4/08/2023

Noite de núpcias (Conto), de Juvenal Galeno

 



NOITE DE NÚPCIAS 

CAPÍTULO 1

Era já muito tarde, seguramente dez horas da noite, e ainda passeávamos ao longo da praia.

Os pescadores dormiam em suas casinhas.

O Pecém, esse pequeno arraial marítimo, estava naquela hora submerso em profundo silêncio. De vez em quando, apenas os choros da criancinha acordada em sua tipoia, ou o latido do cão à porta de seus amos, denunciavam a existência de uma povoação nessas paragens. Se isto não fora, diríeis talvez uma aldeia abandonada pelos errantes filhos da selva.

Eu e Antônio, o pescador que me acompanhava no passeio noturno, muitas vezes parávamos, nos sentávamos no morro, e calados contemplávamos o arraial em seu remanso, e o mar em seu agonizar sem tréguas.

Gosto de passear assim em deserta praia. Nada mais belo, mais imponente, mais sublime para mim, em todo o universo, do que o mar nos lugares ermos.

Não me lembro do que senti à primeira vez que o avistei. Talvez pouco me impressionasse, porque nasci ouvindo sua gemedora e monótona toada e cedo acostumei-me a vê-lo da calçada de minha casa.

Depois...

Menino, saltei muitas vezes rindo e folgando na praia, no meio de alegres companheiros; e então apenas reparava naquele alvo e macio banco de areia, como que de propósito preparado para os brinquedos da manja, ou tempo-será: — talvez senti gratidão para com o bom Deus por tê-lo feito. E moço, passeei em suave meditação.

Encantava-me o mar, admirava sua grandeza; mas, perto estava a cidade com seus rumores; — aqui os barqueiros, os pescadores; além os navios, o vapor, a despoetizá-lo, a marear-lhe a beleza e a sufocar as melancólicas notas de suas vagas.

Um dia, porém, visitei-o no deserto. Fiz a viagem por campos arredados de sua margem, e procurei-o no lugar Taíba, naquele pedregulho vermelho que o invade, provocando-lhe as iras.

Era ao descair da tarde. Os passarinhos voavam ao derredor do pouso. O sol escondia-se longe, atrás das montanhas. E a gaivota deixara o ranchinho da praia, onde saltitara durante o dia procurando surpreender os peixinhos.

Atravessei um grande morro de mais de meia légua de largura, e com um grito de assombro parei ante o mar, ante o maravilhoso quadro que se descortinava a meus olhos!

As vagas quebravam-se raivosas nas rochas broncas e furadas do cerro, invadindo os antros e uivando como onça surpreendida na furna. O vento zunia com força, puxando-me os cabelos e a roupa, arrancando-me o chapéu; e a seu impulso passava a areia, desfaziam-se aqui os morros e formavam-se além.

Em frente, as ondas agitadas, buliçosas, rugidoras — o mar, o infinito d’água; ao redor, o areal sem termo, despovoado de verdura; em cima, o céu azulado a desmaiar, a escurecer-se: por toda a parte o deserto.

Fiquei parado por muito tempo — estúpido, completamente estúpido. Não pensava, não tinha sequer uma ideia a esvoaçar-me na mente. Olhava para aquilo sem compreender... como que sem vida, sem sentidos...

Na imensidade de um sentimento qualquer — dor, alegria ou espanto —, fico sempre assim: para-me talvez o sangue nas veias e minh’alma adormece. Depois, despertando do êxtase ou torpor, se a sua causa foi a angústia, corre-me opimo o pranto pelas faces; se a alegria, brota-me o riso nos lábios; se o espanto, as ideias volvem, o pensamento trabalha rápido.

Acordando então, senti um terror indizível: o medo traspassou-me a medula dos ossos. Era quase noite, e eu ali naquele ermo areial, junto daquele mar bravio, e também deserto! Como me conheci pequeno em frente daquela grandeza! O que era eu senão miserável argueiro? Receei que o vendaval me levasse em suas asas, que as ondas crescessem... crescessem e me arrebatassem da terra para esmigalhar-me nas penedias, que surgisse daqueles abismos um monstro... uma avantesma, e me levasse para as grotas do fundo ao mar...

Passado esse terror infantil, filho da consciência de minha pequenez, veio a reflexão, o raciocínio, a admiração...

Saudei em maviosos hinos do coração aquele mar sem fim, as carpidoras vagas, o areal branco e móbil, os rochedos vermelhos, a renda de nevada espuma que enfeitava o verde manto do oceano, a humilde conchinha da praia, o vento, a solidão... finalmente Deus, o prodigioso autor daquelas belezas.

E deixando a Taíba, poucas horas depois eu passeava no Pecém, onde me encontra o leitor, e onde tudo isto eu recordava, ao lado do pescador Antônio.

Era lindíssimo o luar.

As águas brilhavam e mais ainda o peixe que pulava brincando de vaga em vaga. E nós conversávamos despertando de vez em quando o tetéu, nos alagadiços vizinhos.

Ouvindo um de seus assustados gritos, disse-me Antônio:

— O tetéu não dorme, é a sentinela do bosque.

— Como é o tetéu, senhor Antônio?

— Pois não o conhece?

— Não; somente o nome.

— Então escute: o tetéu é um passarinho de cor arroxeada como a da rola, papo preto, encontros brancos; e tem no alto da cabeça uma pena maior, assim a modo de penacho. Seu biquinho é comprido e preto cinzento. Põe dois ovos no chão limpo, e apenas come lodo e bichinhos d’água. Quase não dorme; passa a noite com um pé erguido e as asas abertas: quando cai o pé ele desperta e o mesmo acontece se fecha as asas, pois estas têm um ferrãozinho que o fere. Assim não pode pegar no sono e; ao menor barulho grita, e voa dos alagadiços onde vive.

— E não pousa nas árvores?

— Não, senhor, que ele não pode; tem os dedos tão curtos, que não se seguram nos galhos...

— Coitado, está sempre velando...

— É isto mesmo — vê anoitecer e amanhecer quase sem pregar olhos, como o pobre ferido n’alma pela dor, ou estorcendo-se na agonia da fome.

— Já sentiu alguma vez dor muito grande, senhor Antônio?

— Já... muito... muito...

— Aqui mesmo?

— Naquela palhoça que ali embaixo o vento rasga sem pena.

— Faz-me um favor?

— Dois e três... vosmecê manda, não pede.

— Conte-me a história dessa grande dor.

— Não é melhor ficar para amanhã?

— Agora. O silêncio convida; e ninguém nos interromperá a não ser o tetéu, o símbolo do cuidado incessante. Está com sono?

— Ora, meu senhor... os jangadeiros acostumam-se a não dormir. Este que vosmecê está vendo seria muito feliz se tivesse de Padre-Nossos para sua alma, as noites passadas em claro, no meio das ondas, com o anzol n’água, sem pescar um coró. Há dias de completa infelicidade para o homem do mar. Os filhinhos choram com fome, a esposa alonga a vista pelas vagas, ansiosa esperando a jangada; e o pobre, na solidão das águas, debalde prepara a linha, muda de lugar e suplica a Deus um peixe ao menos... Nada. Parece que o demônio vira-se em tubarão para perseguir a tudo que se aproxima do anzol. Ai, e que tristeza e desânimo no pobre, quando com o samburá vazio e a quimanga limpa, volta à tarde para sua casinha!

— Mas, conte-me a história.

— Vou contar-lhe a do meu infeliz amor. Escute. Está vendo aquela casinha cercada de coqueiros, acolá na volta da praia?

— Que tem um jataí ao lado, não é?

— Sim, senhor, aquela mesma; pois foi lá que sucedeu isto que vou contar-lhe.

E contou-me o seguinte.

