhos, e o que havia chegava bem para nós. Filipe, porque era o mais velho, devia ser lavrador como meu pai; eu, por ser o segundo, estava destinado para frade.

Admira-se, porque já lá vão os frades; mas se vivesse no tempo dos conventos conheceria então, que de ordinário se destinava para ordens sacras o filho segundo em quase todas as famílias.

Acrescia mais que o mestre dos noviços do convento próximo, Sr. João da Solidade, era muito de nossa casa, e depois de ter convencido minha mãe de que me fazia feliz metendo-me a frade, lhe prometera tomar-me sob sua proteção.

Pela minha parte, posto que ninguém me consultasse o querer, parecia me também que viveria contente naquele sossego do convento. Via os frades gordos, satisfeitos, corados e risonhos sempre. Traziam-me presentes e davam-me doces, faziam-me festas, e contavam-me histórias, não me queria pois com outra gente.

Em vendo hábito aproximava-me logo, e minha boa mãe, que a mais não alcançava, lia nesta inclinação pueril uma verdadeira e pronunciada vocação.

Assim fui criando-me nestas ideias, até que chegou a idade de começar a aprender. Fr. João convenceu minha mãe, de que para o meu estudo muito melhor seria viver no convento do que em casa, pois que ao passo que ia seguindo as disciplinas com maior regularidade, ia costumando-me também à regra conventual.

Frei João era para meus pais apostolo e profeta ao mesmo tempo. O que dizia seguia-se com reflexão. Despedi-me, chorei muito e partimos.

Não tinha tamanho desafogo em casa, que estranhasse muito a vida nova que encetava. A companhia dos outros noviços, aqueles costumes estranhos para mim, aquela novidade de estudos, e mesmo o bom modo, com que Fr. João me tratou sempre, conseguiram que dentro em pouco me afizesse de todo ao recolhimento claustral.

Não tinha por fora coisa alguma, que me atraísse, e a afeição de meus pais e irmão, únicas de que a porta do convento me separava, não eram de ordem tal, que me fizesse lamentar muito o haver-me apartado do mundo.

Numa das campanhas em que entrei mais tarde ouvi contar o seguinte caso a um veterano, que tinha ido na legião lusitana com os franceses fazer a guerra da Rússia.

Nas noites frias e claras do norte em que a luz de umas auroras particulares às terras daquele país resplandece nos gelos, começava a cair neve, e os pobres soldados a caírem com ela inteiriçados e hirtos. Alguns cobravam forças, erguiam-se e continuavam. Outros caiam, não tinham forças para se mexer e ficavam por uma vez.

Ao tal veterano, se lhe não acodem ainda a tempo ia sucedendo este mesmo fato.

Dizia ele, que percebia bem que ia morrer, que cada vez se enregelava mais, e que dentro em pouco, tinha disso a certeza, estaria de todo gelado.

Sentia porém um que quer que era agradável naquele aproximar da morte, queria evitá-la mas não tinha forças, e ia sentindo sumir-se-lhe a vida com aquele prazer com que nos deixamos esvaecer após a embriaguez.

A solidão, tive tempo para o observar, parece-se com os gelos do norte. Entristece-nos, mas encanta-nos com a sua tristeza, sentimos que lhe devemos fugir, e conservamo-nos entretanto, parece-nos que nos esmorece a alma e o sentimento, mas é tão doce esse esmorecer, como a morte após um desmaio, como o adormecer da criança nos braços maternos.

Antes de saber o que era a vida, começava a agradar-me a morte, e sem transição alguma, arrefeciam-me os ardores dos dezoito anos, com os frios daquelas sepulturas de vivos a que chamavam celas, claustros e conventos.

Estudava, aprendia, e meditava. Meditava sem saber em quê, porquanto o mundo, que eu via pelas grades do meu quarto, e o que eu fantasiava pela leitura dos livros da biblioteca, diferençava-se tanto do mundo real, que mais tarde vim a conhecer, como aqueles sonhos de madrugada, que nos acodem quando não dormimos de todo e quando não estamos acordados ainda, se distinguem da vida comum e dos acasos de todos os dias.

Passava horas e horas a formar castelos no ar, vagos, indefinidos, indetermináveis, e evocando fantasmas de mundos que eu não conhecia, mas que adivinhava. Dentro em pouco de tal forma me costumei à reflexão e ao apartamento, que fugia de todos nas horas que tinha livres, para ir sentar-me sozinho a sonhar e a cismar.

Apontavam-me no convento como modelo de bom porte, e diziam os frades aos meus companheiros que o amor do estudo e da reflexão me traziam assim embevecido.

