4/08/2023

Dia de Feira (Conto), de Juvenal Galeno

 

DIA DE FEIRA

CAPÍTULO 1

Era ao alvorecer de um domingo, na vila da Pacatuba...

Agrícola e florescente, a Pacatuba é uma linda dona, que sabe distribuir as horas de seu domingo com as preces, os seus arranjos caseiros, e as teteias de seus enfeites. Cristã, ouve devotamente a sua missa, com os olhos fitos na imagem sacrossanta e o coração elevado ao bom Deus; mãe de família, ei-la depois no mercado com o seu distrito e os vizinhos, a vender os frutos do trabalho, e a comprar o pedaço de pano para a camisinha do filho, o purgante para o doente, a farinha, a carne, os temperos e tudo o mais de que precisa a despensa de uma previdente dona de casa; e rapariga, procura amor, enfeites e perfumes, não esquecendo as doces práticas d’amizade, as visitas à comadre e outros entretimentos da vida aldeã.

E como as horas correm ligeiras, no meio do contentamente, aproximando o momento saudoso da despedida, de um adeus até a feira do seguinte domingo!

Raiava, pois, um desses alegres dias; e eu passeava a cavalo nas estradas da vila, aspirando o perfume das flores e contemplando enlevado a natureza, que então ostentava ufana seus imensos primores.

As balças, osculadas pela aragem matutina, deixavam cair no capinal os orvalhos de suas ramagens, e os passarinhos gorjeavam os hinos d’alvorada, enquanto o riachinho soluçava entre as pedrinhas de vale, como a criança quando acorda longe dos mimos maternos. E ao mesmo tempo, criaturas de todas as idades passavam na estrada, ora conversando, ora cantando, e sempre sorrindo.

Que pitoresco quadro!

Aqui, uma família inteira — homem, mulher e crianças — a pé, com suas roupas domingueiras, dirige-se à missa finda a qual será batizado o recém-nascido, que vai choramingando no seio da pobre mãe, que docemente o acalenta dizendo: ‘‘Não chores, filhinho, que hoje receberás as águas do batismo e a bênção de teus padrinhos. Não chores, para que não te aborreçam, e não te achem feio, meu bonitinho...’’ — O pai ri-se fitando o novo mimo de seu amor, e os outros filhos correm adiante brincando na viagem.

Ali, o lavrador tangendo prazenteiro o seu cavalinho, que conduz o alqueire de milho, ou arroz, ou as arrobas de algodão, colheita de seu roçado — daqueles duzentos passos de lavoura, que tanto suor lhe arrancara do rosto no meio de penosas fadigas. Além, duas moças com seus lencinhos de cambraia amarrados na cabeças, suas argolas douradas nas orelhas, e suas voltas de aljôfar ao pescoço, passam conversando jubilosas, talvez em procura do mancebo de seus afetuosos sonhares.

— Olha, Madalena, esta noite tive um sonho... tão bonito que me fez chorar de contentamento...

— Com quem sonhaste, ó Luzia? Sou capaz de jurar que foi com o José Coelho...

— Não conto, não, mulher; se contar não se realiza... Ai, quem dera que hoje o encontrasse...

Perto ouve-se a voz saudosa do violeiro que vai cantando e tocando, talvez convidado para uma função:

‘‘Vou me embora, vou me embora, Senhores, não canto mais!

Vou armar a minha rede Entre suspiros e ais...’’

Em seguida caminha tropeçando o enfermo e indigente velho que, arrimado ao seu bordão, espera colher nas ondas de povo o vintém da caridade, por entre os vinténs dos prazeres vãos.

E logo após o guarda nacional fardado, levando economicamente os coturnos pendurados ao dedo, dirige-se ao ponto da revista.

Entretanto despontara o sol, e sorrindo-se ao ver os sorrisos dos singelos campônios, mandara alguns de seus brilhantes raios iluminar as casas do mercado, enxugar os alpendres úmidos das lágrimas da madrugada, e avisar os mercadores:

— Preparem-se, que hoje a feira será muito concorrida.

— Armem as balanças... muito algodão... muito algodão...

— O povo vem alegre conversando e quem alegre conversa vai pagar suas dívidas...

— Alvíssaras, senhores, alvíssaras, que não faltará a farinha e muito menos a rapadura...

E certa de uma boa feira, a Pacatuba varre as suas lojas, banha-se em suas vertentes, alisa os longos cabelos, e veste-se do melhor modo para receber os fregueses, os obreiros de seu engrandecimento.

 

CAPÍTULO 2

Quase ao entrar nas ruas da vila, encontrei João e Marcolina, tangendo possuídos da maior alegria o seu castanho carregado de algodão; e cumprimentei-os comovido, porque sabia a causa daquele contentamento, que brilhava em seus negros olhos como as estrelinhas do céu em serenas madrugadas.

Era o sorriso após os prantos — o dia de sol que espanca as trevas do mais proceloso inverno.

Ah! e como é enternecedora e ao mesmo tempo formosa a convalescença das amarguras! Como a felicidade radia no rosto daquele que ainda há pouco se estorcia nos aguilhões do infortúnio! João trajava umas calças de riscado americano, camisa de algodãozinho muito alva, e chapéu de palha de carnaúba en- feitado de fita azul; e Marcolina, uma saia de chita de palmas amarelas e cabeção de cassa arrendado, em que descansava seu rosário de cruz dourada, não lhe faltando as argolas de ouro, e

o lençol de largos babados.

De vez em quando Marcolina olhava com orgulho para a asseada roupa de João; e João com orgulho também olhava para a saia bonita de Marcolina e os sacos que o castanho conduzia.

Depois, Marcolina reparando em sua saia, fitava com reconhecimento seus negros e rasgados olhos em João; e João reparando em sua alva roupa, do mesmo modo fitava os seus em Marcolina. Um terceiro olhar completava a manifestação do sentimento que os dominava, e esse pertencia ao céu — era a gratidão pelas mercês recebidas do bom Deus.

Até o castanho parecia partilhar o bom humor de seus donos. Tendo recebido integralmente, antes da partida, a sua ração de milho, marchava então garboso com oito arrobas de algodão herbáceo como se mais leve fora a carga.

E qual a causa de tamanho contentamento?

É uma história muito singela e dolorida que lhes ouvi uma noite, por entre lágrimas, e que não sei contar. Todavia, para que fique ao menos registrada nestas memórias, vou resumi-la do melhor modo possível.

— João trabalhava a jornal em terras do Rio Formoso, onde residia há mais de ano. Duas patacas por dia e à sua custa! Por muita economia que Marcolina fizesse, esse dinheiro apenas chegava para carne e farinha — se era tão pouco!

Mas, no meio de tão minguados recursos, doce esperança lhes acenava no futuro, prometendo-lhes dias melhores. João conseguira de seu patrão um taco de terra para roçado, e desde logo meteu mãos ao serviço, nele empregando-se quando lho permitiam o patrão e a necessidade de ganhar o pão como jornaleiro. Era o seu primeiro roçado naquela terra, que preferia às praias em que nascera, porque nestas faltava-lhe o trabalho que ali encontrara abundante, e portanto, os meios de realizar para sua família os gozos de uma vida independente, embora à custa de muitas fadigas e suores.

Animado, pois, de tão nobres sentimentos, João trabalhava com entusiasmo, sem descanso, sem um esmorecimento sequer, com o ardor febril do poeta que inspirado escreve o poema, em que antevê o monumento de seu renome.

Desse modo em pouco tempo, com admiração geral, brocou e derrubou o seu roçado; e alguns dias depois, preparados os aceiros, convidou a mulher e alguns vizinhos para auxiliá-lo na queima, a fim de que esta fosse completa e não ficassem muitas coivaras.

É um dia de festa a queima do roçado, mas somente para os homens do campo, acostumados a tão penoso espetáculo; e que apenas pensam no resultado pecuniário, como os que se ocupam na matança das reses.

Mas, para o poeta, o filósofo, o homem sensível e amante da natureza, é um quadro de luto e de profunda angústia.

A floresta estorce-se dolorida num leito de chamas. Os galhos gemem, soluçam, gritam, agonizam, como que pedindo socorro; os reptis silvam e correm no meio do fogo; as aves voam piando medrosas, e abandonando seus ninhos à destruição; e as labaredas avançando sempre, rugidoras, horríveis, implacáveis como os demônios da ruína!

Horas depois... está tudo consumado! Resta a cinza, o pó do luto da morte, em troco de virentes ramagens, de tão lindos festões, de tanta seiva e vida!