 

CAPÍTULO 2

Eu andava com os meus dezessete anos, pouco mais ou menos, quando me engracei de Carolina. Era uma moça muito bonita, senhor, e mais do que todas para os meus olhos. De corpo mimoso e franzino — parecia-me uma sombra, que pouco a pouco vai desaparecendo, um sonho da madrugada, uma visão que não sei explicar. Seu olhar era preguiçoso e terno como a luz do sol no poente; e o sorriso ligeiro e esperançoso como relâmpago ao longe em tempos secos. Mas, algumas vezes, senhor, esse olhar brilhava ardente como o areal ao meio-dia; e o sorriso estalava contente como a chuva de abril, ou igual aos sorrisos de menino. Isto acontecia pouco, pois o natural dela era a tristeza.

Carolina morava com sua mãe, que era uma pobre velha muito chegada a Deus e dada com todos. Seu pai morrera de maleitas, deixando unicamente a pobre casinha e o costume do trabalho. E, Deus louvado, nada lhes faltava, porque mãe e filha, fazendo rendas, cosendo, ou fiando, bem sabiam ganhar o bocado com o suor do seu rosto. Demais, a velha era parteira e entendida em mezinhas, e por isso todos a serviram para tê-la em suas enfermidades.

Ninguém censurava Carolina quanto à sua honestidade. Não, senhor. Em suas visagens, em seu viver diferente do das outras, sim, é que reparava-se e muito! Tinham-na visto em noite de luar, sozinha pela praia, com os cabelos soltos, ora a soluçar penosa, ora a cantar umas toadas ternas; e havia até quem afiançasse que a descobrira nas ondas em uma noite de grande tempestade! Queriam alguns que ela tivesse comunicação com as almas penadas; e outros, que estivesse com o juízo meio desmantelado! Mas, tudo isto dizia-se baixinho para que a velha não ouvisse, e zangada se negasse depois ao curativo dos doentes.

Eu não acreditava nestas cousas, senhor. Para mim, a Carolina não era mais do que uma menina triste por natureza, calada e pensativa, que mais gostava de viver só, do que na folia das outras. Como vosmecê não ignora, basta que uma pessoa se afaste de seus costumes, não viva a seu jeito, para o povo imaginá-la da maneira mais extravagante.

E não me enganava. Carolina nascera propensa à tristeza e à solidão, e isto tornava-a formosa como a tarde nos momentos d’Ave-Maria.

Nesta hora de sombra e saudades, em que a gente volta-se para o passado, ela largava o trabalho e passeava pela praia, ou à porta da casinha sentava-se com os olhos fitos nas ondas. E eu a procurava então, e quase sempre calado sentava-me perto, a mirá-la sem fartar-me, como o menino à vela da jangadinha de seu pai na linha do mar.

Sem que eu lho dissesse, Carolina compreendera o amor que me queimava o coração, e se não o correspondia como eu quisera, senhor, não deixava de tratar-me bem e ouvir-me com toda a atenção. Mas, quando na conversa eu lhe dava a entender o meu estado e desejos, ela suspirava sem responde-me, e derramava um dos seus olhares lânguidos em meu rosto e depois sobre os mares. Tratava-me como se eu fora seu irmão e a velha chamava-me seu filho.

Não me bastava tão pouco, para matar a sede que me devorava a alma. Ardente e apaixonado, perto via a felicidade; e minha vontade, pois, era correr... para não gastar tempo no caminho. E que me importava a pobreza, os contratempos, o mundo... tudo?... Possuindo Carolina, eu seria o homem mais venturoso da terra e... não sei dizer o que sentia, o que se sente nessa idade! Vosmecê passou sem dúvida por tudo isto, conseguintemente compreende o que não lhe posso explicar.

Entendi-me, pois, com a velha; e esta sorrindo-se assegurou-me sua aprovação, aconselhando-me todavia que falasse com franqueza à Carolina, para saber — do sim, ou não.

Falei... Trêmulo e confuso supliquei a Carolina que decidisse logo de minha sorte... E ela estremecendo respondeu-me:

— Gosta de ver-me, de acompanhar-me nos passeios, de conversar comigo?

— Sim, Carolina, sim...

— Pois continuemos como até hoje. Sejamos irmãos. Talvez mais tarde...

— Carolina! e por que não agora?

— Cale-se... Não diga mais nada... me obedeça...

E olhou-me com tanta graça, que não pude continuar. Ela tinha um poder sobre mim, senhor, um poder... que me dominava. Ao menor de seus desejos eu obedecia, como se fora uma ordem do céu. Até seria capaz de lançar-me às ondas do furor de uma tormenta, de precipitar-me nas chamas, e mesmo de esfaquear-me a seus pés se ela mo ordenasse! Não é exageração, senhor. Ainda hoje não sei como era aquilo... e muitas vezes matinando o juízo levo horas e horas a procurar uma razão para esse tanto.

Calando-me, fiquei a seu lado algum tempo, triste e desanimado. Olhávamos ambos para o mar, que perto agonizava sem esperança. Depois tocando-me levemente com sua delicada mãozinha, riu-se com inocente alegria, e me disse:

— Está zangado comigo, não é? Mau!... Por que é mau?

Eu suspirei apenas. Então, mudando de tom, quase séria, ela acrescentou:

— Ama-me... e não pode esperar! Por que tão depressa?... Pense primeiro para não se arrepender depois. Olhe, às vezes a gente procura uma flor... É tão bonita; seu perfume tão doce... Apanha-se a flor, a pobrezinha emurchece, e no outro dia seca abandonada no campo...

— Não diga isto, Carolina! Escute: não há força no mundo que me faça deixar de amá-la! Você me governa. Minha vida é sua! O que quer que eu faça, Carolina?...

— Ama-me então muito, não é?

— Sim, Carolina, muito, muito!

E ela calou-se, calou-se pensativa, e se eu deixava escapar algumas palavras, estas caíam na areia e nem ao menos o eco as respondia.

Contei à velha o resultado da minha empresa, instando para que me ajudasse. Falou-me assim:

— Não é bom vexá-la, não; Carolina é meio esquisita e pode aborrecê-lo. Continue como vai, que o tempo fará o resto.

Tomei este conselho, que outro não tinha a tomar. E que havia eu de fazer, senhor? Se teimasse em pedir-lhe o sim, Carolina tomaria desgosto e me fugiria talvez. O melhor partido, pois, era esperar que aquela mulher diferente das outras se condoesse de mim.

A gente da praia certamente reparava na demora de nosso casamento e o que dizia não sei. E tinha razão, porque aqui esses negócios não se demoram: — o rapaz enamora-se da rapariga e dito e feito, casa-se logo.

Entretanto eu continuava a esperar, pedindo a Deus que encurtasse o tempo de tamanha delonga.

Como já contei a vosmecê, Carolina no meio de sua tristeza habitual tinha horas de uma alegria de menino. Corria então na praia atrás da folha que o vento levava, provocando-me para o mesmo, e rindo-se da menor cousa. Pobre criança! Com que singeleza e graça ela me dizia:

— Olhe, Antônio, tenho vontade de descer ao fundo do mar para ver as sereias... Vivem cantando entre as flores de seus jardins. Seus palácios são de uma beleza que não podemos imaginar, não são? — Repare como aquela vaga abraça-se com a outra... Ai, desmancharam-se depois do abraço! O amor... escute: não, não escute... Sou uma doida, não é, Antônio? — A nambu está marcando as horas. Conte. Uma, duas, três, quatro, cinco... Cinco sorrisos da nambu são cinco horas. Quem ensinou a nambu a marcar assim as horas? — Tenho inveja da gaivota que voa de mar adentro... Vai passear nas outras terras, não é, Antônio? Dizem que as outras terras são tão formosas...

E falando nas outras terras, ela recaía em sua meditação, e mandava-me embora.

— Por que já não me quer em sua companhia, Carolina?

— Nada... não diga nada; faça o que lhe mando...

E eu me retirava agastado e triste sem poder compreendê-la.

 

CAPÍTULO 3

Vivíamos assim, nesta incerteza, nestas esperanças e desesperanças, quando arribou a esta praia um navio, que demandava o porto da Capital. Precisava de um pequeno conserto, e por isso devia demorar-se aqui uma semana.

Os marujos, como costumam, saltaram logo em terra e percorreram todas as casinhas, procurando bebidas e frutas, e travando relações com as famílias.

Tornou-se isto a novidade desta praia.