Não lhe sei dizer, o que me preocupava, mas não era de certo o amor do estudo, nem o desenvolver da vocação monástica, como a vaidade dos frades lhes fazia supor. Tão entranhado estava em mim o amor da solidão, que nas raras vezes, em que ia visitar os meus, pouco me demorava em casa. Debalde a solicitude materna me procurava deter; em vão, meu pai mesmo, posto que pouco dado a ternuras, me dizia que era conveniente de quando em quando descansar algum tempo; trabalho perdido era o de meu irmão em convidar-me para os divertimentos dos outros rapazes; mal saia do meu convento, desejava logo recolher, e estava fora da minha cela, como o peixe fora d'água. Porque dir-lhe-ei de passagem, a estima de Fr. João fizera com que eu residisse num quarto junto do seu, e não no dormitório comum com os outros educandos e noviços.

Oxalá tivesse eu ficado por uma vez naquela sepultura!

Se não fossem as visitas a minha casa, talvez não tivesse experimentado na minha vida o que era amor; mas também não teria comprado à custa de tormentos invisíveis essas raras e amarguradas horas de sentir apaixonado.

Nestas alturas da sua história o tio Joaquim limpou o suor que lhe corria a fio da testa, curvou-se para a lapazinha próxima, tomou uma pouca d'água nas mãos, bebeu sofregamente; renovou a respiração umas poucas de vezes com força; carregou outra vez o cachimbo, acendeu-o e passado algum tempo prosseguiu na sua narração.

***

Estudos que mais me preocupavam tinham feito com que, havia muito, não fosse visitar os meus. Devendo em breve tomar ordens de prima tonsura, este sucesso, que fatalmente determinava a minha vida trouxera-me entretido, não poucos meses. Finalmente dera o primeiro passo solene, e por conselho de Fr. João, parti a congratular-me com meus pais, da conquista que alcançara: e a viver por algum tempo a vida de família antes que de todo me apartasse do mundo.

Parti; e com a indiferença que de mim se apoderara, desde que me haviam destinado para o convento, passei os umbrais daquelas portas que então já eram minhas, e que não se me poderiam cerrar mais de todo, embora quisessem.

Grandes alegrias havia em minha casa. A minha chegada encareceu-as mais ainda. Meu irmão estava breve para casar e a sua escolha fora tanto do agrado de meus pais, que os bons velhos não cabendo em si de contentes não achavam mimos que lhe parecessem bastantes para com eles cercar a esposa futura de seu filho.

Margarida era o que em linguagem comum se chama um bom casamento.

Filha única devia herdar de seus pais uma fortuna considerável. Os seus haveres juntos aos bens de minha casa formariam a primeira propriedade da província.

Sorria a opulência a meus pais e embevecia-os a contemplação de um futuro plácido e desassombrado de cuidados.

Vi Margarida, e ao vê-la, ao trocar com ela as primeiras palavras conheci, que tinha no peito coração, e que me corria o sangue dos vinte anos nas veias tremulas e agitadas.

Margarida aproximava-se também dos vinte anos, mas toda a candura infantil fulgurava naquele rosto, que não desabrochara ainda. Não tornei, por vida minha, a encontrar olhos que mais dissessem ao coração, quando mesmo quase sem querer falar se volviam serenos entre um denso véu de pestanas compridas e encurvadas. Toda a sua formosura estava nos olhos, mas esses não cediam em primores a quantos hei visto em mulher ou em pinturas. Fazia vontade de chorar olhar para eles, sentia se devoção fitando-os muito. Porque não há como a mulher para nos falar do céu, de Deus, das coisas sagradas. Se criaturas assim corressem mundo a resgatar almas, se para os mais apartados da religião dirigissem um olhar daqueles dizendo mágoa, entusiasmo e amor, e depois daí os volvessem ao céu como rasgar caminho para a alma renitente, não haveria ateu que resistisse, nem coração que se não dobrasse.

Vendo Margarida lembrava-me do céu, lembrando-me do céu, acudia-me que professara votos que me condenavam a um perpetuo celibato. Um círculo de espinhos me apertava a imaginação: e padecia, como nem os condenados no inferno poderiam padecer assim.

Com a candura de criança Margarida reconheceu-me desde logo como seu irmão. Não houve segredo que em mim não depositasse, esperança que me não dissesse, planos de futuro sobre que me não ouvisse, queixumes de meu irmão, que comigo não lastimasse.

Filipe casava porque tinha de casar, estimava Margarida como podia estimar uma irmã ou uma parenta, e nada mais. Margarida ao contrário não via, não supunha, que pudesse haver homem, que valesse o seu noivo. Amava-o com a cegueira, com o arrebatamento, com a loucura de um primeiro amor.