Então, como que a natureza ergue-se ante a penosa desolação e exclama qual mãe amargurada: ‘‘Homens cruéis! o que fizestes do filho de minhas entranhas — de meu arvoredo frondoso

—, dos ninhos de minhas aves, da frescura de minhas relvas e ribeiros? Pois quê! não sabíeis que aquelas árvores me custaram anos... que me custaram séculos de não interrompido labor?! E todavia sem dó, tudo reduzistes a cinzas em poucos dias; tudo trocastes por meia dúzia de alqueires de arroz, que não durarão tanto como os frutos da minha floresta! Deus! Meu Deus! é certo, pois, que me condenastes eternamente a esta luta penosa — a criar, a construir com afã, sem trégua, sem repouso, para que os homens destruam em caprichosos momentos, sem compaixão, sem necessidade às vezes, a minha obra de muitos séculos?!"

Perdoe-me o leitor este desvio.

Parece-me que se a senhora Natureza tivesse imprensa e jornal, alcançaria mais escrevendo artigos contra o governo que não facilita ao pobre povo da lavoura o ensino e os meios de arar e adubar o terreno, aproveitando assim o mesmo chão para as plantações de todos os anos, sem destruir portanto as matas; e contra os homens abastados e instruídos, que se associam, como na América do Norte, para realizar melhoramentos de tamanha importância, que o governo esquece em sua inércia e desamor aos interesses nacionais. Nos referidos artigos, podia a publicista lembrar que não podemos dispensar madeiras de construção e lenha; que ambas estas cousas vão progressiva e espantosamente se extinguindo; e que nesta marcha chegaremos ao estado de importar lenha do estrangeiro, como já importamos palitos, tábuas, arroz e toucinho. Lembraria mais que muitos ribeiros têm secado, e as águas de outros diminuído consideravelmente, tudo devido à destruição das matas; e que o solo exposto aos raios caniculares torna-se-á seco e estéril, e difíceis consequentemente as chuvas, na opinião dos professores da matéria. E abundando nestas e noutras considerações a propósito, a senhora Natureza conseguiria melhores resultados efetivamente, do que com sentidas exclamações, ou nênias da mais profunda tristeza.

Mas, volto à história.

 

CAPÍTULO 3

Queimado e encoivarado o roçado, dispunha-se João a cercá-lo, e a confiar-lhe as sementes ao cair das primeiras chuvas, quando o acaso, ou o destino embargou-lhe os passos, interrompendo-lhe cruelmente os seus lidares agrícolas.

Deu-se o fato assim. Voltando do serviço uma tarde, encontrou João em sua palhoça um comboieiro vindo das praias, e este contou-lhe que deixara seu irmão Anastácio morre-não-morre de uma doença, que mais parecia feitiço do que outra cousa — acrescentando que o enfermo falava sempre no irmão ausente, com ânsia de vê-lo antes da viagem para a outra vida.

Ora, o que havia de fazer o pobre João?

Pediu cinco mil réis emprestados ao patrão, e entregando dois à mulher, para com eles arremediar-se em sua ausência, cuidou em seguir com os três que restavam, em auxílio do irmão de sua alma.

Marcolina, apesar do transtorno que lhe causava tão inopinada viagem, foi a primeira a aconselhá-la.

— Vá, João, que o Anastácio pode precisar de você; e se lhe não der remédio, dará ao menos a consolação de vê-lo ao punho da rede nos últimos instantes.

— E você, mulher e o nosso filho... Quem suprirá a casa se eu demorar-me?

— Nós nos arremediaremos como Deus for servido. João calou-se, e acrescentou depois:

— Se eu não voltar logo, é porque o Anastácio está ruim. Neste caso, se lhe faltar o mantimento, fale com o patrão; e se ele não der o preciso, você empenhe aquele par de cadeados...

Feita a arrumação, isto é, botando uma camisa e umas ceroulas dentro da rede, João amarrou-a e pô-la a tiracolo; e de alpargatas e cacete partiu, volvendo olhos saudoso à esposa e filho, e para o lado do seu roçado.

No fim de quinze dias voltou João; mas, em que estado, meu Deus! Deixara seu irmão enterrado, e ele, o desgraçado, tendo apanhado umas maleitas, a custo poderá vencer o caminho e alcançar o seio de sua família, tão fraco e enfermo se achava.

A doença prolongou-se, e exaurindo-lhe as forças impossibilitou-o do trabalho, prendendo-o ao leito das dores.

Avalie agora quem puder as privações e amarguras da pobre família. Acostumada ao salário de João para as despesas quotidianas, este lhe faltara completamente. Bens não possuía, e bastantes vezes importunara o patrão pedindo dinheiro emprestado.

Tornou-se depressa completa a sua indigência. O filhinho já não tinha um molambo para cobrir o descarnado corpo; Marcolina possuía apenas uma saia, que mesmo em si enxugava, quando a lavava; e João tudo isto contemplava, gemendo enfermo, e partilhando os sofrimentos da família.

Em tamanha miséria, porém, em vez de se entregarem ao desespero, eles tudo encaravam com a mais completa resignação, sempre com a oração nos lábios, a fé no coração e os olhos no céu.

— Os maus tempos passarão — dizia muitas vezes Marcolina consolando o marido —; o pai castiga o filho para corrigi-lo de suas faltas, mas depois compensa-o de suas dores com afetuosos extremos. E Deus é o misericordioso Pai. Pequeno é o castigo, homem, à vista de nossos grandes pecados; e por isso rendamos graças ao Pai que nos poupa, e arrependidos de nossas culpas imploremos o seu perdão.

— É assim, gente, é assim — tornava João —; mas, custa muito a um homem ver sua mulher e filho em penúria, desejar supri-los de um tudo, e não poder levantar-se e dar um passo! Ah, dói-me somente vê-los padecer, que, quanto a mim estou conformado com a vontade do Altíssimo.

— Não exagere, João, as nossas precisões. O que nos falta e mais desejamos é a sua saúde. Sim, e tenho fé em S. Francisco das Chagas que em pouco tempo você estará perfeitamente bom. Já hoje não lhe deram as malditas, e espero que não voltarão mais. E Marcolina alegrava o semblante para animar o marido, e muitas vezes ria-se procurando ocultar as mágoas, ria-se quando a fome lhe devorava as entranhas, para que João não se afligisse; ria-se quando apunhalada pela dor desejava chorar; e reunindo

as forças quase exaustas, trabalhava sem descanso a fim de poder comprar o remédio para o enfermo, e o comer da família.

Neste empenho, todo o tempo que lhe sobrava do tratamento do esposo, empregava ela na colheita do arroz ou algodão, ou nas farinhadas dos vizinhos, procurando assim ganhar alguns vinténs, enquanto uma piedosa velha, que morava perto, se encarregava de seu filho. E mais fazia ainda. Nas horas, ou momentos que podia furtar a essas lidas, corria ao roçado — àquele roçado que João começara tão animado e prazenteiro, e em que ela, sem que lho dissesse, continuava ocultamente a trabalhar, planeando uma surpresa ao querido de sua alma, no dia em que lhe voltasse a saúde. Era este um segredo, que ela pedia a todos que lho guardassem, e a premeditada surpresa um relâmpago de felicidade, que longe brilhava por entre as trevas de seus dias.

Que dedicação extrema!

Quantas vezes, vencendo as doenças e cansaços, não se entregava Marcolina às lidas com ânimo varonil, como que galvanizada pela necessidade imperiosa de sustentar o marido e o filho, de quem era então o único arrimo, alimentando-os com o fruto de suas fadigas, com os suores que lhe corriam do rosto! E o que seria deles, se lhes faltasse ela, se esmorecesse um dia naquele labutar penoso e incessante?

Entretanto se João, reparando em seu afanoso lidar, repreendia-a docemente, e lhe pedia que poupasse as forças para não arruinar a saúde, com que singeleza, mimo de modéstia e estremecido amor ela lhe respondia:

— Hoje por mim e amanhã por ti — é ditado dos antigos, meu João. Ora escute, muito mais não fazia você por mim? Não trabalhava todo o santo dia, ao sol e à chuva, para dar-me o necessário, e satisfazer os meus menores desejos, enquanto preguiçosa eu descansava em casa? É justo, pois, que ao menos um pouquinho lhe dê em pagamento de tão grande dívida. E, responda — assim como as alegrias, não devemos repartir as lidas e os dissabores?

— Mas, gente, você se atira demais ao serviço...

— Ora... quem não vê é como quem não sabe. Sou mais preguiçosa do que pensa, João... Não faço nem a quarta parte do que devera fazer, acredite...

Quem poderia vencer tamanho heroísmo? E quem ao contemplá-lo deixaria de crer na virtude e na existência de um Deus infinitamente grande e misericordioso?!

Vinde, ó céticos, e admirai nesta pobre mulher o símbolo da esposa cristã — da criatura que espera, crê e ama, com os olhos em Deus —, da flor da virtude, enfim, que resistindo aos vendavais das paixões, às seduções do ermo, e às tentações do infortúnio, brota, viça e cresce, forte pela crença, e derrama os seus divinos eflúvios! E entretanto vós, embrutecidos pelos vícios, passais indiferentes no meio da multidão, ou gemeis no leito das dores sempre isolados e infelizes, porque vos falta a religião, essa consoladora mãe que nos embala em seu colo, entoando os hinos dos puros afetos.