Todos falavam em tal; no agrado dos marujos, nos presentes que faziam e recebiam, nas visitas ao navio e no parente ou antigo conhecido que haviam encontrado.

Cada qual, senhor, tinha a sua história a contar, a sua opinião a respeito, e um elogio para os marujos que sem pena gastavam, e mais ainda mandavam encher os copos.

Infelizmente não escapou dessa revolução a casinha do jataí! Os marujos visitaram-na e um deles, o comandante ou mestre do navio, moço bem apessoado, puxando conversa com a velha, descobriu não sei como, que ainda vinha a ser seu parente!

Quando eu soube disto, senhor, doeu-me o coração como se o tivessem arrochado com uma corda. E desde então, largando

o trabalho pus-me a rondar aquela casinha, com medo que me roubassem a felicidade.

E Carolina reparando agastou-se e ordenou-me que mudasse de vida!

Mas, o que havia de fazer? Diga-me vosmecê... O que eu havia de fazer se um pressentimento cruel, um ciúme devorador me alucinavam?...

Todos os dias o tal marujo vinha a terra e todo tempo passava na casinha do jataí... A velha recebia-o com agrado, tratando-o por sobrinho, aceitava seus mimos e preparava-lhe o comer; e Carolina não se fartava de indagar por essas terras desconhecidas... da outra bando do mar... que o velhaco do primo pintava como se pinta o céu.

E ouvindo-o, ela ficava como que triste e pensativa.

Uma tarde o comandante as convidou para um passeio a bordo. A velha não queria ir — tinha receio de enjoar; mas Carolina instou tanto, que... poucos momentos depois embarcavam, demandando o navio. Eu estava então pescando numa jangadinha da costa e tão distraído, que não dei fé do escaler, senão quando poucas braças distava, quando já não me era possível remar e fugir de um quadro que me trazia o desespero.

Carolina ao ver-me gritou batendo palmas e sorrindo:

— Antônio... está dormindo, Antônio! Ande... venha também passear no navio...

Eu não respondi, senhor, que meus beiços tremiam como no frio das maleitas.

— Ande, Antônio — continuou ela —, que maluco aquele, nem responde a gente!

— Está dormindo e sonhando com os peixes — disse o comandante.

E voltando-se para mim, acrescentou:

— Camarada, acorda e pesca para me venderes teus peixes!

— Prefiro lançá-los ao mar.

— Que paspalhão!

— Infame! vem dizer isto perto! — tornei-lhe furioso.

— Não repare no que ele diz, meu primo... o pobre rapaz anda com a bola virada — acudiu Carolina.

— Coitadinho! — concluiu o comandante com faceirice.

E riram-se todos da graça, afastando-se de minha jangada, e eu fiquei soluçando, senhor, e pedindo a Deus uma tormenta que nos esmagasse a todos... que soltasse raios e ordenasse aos mais desenfreados ventos que descessem, trouxessem as nuvens mais negras, remexessem as ondas e nos afogassem todos — a mim com tamanha angústia, àquela mulher com a sua ingratidão, ao marujo com a sua perversidade e à velha com seu criminoso descuido! Nosso Senhor me perdoe este e outros pensamentos maus do meu desespero.

Era noite quando voltaram do navio, Carolina quase desmaiada, segurando-se no braço do comandante, e a velha do outro lado, bastante abatida pelo enjoo. A velha dizia:

— Eu bem não queria ir, Carolina! Agora cairás doente... Isto só pelos meus pecados...

— Não foi nada — tornava o comandante —, com o descanso isto passa; amanhã Carolina acordará boa...

Eu os escutava escondido e assim acompanhei-os à casinha. O comandante logo se retirou dizendo:

— É preciso que descansem... não quero importuná-las.

Amanhã voltarei para conversarmos.

Eu andava, senhor, em termos de perder o juízo. Já uma semana passara e o navio ainda no porto! E cada vez mais curtas as visitas do comandante à casinha do jataí e mais estreita a amizade!

Ao mesmo tempo eu procurava encontrar-me só com o meu rival. Queria provocá-lo... brigar com ele e matá-lo ou ser morto! Mas, porque ele desconfiasse, ou porque Nossa Senhora do Amparo, minha madrinha, me socorresse, nunca achei ocasião para tal. Ah, se eu tivesse podido... Deus me perdoe, o meu ódio àquele homem era tão grande como o meu amor à Carolina, e maior que o meu amor... nem sei!

Quando voltaram do navio, e logo que se retirou o comandante, entrei na casinha, mais do que nunca sombrio e pesaroso.

Nunca viu, senhor, ao aproximar-se a tormenta, como a costa torna-se escura, triste e horrível? Assim meu coração.

Carolina sentada junto à sua rede, pensava calada, enxugando, para que a mãe não visse a lágrima que lhe corria dos olhos e a velha, recomendando-lhe que se deitasse, preparava-se para sair a visitar uma doente que ela tratava perto.

Assustaram-se quando entrei, vendo talvez em meu rosto a tempestade que no coração estalava.

Disse-me logo a velha:

— Estou muito zangada com você, Antônio... Como é que sem razão tratou há pouco daquele modo a meu sobrinho?

— Carolina é a culpada — respondi estremecendo.

— Eu? — disse Carolina enraivecendo-se rapidamente — pois tenho culpa de sua malcriação? Que há de dizer o primo, sabendo que estimamos e damos entrada em nossa casa a um homem tão grosseiro?

— Tem razão, Carolina; além do que tem feito... mais o insulto!

— O que é que ela tem feito? — acudiu a velha. — Tratar bem ao primo? Há nisto algum mal? Pois era para você andar cheio desses ciúmes? Antônio, o homem ciumento não pode fazer feliz a mulher com quem se casa, porque do ciúme nascem as maiores loucuras...

Ciúme... cega, que não enxergava o precipício a seus pés!

— E faça eu o que tenho feito ou mais ainda, o que é certo é que não lhe devo contas! — continuou Carolina. — O que lhe prometi? Disse-lhe acaso, que correspondia ao seu amor? Ora... também muita impertinência aborrece a gente!

Era tremendo o golpe; eu não o esperava. Desatei a chorar, a soluçar como criança...

Condoída por isso, a velha mudou de tom e procurou consolar-me.

— Seja homem, Antônio, deixe estas fraquezas para as mulheres e meninos... Não repare no que disse Carolina; são arrufos por causa de seu ciúme... Ela não deixou de amá-lo, e Nossa Senhora não permita que eu morra sem os deixar casados.

E eu sem atender às consolações da velha, dirigi-me à porta e soluçando ainda disse à Carolina:

— Pois bem, Carolina, não hei de aborrecê-la mais com as minhas impertinências, e nem você se envergonhará daqui em diante de meus modos grosseiros. Mas, Deus enxerga até na mais escura noite e lê nos corações. Ele conhece todo meu amor, quais as minhas intenções... Que não me perdoe as culpas, se não penso somente em sua felicidade, minha felicidade também. Um dia, Carolina, você há de arrepender-se; talvez bem tarde... Adeus... Não saio querendo-lhe mal, porque isto me é impossível... mas vou chorar longe — onde meus soluços não a importunem.

E saí sem esperar a resposta, e só Deus sabe o quanto sofri então.

Para encurtar a história, senhor, não tardou em realizar-se a desgraça que meu coração pressentia. Um dia o navio anoiteceu e não amanheceu no porto. Saíra à noite, levando Carolina para essas terras estranhas, terras de seus sonhos, e com ela a vida da imprevidente velha, que não pôde resistir à ingratidão da filha e minha ventura, o encanto de minh’alma!

E Antônio interrompeu aqui a sua história, profundamente comovido, e com os olhos nadando em lágrimas.

Momentos depois, contou-me o resto, mas de um modo tão singelo, tão original, com tanto suspiro, reticência e  unção que, embora me esforçasse, não poderia reproduzi-lo com fidelidade.

Fá-lo-ei, pois, livremente.