Não imagina como padeci com essas confissões arrebatadas, que me denunciavam um mundo de felicidades, que nem sequer entrevera. Não imagina que dor tão funda me ia direita ao coração, quando ela animada por aquele amor que a aquecia e transformava, olhando-me, com as suas mãos nas minhas, com o seu hálito a confundir-se com o meu, transfundia-me a eletricidade que irradiava, e descrevia-me o amor que lhe chamejava na alma.

Deixava-a como louco e ia, quantas vezes sozinho, de noite, correr por aqueles descampados, andar muito sem saber por onde, cansar o corpo para descansar o espírito, e para depois, cedendo à fadiga, poder cerrar os olhos por algumas horas e tentar um sono mais atribulado mesmo do que fora a própria vigília.

Envelheci muito naqueles dias que duraram até ao casamento de meu irmão. Via aproximar-se a época e não acreditava, não sei que louca esperança, não sei que desvario me dizia que tal casamento se não chegava a realizar. Parecia-me um sacrilégio, que tanto amor fosse empregado em tanta indiferença, parecia-me impossível que Deus consentisse em tal.

Sacrilégio era o meu amor, sacrilégio duas vezes, por que era de padre e porque era por uma irmã.

Pelo modo como o tio Joaquim narrava a sua história conhecia eu quanto ele teria padecido, e bem conforme ao que dissera antes de começar, pressentia que outros tormentos deveria haver maiores do que as minhas dúvidas e incertezas sobre o futuro, do que os meus sonhos e aspirações.

Chegou entretanto o dia, prosseguiu o velho, e não sem que a estrada dolorosa tivesse sido para mim bem cheia de agonias e de provações. Margarida não suspeitou nunca quanto eu a amava, nem sob o gelo aparente, em que a tanto custo me sepultava, pôde perceber os ardentes lumes de um amor desvairado. Ocasiões houve em que rasgava o peito com as unhas até fazer sangue, em que tremia em convulsões para resistir, em que me esforçava com sobre-humano ímpeto para não desatar em soluços; outras em que tive de fugir para evitar a sua presença, porque já não podia lutar com o impulso que me arrojava para os seus pés a dizer-lhe quanto a amava.

E tive de assistir impassível a todos aqueles pormenores, que me falavam da felicidade futura de ambos, tive de escutar as singelas narrações de Margarida sobre todas essas minuciosidades, que me retumbavam na cabeça com estridor horrível, porque em todas elas descortinava, ou pretextos para uma carícia, ou cômodos para um transporte, ou lugar finalmente para aqueles doces e para mim desconhecidos mistérios do tálamo nupcial.

Os primeiros clarões da alvorada no dia do casamento, encontraram-me acordado ainda. Na véspera mesmo não acreditava que pudesse chegar: via raiar a manhã e cuidava estar sonhando. Pois Margarida havia de casar!

Minha família, sem compreender nem de leve, porque não recata mais cuidadosamente a abelha os seus lavores do que eu escondera de todos e de tudo o meu insensato amor, minha família, digo, só experimentava uma pena: não ser eu quem casasse meus irmãos, porque a minha benção, cuidavam os crédulos pais, havia de forçosamente atrair felicidades sobre os esposos.

Na verdade seria o último sacrifício, depois do qual poderia dizer a Cristo: também sei o que é o Gólgota!

Pareceu-me tudo um pesadelo, persuadi-me que acordaria breve de tão cruel ilusão. Vi, ouvi, falei, dirigiram-me perguntas, tornei respostas, e não soube nem sei ainda o que vi, o que ouvi, o que me perguntaram e como respondi. Dizem que pessoas há que dormindo andam e falam, assim devia ser o estado em que estive todo o dia.

Mal pôde fugir à noite, corri, corri, e quando me vi bem longe, desatei a chorar como me não lembrava em minha vida de ter chorado assim. Parecia que me estalava a alma naqueles soluços, mas ao correr das lágrimas um grande peso saia de sobre mim. Não sei como, mas chorando sempre achei-me de repente diante das janelas do quarto de Filipe. Estavam iluminadas, fitei-as com o pavor com que daria de rosto com a entrada do inferno; vi passar dois vultos por dentro das vidraças, reconheci-os e com a razão de todo perdida atirei comigo a terra, agarrei com ambas as mãos a cabeça, e comecei a bater com a testa, como desesperado de encontro ao chão.