Mulheres! Por que vos desviais tantas vezes dos santos deveres de esposa e mãe? Por que, como Marcolina, não vos tornais todas heroínas de amor e dedicação?... Por que desprezaste tu, ó perdida, o lar da família pela lama dos prostíbulos?... Por que abandonas tu, ó leviana, os mimos de amor do esposo e filho, pelas loucuras da valsa e vanglórias dos salões?... Por que esqueces tu, ó descuidada, as obrigações domésticas, para te empregares na maledicência, ou em distrações pueris em casa da ociosa vizinha? Não vês que o esposo enfermo reclama os teus cuidados; que o filho pede-te amparo e carinho; que o fogo do lar se apaga; que a poeira cobre os móveis; que o cupim assenhoreia-se da casa, e que esta desabará com a felicidade possível neste mundo?... Oh, apartai-vos dos maus caminhos, vós todas, e enquanto é tempo, retomai a senda da virtude, realizando a missão sublime que na terra vos confiou o bom Deus!

 

CAPÍTULO 4

Aliviado das maleitas, João sentia pouco a pouco as forças lhe voltarem, e com estas o desejo ardente de trabalhar e desonerar a sua virtuosa mulher do penoso encargo de sustentar a família. E Marcolina, apesar de magra e alquebrada, opunha-se à vontade do marido, rogando-lhe que completasse a convalescença, evitasse uma recaída que lhe podia ser funesta.

— É cedo, João... Você ainda não cumpriu todo o resguardo. Não se agonie, homem, que tempo não lhe faltará depois para labutar ao cabo da foice e da enxada.

João escutava-a, com olhares de terno reconhecimento, e depois murmurava tristemente:

— Quem viu-a... e quem a vê... Não sei qual de nós, mulher, estará mais fraco... precisará de mais repouso... Onde as carnes que lhe enchiam o seio e as faces, e aquela mocidade que brilhava em seu rosto como a estrela d’alva no azul do céu? Tudo se acabou! Tudo calcou impiedoso o tufão da miséria... de tão longo infortúnio! Ei-la agora mais doente do que eu, caindo de cansaço... e todavia lidando sempre, sem consentir-me ao menos que a ajude a carregar a cruz!...

— Deixe-se desses flatos, homem — replicava docemente Marcolina —; a doença enfraqueceu-lhe o juízo. É preciso tomar sustância para pensar melhor, e trabalhar como dantes. E quanto a mim, não há razão para cuidados. Tenho saúde, Deus louvado, e hoje que o vejo restabelecido, sinto-me a mulher mais feliz deste mundo.

E sorrindo-se botava um pano na cabeça e despedia-se do marido, entregando-lhe o filho e dizendo:

— Converse agora com este mocinho, que eu vou conversar com a enxada, que me espera para acabar uma empreitada de limpa; mas, não lhe conte, João, aquelas histórias tristes que me estava contando, senão ele chora...

Raiou finalmente o dia tão fervorosamente desejado por João, em que Marcolina permitiu-lhe um passeio nos campos, para, como dizia ela, endurecer-lhe o corpo e prepará-lo às lidas. Era uma manhã de maio, e tão perfumosa e alegre como quase todas as desse mês de flores, consagrado à adoração da Virgem.

Marcolina, com o filho ao colo, caminhava risonha ao lado do marido, estremecendo de contente, e respondendo às perguntas como mãe extremosa.

E que deliciosos enlevos, que suaves comoções não sentia João, fitando aqueles campos verdosos, de que o privara a doença por tantos meses? Como tudo lhe parecia novo, emanando fragrâncias e harmonias, que ele desconhecia, e julgava do céu? Ataviara-se acaso a natureza para receber-lhe a visita? Em sua longa e penosa ausência, estudariam acaso os passarinhos aqueles melodiosos gorjeios, que o arroubavam; destilariam as flores aqueles olores, que lhe inebriavam a alma; e enfeitar-se-iam as plantas com aquela roupagem verde-escuro, que o embevecia? E como o sol brilhava esplêndido, difundindo ondas de luz, de calor e vida! E como os arroios do vale murmuravam misteriosamente por entre as algas de sua margem! E como as flores balouçavam graciosas, ao suspirar dos euros matutinos! Não seria tudo isto um sonho... um delírio de sua imaginação fraca e febril?

Que avalie as comoções do pobre João, aquele que, convalescente de prolongada enfermidade, e possuindo uma alma de poeta, passeou nos campos em manhã de maio — tempo de nossa primavera.

Marcolina cumprimentava sorrindo a todos que encontrava, acordando o marido de seus êxtases para responder as felicitações dos vizinhos e conhecidos.

— Ora, Deus louvado — dizia um —, voltaram os dias da saúde a quem dela bem necessitava.

— Parabéns, Marcolina — dizia outro —, agora pode descansar um pouco; e era já tempo, mulher...

Passados os primeiros arroubos, João começou a reparar nos roçados que encontrava, apreciando os serviços feitos e o estado das plantas.

— Bem limpo está este roçado do Alexandre, e o legume promete recompensá-lo. Que mandiocal bonito!

— Aquele não é o do João Nogueira! Olha, o preguiçoso vai deixando o pai Luiz (mato) tomar-lhe a roça...

E entristecendo, acrescentava:

— Quem sabe, mulher, se a doença não é causa deste abandono?... Quantos, ao passar pelo meu roçado, e desconhecendo o que me sucedeu, não zombarão também chamando-me preguiçoso?

Marcolina sorriu-se e seus olhos faiscaram de alegria. Chegava o momento da surpresa que ela com pertinácia in-

crível planeara, e conseguira preparar. Ia auferir o prêmio de

suas fadigas, no júbilo, que causaria àquele que em sua mocidade adorara como o mancebo de seus sonhos, e então amava duplamente como esposo e pai de seu filho.

E, pois, disfarçando o sentimento que a dominava, disse ao marido:

— Se não receasse, João, entristecê-lo neste primeiro passeio... Mas, não... Seria magoá-lo sem necessidade...

— Queria ver aquele infeliz roçado, não é, Marcolina? Pois vamos... Não me vê tão resignado? O que me resta senão consolar-me com a minha sorte? Deus assim o quis — e quem sabe, mulher, se para poupar-me maiores dissabores?

— É assim mesmo, João: Deus escreve certo por linhas tortas...

E caminhando para o roçado, acrescentou momentos depois com ingenuidade infantil:

— Agora, João, se nós achamos o roçado plantado e limpo... Quem sabe? Não contam por aí tantas histórias de fadas, e encantamentos? Que diria você se, em vez de moitas e garranchos, encontrasse algodoeiros, milho, arroz e mandioca. Hein?

João rindo-se afetuoso, respondeu:

— Que sonho extravagante, gente... Você tem lembranças de menina... Fadas e encantamentos? Quem acredita hoje em semelhantes mentiras?

Momentos depois, soltando um grito de assombro, trepava-se João na cerca do roçado, e via realizado aquilo que julgara um sonho extravagante.

Era esta a surpresa que lhe preparara a laboriosa esposa. Descrever o que então passou-se seria tentar o impossível.

Há cenas que não se descrevem; e sentimentos cuja expressão eloquente é o silêncio.

Marcolina, quando me contou esta história, disse-me apenas, sobre a surpresa o seguinte, por entre os mais espontâneos risos:

— Ia-me custando caro tal brincadeira; e eu me arrependi deveras de não ter prevenido ao João... Coitado do homem; quase endoidece de alegria, e contudo chorava como uma criança, a beijar-me e a abraçar-me, a olhar sempre para mim e para as plantações, sem dizer palavra...

— E desde esse dia — concluiu ela depois de curto silêncio —, Deus se compadeceu de nós e nos fez esquecer os sofrimentos e angústias. João tomou conta do roçado, e este nos deu com que pagar as nossas dívidas, e trouxe-nos a fartura à casa. Pareceu um milagre! Nunca se viu em duzentos passos de terra tanto arroz e tão bonito herbáceo. Mas, nada é impossível a Deus, e sua misericórdia não tem limites.

Foi esta a história que eu ouvira à Marcolina; e foi por sabê-la e recordá-la, que enterneci-me quando encontrei-a com o marido, ambos tão asseados e amigos, a caminhar para a feira, tangendo o castanho carregado de algodão ainda do poético roçado.

— Então, dirigem-se à feira para vender o seu algodão, não é assim? — perguntei-lhes eu depois de cumprimentá-los.

— Sim, senhor; e ouvir a santa missa para agradecer a Deus os imensos benefícios que, por sua infinita misericórdia, nos envia a todos os momentos, apesar de nossos pecados — respondeu-me Marcolina —, volvendo-me seus negros e rasgados olhos nadando em singela e inocente felicidade.