CAPÍTULO 4

Carolina acreditara nos protestos do marujo. Este, notando a sua fatal inclinação para as viagens, além de assegurar-lhe o casamento, falava-lhe sem cessar das terras estranhas — dessas outras terras em que ela pensava dia e noite e que surgiam em seus sonhos de adolescente como oásis do mais ditoso afeto.

— Sim, Carolina, verás as cidades... Como são bonitas as cidades! Ruas de palácios deslumbrantes... músicas... divertimentos por toda a parte! Irás ao teatro...

— E o que é o teatro?

— O teatro é o que há de mais divertido e lindo neste mundo! Muitas moças de ricos vestuários; uma música deliciosa que arrebata... enfim, homens e mulheres a representarem acontecimentos da vida, como se aquilo fosse real! Nem eu sei dizer-te

— só vendo!

— Deve ser muito bonito, não é?

— Muito! E os bailes? Nem é bom falar nisto...

— Fale, diga como são os bailes...

— Dourados salões, enfeitados de cheirosas flores, e nestes os moços dançando com as moças. O sangue da gente ferve nas veias... Luzes sem conta... parece dia... O coração estremece de entusiasmo ao som dos instrumentos...

Os olhos de Carolina brilhavam então como estrelas em noites de estio, o seio arfava-lhe e ardente o hálito entreabria-lhe os lábios trêmulos de comoção.

— Mas, não poderei ir a esses bailes, pobre como sou!

— Casarei contigo e possuo bastante para comprar-te sedas e levar-te aos bailes...

— E se me enganar?

— Carolina! Não digas isto nem por graça... Juro-te... juro-te por alma de meu pai... 

Carolina acreditou, porque depois de semelhante juramento, o duvidar seria um crime. Jurar por alma de um finado, principalmente sendo este pai ou mãe, é convencer de uma vez o povo, porque o povo considera tal juramento o mais sagrado, a prova mais robusta da verdade. Mas o embarcadiço era — desabusado

—; conhecia as pessoas que pretendia iludir e por isso servira-se daquele ardil, apesar de ser ainda vivo seu pai.

Todavia, Carolina acrescentou:

— E por que não casamos antes de partirmos?

— Não entendes disto, meu amor! Não sabes que para casar-se uma pessoa que mora fora do lugar, precisa de muitos papéis? Carolina, tu não confias em mim.. Pois bem, fica em tua casinha de palha, na tua pobreza, na solidão desta praia, calcando com os pés a felicidade que te ofereço... Eu não te aborrecerei mais... Irei longe, embora gemendo de saudades, abafar no coração o amor que me inspiraste e nunca mais verás o meu rosto!

— Não... não fale assim! Em sua companhia quero ir... irei até o fim do mundo! Mas, dói-me deixar minha mãe sozinha naquela palhoça... O que será dela sabendo que parti... que a filha ingrata abandonou-a para sempre?

— Chorará a princípio, mas depois, quando souber que a filha está casada, rica e feliz, sorrir-se-á de alegria. Tu lhe escreverás e eu virei buscá-la para partilhar de nossas venturas.

Carolina não pôde resistir à tentação. Além da eloquência do sedutor, da afeição que este lhe implantara n’alma, uma força invencível a impelia ao abismo — seu gênio romântico, essa ânsia de luzes, rumores e harmonias —, esse desejo imenso, que sempre nutrira, de ver as outras terras e essas riquezas que a alucinavam nos devaneios de sua mente abrasada.

Há organizações assim. Mariposas que levianas deixam a suave solidão das selvas, de seus lares, onde a natureza entoa o hino dos brancos e santos amores, e procuram as chamas dos prazeres veementes; e nelas se precipitam, pondo termo à vida, como o louco infeliz na violenta voragem do rio.

Convulsa e lagrimosa, Carolina pôs o pé no escaler que devia conduzi-la ao navio e momentos depois viu pouco a pouco, entre as sombras da noite, afastar-se a terra onde nascera, o lar de sua infância, o chão da sepultura de seu pai!

Meu Deus! E não ouviste, Carolina, os gemidos saudosos daquelas selvas, daquela auras, daquelas vagas, daquela natureza enfim tão acostumada a ver-te, tão conhecida tua!

— Os homens — diziam as vagas — nos chamam falsas: maior é a falsidade dos homens! Carolina, Carolina, por que te fias dos homens?

— Em nosso colo — murmurava o areal — cresceste brincando; macio leito encontravas em nosso seio: por que o desprezas, Carolina, pelos espinhos?

— Nós segredávamos em teus ouvidos — sussurravam as auras — os inocentes mistérios das ramagens; brincávamos sorrindo nas tranças de teus cabelos: por que nos deixas, Carolina, pelo bafejo funesto das turbas?

— Enfeitava-te o roupão e os cabelos — dizia a flor das praias

—, deliciava-te com a fragrância saudável do meu cálice: por que me trocas, Carolina, pelas venenosas flores da cidade?

— A pura e cristalina água de minhas veias — suspirava o rio — não banhava-te o delicado corpo? Por que me esqueces, Carolina, pelo soro infausto dos tremedais?

De manhã já não via-se no horizonte a vela do navio. Carolina desaparecera para sempre.

Então, os passarinhos acordando saltaram nos galhos da ubaia, passaram às palmas do coqueiro e cantando perguntaram:

— Onde está a Carolina que não vem passear na praia, para ouvir as nossas cantigas?

E as auras, o rio, as vagas, as areias, responderam chorando:

— Ai! Carolina fugiu para sempre de nossos lares.

E as lágrimas da manhã caíram sobre a folhagem; e os passarinhos descantaram nênias em vez das ledas cantigas que tinham estudado para Carolina.

Mais tarde um mancebo soluçava em desespero, rodeado de seus amigos, e na cruz do tabuleiro os coveiros socavam a terra sobre o cadáver de uma pobre velha.     

E as selvas, o rio... toda a praia cobrira-se de luto e tristeza.

 

CAPÍTULO 5

A história das perdidas, das míseras filhas do povo que se deixam fascinar pelas sereias malditas do pecado, é quase sempre uma só. Todas acreditaram nas chamas de uma paixão constante, na sinceridade de uma promessa, e viram-se depois, coitadinhas, desprezadas por aqueles cujos anelos satisfizeram e de quem esperavam a reabilitação ante os altares.

— Uma manhã — na cidade da Fortaleza — Carolina recebeu um bilhete de seu amante — um bilhete de despedida. Partia o marujo em seu navio e grosseiramente declarava à infeliz que, certo de sua perfídia, abandonava-a a seus venturosos rivais.

Além do repúdio, a injúria e o escárnio!

Carolina chorou amargamente. Uma noite e um dia, sem dormir, sem comer, passou entregue à mais penosa desesperação, indecisa sobre o que fizesse, qual o caminho que devera trilhar.

Como aflige a incerteza!

— Volve, Carolina — lhe dizia ao ouvido o seu anjo da guarda

—, volve ao seio dos teus. Madalena pecou, e ninguém mais pura no céu. As lágrimas da contrição apagam as culpas e divinizam a alma. A virtude é a luta, o esforço... a vitória contra o mal. Deste o primeiro passo no terreno escorregadio dos vícios; reúne as forças... ânimo... retrograda e todos nós entoaremos hosanas nos coros celestes! Purificada pelo arrependimento, volve, Carolina, à mansão dos justos, aos pés de Jesus!

E no outro ouvido murmurava-lhe o demônio dos prostíbulos:

— Louca, louca! o que pretendes fazer? Volver ao seio da família? A estúpida gente da praia fugirá como se foras satanás! Pedir amparo à sociedade? Ela cerrará os ouvidos às tuas súplicas; as mães tremerão pelo sossego de seus filhos e paz de seus consortes; os homens preferir-te-ão nos alcoices para pasto de seus desejos brutais; e todos, condenando-te previamente, mandar-te-ão embora sob um chuveiro dos mais ferinos insultos! Refugiar-te nos templos, banhar com prantos contritos a laje das aras? Lá, acotovelando-se a multidão te apontará motejando, cruel, implacável! Motejadora, como outrora ela conduziu ao patíbulo aquele Cristo cuja Imagem plantou agora em seus altares... Cruel, como o açoite, cuspiu, feriu e crucificou! Implacável, como profana hoje seus templos, despreza seus mandamentos, desrespeita a sua Imagem! — Por toda a parte a injúria e a miséria, enquanto aqui a abundância, o luxo e os prazeres! Queres amor? Formosos, ricos e apaixonados mancebos to oferecem... Queres vingança? Esgota-lhes o ouro, arruína-os, impele-os ao crime... Queres esquecimento? À festa, às danças, às orgias!... Carolina, Carolina, que deliciosos dias começam para ti nas alegrias da cidade!