Com a força da dor perdi os sentidos e para ali fiquei banhado em sangue, até que os raios do sol, já bem alto, me fizeram tornar em mim. Olhei maquinalmente para a janela. Estava cerrada ainda; senti nova vertigem mas dessa vez, sem me lembrar que ia banhado em sangue deitei a correr, o mais rápido que podia, em direção do meu convento.

Disse que uma queda no caminho me fizera o sangue que trazia, e facilmente me acreditaram. A verdade, se o dissesse, é que fora para duvidar.

Encerrei-me na minha cela, pretextei uma doença para não sair e pedi ao meu bom mestre, que me ouvisse de confissão. Contei-lhe a minha história, tal como se passara nesses dias e pedi-lhe que me acudisse, pois que não sabia de mim. Ouviu-me o santo velho com lágrimas nos olhos, depois:

— "Deus me perdoe se errei, disse-me, e mais ainda se fiz a tua infelicidade, Joaquim, chamando-te para o serviço do Senhor. Mas era impossível que assim não fosse. Há homens condenados fatalmente pela desgraça, e tu és um deles. Lê-se no rosto esse infeliz condão, adivinhei-to eu, que também sei o que é padecer.

Para dores como a tua, para outras bem maiores ainda, se fizeram as solidões dos claustros e o gelo destes vastos carneiros. Sepulta para aí a tua alma, enquanto não te sepultam o corpo, sob essas lajes que hoje calcas, e morre já que foste condenado a não viver. Não julgues cruel esta linguagem, é a que te pode falar um amigo, quase um pai. — O que somos nós outros, pobres frades, neste mundo? Fantasmas erradios que arrastamos a mortalha em vida, arrebentos solitários, que medramos entre pedras. Para nós não há família, não há esposa, não há filhos, tudo que é morre conosco, nada deixamos neste mundo, que se lembre de que vivemos.

Mais um número numa pedra, um nome no livro do registro, alguns ossos mais numa cova. Torna impenetrável o teu tumulo, calafata com o maior cuidado qualquer orifício por mais pequeno que seja, que dê para o exterior, e já que nada podemos ter com o mundo aparta-te dele de todo.

Já que não podes ser feliz esquece, já que não podes gozar, não sintas."

Segui à risca o seu conselho. Graças à sua proteção deixaram me na minha cela, mesmo porque, segundo dizia, assim me preparava pelo estudo e pela meditação para ordens maiores. Passou um ano. Trabalhei, estudei muito e como disse Fr. João da Solidade, se não fui feliz, não senti; não me lembrei e não padeci.

***

O reinado de D. Miguel aproximava-se da sua terminação, e a tempestade, que se formara numa pequena ilha no meio do oceano, rebentara já sobre todo o país.

Armava-se a nação em peso; guerrilhas de um e outro partido percorriam as povoações e juntavam aos horrores da guerra civil o assassinato, o roubo, o incêndio, o forçamento e o sacrilégio.

Bem esmorecido era o eco, que na minha cela repercutia; mas ainda assim por ele avaliava das borrascas, que se desencadeavam fora. Por quanto ainda que procurasse apartar-me das coisas deste mundo, por tal forma andavam todos preocupados com os acontecimentos, que se iam sucedendo uns após outros com rapidez incrível, que era impossível deixar de perceber, que havia graves casos, a atribularem a humanidade.

Falaram-me de combates, de mortes, de incêndios, de devastações; mas tal eu estava, que me era tudo indiferente. Antes, porém, ocasiões havia em que, confesso-lho, desejava que um terremoto subvertesse o mundo para que na geral destruição encontrasse vingança correspondente ao que me haviam feito padecer.

Acordei das minhas meditações uma noite, ao rebate dos sinos da povoação próxima e ao dobrar sinistro e precipitado da campa do nosso convento. Ruídos desusados ecoavam por aquelas abobadas, passos de quem fugia, vozes de quem pedia socorro, suplicas, choros, imprecações tudo se misturava e confundia.

Estava para me levantar do estudo e para saber a causa de semelhante alvoroto; quando a figura majestosa de Fr. João da Solidade me apareceu à porta da cela aberta de par em par.

— Ergue-te, Joaquim, disse-me, toma as tuas sandálias e o teu bordão de viajante e caminha!

Aquela voz fora de horas, aquelas palavras solenes produziram-me efeito não inferior ao que deverá produzir a trombeta final no Vale de Josafá.

— Que quer de mim, meu pai?

— Acabaram-se os dias de paz, chegaram as horas das provações e da luta. Os servos do Senhor são perseguidos de terra em terra como animais ferozes em montaria. Os ímpios não respeitam nem as abobadas sagradas, nem os vasos da eucaristia. Mesmo com a hóstia sacrossanta na mão será o padre perseguido se assim o encontrarem!