E conversando mais um pouco, entramos na vila, ouvindo do sino a primeira chamada da missa, e na praça o rumor do povo, que já se aglomerava.

 

CAPÍTULO 5

Enchia-se gradualmente a casa do mercado, recebendo de vez em quando ondas de povo pelas três estradas que ali terminam

— três artérias que comunicam ao coração da vida o sangue, o calor e a vida.

Era a hora da enchente; ao meio-dia seria a preamar, e das três da tarde em diante a vazante. Os adeuses de despedida dos lavradores substituiriam os primeiros cumprimentos. Todos voltariam aos seus campos — àquelas serranias cobertas de viçosos cafezais, e àqueles vales ricos de algodoeiros e cereais diversos; e a Pacatuba, a donosa vila, ficaria como sempre deitada indolentemente aos pés de sua mãe, a serra d’Aratanha, ora a espreguiçar-se em seu leito de canas e relvas, ora a banhar-se no cristal de seus ribeiros, embalada pelas harmonias da natureza e das máquinas industriais, e saudosa, esperando a feira seguinte.

Naquela ocasião, porém, a formosa vila, com seu vestido bonito, seu cabelo penteado e salpicado de flores, e seus atavios de moça, estremecia de contente, corada e risonha como a noiva que espera o bem-amado; e o bem-amado era o seu distrito, que com os vizinhos e amigos pressuroso convergia para seu seio, trazendo os produtos de suas lidas.

Efetivamente grupos e grupos de lavradores, de pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, já povoavam o mercado, e no pátio deste confundiam-se, baralhavam-se, como as vagas no oceano movediços — inconstantes e variando em cores.

E que animação no comércio, que entusiasmo e júbilo em todos!

Salve, ó festim industrial; e a vós, ó filho do trabalho, eu vos aperto a calejada mão, e neste dias vos desejo os melhores negócios e os mais puros contentamentos!

Contemplemos agora o quadro.

Sacos, malas e caçuás de rapaduras, farinha, frutas, louça de cozinha, fumo, cereais — de produtos enfim do lugar e das vizinhanças da serra, praias e alagadiças — enchem metade dos alpendres e pátio. Noutra metade, a carne fresca e estaleiros da salgada; e no meio de tudo isso os tabuleiros de arroz-doce, de broas e bolos, e os potes de garapa e aluá com suas taças prontas para combaterem os ardores do sol.

No centro do largo, os animais descarregados repousam e observam tudo, mergulhados em profunda meditação como verdadeiros filósofos.

E o povo entra, sai, compra, vende, conversa, ri-se, questiona, abraça-se e por entre esses rumores a nota soluçosa e gemebunda da cantiga e rabeca do cego mendigante; e os brados dos vendedores:

— Laranjas doces! Quem me compra estas laranjas?

— À pataca... à pataca... farinha muito alva e torrada!

— Chega, gente, que o fumo bom está se acabando!

— Carne gorda!... Estou queimando; estou entregando por todo preço...

— Mangabas... mangabinhas e muricis das praias!

Aqui dirige-se um cargueiro ao rico lavrador que passa:

— Patrão, quem tem farinha barata sou eu... Já estou dando a quatorze.

— Homem, não é isto farinha dormida na prensa?

— Não senhor; se vosmecê quer, prove e verá que não está azeda...

— Pois bem, meça lá meia quarta neste saco. Adiante o dono do fumo encarece a bondade deste:

— Veja que corte macio! Cheire lá... Isto faz cinza alva, que é um gosto...

— Sim, senhor; este fuminho não parece mau: será bom de tabaco?

— Não só de tabaco como de cachimbo. Se comprá-lo há de voltar por ele, como muitos têm voltado.

— Tomara eu, que já vivo atordoado com fumo ruim! Corte lá meia vara, homem...

Perto o cargueiro da louça, batendo com os dedos na jarra, exclama:

— Isto é de barro muito bom, patrão; esfria água demais e não reve...

Enquanto o dono das rapaduras as elogia, afiançando que adoçam facilmente o café, pois são de canas maduras; e o mesmo fazem os demais oferecendo os seus gêneros.

Nas lojas a animação não é menor... O povo enche as calçadas, passando de balcão a balcão, e os caixeiros e patrões, medindo a chita, o madapolão, e o algodãozinho, e mostrando os objetos procurados, de vez em quando levam à gaveta a importância do vendido — os vinténs do lavrador ou jornaleiro.

— Olhe, esta chita não larga... É percales... Minha mulher fez vestido dela. Isto a cruzado é dado! É só para apurar dinheiro...

— Venha cá... Pegue na fazenda... Ofereça ao menos! Não cuide que é salgada. É francesa e da melhor.

— Quer ver o madapolão de camisa? Ainda ontem recebi-o da cidade.

— Veja se lembra-se de mais alguma cousa. Não quer um lenço de chita para amarrar a fazenda?...

Estas e outras práticas se escutam; e ouvindo-as, esta menina compra um frasco d’água de colônia e pede agulhas; outra se agrada de uma chita de flores encarnadas para vestido, ao passo que a velha escolhe a roxa para sua saia e conta quatro vinténs por um rosário; aquele rapaz examina as facas, experimentando-lhes a têmpera com a unha; e outro resinga procurando tirar por menos o chapéu de feltro, com que espera deslumbrar a sua namorada. Ao mesmo tempo esta, volvendo os lânguidos olhos de morena, noutra loja compra um vidro de macassar para perfumar os cachos, e com eles atraí-lo às núpcias.

Cenas iguais por toda a parte — por toda a parte os ardores da vida comercial da formosa vila.

E viessem então os senhores poetas exclamar em sentidas estrofes no meio daquela multidão: — Viver é amar!

Talvez lhe respondessem assim os honrados negociantes, os homens práticos ou ralados do mundo, como diz o vulgo:

— Ora, qual! Deixe-se de cantigas... Viver é enganar! Desde que acorda até que adormece, o que faz a criatura humana se não enganar uma à outra? E quando o consegue, por que se alegra tanto, e se julga ditosa? para que se enfeita a mulher; e procura se distinguir o homem? Ora, diga lá: em que se ocupam presentemente todos neste mercado? O comércio o que é senão um pobre diabo esfregando os olhos para ver, e um espertalhão a sacudir-lhe cinza para que não veja? E no meio de semelhante jogo, não é que vivem as artes, as indústrias, e todos os produtos do engenho humano? E a política, e tudo o mais, enfim...

Deus me livre de entrar em tal labirinto. Que aceite, ou condene estes princípios quem puder examiná-los, que eu, sem cortejá-los, ao menos, esgueiro-me por entre os transeuntes, receando que me averbem de suspeito como vassalo de Apolo.

 

CAPÍTULO 6

Nos alpendres e lojas encontram-se os amigos e não são raros os diálogos do mais cordial afeto.

— Olá, Antônio! Então já não conhece a gente? Venha cá, homem, venha dar-me notícias suas!

— Ah, senhora Joaquina, não lhe tinha visto... Perdoe... Como vai de saúde, e o senhor Thomaz e a obrigação?...

— Vamos vivendo, Deus louvado... E você, Antônio, cada vez mais gordo e bonito, hein?

— Não caçoe com a gente, senhora Joaquina... Não pode engordar quem labuta como eu, de sol a sol.

— Homem, antes que me esqueça, contaram-me que você ia casar-se com a filha da Maria Pinto. Não me encubra... Diga lá: quando é a festa?

— Vim hoje falar com o senhor vigário para correr os banhos. Não sei quando será, senhora Joaquina, mas tenho vontade que isto se faça até meados do mês que entra.

— Obra com juízo, Antônio; é uma rapariga pobre, mas trabalhadeira e bem criadinha...

Perto, uma mulher moça e triste conversa baixinho com outra mais idosa, e furtivamente enxuga os olhos, que malgrado seu nadam em sentidas lágrimas.

É o livro de um coração que se desfolha, a página dolorida de um romance de amor que se relê por entre suspiros.

— Foi isto, minha tia, que eles fizeram — diz ela concluindo a sua confidência —, intrigaram-no e conseguiram vê-lo embarcado para a guerra do Paraguai... Mas, Deus é justo!... Eu fiquei a lidar sozinha, quase abandonada e chorando, quando esperava casar-me e ser feliz com ele. Ainda, contudo, não perdi a esperança... Tenho fé em Maria Santíssima, que hei de vê-lo voltar para estancar-me as lágrimas à vista de nossos perseguidores... O que é certo, é que não terão o gosto de ver-me por aí derramada, como desejam... Deus me perdoe se minto. Coragem não me falta para ganhar com meus braços o bocado... Nossa Senhora há de compadecer-se de mim...

E mais não pude ouvir, por causa de um gordo e rico lavrador, que ralha a dez passos com um de seus trabalhadores, que faltara ao compromisso — ou letras do contrato...

