4/09/2023

O sexto mandamento (Conto), de Rodrigo Paganino


O SEXTO MANDAMENTO

O padre prior, que os nossos leitores conhecem já, era um modelo de virtude e um exemplo vivo de caridade cristã.

Apenas começara pastoreando aquele pequeno rebanho, não houvera cuidados nem desvelos, que lhe parecessem de mais para encaminhar nos trilhos escabrosos do bom porte e da honra as suas ovelhas de monte, que, quando se apartavam do bom do pároco, era mais por ignorância do que por maldade.

Conhecera-o ele também desde logo, e empenhara as forças do seu corpo e o poder da sua inteligência em esconjurar os piores de todos os demônios, a que a natureza humana pode dar albergue; a ignorância e a rudeza.

Não abria mão destes piedosos exorcismos: qualquer lugar, qualquer ocasião lhe pareciam próprias para travar combate; e aparelhado, como sempre andava para a luta com as armas da crença e da boa vontade, raramente deixava de contar da vitória.

Não quero dizer, todavia, que o meu pároco fosse um segundo Vieira, ou outro Macedo Polígrafo.

Bem pelo contrário, Deus perdoe à sua alma, e mais ainda à alma dos governos (se é que os governos tem alma), que tão pouco têm cuidado na educação do clero, o bom do padre muitas vezes, brigava com armas iguais contra a ignorância dos seus paroquianos; e, quando vencia, era substituindo preconceito por preconceito, absurdo por absurdo.

Procediam porém de tão boa origem os erros do velho, fundavam-se em tão verdadeira bondade: e tão piedosa unção revestia os seus disparatados conceitos, que por amor da singela majestade, e boa tenção da mentira, quase se malqueria à verdade.

Era falso o arrazoado, bem o sabiam alguns: mas deliciava a alma e comovia o coração, encaminhava para o bem, posto que por transviado caminho. E o padre dizia-o tão de dentro, tão convencido, que chegava a parecer impossível que não fosse assim.

Mas não era, verdade verdade, não era; que a ciência fugia espavorida diante das legiões barbaras, que apoiavam algumas considerações do velho.

Não era, porque o pobre homem, que sem maldade nem recalcitramento, mas por simpleza e costume antigo, encomendava a missa pro rege nostro Michaele, resumia a sua instrução à leitura, um tanto embaraçada, seja dito aqui particularmente, da Bíblia, dos Evangelhos, do breviário e da Nação, cujo assinante era desde o principio.

Não aprendia porém do seu periódico senão a doutrina tradicional e monarquico-absoluta em que fora criado. Lia o jornal para saber notícias do seu rei e do mais que ia por o mundo: e a maior parte das vezes no meio de um façanhoso artigo ou de uma ateada polêmica, no ponto mesmo em que as iras do jornalista trovejavam mais crebas, e os rancores partidários se desatavam em maiores diatribes; o jornal, como para contrastar com tão ardidas fúrias, escorregava brandamente das mãos do desatento leitor, e ia voejar por terra com outras folhas suas irmãs, que tendo sido verdes e esperançosas como ela, tinham caído da árvore, como ela também caíra das mãos do pároco, e haviam secado no esquecimento, como, triste sorte do jornalismo diário, ela havia de secar em breve ao abandono no chão e esquecida também.

Ao cabo de meia hora o padre acordava admirado por ter adormecido, apanhava o jornal e recomeçava o mesmo artigo.

Já se vê, pois, que não podia ser larga a instrução colhida em fontes tão pouco variadas e demais ainda tão mal seguidas.

Mas onde não chegava a cabeça alcançava o coração, e onde não acudia a inteligência sobejava o sentimento.

Não lhe tomemos conta da sua ignorância, nem lhe malqueiramos por pecado que não era seu.

A revolução social estabeleceu entre a geração, que findava, e a que ia aparecendo um largo espaço que não soube ou não pôde fazer desaparecer.

Uma ficou, símbolo do passado; outra caminhou, anuncio do futuro. A primeira estacionando, conservou os abusos, os erros do seu tempo; mas também a poesia, a fé sincera, o culto de suas tradições, o respeito pelas suas crenças: a outra caminhou sobre ruínas, e caminha ainda, sorrindo, lutando, descrendo, esperando, progredindo sempre, conquistando por fim, mas deixando, quantas vezes, a fé pelo caminho, a esperança na estrada!

Se ambos se tivessem querido compreender, se mutuamente se tivessem desculpado ou os ardores impacientes, ou as rabugices pertinazes; se não quisessem cavar fossos e levantar trincheiras entre uma e outra; mas, bem pelo contrário, nivelar o terreno, e apagar ódios, rancores e desinteligências, não seria para nós o presente tão cheio de incertezas, de hesitações, de duvidas, de desconfortos e desalentos.