Passava então pela porta um pescador do Pecém, que viera vender uma carga de peixe salgado.

Carolina o conheceu e chamou.

— Carolina... aqui! Perdoe-me se a trato assim, era costume...

— Trata-me como era costume; sou a mesma para os patrícios e conhecidos...

— Mas, tão chorosa, menina! apesar de morar numa casa como esta, onde pelo que vejo nada lhe falta!

Carolina não respondeu, e enxugando as lágrimas disse-lhe depois:

— Chamei-o para pedir-lhe um favor, senhor Joaquim...

— Fale, Carolina, dou-lhe a minha palavra... farei o que pedir-me.

— Primeiro, quero que não diga na praia que me viu, que conversou comigo....

— Custa! mas já lhe prometi!

— Depois   que me dê notícias de lá: como deixou aquela

gente, senhor Joaquim?

— Com saúde, Deus louvado; e a menina como passa?

— Assim.   Diga-me mais, senhor Joaquim, a praia está ainda como quando saí?

 — Aquilo vai no mesmo, menina... De manhã muitos pescadores saem para o mar, outros ficam concertando as jangadas, as redes e a tapinambaba; as mulheres sentam-se à almofada; os velhos olham para as ondas recordando seus tempos; e as crianças saltam vadiando na areia. De tarde voltam os pescadores; rodeiam todos a jangada para ver o pescado; voltam-se a casa, bota-se o peixe no fogo, come-se, reza-se e dorme-se para no outro dia recomeçar esta lida...

— E as casinhas?...

Carolina queria perguntar por sua mãe, mas faltava-lhe a coragem. Fazendo, pois, um esforço, continuou:

— E as casinhas... nada há de mais ou de menos?

— Há de mais a tristeza de Antônio, que, depois que a menina saiu, tanto geme pesaroso no trabalho como no descanso. Esteve por um triz... ninguém pensou que escapasse... E de menos, aquela santa criatura, que Deus haja, que tamanha falta nos tem feito...

— Quem? — tornou Carolina empalidecendo trêmula.

— Pois a menina ainda não soube?...

— Nada... depois que saí, não vi mais ninguém das praias.

— Sinto ser eu quem lhe dá esta notícia... Pois estas cousas... Custa dizer! Porém a menina deve consolar-se com a vontade do Altíssimo...

— Mas, diga... o que aconteceu?

— Vou dizer-lhe... No dia em que a menina saiu, sua mãe... não pôde resistir ao desgosto... deu alma ao Criador.

Pálida como o cadáver, com os olhos secos e ardentes, e os lábios convulsos, Carolina ergueu-se, apertou a mão do pescador e balbuciando uma desculpa, um adeus, retirou-se à sua camarinha. Quem poderia descrever a dor imensa que lhe esmagava o coração? O terror que lhe infundia a voz do remorso, que incessantemente bradava-lhe aos ouvidos: "Filha, maldita, que fizeste de tua mãe?"

— Meu Deus! uma lágrima ao menos... Dai, Senhor, que eu chore!

Mas, a fonte das lágrimas tinha-se esgotado.

Restava um soluçar nervoso, estridente como o som da catadupa entre os rochedos.

Ao longe gemia o sino anunciando Ave-Maria.

Carolina então lembrou-se da oração da infância; daquela singela prece que, inocente e pura, ajoelhada na areia da praia, e com os olhos fitos na rósea nuvem do ocidente, tantas vezes rezara junto de sua mãe. E correndo descalça, abriu impetuosamente o baú, tirou uma Imagem da Virgem, colocou-a sobre uma banca, ajoelhou-se e envolta em seus longos cabelos, por acaso soltos, procurou repetir essa prece singela.

Diríeis, se a vísseis, a imagem da pecadora arrependida — dessa formosa Madalena do Evangelho, que banhara com suas lágrimas os pés de Jesus e os enxugara com seus cabelos.

Mas, faltava-lhe a contrição de Madalena, e por isso debalde tentou rezar! Confundia as frases, trocava as palavras, suas ideias baralhavam-se.

Julgou enlouquecer.

E pois, coberta de frio, suor e cheia de pânico terror, guardou a Imagem, correu para a cama, deitou-se, cobriu os olhos com as mãos, e recaiu em profunda meditação.

Que tremenda luta em seu espírito! Triunfou, enfim, o gênio das orgias.

Duas horas depois, Carolina abria a porta da camarinha e, sem uma lágrima, porém mais pálida, dizia à Rosa, sua criada:

— Rosa, hoje há baile de Carnaval; quero ir... ajuda-me a preparar um vestido.

Pronunciava a última palavra quando já pronta para o baile, entra Esméria, moça desenvolta que a visitava como vizinha.

— Quero ir ao baile, Esméria, mas falta-me um vestido.

— Arranja-se depressa, meu bem... Rosa, vai comprar umas meias cor de carne... Dá-me um vestido para fazer pregas, pois quero-te de saiote, à fantasia, meu amor...

E, à meia-noite, entre as perdidas, no meio da crápula e do deboche, Carolina pulava nas danças, bebia cerveja, e ria-se como se estivesse louca.

Desgraçada! No mal procurava o remédio do mal; na orgia supunha esquecer seu crime e abafar a foz do remorso que, ferina como a ponta do punhal, ecoava sempre em seu coração: "Mulher, que fizeste de tua virgindade? Ingrata, que fizeste do puro e santo amor de Antônio? Filha maldita, que fizeste de tua mãe?"

 

CAPÍTULO 6

Carolina celebrizou-se nos lupanares. Mancebo nenhum pôde jamais compreendê-la.

De uma sensibilidade esquisita, inconstante, leviana, caprichosa e extremamente romântica, ela impressionou a todos que infelizmente a conheceram.

Irava-se quando deveria estar calma; chorava quando se esperava o riso em seus lábios; ria-se quando a supunham triste e cantava nos momentos de maior amargura.

Viajou muito. Esteve em Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro e em outras províncias. Seu gênio não lhe consentia a quietação; pedia-lhe luzes, danças, rumores, festas e sobretudo viagens — essas outras terras que ela sonhara tantas vezes embevecida em sua adolescência.

Com a mesma facilidade com que mudava de terra, mudava de amantes e sentimentos. Borboleta volúvel das campinas, passava de flor a flor, de gozo a gozo, aborrecendo agora o que mais desejara há pouco, para querer o que então evitara.

Todavia, nem sempre podia vencer o tédio — esse horrível companheiro da saciedade dos prazeres.

E então, ai daquele que vinha depor-lhe o coração aos pés! Carolina, com alegria satânica, acendia-lhe abrasadora paixão n’alma, subjugava-o, arruinava-o, trucidava-o e depois o abandonava sem pena! O incauto mancebo, por sua causa, tornava-se mau filho, mau cidadão, um miserável! E entretanto o escárnio e o desprezo eram a recompensa de sua dedicação, do sacrifício de sua probidade!

Cansada da maldade, volvia depois Carolina aos afetos; mostrava-se solícita, afável e carinhosa; e muitas vezes descendo ao tugúrio do pobre, possuída do inefável deleite da caridade, derramava ouro e recebia bênçãos.

Mas, tudo passava depressa como a vaga no alto mar; o anjo transformava-se em demônio — mergulhava-se de novo no charco imundo dos vícios.

Infeliz criatura!

E não te lembravas, Carolina, de que nem sempre serias moça, terias a formosura — imã que atrai os mancebos — e o ouro preciso às tuas loucuras?!

Um dia...

Começou a reação. Carolina viu-se abandonada, esquecida, gasta no vórtice infernal da prostituição.