— Ora, isto também é demais! Pois vosmecê, senhor Eusébio, achou-me pronto para servi-lo em seus vexames; tomou o meu dinheiro para pagar-me em serviço na serra, e lá não tem aparecido! Não se lembra que ainda não acabei o batimento dos cafeeiros, e já começou a apanha?...

— E aqueles dias que eu dei na limpa das capoeiras novas, o patrão já botou na conta?

— E então? já não fizemos conta depois disto? Resta-me vosmecê quinze mil e quinhentos, e quanto antes suba à serra e vá trabalhar-me... Basta de mangar comigo...

— Não se zangue, patrão; a semana que entra não lhe prometo; mas, na outra espere por mim, querendo Deus. Eu mesmo tenho vontade de acabar com estes biquinhos; e para andar mais depressa irá a mulher apanhar café.

Conversamos agora um pouco com um inteligente e instruído velho, que além descansa, e que extasiado admira a prosperidade da formosa vila, que ele viu nascer à sombra da majestosa serra d’Aratanha.

— Diga-se alguma cousa, senhor Batista, sobre o passado de nossa Pacatuba, deste abençoado torrão, que o velho sábio Agassis afiança ter sido nos primitivos tempos uma geleira... Ora, uma geleira! — um monstruoso sorvete!... E dizem contudo que é cálida a filha de um sorvete!...

— A Pacatuba — respondeu pausadamente o velho — é uma lágrima que se transformou em um sorriso! Que me importam opiniões de sábios? Eles mesmos não sabem às vezes a quantas andam. Dizem e se contradizem, e nesse turbilhão de ideias escrevem livros, ou reproduzem os antigos, e vestindo-os a seu modo iludem os tolos e dão que fazer à imprensa... Se um publica trezentas páginas a provar que não existe inferno —, outro responde-lhe com quatrocentas a descrever as caldeiras de Pedro Botelho. Se são escritores da moda, as tais publicações tornam-se novidade — compra-se e fala-se naquilo por algum tempo, para depois inventariar-se constituindo herdeiras as traças e baratas. Quanto a livros, meu amigo, só leio um, que para mim vale mais que todos — a Bíblia... o livro da verdade — que passará intacto por entre as gerações até a consumação dos séculos...

O velho estava em seu elemento... Naquele terreno ninguém lhe resistiria a palestra; e pois, em vez de contrariá-lo, procurei volvê-lo ao ponto da partida — as recordações históricas da vila.

— Mas, não deixando uma cousa pela outra, por que, senhor Batista, disse que a Pacatuba era uma lágrima transformada em um sorriso?

— Porque nasceu da desoladora seca de 1845, de mendigantes que choravam no desespero da fome. Serviu-lhe de aia, ou ama de leite a serra d’Aratanha; e com tamanho carinho amamentou-a, que ela depressa tornou-se galante menina, e hoje, graças aos mesmos desvelos, ei-la moça, risonha e rica, brincando aos pés daquela a quem tanto deve.

— Tem razão, meu amigo, comparou bem. Agora conte-me o que sabe da história d’Aratanha e Pacatuba, pois mãe e filha acham-se tão ligadas, que não pode-se falar numa esquecendo a outra. Ninguém melhor sabe aqui destas cousas do que vosmecê...

— Seria impossível o contrário; nesta terra criei-me, cresci, gozei os melhores anos da vida... e vou roendo os mais desenxabidos... Mas, quer saber-lhe a história, não é? Pois escute-a, que não se enfadará, tão curta é ela!

 

CAPÍTULO 1

Principio pela Aratanha, como mais velha.

Até 1790 esta serra — cujo nome talvez se originasse da abundância do camarão aratanha em seus rios — pertenceu às terras devolutas, que se denominavam realengas, isto é, propriedade de El-rei nosso senhor.

Nesse ano, porém, o governador interino da capitania, capitão-mor Antônio de Castro Viana, passando o governo ao efetivo, requereu como recompensa de serviços uma sesmaria em dita serra; e sendo deferido, veio no mesmo ano apossar-se, o que efetuou fazendo casa e roçado no lugar hoje conhecido por Limão. No ano seguinte, julgando desvantajosa esta situação, abandonou-a, e veio estabelecer-se pouco distante, ali no sítio Aratanha-velha. Não sei a razão de tão repentina mudança, meu amigo, pois o primeiro lugar situado não é inferior ao segundo

— mas, lá diz o adágio, que mais sabe o tolo no seu, do que o avisado no alheio.

O que é certo, é que Viana tanto gostou da segunda situação, que fez muitos roçados e encheu-os de legumes, canas, jaqueiras, jambeiros, laranjeiras, bananeiras e outras fruteiras, e construiu uma espaçosa morada, que veio a passar então pela melhor casa de campo da capitania.

Entretanto o capitão-mor não se mudou da vila da Fortaleza; mas passava uma parte do ano no sítio, onde, sob a administração ativa de um feitor, trabalhavam muitos cativos e índios, que, fazendo prosperar a lavoura, tomavam também o doce encargo de comer-lhe os produtos, dispensando para o dono poucas cargas de frutas e legumes.

Onze anos depois — em 1801 — lembrou-se o capitão-mor que era tempo de morrer e como isto fizesse, apesar de dever grande quantia à Fazenda real, esta, na ausência de outros bens, sequestrou sem demora a bela Aratanha com todas as suas pertenças, não esquecendo os negros comedores de seus produtos; e mandou pôr tudo em praça logo no seguinte ano.

Cousas daquele tempo! Ninguém compareceu para licitar, ao passo que agora atrás do mais miserável imposto aparecem dezenas de cidadãos de gravata limpa!

Então o atual governador mandou chamar seu avô, meu amigo — o tenente de ordenanças Albano da Costa dos Anjos — e pediu-lhe encarecidamente que se apresentasse como arrematante, pois que era ele rico e tinha filhos para dotar com aquela propriedade, formandos-lhe assim um excelente patrimônio.

Seu avô morava em Arronches, onde à sua custa construiu aquela igreja, que hoje vai sendo reparada e acrescentada por esforços de um dos netos — o senhor Manoel Albano — tão empenhado agora pela prosperidade daquele povoado, como outrora o velho tenente Albano.

— É verdade, senhor Batista; e diga-me, não é na porta principal dessa igreja que foram sepultados os meus avós?

— Sim; e alguns de seus tios. Essa sepultura pertencia à família Albano, cujo chefe construíra a igreja. Mas, ouça o resto: Tais razões expendeu o governador, que o velho seu avô apresentou-se e, fazendo favor arrematou a sesmaria d’Aratanha, que era de três léguas e compreendia a serra, a casa e benfeitorias — tudo enfim pela quantia de quatrocentos e setenta mil

réis, pouco mais ou menos!

No mesmo ano mudou-se seu avô para a situação arrematada, trazendo a família e quarenta escravos, que então possuía; e deu maior impulso ao trabalho, ocupando-se, especialmente, pouco depois, da plantação de algodão em grandes roçados, que para esse fim derrubou nas faldas da serra. E para transporte de seus gêneros, em 1803 mandou abrir uma estrada daqui para a Fortaleza, cujo único caminho até então compunha-se de tortuosas veredas que prendiam os arraiais. É a estrada velha — que ainda hoje serve, apesar de nova, aberta em 1863 por ordem do presidente José Bento.

— E aquelas grandes cruzes de madeira nos lugares Munguba, Pavuna, Genipabu, Tapiri e Taperoaba?

— São testemunhos do fervor religioso de seu avô. Foi ele que fê-las erguer, não só para que servissem de marcos, como também de lugares de oração aos viandantes e moradores.

Tão acertada julgou a direção dessa estrada em 1813, ou 1814, o governador Manoel Inácio de Sampaio, que aproveitou a toda quando nesse ano ordenou a abertura da primeira via de comunicação para a vila de Montemor-novo, hoje cidade de Baturité.

Nestas condições, seu avô conseguiu safras maiores de duas mil arrobas, e a ser por isso considerado o primeiro agricultor da capitania.

O preço do algodão regulava naquele tempo de quatro a cinco patacas a arroba — moeda forte, constante de pesos de setecentos e oitocentos réis, que atualmente chamamos patacões.

Vê, pois, meu amigo, em que maré de felicidade se achava seu avô. Para aproveitá-la o velho alargou tanto as plantações nas faldas da serras e planície, que em 1810 viu-se obrigado a fazer aquela casa, que agora abandonada desaba ali embaixo na fazenda e logo para ela mudou-se, colocando-se, pois, no centro dos algodoais e facilitando a colheita, preparo e remessa de seus produtos ao mercado.

Esse estado próspero continuou até 1822 ano em que seu avô deixou de existir. E passando serra e benfeitorias ao domínio de sua avó, a quem tudo coube em inventário feito em 1823, por se terem os filhos inteirado em outros bens do casal, começou desde logo a marchar aquela propriedade agrícola para sua extinção. Não era o mau destino que persegue quase sempre os casais quando lhes morre o dono; e nem falta de cuidados e aptidão da viúva e seus filhos. Causas naturais e invencíveis atuavam para aquele atraso.