A espada de Malco substitui a palavra de amor. Volta a igreja aos tempos da perseguição e do martírio; segue-nos, Joaquim, as águas do dilúvio avançam cada vez mais.

Fr. João estava profundamente impressionado. A paixão política ateava-lhe o zelo religioso, o homem do século trazia para junto dos altares as suas afeições mundanas, e das crenças fazia evangelhos. Pela minha parte, quase que o não compreendia. A linguagem enfática, que estava empregando, destoava muito da singeleza em que educara o meu espírito reflexivo e concentrado. Fr. João com o olhar chamejante, o gesto altivo, o rosto iluminado por um entusiasmo mais guerreiro do que apostólico, lembrava-me um daqueles monges pregadores de eras afastadas, que a minha imaginação tivesse feito surgir dos livros abertos diante de mim, e que de espada na mão direita, e crucifixo na esquerda, queriam abrir o caminho da redenção com o ferro destruidor, através das hostes dos infiéis.

— Mas, meu pai, que aconteceu?

— Aconteceu, que os exércitos invasores se aproximam talando campos e povoações; aconteceu, que na sua marcha amaldiçoada não há propriedade que resista, cabelos brancos que se respeitem, honra de mulher que se recate; aconteceu que aos que cedem, espoliam; aos que não cedem, assassinam; aconteceu, que falam em levantar mão sacrílega contra as muralhas defesas a profanos deste venerando templo. Os fariseus em motim pedem o sangue dos justos. Deixemos a habitação de paz, donde nos expulsa a malevolência dos ímpios, e vamos, como os apóstolos, de terra em terra, de monte em monte, de caverna em caverna, onde suas vozes não cheguem, onde seu braço não alcance, levantar sobre a pedra tosca e rude a cruz do sacrifício, a hóstia da redenção. Vem conosco filho, vem percorrer o teu Getsemani.

Entretanto o sino grande continuava a dobrar com som soturno, os gritos da povoação desperta em sobressalto, os passos precipitados dos frades, que desamparavam, gemendo, as celas em que haviam vivido por tanto tempo, e onde esperavam descansar para sempre, o som ameaçador e irregular de um tiroteio ao longe, davam àquela cena um caráter que impressionava profundamente. Pela minha parte, parecia-me que um novo pesadelo me vinha cortar a sonolência em que demorava havia tanto; resistia ao movimento e prostrado de ânimo e de corpo, preferia que me matassem naqueles lugares a ir tentar nova sorte, nesse mundo a que tinha tão grande horror.

Fr. João, que nos momentos solenes parecia transformar-se, aproximou-se de mim, tomou-me por um braço, fez levantar-me contra minha vontade, e bradou-me com voz terrível:

— Serás tão ingrato, que desampares teus irmãos no momento do perigo? Aqueceria eu por ventura a serpente no meu seio? — Seria a prova mais cruel, porque te quero como filho; mas bem merecido castigo, por ter deposto a minha ternura nessa vil argila. Fica-te para aí, e fique a minha maldição contigo.

E com tanta força me abalou, que me ia lançando por terra. Firmei-me porém, e respondi-lhe:

— Não, meu pai, não sou ingrato. Segui-lo-ei como a sombra segue o corpo, como a alma segue o pensamento. Era o aspecto do mundo que me espavoria; voltara tão mal ferido do combate, que não seria para estranhar que vacilasse agora antes de vestir de novo as armas. Sabe meu pai, que me não arreceio nem da morte nem das provações; mas sabe também quanto me custa ir fitar de novo essa gente, que tão grandes males me causou. Eis porque hesitava. Aqui me tem pronto para tudo, e creia que me não apartarei do seu lado.

O velho estendeu-me os braços, e com as lágrimas nos olhos:

— Sempre o acreditei assim, meu filho: abracemo-nos, que talvez seja esta a última vez. Agora a caminho! Vamos reunir-nos a nossos irmãos e infundir-lhes a coragem, que nos falece. Irmão, filho; meu filho, ânimo.

Como um rebanho de ovelhas, que ao pressentir o lobo se reúnem em mó, e se apertam tanto, como se umas quisessem entrar nas outras; assim os frades se apinhavam junto às portas do convento, espavoridos, trêmulos, espalhando vistas aterradas para todos os lados, e escutando os pavorosos sons de alarme, que estrugiam os ares.

Fr. João da Solidade assumira na comunidade a preponderância, que a inteligência forte e arrojada exerce sempre numa corporação naturalmente tímida e indecisa. A sua presença serenou por um pouco os ânimos.