Muitos que fervorosos a cercavam, agora evitavam-na com asco; e se casualmente os encontrando na rua a desgraçada lhes dirigia uma palavra, eles fugiam dando-lhe as costas com desumano desprezo.

Mudou outra vez de terra, mas não mudou de sorte. Moça nos anos, era velha nos vícios; e estes, como o furacão desolador que varre os campos, tinham-lhe roubado a beleza das formas, o mino e graça das feições.

Neste estado voltou à sua província natal, à cidade da Fortaleza, e foi pedir hospedagem àquela Esméria que a acompanhara em sua primeira noite de orgia.

Esméria quase a não conheceu.

Além da mudança que se operara no rosto de Carolina, ela, que a precedera na senda fatal, tocava o extremo da indigência e vivia por isso constantemente ébria.

Carolina chorou aterrada, antevendo bem próximo para si o estado de sua amiga.

Escreveu logo a seus antigos amantes. Alguns apareceram, conversaram pouco tempo com estranha frieza, e pretextando afazeres retiraram-se, para não voltarem mais.

Entretanto, balda dos meios de subsistência, Carolina lhes escreveu segunda vez, pedindo pequenas quantias emprestadas. A resposta foi desanimadora. Alguns não estavam em casa; e outros devolveram-lhe, sem ler, o seu bilhete.

Então, desvairada pela angústia, a desgraçada procurou a todo transe esquecer a sua situação.

Embriagou-se.

Rapidamente — sôfrega, volúvel, caprichosa e leviana — desceu os degraus da miséria, como subira os da libertinagem. De uma casa asseada passou a uma espelunca; de vinhos finos a aguardente; de amante de primeira ordem aos da infame ralé.

Completava a sua abjeção.

Faltava a doença e a doença não tardou; funesta, esmagadora

— com o seu cortejo de dores, sede, fome, frio, mágoas, solidão e dissabores — abriu-lhe a porta do sofrimento extremo e apontou-lhe a dura cama do vagabundo, do indigente, do miserável!... Oh! basta, Deus de justiça e clemência! Suspendei o castigo que pesa sobre aquela desventurada! Basta! Não ouvias, Senhor, aqueles gemidos penosos, coados nas chagas de um coração dilacerado? Não vedes, como corre em bagas o suor da agonia sobre aquele rosto macilento, queimado na chama das orgias, e

sulcado pelo padecimento? Ah! misericórdia, Senhor! Minorai-lhe a pena, suavizai-lhe a contrição, e chamai-a logo à mansão dos arrependidos!

Era cedo ainda; longo fora o seu afinco ao pecado — longa devia ser a sua expiação.

Porque... como escreveu Isaías:

‘‘Porque o Senhor dos exércitos é o que fulminou este decreto: e quem no poderá invalidar? Também a sua mão está alçada: e quem na fará apartar?’’

 

CAPÍTULO 7

Agora, espírito meu, leva-me às praias do Pecém; voa n’asa da graciosa gaivota dos mares e por entre as palmas dos coqueiros e os colmos da pobre gente, procuremos Antônio, aquele coração tão apaixonado quanto desditoso.

Os pescadores voltaram do mar; e já suas jangadas encalharam n’areia, onde rolam brincando seus filhinhos, como as vagas quando repousam os ventos e a natureza descai em melancólica cisma.

Que pitoresco quadro te enleva, oh minh’alma, no singelo e humilde arraial da praia?!

É quase sol posto.

Os velhos, os meninos e os curiosos rodeiam a jangada e examinam o samburá, interrogando o pescador. Se aquele veio vazio, todos retiram-se desanimados, enquanto triste e carrancudo o pobre homem enrola a vela e arruma os demais acessórios do seu barco. Se acontece o contrário, aperta-se a roda; o jangadeiro tira o peixe e o sacode n’areia, todos acompanham com os olhos seus movimentos; aparece o dizimeiro e recebe a importância do imposto; os compradores surgem; e meia hora depois com seus filhos carrega o marítimo o resto do peixe para sua casa, enquanto novas rodas se formam nas jangadas que sucessivamente encalham.

Ao mesmo tempo há a narração dos acontecimentos da lida. Este conta o perigo que afrontara, em alto mar, lançando-se n’água para não perder o peixe que, desgarrado do arpão, boiava morto a poucas braças. E aquele que durante a noite, vira um

vulto alvo como a espuma resvalar sobre as ondas.

— Homem, isto não era senão uma alma do outro mundo.

Quem sabe se não queria pedir-te um terço?

— Ou fada que te queria levar aos seus palácios encantados...

— Ou alma ou fada, o que é certo é que eu rezei o credo três vezes e ela desapareceu.

— Fez bem, rapaz, podia ser o demônio.

E nas casinhas, no alpendre daquelas palhoças cercadas de boas-noites brancas e vermelhas, à sombra dos coqueiros?

As mulheres guardam as almofadas ou a roupa que consertavam; escamam o peixe, botam a panela no fogo e preparam a refeição da família — jantar e ceia ao mesmo tempo. Enquanto os homens, que não foram ao mar, que ficaram endireitando a jangada, trançando as redes e tarrafas, ou torcendo ao longo da praia a linha do anzol, terminam seu trabalho, volvendo ao colmo

— que o sol sumira-se e descem as sombras da noite.

É de uma tristeza indizível a hora do crepúsculo na praia! Tudo emudece, mesmo o vento, para que se escute somente a vaga em seu gemer sem termo.

Até as avezinhas calaram-se, voltando ao lugar de seu repouso.

— Vamos aos nossos tugúrios, vamos, que demais já saudamos o pôr do sol; vamos descansar para amanhã recomeçarmos as nossas lidas.

E as avezinhas, embrenhando-se nas matas, voam saudosas do areal querido.

Um homem rezava chorando, na tosca cruz de madeira, enfeitada de raminhos, que no tabuleiro marca o cemitério do arraial.

— Amante infeliz, como nos enternecem as tuas lágrimas! Todas as tardes te encontramos assim e rogamos ao bom Deus que te minore as penas. Adeus, amante desventurado, adeus!

Disseram as avezinhas e passaram. E o homem era Antônio.

Todos os dias voltava do mar mais cedo que os outros e vinha àquela hora rezar na sepultura da mãe de Carolina, desde que recobrara as forças, após a doença que o assaltou, quando abandonado pela virgem de seu primeiro e único amor.

Quem julgou que ele escapasse? Certamente ninguém. Oito dias cozeu-se em febre; oito dias passou em delírio,

falando somente em Carolina, exprobando-lhe sua ingratidão e

chamando-a entre amargurados soluços.

Morre somente o homem quando tem cumprido a sua missão na terra.

Escapou; mas, como foi longa a sua convalescênça! Quantos dias, fraco, cadavérico, tentou sair, saber do destino de Carolina e acompanhá-la!

A piedosa gente da praia, os espectadores daquela cena dolorosa, queriam tanto a vítima quanto aborreciam o algoz. Rodeavam-no, pois, de carinhos, o consolavam incessantemente e receosos de que fugisse em procura da ingrata, esforçaram-se por convencê-lo de que ela embarcara para outra província.

À instâncias dos amigos reunia-se a voz imperiosa do dever. O que seria de seus pais, miserandos velhos, sem o seu arrimo — o seu Antônio?

Resignou-se portanto o rapaz, e dispôs-se a ser antes que tudo bom filho.

O que, porém, não conseguiram dele, foi que tomasse estado de casado, escolhendo mulher entre as virtuosas raparigas do arraial.

— Não... pelo amor de Deus não me falem nisso... Seria crueldade roubar essas raparigas às suas alegrias para uni-las às minhas tristezas — casar o pranto com o sorriso... E não mentiria eu a Deus, não abusaria da inocência da donzela que me aceitasse por esposo, prometendo amá-la, quando já não posso amar?

— Antônio — responderiam as velhas —, quem sabe se uma louca esperança... É preciso tomar juízo, rapaz.