Ventos nocivos talavam impiedosos a indústria algodoeira. Chegara a hora de sua adversidade, porque neste mundo, meu amigo, tudo, até as plantas da lavoura, têm dias prósperos e dias adversos.

Nesse nefasto ano de 1822, baixou consideravelmente o preço do algodão nos mercados europeus, e tornando-se permanente apreciação desse gênero, o desânimo difundiu-se entre os produtores. E logo aumentou-se, porque no mesmo ano, os algodoeiros que até então viçavam frondosos foram atacados de duas moléstias, sendo uma no tronco e a outra nas maçãs. A primeira é a que ainda hoje existe com o nome de mofo, ou piolho. Então chamavam-na cinza. A segunda era apelidada seca-maçãs, porque o seu resultado era secar e derrubar as maçãs do algodoeiro. Para mais agravar essa situação, minguavam as matas nas proximidades das fábricas, dificultando-se pela distância a abertura de roçados, colheita e transporte.

Eram, pois, males sobre males. A lavoura, que navegava em mares de rosa, combatida então por tão contrários ventos, começou a retrogradar espantosamente, apesar dos esforços de seus operários.

E entretanto, meu amigo, novos tropeços aguardavam-na, para embargar-lhes aqui os já cansados passos.

Os movimentos políticos da independência, e logo depois os da República do Equador, envolveram seu pai e tios, que eram os proprietários principais d’Aratanha e Pacatuba, e obrigaram não só a eles como aos demais homens do campo, a trocar a enxada pela espingarda, e outros a ocultar-se nas grutas da serra, fugindo ao patíbulo e aos cárceres. Assim, pois, as lidas agrícolas foram imediatamente trocadas por lutas sanguinosas, e as canções do trabalho esquecidas pelos hinos ardentes que, no delírio da febre revolucionária, os patriotas entoavam em torno das árvores da liberdade

E quando, mais calmos os ânimos pela firmeza da independência pátria, e fim das lutas civis, se preparavam os homens do campo a voltar aos seus labores, eis que rebentou a desoladora seca de 1825, debandando-os em procura dos meios de subsistência.

Era o golpe mortal do destino sobre a nossa lavoura, que já perigava desalentada.

E, pois, o excelente estabelecimento agrícola que seu avô aqui fizera, e a riqueza que este deixara a seus herdeiros, quase extinguiram-se, restando somente a todos a propriedade das terras, cujo valor então era diminuto.

— E não havia — perguntei eu — algum povoado aqui, nas proximidades da serra?

— Existia aquela velha Guaiúba, que além procura esquecer as amarguras de seu longo passado nos mexericos e intrigas do presente; e que nesse tempo tendo prosperado com a indústria algodoeira, com esta caíra para não mais erguer-se.

Aqui na Pacatuba apenas moravam alguns índios, e a família Albano.

Mas, ouça o resto da história. Findos os horrores da grande seca, seu pai e tios, inteiramente desanimados na lavoura do algodão, e desejando ardentemente reconstruírem suas fortunas, hesitavam, cogitando dos meios de mudar de plantação, auferindo assim de suas terras lucros mais crescidos.

Sonhava-se com a lavoura de café, que já se ensaiava no sul do império, e este sonho especialmente os preocupava, sugerido sem dúvida pelo fato que lhe vou contar. Nos movimentos políticos de 1824, de que falei há pouco, tendo ido à serra de Baturité, por amor desses mesmos movimentos, seu tio Domingos da Costa, ali viu no sítio Mucaípe, propriedade do capitão Antônio Pereira de Queiroz, alguns cafeeiros ao redor da casa — nascidos de sementes vindas do Cariri, para onde tinham ido de Pernambuco, conduzidas por comerciantes sertanejos. Não só neste como naquele lugar, essas plantas não passavam de objetos de mera curiosidade — o uso do café era estranho na província e ninguém se decidira a estendê-lo e aproveitá-lo.

Seu tio Domingos obteve então oito libras pouco mais ou menos de sementes, e voltando plantou-as em canteiros na serra, e aqui em baixo na Serrinha, onde nesse tempo morava.

Logo depois, pretendendo mudar-se para o Pará — mudança que não efetuou —, Domingos deu esses canteiros a seu irmão João da Costa, e este aproveitando-os fez mudar em 1826 as plantas para o sítio Boaçu, em cima da serra, mais como ensaio do que com intenção firme de constituir um novo ramo de lavoura para si.

Pouco tempo depois, seu pai, meu amigo, resolvendo desprezar a lavoura da planície e mudar-se para a serra, com o fim de empregar-se na cultura do café, que lhe parecia de próspero futuro, e consultando os irmãos a respeito, estes o desanimaram completamente, qualificando de loucura semelhante lembrança.

Todavia seu pai, que era homem empreendedor e de vontade forte — desprezando as observações de seus irmãos, embrenhou-se na serra e cuidou sem descanso em realizar o plano que elaborara sua fértil imaginação.

Você há de saber, por lhe ter ouvido sem dúvida, a interessante história do sítio da Boa Vista! Quanto não sofreu ele, trabalhando ao sol e à chuva, com poucos braços, dormindo nas grutas, sem recursos pecuniários — vencendo em suma obstáculos de toda a natureza para sair-se bem do que empreendera, e confundir assim os irmãos que lhes tinham augurado maus resultados!

Derrubados os matos e preparados os roçados em 1839, seu pai encheu alguns de cafeeiros e outros de canas; preparou engenho para a moagem destas; e auferindo algum lucro, adquiriu forças para alargar as plantações de café, e remover os tropeços que lhe embargavam os passos.

Como que a Providência condoeu-se de seus esforços e quis compensá-lo de tamanhas fadigas. O que é certo é que seu pai, meu amigo, prosperou depressa, e em poucos anos pôde começar aquele bonito sobrado, que ali demora ufano entre coqueiros nas faldas d’Aratanha, e teve a satisfação de mandar as primeiras sacas de bom café ao mercado da Capital.

Foi, pois, aquele inteligente e laborioso José Antônio da Costa e Silva — quem primeiro vendeu café nesta província, iniciando assim esse importante ramo de nossa indústria, no que desde logo o secundaram seus irmãos e os agricultores de Maranguape e Baturité.

E, cousa interessante! Baturité que nos dera os primeiros caroços de café, não teve depois semente para começar sua cultura, e veio pedi-la à Aratanha, arrancando-lhe muitos milhares de plantas ou mudas!

 
CAPÍTULO 7

— Agora, a história da Pacatuba — disse Batista, tomando uma pitada de cheiroso caco.

Como lhe disse, a Guaiúba era o único povoado destas paragens e dava nome ao distrito, de que era sede, e que fora criado em 1834.

Além de alguns índios, somente parentes seus aqui residiam, disseminados em três ou quatro casas.

Veio então a terrível seca de 1845, com seu cortejo de horrores, assolar a província inteira. Você era bem criança nesse tempo, e por isso pouco se há de lembrar das cenas horripilantes desse lutuoso ano. Pois saiba que ainda hoje sinto calafrios ao recordá-las. Bandos e bandos de mendigos desciam do sertão procurando meios de salvação, e quantos não caíam e expiravam nas estradas; quantas donzelas não entregavam aos desalmados o tesouro da honra por um punhado de farinha; quantas mães desnaturadas não vendiam seus filhos por um bocado que lhes aliviasse as agonias da fome — enfim quanta nudez, e crimes, e calamidades!

As criancinhas expiravam coladas aos peitos maternos, procurando debalde extrair uma gota de leite daqueles cálices secos crestados.

Até as avezinhas, extenuadas e alucinadas pelos raios ardentíssimos do sol, caíam batendo nos troncos despidos de toda a folhagem.

Somente os urubus encontravam pasto abundante por toda parte! Esquálidos coveiros — em bandos também, eles acompanhavam os mendigantes e sepultavam em si os trapos de carne que sobejavam da miséria.

Os indigentes eram apelidados de retirantes e a plebe, essa plebe cruel que ri e dança e folga, e tresanda de cinismo e impiedade em todas as grandes desolações, entre as agonias da peste, da guerra e da fome — os recebia nas ruas da cidade com chufas, e cantigas da mais torpe irrissão!

Reproduziam-se os horrores da seca de 1825.

Por toda a província as cenas da mais consternadora devastação, os brados de misericórdia! as preces entoadas por entre soluços... e as convulsões da morte!

Grandes, bem grandes eram as culpas do povo, para que a Justiça suprema o condenasse a tamanhas flagelações.

Pois foi nesse amargurado ano, meu amigo, e por isso no meio dos prantos da orfandade, que nasceu a Pacatuba.