Procurando dar à voz uma entoação firme, cuidou o velho em confortar os seus companheiros naquele extremo lance, com esperanças de melhor futuro; em que ele acreditava menos do que ninguém.

As últimas palavras porém, foram cobertas pelos clamores de vitória, pelos gritos de angustia e pelos tiros de espingarda, cujos sons misturados e confundidos pareciam precipitarem-se sobre nós em turbilhões e redemoinhos como o vento da tempestade.

Os religiosos estremeceram, e pensaram em fugir cada um por seu lado, a voz de Fr. João mais fortalecida e mais segura, tal era o poder da vontade naquela alma de ferro, alentou-os por momentos; entretanto os clarões do incêndio tingiam de vermelho o céu e o rasto do fogo anunciava a aproximação dos guerrilhas.

Em pouco avistaram-se no cimo de um monte próximo os inimigos, diante dos quais fugiam em debandada alguns milicianos da terra, que por momentos tinham pensado em bater-se. Um grito uníssono partiu da boca das crianças e das mulheres, ao verem aproximar-se aqueles homens sem piedade, ávidos de sangue e de extermínio; os frades transidos de medo entoaram, erguendo os braços aos céus em sinal de entranhada angustia, o salmo dos agonizantes.

As primeiras palavras denunciaram aos guerrilheiros a nossa presença; ouvimo-los distintamente clamar: — a eles, aos mandriões dos frades,— e apontaram as espingardas.

Ao vê-los fazer pontaria Fr. João exclamou rápido:

— Por terra, prostremos-nos, irmãos, senão estamos perdidos! Os frades obedeceram imediatamente; o susto mesmo deitava-os no chão; os tiros partiram; mas as balas silvaram por cima das nossas cabeças, e uma só feriu um dos religiosos, que tinha ficado mais distante.

Passada a descarga ergueram-se todos, e como bando de pombas a que atirou o caçador, deitaram a fugir em diversas direções, caindo, erguendo-se, de rastos, gritando, gemendo, mas correndo quanto podiam.

Junto às portas do convento desamparado, só ficávamos, depois da primeira descarga dos guerrilheiros, Fr. João da Solidade e eu.

***

Entrados apenas na povoação, começaram os guerrilheiros a saquear e a devastar tudo. Do lugar, em que estávamos, podia-se conhecer de seus movimentos pelo vaguear dos archotes, pelo soltar de gritos aflitivos, e pelas colunas de fumo, que se enovelavam aqui e além, sobre os telhados das habitações a que lançavam fogo, quando a preza os não satisfazia.

A lembrança de Margarida, que não me tinha desamparado nunca, confesso-lho, nem mesmo quando mais fervorosas suplicas levantava ao céu, acudiu-me ao pensamento.

— Meu pai, exclamei, fujamos, antes que caiam sobre o convento e nos surpreendam aqui; sigamos pela estrada, que vai por fora da povoação, e vejamos se podemos, esta noite ainda, chegar a nossa casa, avisaremos depois sobre o que temos que fazer.

— Vamos, filho, e o Senhor se compadeça de nós.

Não era o amor à vida que me apartava daqueles lugares. Por minha vontade ficaria sepultado sob as ruínas do convento e fizera da minha cela um sepulcro. Mas a essas horas quem sabe o que seria de Margarida! Tremia só de o pensar, e o quadro que tinha ante os olhos mais me apavorava ainda; porque daí concluía dos horrores, que ela poderia ter presenciado, se é que deles não tivesse sido vitima.

Não imagina nem por sombras o que seja uma guerra civil. Por muito que lhe contem, tudo fica muito abaixo da realidade. Aquela porém era guerra de extermínio.

Desencadeavam-se ódios, que estavam em incubação, havia dezenas de anos. Agrediam-se vizinhos, parentes, amigos e irmãos, e agrediam-se tanto mais cruelmente, quanto melhor sabiam, onde haviam de ferir. Não poupavam ninguém, não havia recanto que valesse, não havia esconderijo que salvasse, não havia nem idade, nem sexo, que pusessem a coberto do insulto, da afronta, da violência, tanto mais cruéis quanto partiam dos que dois dias antes comiam à mesma mesa, e bebiam no mesmo copo.

Ao romper da manhã estávamos diante da casa de meu pai. Tinham-me preparado para terríveis surpresas as cenas, que presenciara pelo caminho; o que vi, porém, sobrelevou muito ao que eu esperava.