Ele se calava, mas, no íntimo d’alma murmurava apaixonado:

— Têm razão... não sabem o que é amar com toda a força do coração... fazer desse amor a sua alegria, sua esperança, a sua consolação — o sol de seus sonhos e desejos... Quase todos não são assim: amam facilmente, e facilmente esquecem. Mas, ai de mim! Eu sou dessas raras criaturas que nascem para amar uma vez... uma única vez... com febre e dedicação extrema...

E em solitário passeio, ao lugar, horas havia em que no desespero da saudade, como que alucinado ele bradava fitando o mar:

— Carolina... Carolina! Amar-te-ei sempre! Não há poder que me faça deixar de amar-te! Veja-te embora perdida... desprezada por todos... desfigurada pelo sofrimento, coberta de lepra... no último degrau da infâmia... Ainda assim! eu abriria para ti meus braços; apertar-te-ia ao seio; teria palavras consoladoras para teus ouvidos... Que importa que severo te condene o mundo; que Deus do céu troveje maldições sobre tua cabeça; que se conspire a natureza inteira? Que me importa a tua ingratidão, a mágoa ferina que me deixaste? Nada abalará minha constância... Abandonada por todos, Carolina, me verás a teu lado mais carinhoso... amando... amando-te sempre!

O tempo não para, não espera, não descansa; vai passando indiferente aos acontecimentos, às gerações que se sucedem, e às suas dores e sorrisos. "Demora-te!" — grita-lhe o feliz. "Apressa teus passos!" — suplica-lhe o desgraçado. E a sua pêndula a mover-se do mesmo modo, e a areia de sua ampulheta a escorregar com a mesma placidez. Porque Deus, o supremo Arquiteto, assim ordenou, e sua lei é imutável; porque desde o argueiro à montanha, do átomo ao homem, foi traçado um círculo de ferro

— que não poderá transpor — ao mundo, a esta obra de seis dias, de seis épocas, de um instante talvez...

Mas, aonde tu me levas, ó imaginação, ó companheira inseparável de minhas noites? Espera o momento das canções e deixa-me agora, com simplicidade e calma, continuar este episódio da vida do povo.

Alguns anos passaram-se; algumas vezes os cajueiros floriram e deram frutos e as águas do inverno umedeceram as areias da praia.

E nunca as avezinhas que ao sol posto volviam aos colmos, deixaram de encontrar Antônio ajoelhado à cruz do tabuleiro — cemitério do arraial. Mais duas sepulturas visitava ali — as de seus pais, de seus velhos amigos.

Soube-se então da miséria de Carolina.

Alguém, que viera da cidade, que vira a enfermidade e indigência da infeliz, horrorizado contava o seu estado.

— Coitada — disseram todos —, coitada da Carolina! Nosso Senhor se condoa dela...

Mas, depois, recordando suas culpas, todos disseram também:

— Sofre o castigo de seus pecados. Mulher cruel, que desprezou amor como o de Antônio; filha ingrata, que abandonou sua velha mãe e lhe causou a morte Carolina — não podia acabar bem. A justiça divina é certa: tarda, mas não falta...

Antônio, apesar de lho ocultarem, tudo soube e sem dizer palavra desapareceu uma noite, levando os vinténs que pudera ajuntar, o produto de suas economias.

O desventurado corria em auxílio da mulher de seu único amor. Era seu destino amá-la eternamente: cumpria o seu destino.

 

CAPÍTULO 8

Nublada e triste descaía a tarde.

Como eram outrora melancólicas as tardes de minha cidade natal, tuas tardes, ó linda Fortaleza!

Não possuías nesse tempo calçadas ruas, não tinhas carruagens nem rumores, nem pianos nem tantas casas e muito menos esses novos costumes... Mas, melhor do que tudo isto, ó minha querida cidade, plácido era o teu viver; singelos teus costumes, faceiro; o teu traje de aldeã; inocentes os teus folgares campestres; macio o teu leito de areias; doce o teu silêncio; encantadora a tua tristeza; e melodiosa a tua orquestra — de notas perdidas da canção das vagas, do caminhante, do jangadeiro e das crianças!

A estas notas, muitas vezes confusas, indefinidas e sempre saudosas, casava-se a da corneta que o soldado tocava ao longe, em exercício, a do pequeno sino do Rosário e a do pesado carro do camponês, ou o quebro do passarinho nos ares, ou o canto do galo dos vizinhos.

Eu era pequeno e morava em casa de meu avô.

O bom velho, de calça e camisa e suspensórios cruzados, passeava compassadamente na calçada; eu o acompanhava, interrogando-o de vez em quando; e se passava a preta quitandeira, recebia o meu bolo de milho e ia saboreá-lo alegre no batente do lar.

Depois... eis-me a cismar; a cismar em quê?... Eu sei? Cismava como os meninos — triste porque aquelas vagas harmonias me enlevavam, me transportavam como que a dias de uma vida anterior, a um mundo de que eu viera... a uma outra cidade em que eu habitara antes de nascer nesta... ou me recordavam harmonias que minh’alma escutara outrora, presa noutro corpo, na mesma rua talvez, em ocasião semelhante...

O sino anunciava Ave-Maria; meu avô rezava comigo, todos rezavam; e os que passavam nos davam as boas-noites.

E eu volvia às minhas cismas, até que as sombras desciam à terra.

E agora... onde aquelas melancólicas harmonias, aqueles passarinhos que voavam cantando, aquelas tardes tão nossas, ó cidade em que nasci, ó minha linda Fortaleza?

Tudo acabou-se, como acabaram-se os dias de minha infância, tudo a civilização matou.. resta somente a saudade!

Mas, a que vem esta recordação? Por que mo perguntas, curioso leitor?

Seria acaso aquela tarde nublada uma das de outrora?

Não; mas tão semelhante... Como que a cidade civilizada calou-se um instante para que eu me lembrasse da cidade pequena e singela de minha meninice.

Dispensa-me, leitor, mais explicações e ouve o resto da história...

Nublada e triste descaía a tarde.

Aflito chamava o sino aos fiéis, para acompanharem o Viático; pouco a pouco reuniam-se eles no templo e a Irmandade tomava as suas opas.

— Vinde, vinde, cristãos, que a vida foge ao enfermo — gritava o sino.

— Senhor — murmurava o doente em sua cama —, vinde, vinde a mim que vos espero anelante.

— Como tardam os Irmãos! — exclamava impaciente o vigário, contando os presentes e mandando apressar os toques.

— Vinde, vinde, cristãos que o senhor vigário está cansado de esperar e a vida foge ao enfermo — acrescentava o sino.

Os devotos encaminhavam-se à igreja.

Ouçamos estes dois que aqui vão tão apressados:

— Sabes para quem vai sair nosso Pai?

— Ouvi dizer que para uma mulher do Outeiro da Prainha; uma Carolina que há três anos morou ali na rua Amélia.

— Conheci. Era uma rapariga de gênio diabólico, e que entretanto esteve aqui nos galarins da fama. Depenou muito franguinho, e fez chorar a muita mulher casada. Mas, não tinha embarcado para o sul?

— Andou por lá, e volta em lastimoso estado: indigente, enferma, velha, feia... Coitada, deu até para embebedar-se!...

— É este o fim das mulheres perdidas... Loucas! correm pelo caminho dos vícios; cruéis, despedaçam corações, arruínam fortunas, pervertem a mocidade, perturbam a paz dos consortes; e depois, ei-las a voltar pelo caminho da miséria; e a pagar no mais penoso sofrimento a dívida imensa de culpas. E assim deve ser. Ai da humanidade se também nesta vida não fossem castigados os maus, e premiada a virtude. A reação é tão necessária quanto infalível. É preceito divino: — Quem com ferro fere...

Chegaram. A campainha bradava à porta da igreja:

— Andem, meninos, andem, que eu vou sair para anunciar nas ruas a passagem do Santíssimo.

— O Senhor vigário tirou do sacrário o Corpo sacrossanto de Jesus Cristo; corram, pecadores, corram para acompanhá-lo rezando.

E os sinos repicaram à saída do Santíssimo, e a campa e os devotos o acompanharam, louvando Aquele que, sendo o rei dos reis, descia ao albergue do indigente, para consolá-lo em sua angústia e dar-se em penhor de sua redenção.