Algumas famílias de retirantes, encontrando auxílios caridosos em nossas casas rurais, imploraram e obtiveram trabalho, e aqui ficaram — apegando-se à verdura d’Aratanha, verdadeiro oásis então no meio dos desfolhados e estorricados campos do sertão.

Em breve construíram choupanas neste lugar, preferindo-o à Guaiúba por serem mais importantes os sítios deste lado da serra.

Assim formou-se o povoado — começando por uma colônia de emigrados do infortúnio.

E como tivesse exercido a caridade, acolhendo os desgraçados em seu seio, Deus compensou-o desde logo, com a mais rápida prosperidade. Acrescia que seus novos operários, acossados pela indigência — resultado do ócio e imprevidência do passado

—, compreendiam então a necessidade de trabalhar, não só para manterem-se no presente, como para prevenirem-se ou escaparem a novas calamidades que porventura sobreviessem.

Em poucos anos, pois, os tetos de palmeira transformaram-se em telhados — construiu-se aquela capelinha que você ainda viu ali no largo, e surgiu o comércio para ativar o progresso da nova povoação.

E tão ligeiro foi o seu crescimento, que já em 1848, na administração do Dr. Fausto de Aguiar, apresentou-se a Pacatuba provando superioridade à velha Guaiúba, não só na edificação como na indústria e comércio, e requerendo para si a sede do distrito, o que lhe foi facilmente concedido com grande desgosto da sobredita velha.

Nesse mesmo tempo estendia-se a lavoura do café na serra d’Aratanha.

 E de 1850 em diante, tendo prosperado muito esse ramo agrícola, tornou-se fonte de intensa riqueza para a povoação. A serra, coberta de frondosos cafezais, exigia centenas de braços para a colheita, e os habitantes das praias e arraiais circunvizinhos procuravam-na atraídos pelo lucro, e parte deles construía choças e aqui ficava residindo.

Imensas vantagens auferiram os lavradores d’Aratanha nesse decênio, construindo os bonitos sobrados de seus sítios — e algumas fortunas se criaram —, apesar das demandas e hostilidades de aventureiros que, comprando pequenas partes da serra, ainda não demarcada, pretendiam apossar-se de muito — alucinados pela cobiça e cegos de ambição, sugerida pela importância e riqueza da nova indústria.

Em 1862, atacados de uma moléstia cruel, enfraqueceram os cafeeiros e diminuíram consideravelmente as suas safras.

Era a política cafeeira que caía, dando lugar a outra facção. O Poder Moderador chamou logo ao ministério o algodão — esse chefe que jazia quase desprezado e esquecido, desde a sua

queda fatal de 1822.

Então o velho Bismark da lavoura, fazendo roçar e queimar as suas capoeiras, reclamou o auxílio dos agricultores, mudando da serra e alistando em suas fileiras os mais ambiciosos; e pouco depois conseguia grandes safras e preços fabulosos, e elevar a Pacatuba à altura em que a admiramos — nisto ajudado pelos canaviais, indústria da borracha, e outros auxiliares de menor importância.

Finalmente, ei-la agora orgulhosa, a Pacatuba, com suas cento e tantas casas de tijolo e cinco sobrados, afora os da montanha e casas de taipa dos arredores; suas trinta lojas formando o quadro de seu animado mercado; além das tabernas, dispersas; seus dois rios, que deslizam à sombra de viçosos canaviais e coqueiros; sua Aratanha coberta de cafeeiros e pomares de variadas frutas, circulando graciosos edifícios; ouvindo alegre o hino do trabalho no som de seis máquinas a vapor, que servem de motores à sua indústria; olhando ufana para a estrada normal da província, que lhe corta as ruas em direção aos mais importantes centros produtores; pavoneando-se com seu diploma de vila e freguesia obtido em 1869, enquanto não lhe vem o de cidade pela via férrea que breve espera: e fazendo figas ao ciumento Maranguape, que ela aborrece, como formosa e rica pupila ao velho, besuntão e tolo, tutor que enamorado a persegue.’’

E rindo-se concluiu Batista deste modo a sua história, enquanto eu cismava impressionado pelo que lhe ouvira, como que vendo em sonho desfilarem as sombras de meus ascendentes — desses honrados e antigos lavradores, patriotas denodados e homens de crenças inabaláveis; e como que lhes ouvindo bradar-me na toada gemedora da montanha e no rumorejar da florescente vila: — Filho, trabalhai, que o trabalho enobrece e é preceito divino. Não dissipeis vossos suores, para que possais socorrer os pobres e adquirir a independência e tesouros de bênçãos para vossos descendentes. Sede honrado e crede em Deus, porque na desonra e descrença não brota a flor da ventura. Jamais esqueçais que a pátria é mais que o berço da infância — é a mãe carinhosa que nos embala em seu colo. E assim, tendo por farol os nossos exemplos, podereis passar a vossos filhos o nome que vos legamos

—, enobrecido pelo trabalho, pelo patriotismo e pela virtude...

E apertando a mão de Batista, continuei a observar a feira em seus agitados e pitorescos movimentos comerciais.

Quadro indescritível!

A palavra triste da viúva, que ao parente ou amigo contava o passamento do esposo, era sufocada pela frase estridente do vendilhão, ou pelos prazenteiros cumprimentos dos que se encontravam após longa ausência, enquanto as práticas dos lavradores confundiam-se com as suspirosas queixas ou insolências do ébrio infeliz que caminhava ao cárcere; e o grito de alegria da criança, a brincar no pátio, misturava-se com a voz plangente do mendigante a recordar seus males!

Quem poderia, pois, descrever assim reunidos e baralhados em um quadro de instantes, todos os sentimentos humanos, e as notas que os exprimiam, em diferente escalas, nessa variada e grande orquestra?


CAPÍTULO 9

Houve uma hora em que diminuiu consideravelmente a agitação do mercado — a hora da missa conventual.

Grande parte da população correra ao templo, ao escutar a terceira chamada do sino — outra ficara por ter ouvido já a missa da manhã — e poucos, felizmente poucos, por tatearem cegos nas trevas do indiferentismo, desconhecendo as doces emoções da fé.

Depressa enchera-se a igreja, em cujos altares recendiam frescas e fragrantes flores colhidas ao amanhecer.

E depois de pronunciar em alta voz os atos de fé, esperança, caridade e contrição, que o povo ouviu e repetiu fervoroso, o vigário paramentou-se e começou o santo sacrifício da missa, por entre cânticos repassados de unção, que entoavam os fiéis.

Que encantadora singeleza!

Quem não sente as mais suaves comoções, assistindo à missa na aldeia, e ouvindo aqueles benditos tão ingênuos e melífluos, coados no sentimento religioso, e repassados da eloquência da fé? Os santos benditos que aquelas donzelinhas, de joelhos e com os olhos fitos na Virgem, cantam com acentos da maior devoção, acompanhadas dos velhos, e com eles formando uma harmonia mais tocante e agradável ao Menino do presépio de Belém, do que as músicas voluptuosas que ressoam nos luxuosos templos?...

Sim, mais agradável a Jesus, disse, porque foi assim que o adoraram os pastores no presépio, e depois o povo em sua peregrinação na terra, até o dia cruento do calvário; porque a voz sincera e cândida do coração do povo, lhe soa mais doce do que a dos cânticos comprados a mercenários músicos; e finalmente porque a simplicidade e singeleza são mais consentâneas ao espírito do cristianismo, do que os esplendores do luxo — os ouropéis da vaidade.

E que recordações gratas não nos despertam esses benditos inocentes; como brandamente nos transportam aos dias límpidos de nossa infância?

Finda a leitura do evangelho, o sacerdote começou a explicá-lo em linguagem chã e ao mesmo tempo eloquente; e exortando os seus paroquianos para que resistissem às tentações do anjo maldito, recordou-lhes as que sofrera Jesus, após o batismo:

— Recebendo as águas do batismo, deixou Jesus as margens do Jordão, e cheio do Espírito Santo, esteve no deserto sem comer nem beber durante quarenta dias e quarenta noites.

Depois de tamanho jejum, permitiu o Espírito Santo que Jesus sentisse fome e que por isso o demônio tivesse ocasião de o tentar.

Veio o demônio e disse a Jesus:

— Tens fome, e se és Filho de Deus, dizei a estas pedras que se convertam em pão.

— Nem só o homem vive de pão — respondeu Jesus —, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

Logo o demônio, tomando Jesus, levou-o a Jerusalém e colocando-o no pináculo do templo, disse-lhe:

— Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito que Deus mandou aos seus anjos que tivessem cuidado de ti e que te guardassem, e que te sustivessem em seus braços, para não magoares talvez o teu pé em alguma pedra.

Jesus respondeu com outra citação da Escritura:

— Dito está: Não tentarás ao Senhor teu Deus.

Insistindo ainda, o demônio transportou Jesus a um alto monte, e mostrando-lhe em um momento todas as nações do mundo, falsamente lhe disse:

— Dar-te-ei todo este poder, e a glória destas nações, porque elas me foram dadas, e eu as dou a quem bem me parece. Tudo isto te darei, se me adorares prostrado na minha presença.