Tudo em terra, tudo saqueado, tudo roubado, e os cadáveres de meu pobre pai e de minha velha mãe a meio da casa, crivados de feridas...

As lágrimas sufocaram o velho narrador, que teve de descansar por momentos antes de poder prosseguir.

— Descanse, tio Joaquim, disse-lhe já quase arrependido da minha indiscreta curiosidade, não continue, custa-lhe tanto... Outra vez me contará o resto.

— Não, para quê? Tem de ser. Não é o contar que custa, é lembrar; e raras vezes me esqueço. Isto já passa, um momento de descanso e continuo.

Tinham entrado em casa, e dado rigorosa busca para encontrarem os tesouros; que, segundo era fama na terra, havia em casa. Desesperados por não acharem o que esperavam, voltaram-se contra os dois velhos, que por mais que quisessem não os podiam satisfazer; por quanto apenas havia começado a guerra tinham escondido noutra parte o seu dinheiro.

Não lhe acreditaram nos juramentos, e mataram-nos barbaramente para se vingarem das suas negativas.

— E Margarida?

— Havia dias que partira para uma fazenda dali distante em companhia de meu irmão, salvara-se da morte, e da desonra.

— Pois quê?...

— A tudo se atreviam aqueles homens implacáveis. Não havia barreira que se lhe pusesse diante, nem consideração, que os demovesse, pareciam furiosos.

Pela convivência soube o que eram esses desalmados, a quem o amor da pátria servia de pretexto, e o amor da rapina estimulava unicamente.

— Pois o tio Joaquim?...

— Fui guerrilheiro também. A vista dos cadáveres de meus pais operou em mim uma revolução pavorosa. Tive sede de sangue, de destruição, de vingança. Enterrei os dois velhos sem derramar uma só lágrima. A febre do extermínio requeimava-me por dentro, cravei uma cruz sobre a cova onde ficaram, unidos como o haviam sido sempre, e jurei que não descansaria enquanto tivesse forças para uma espingarda.

Fr. João, que era perseguido também como lobo, porque todos o conheciam, juntou-se comigo; reunimos os mais enfurecidos do lugar, agravamos as feridas dos que mais haviam padecido, e levantamos uma guerrilha das mais afamadas naqueles tempos, e bem conhecida pelo nome de — guerrilha do frade.

Lutamos, lutamos com encarniçamento sem igual, e parecia que as forças se nos aumentavam com a luta. Andei naquela vida errante perto de um mês, sem dormir uma noite sono que aproveitasse, sem ter duas horas de descanso, sem ter um momento sequer para pensar no passado, ou no futuro.

Seguiam-se os combates, as emboscadas, as fugas, os ataques, sem descontinuarem, sem interrupção alguma. Era preciso homens de ferro para aquela vida, e entretanto, de tal forma o furor nos trazia incendidos, que ao cabo do mês parecia que mal havíamos começado.

Um dia ao amanhecer, um dos nossos, que andava por fora veio avisar-nos de que outra guerrilha se aproximava, da qual se contavam proezas inauditas.

Esperamo-la e saímos-lhe a caminho, desejosos de nos medir com esses tão celebrados inimigos.

Durou quatro horas o fogo, batemo-nos como desesperados de parte a parte, até que fugiram em debandada, deixando o campo juncado de cadáveres. Dos nossos a perda fora considerável também, e Fr. João agonizava com uma bala nos pulmões. Saia-lhe da boca sangue e espuma, soluçava que fazia horror ouvi-lo, e expirou-me nos braços, procurando debalde articular algumas palavras.

Corremos a revistar os mortos que os contrários haviam deixado insepultos. Entre os cadáveres reconheci meu irmão!...

***

Estava castigado do que havia feito como guerrilheiro; a minha campanha estava concluída. Tinha corrido às armas para vingar a morte de meus pais, e arrojava a espingarda homicida diante do cadáver de meu irmão.

Triste período da minha vida, entre duas sepulturas; e sepulturas dos meus mais próximos parentes!

A guerra estava a acabar.

Tinha-se assinado a convenção de Évora-Monte, por toda a parte os vencidos depunham as armas, e procuravam salvar-se das represálias pela fuga, ou pelo homizio.

Caminhei sem saber como, nem por onde, para fugir ao ensanguentado espectro de meu irmão, que parecia perseguir-me, trazendo após si as vitimas de quantos haviam perecido aos nossos tiros; os meus companheiros tresmalharam-se em diversas direções. Separamo-nos, como nos havíamos reunido, sem pena nem saudades. Apesar de termos vivido tanto tempo juntos, quase que nem nos conhecíamos.

À noite entrei na povoação.