CAPÍTULO 9

Carolina, lívida e magra como a morte, ouvia os sons do sino e ansiosa esperava a comunhão.

Residia no Outeiro, em velha e arruinada casinha de palhas de carnaúba, que nem sequer a resguardava da vista dos curiosos. Já nada possuía: suas joias, seus vestidos, seus baús... tudo vendera para embriagar-se, para comprar o alimento e depois os remédios.

Restavam-lhe somente aqueles panos sujos e rotos que a cobriam, a rede em que estava deitada, a palhoça que lhe servia de casa... e nada mais!

Era completa a sua indigência!

E quem diria?! Quem pensaria que aquela Carolina, formosa, rica, procurada, querida, adorada, que aparecia no teatro e bailes, como uma rainha, que prodigamente sacudia punhados de ouro na voragem dos vícios, acabasse assim?

Jovens inexperientes, meninas incautas! Vede em Carolina a imagem fiel da mulher que transvia-se no caminho dos seus deveres; daquela que se deixa seduzir pelo demônio da concupiscência; da prostituta, enfim! E fugi aterrada! E quando o vosso namorado vos pedir uma entrevista, lembrai-vos de Carolina e respondei: "Só devo falar-vos perante meu pai e minha mãe." E quando vos escrever, lembrai-vos de Carolina, e entregai a carta a vosso pai. E quando vos convidar para fugir, prometendo-vos casamento e expendendo razões que o forçam a dar semelhante passo — lembrai-vos de Carolina e no seio da carinhosa mãe, ou aos pés da Virgem Santa, ocultai-vos da tentação. Sim, não vos esqueçais nunca de Carolina, comparando a sua vida horrorosa, misto infernal de vícios e dores, com a de Joana, cujos dias escoam-se suavemente como flores em tranquilo arroio, ao lado do esposo que a adora, entre os filhinhos que afagam-na carinhosos, à sombra do pacífico lar, na prática das virtudes — admirada dos vizinhos, venerada por todos e abençoada por

Deus. Seja Carolina um espetro pavoroso que vos fecha a porta dos lupanares, e Joana o anjo risonho que vos aponte o éden delicioso da felicidade doméstica, a mansão dos puros afetos.

Fracas sois? Procurai forças na religião; ajoelhai-vos, pronunciai fervorosas preces, que depois, valorosas Judites, triunfareis dos ardores de vosso temperamento e do inimigo que vos quer arrastar ao medonho despenhadeiro das trevas!

Lede agora o resto desta amargurada história.

Piedosa vizinha, que tratava de Carolina nos seus últimos dias de expiação, preparara a choça para a visita de Jesus Cristo. Pouco havia a fazer. Varreu o chão; encostou às palhas uma mesa que pedira emprestada; amarrou um lençol em duas estacas; e forrando o rústico altar, colocou sobre ele uma cruz de pau, que frei Vidal benzera, e que ela possuía como relíquia daquele santo missionário. E depois, como lhe permitiu a sua pobreza, procurou ocultar a miséria da roupa da enferma.

Entrou o Santíssimo.

— A paz do Senhor seja nesta casa.

— E em todos que nela habitam.

O Padre, descansando o cibório no altar, aspergiu a todos dizendo o salmo:

"Tu me borrifarás com o hissope e serei purificado: lavar-me-ás e me tornarei mais branco que a neve.

Tem piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia."

Carolina abriu os olhos, fitou-os na divina Espécie, e movendo os descorados lábios, balbuciou imperceptivelmente uma prece.

— Senhor, eu não sou digna que Vós entreis em minha humilde morada, mas dita a vossa santa palavra, minh'alma será salva.

Ou, talvez, aqueles salmos que o rei poeta, em penitência austera, pronunciara inspirado:

"Aparta o teu rosto dos meus pecados: e apaga todas as minhas maldades.

Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova nas minhas entranhas um espírito reto.

Não me arremesses da tua presença: e não tires de mim o teu Espírito Santo."

A esse tempo, um pobre homem que viera entre os fiéis, e que ajoelhado estava, desatou a soluçar como possuído de extrema angústia.

Geral foi a surpresa, e maior para a enferma, que molhando-se de gelado suor, estremeceu convulsa como ferida na parte mais dolorosa do coração.

Aproximou-se o Padre e lhe disse baixinho:

— Minha irmã, sente-se melhor?

— Melhor, senhor vigário, melhor; a voz impiedosa que me acusava incessantemente, calou-se... sinto-me tão aliviada...

— E depois da confissão, não se lembrou de mais alguma falta? É tempo de reconciliar-se. A misericórdia de Deus favorece-a, prolongando-lhe a vida quanto é preciso à purificação de sua alma. Quer que a escute?

— Sim, senhor vigário; desejo falar; mas que nos ouça somente aquele que chora — disse ela apontando o homem que soluçava — o desgraçado Antônio.

Retiraram-se os demais fiéis.

Podes acaso, ó minha pena, descrever o que se passou então?...

— Senhor vigário — exclamou a enferma exaltando-se —, eu fui algoz deste homem! Enganei-o prometendo-lhe a felicidade de seu amor; embalei seu coração sincero em falsa esperança; e depois, calcando aos pés o seu afeto, zombando de seus sonhos, escarnecendo de suas doces ilusões, abandonei-o sem dó quando ele já não podia amar a outra, quando já não podia ser feliz sem mim...

— Carolina! — interrompeu Antônio — eu lhe perdoo... Nunca condenei-a... Era destino... Resignados nos conformemos sempre com a vontade do Altíssimo...

— Bem-aventurados — acrescentou o padre entre lágrimas

— bem-aventurados os que choram arrependidos, porque serão salvos...

Agora, Carolina — continuou Antônio — ante Deus do céu que nos escuta, eu lhe peço uma graça... a recompensa do meu sofrimento... Carolina, seja minha esposa nesta hora suprema... Carolina estremeceu como quando avistara Antônio, e suas faces, já tão pálidas como os círios, tornaram-se de uma lividez espantosa e depois coraram. Como que as últimas gotas de sangue afluíram-lhe ao coração, e dali correram ao rosto... Seus olhos volveram-se brilhantes... Uma luta tremenda abalava-lhe a alma, um desses mistérios que não se descrevem... Talvez o pudor... porque o vícios, porque o crime têm o seu pudor... Talvez a lama tenha pejo de misturar-se com a linfa cristalina da rocha... Não sei. Como que sinto, que adivinho o que, em rápido instante, passou-se em Carolina, mas não posso exprimir.

Nesse misterioso instante a desventurada exclamou:

— Eu?!... Eu, a pecadora das ruas... a mulher infame da multidão?

— Minha filha! — interrompeu o Padre — cale-se, não condene sua alma. A contrição expurgou-a de pecados... não a macule outra vez... Suplique o perdão a Deus, por ter duvidado de sua clemência...

— Meu Deus — murmurou ela se acalmando —, meu Deus, pesa-me de vos haver ofendido e vos prometo, Senhor, nunca mais pecar...

Momentos depois, o Padre chamava os Irmãos, dava a comunhão à enferma e forçado por tão imperiosas circunstâncias, casava os desventurados amantes, assumindo embora grave responsabilidade.

Muitos choraram comovidos por aquele sublime quadro; e mais chorariam se vissem o seguinte.

Carolina expirou, uma hora depois de casada, apertando a mão do esposo e derramando em seu rosto um olhar tão saudoso e terno como o último lampejo do sol no ocaso.

Esse olhar consolara Antônio, além de um certo prazer que acompanha sempre a prática da virtude, a realização de um desejo santo.

Amortalhado o cadáver, Antônio sentou-se junto, e, ora recordando embevecido as cenas de seu amor, ora beijando e molhando de pranto aquela mão regelada... assim passou a noite — a sua noite de núpcias.

E de manhã, quando o sol surgia dos mares, encontrou-o no cemitério, cavando a terra e sepultando o corpo de Carolina, de sua bem-amada consorte, da única mulher que amara neste mundo.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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