Então Jesus tornou-lhe com ar soberano e divino:

— Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele servirás.

Vendo deste modo frustrados os seus ardis, retirou-se o demônio e os Anjos serviram a Jesus com comida e refeição corporal. Recordando esta passagem dos santos Evangelhos, o vigário ampliou-a com graciosa e enternecedora simplicidade, servindo-se de exemplos tirados da vida agrícola e dos costumes de seus paroquianos — desprezando portanto os argumentos intrincados e as citações empoladas do abade Fulano, do doutor Sicrano, e do cardeal Beltrano, com que tolos pregadores fatigam às vezes a atenção de seus ouvintes, dos rústicos campônios, que não podem compreendê-los, e que entretanto veem com pena estragar-se assim as sementes da parábola.

Gostei, pois, do sermão, porque fora apropriado ao lugar e ao auditório, e tivera por modelo o Evangelho, esse Tesouro inesgotável de simplicidade e eloquência religiosa.

E permita-se-me que aqui o diga. Entendo que a prédica d'aldeia devia ser objeto de mais aturado estudo nos seminários; que devia-se preparar cuidadosamente os jovens pregadores, que depois se espalham pelos povoados do sertão, ensinando-lhes a linguagem chã e a maneira de se fazerem compreendidos do auditório do campo, a fim de conseguirem grandes vantagens na propaganda das santas doutrinas do cristianismo. Convinha, pois, que o catequista tivesse sempre em vista o modo por que Jesus falava às massas populares, e, como o divino Mestre, enunciasse os mais profundos princípios teológicos, pregasse toda a doutrina de seu ministério, em singelas parábolas, na linguagem dos ouvintes, de sorte que estes pudessem contar em casa a seus filhos o que ouviram na igreja, o que lhes ficou gravado n’alma. Aquele que para tanto não tivesse a necessária inteligência, melhor seria limitar-se a ler simplesmente no púlpito um capítulo do Evangelho em cada domingo; e destarte efetivamente alcançaria mais do que os pedantes que com os olhos arregatados para o analfabeto caboclo, apenas conhecedor do manejo da enxada, falam-lhe do abade Gaume, como se ele o conhecesse, e emaranham-se em seguida numa intrincada argumentação que decoraram, e em que se perdem, fugindo e procurando salvar-se logo nas exclamações plangentes.

E qual o resultado de semelhantes sermões indigestos, e mesmo dos excelentes sermões que Monte-Alverne escrevera para a Corte, e que o capelão de boa memória decora e repete no púlpito d’aldeia?...

Nenhum, certamente.

— Mulher, diz a aldeã à sua companheira, o sermão esteve bonito, mas eu não entendi nada.

— Nem eu, criatura; aquilo era grego, ou a tal língua do inglês...

— E que bicho será aquele Goume, de que ele falou, ó gente?

— pergunta o caboclo velho à mulher.

— Eu sei lá, homem! Há de ser animal das outras terras... E enquanto assim o apreciam seus ouvintes, o pobre prega-

dor em casa cuida que muito conseguiu na prédica, e prepara

outra estirada igual para o seguinte domingo.

Basta e perdoe-me Deus este reparo — ditado unicamente pelo amor que no fundo d’alma consagro à religião cristã.

Concluindo o sermão, o vigário passou a ler os proclamas; e então, que olhares furtivos entre os moços; que atenção nos velhos, e quantos lampejos de contentamento no rosto dos interessados!

Talvez interiormente, lá no mais recôndito do coração, murmurasse a donzela: "Quando chegará a minha vez? Tomara que o Serafim acabe o roçado e a casa para pedir-me... Não pensei que a Rita casasse primeiro que eu... Enfim o Antônio resolveu-se a reparar o mal que fez à Rosa..."

E todos os outros talvez apreciassem do mesmo modo as anunciadas bodas, recordando precedentes e tirando as necessárias consequências.

Depois da missa teve lugar a cena dos batizados na sacristia. Dois ou três padrinhos matutos, com seus paletós muito engomados e tesos, gravatas intrigadas com os colarinhos — coletes mal abotoados e recordando os antigos quartinhos —, seguravam velas acesas, juntos de outros da vila, e por isso vestidos com mais elegância. As madrinhas, com seus xales e vestidos de chita ou cambraia, dispensavam atenções aos afilhados, que esperneavam chorando zangados com o gosto do sal e frieza d’água; enquanto cintilava o contentamento nos olhos das meninas que os apresentavam, ufanas de tamanha honra, e dispostas a sustentar direitos de comadre quando lhos contestassem.

Completava a cena o júbilo dos pais; e a sincera gravidade do pároco.

E concluiu-a depois a satisfação do sacristão, quando teve de fazer os lançamentos e entrar na messe dos emolumentos e das generosidades dos padrinhos.

 

CAPÍTULO 10

Dirigindo-me de novo à feira, encontrei na rua João e Marcolina, que voltavam da missa.

— Como lhe pareceu o sermão, senhora Marcolina — perguntei-lhe baixinho —; gostou muito, não?

— Ah, fez-me chorar... Parece que o senhor vigário lê no coração da gente... Disse tantas verdades... Tudo aquilo que ele contou, acontece, e vê-se todos os dias entre nós...

— Tem razão... E quer saber de uma cousa? Em todo o tempo daquele excelente sermão, lembrei-me da senhora... Não duvide... Recordei-me da história de seus últimos sofrimentos; da coragem com que trabalhava ao sol e à chuva, sem descanso, vencendo a fome e muitas vezes a doença, para ganhar o vintém necessário ao bocado e remédio do marido enfermo, e de seu filhinho. E então dizia comigo: — Com que vigor não lutou aquela mulher, moça e bonita, contra as tentações infernais, a fim de conservar intacto o tesouro de sua honra, e apresentar-se fiel e pura a seu esposo, quando este voltasse à saúde?... Quantas vezes no empenho de perdê-la, não procurou-a o demônio na pessoa do moço devasso e rico, e não lhe ofereceu pão, quando ela quase agonizava de fome; e não lhe ofereceu vestido, quando ela tiritava de frio; e não lhe ofereceu dinheiro, quando ela soluçava por não ter um vintém para prover as necessidades mais imperiosas?... E entretanto, repelindo os gozos do ócio na hora das fadigas, e o ouro no instante da penúria, ela resistiu a tudo heroicamente, e vencendo espinhos e agruras, continuou a trilhar a senda da virtude...

— É verdade — disse ela trêmula e enternecida —, mas ajudou-me Maria Santíssima dando-me forças, e cobrindo-me com seu divino manto. Implorava a graça de Deus, e esta não falta a quem de joelhos e fervorosamente a implora. E rezando os atos de fé e de esperança, como que ouvia a voz do céu prometer-me muita abundância e alegrias, em recompensa dos meus sofrimentos, se eu não me arredasse do bom caminho... E não aconteceu tudo isso? A fartura e contentamentos, que me vieram depois, não são aquele pão corporal que os anjos serviram a Jesus depois das tentações, como nos contou o senhor vigário?... Ah, é bem certo o ditado: — Quem com Deus anda, com Deus acaba... Nossa Senhora, interceda por mim, para que eu sempre possa resistir às tentações do maldito e fugir dos maus caminhos...

E despediu-se, para concluir os seus arranjos e voltar a casa.

Duas horas depois concluía-se a feira — começava a vazante do mercado.

Como viera, retirava-se o povo em bandos, tangendo as cargas de mantimentos, ou os conduzindo às costas.

Os animais, interrompidos em suas meditações, e recebendo as malas e caçuás, volviam aos seus campos, como que dizendo:

— Enfim! Enfim acabaram os tais senhores com a maçada!

Gradualmente desmanchava-se o quadro, como morro d’areia movediça, nas inundações. De vez em quando destacava-se uma porção e desaparecia. Do mesmo modo calavam-se as notas da grande orquestra.

Agora os adeuses da despedida. Muitas ilusões desfeitas em corações juvenis e outras a despontarem vivaces. Em todos — as saudades. Saudades dos comerciantes, a verem partir seus fregueses — e destes, largando as folias do mercado.

As medidas pedindo repouso e as gavetas que as aliviassem...

— Adeus, ó filhos do trabalho! Sorrindo volvei aos campos da lavoura, e sorrindo vinde no domingo animar o nosso comércio. Às três horas da tarde, despovoara-se de todo o mercado.

Restava apenas nos alpendres muito serviço para as vassouras e nada mais.

E a formosa Pacatuba, a graciosa filha d’Aratanha, tendo apertado a mão de seu querido distrito e dos vizinhos, fechou suas lojas, endireitou os vestidos, e com seus caixeiros saiu e foi assistir à revista de seus guardas-nacionais ou passear e conversar nas calçadas sobre os acontecimentos do dia.

 
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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