Bati a uma casa, que, semelhante a sentinela perdida, estava mais afastada das outras. Abriram-me a porta, soltaram um grito ao ver-me: eu ia dando no chão. Reconheci Margarida.

— E Filipe?

Pareceu-me que assim devera ser a voz do Senhor, quando bradou ao primeiro fratricida:

— Caim, que fizeste de teu irmão Abel?

Não tive forças para negar, exclamei-lhe em resposta:

— Morto!

E desatei a soluçar, escondendo o rosto entre as mãos.

À minha vista parecia ter adivinhado tudo com essa lucidez, que dá o sentimento. Eu não pudera resistir à voz da consciência, que parecia acusar-me pela boca de Margarida.

A desgraçada viúva caiu fulminada. Quando tornou a si tinha enlouquecido.

Aquele viver de sustos e de inquietações constantes de tal forma lhe haviam excitado o espírito, que um golpe tão profundo assim rápido, quase inesperado, achou-a sem forças para o aguentar. Ao menos deixava de padecer.

Durou alguns meses ainda. E tudo quanto até então eu tinha experimentado, poderia dizer se brinco de crianças comparado aos tormentos que aturei durante esses meses.

Não soube nunca onde meus pais tinham escondido os seus bens. Estávamos pobres, e Margarida, que se definhava a olhos vistos, reclamava cuidados e despesas que me obrigaram a vender quanto possuía, e a trabalhar de noite e de dia para acudir à pobre enferma.

Amara Margarida com toda a veemência do primeiro e último amor. A paixão mais enérgica do homem, a que o arroja às maiores empresas, ou o precipita até às ações mais vis, tinha rebentado em mim com toda a força ao ver aquela santa e boa rapariga.

Aprendera com ela o que era amor, e sofrera tanto mais, quanto via que era por outro que ela experimentava sentimento igual ao meu. Agora, porém, tinha-a a meu lado sempre; mas como morta ou pior ainda, porque horrorizavam e arrefeciam mais aqueles transportes de loucura, do que os gelos e o pavor da sepultura. Ouvi-a de noite e de dia chamar por um nome que não era o meu, e cada vez que lho ouvia, parecia que com ele, daquela boca pela qual para que desabrochasse em algumas palavras de amor, eu dera a vida, saía uma acusação, um anátema contra mim.

O nome do meu rival, de quem me não podia vingar porque estava morto, esse nome que ouvia a todos os momentos, era o de meu irmão, morto pelos meus, talvez por mim; e eu vivia para que Margarida me recordasse a todos os momentos: a mesma bala que cometera um fratricídio, enlouquecera a única mulher que havia amado.

Adivinha o resto; nem mesmo eu teria forças para continuar por muito tempo.

Margarida morreu. Eu estava só, sem meios, cercado de terríveis recordações. Fugi a esse mundo de pavorosos espectros, e vim por aí abaixo procurar no trabalho o esquecimento. Tenho trabalhado; mas não pôde esquecer ainda!...

***

O tio Joaquim acabara de falar e parecia ouvi-lo ainda. Tinham ficado ressoando-me as suas palavras, como a pancada do sino depois de tangido, e que por muito tempo vai abalando o espaço.

Já de muito anoitecera. Com a noite começara a carregar-se o céu, a encapelar-se o mar, a desencadear-se o vento. Rugia a tempestade, quando o velho concluiu. O ribombo do trovão abafou-lhe as últimas palavras. A natureza parecera querer acrescentar um coro majestoso àquela eloquente manifestação.

Lancei os olhos em roda; levantei-me, dei o braço ao narrador, e começamos a descer pela encosta com extrema dificuldade, porque já fazia muito escuro.

O tio Joaquim não dava por coisa alguma, deixava conduzir-se como uma criança. Não parecia deste mundo.

Ao voltar para uma azinhaga que no fim da praia cortava para a estrada, volvi os olhos para o mar, que cada vez se embravecia mais, e vi à luz de um relâmpago o sítio, onde sentado havia pouco, tinha ouvido a história do velho.

Comparei aquelas duas tempestades: a que ribombava surdamente na alma do velho, e a que estalava nos ares levantando em escarcéus a água do mar, e varrendo a terra com o furioso soprar do furacão.

Quanto era superior o padecimento do velho! — E entretanto dali a poucas horas a natureza descansava daquela convulsão violenta; mas o tio Joaquim continuava a padecer, suspirando pela tardia hora do repouso.

Só a natureza pode descansar porque é imortal; para o homem o descanso chega, apenas, quando lhe começa a imortalidade.

Finalmente o tio Joaquim também descansou.

 
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...