O padre, esse, ia seu caminho, combatendo como sabia a falta de educação, e de conhecimento da sua grei.

Além das lições de moral que espalhava a esmo, conforme se lhe ofereciam as ocasiões, costumava ele, sempre que podia e que o tempo o deixava, reunir os do lugar, de tarde perto da igreja, para lhes fazer alguma leitura da bíblia e interpretar em seguida, a seu modo e como melhor lhe parecia, o texto que lhes lera.

Por vezes assisti a estas leituras, por vezes ouvi as suas explicações, e se mais tarde as comentava tirando desagradáveis conclusões a respeito da ilustração e inteligência do velho, não deixava sempre de me sentir comovido, quando fazia parte daquela piedosa reunião.

Sigam-me também os meus leitores, que, conforme sei, e segundo me recordo, vou procurar descrever-lhes, como se apresentava a cena, na última vez em que, pouco antes de regressar a Lisboa, assisti à prédica do ingênuo pároco.

Estamos no adro da igreja: a paróquia é de trezentas almas quando muito. O dia vai declinando e está próximo o sol posto.

A igreja não tem o aspecto suntuoso dum grande templo; nem a majestade altiva de uma catedral do século XIII.

É de ontem apenas.

Uma frontaria sem ornatos, uma torre próxima sem enfeites.

É simples e pobre como o presépio do Redentor.

Sobre o adro espaçoso e plano um velho plátano à esquerda braceja largos ramos envolvendo na sua sombra uma cruz musgosa, que se levanta defronte da porta da igreja e que deixa perceber em profundas cicatrizes, rudes combates com o tempo ou com a impiedade dos homens; perto do plátano um pequeno regato corre por baixo do parapeito do adro e depois de passar sob uma ponte de pedra que dá serventia à estrada, vai espraiar-se ao longe numa pequena baía, onde as lavadeiras do lugar vem bater a roupa ao pé dos choupos e olmeiros, que se debruçam para a corrente.

De um dos lados sobe a encosta de um pequeno outeiro atapetado de vinhas e oliveiras, coroado de moinhos que desprendem as velas a favor da viração da tarde; do outro a vista divaga por meio dos pomares e terras de vinha, no meio das quais alvejam as casinhas do lugar, e se recortam no puro azul dos céus as oliveiras verde-negras.

Os rumores do campo começam a esmorecer com o largar do trabalho indicando a proximidade da noite.

A tarde tem corrido serena e a natureza sorri na flor do prado, como na árvore do bosque.

Sentado num banco de pedra mal afeiçoado pela mão de rude artista está o pároco, junto a si os evangelhos depostos e ainda abertos: as mãos pousadas sobre os joelhos, a cabeça um pouco inclinada pelos anos; o corpo alquebrado pelos trabalhos. A seus pés, sentadas no chão, em rancho, as criancinhas da terra, em roda as raparigas e as mulheres; mais ao largo, os homens fechando o círculo e encostados aos varapaus.

Um pouco mais afastado do grupo, sentado num dos poiais do adro, e cismando, ao que parece, está o tio Joaquim, comentador e companheiro das homilias da tarde. De quando em quando, em pontos mais subidos da exposição do pastor levanta a cabeça, fita o narrador com gesto expressivo, e com os olhos iluminados por aqueles doces clarões da simpatia e da atenção, segue o fio do discurso para descair breve nas habituais meditações.

O padre tem acabado a leitura de um dos sagrados capítulos, e de acordo com a inteligência dos ouvintes explica-lhes o texto procurando comparações no campo, na lavoura, nos trabalhos que melhor conhecem, nos instrumentos com que mais de perto lidam.

Todos o escutam em religioso silêncio e a palavra sagrada recebe maior unção na boca do venerando velho.

Tem apenas acabado de falar quando no sino próximo começam a bater as melancólicas Avé-Marias. O som vai chorando, como uma saudade do dia que finda, pelas quebradas do monte e pelos arvoredos dos bosques, para voltar amortecido e triste, como recordação de felicidade.

É um momento solene.

O padre ergue-se, a boa gente do campo ajoelha a seus pés. Por momentos as orações murmuram como o esvaecer do som no bronze sagrado e a oração ergue-se como um coro de harmonias dos lábios dos fieis, do murmúrio do regato, do ciciar da aragem, do bulir do arvoredo, do tinir dos chocalhos, dos balidos do rebanho que ao longe recolhe da pastagem para o abrigo do curral.

Depois o padre abençoa seus filhos com as mãos tremulas estendidas e a fronte encanecida iluminada pelos reflexos derradeiros do sol já escondido: despedindo-se do pároco, retiram pouco a pouco os aldeões guiados, como os israelitas no deserto, pela espiral de fumo, que se enovela sobre os tetos de suas casas, o ruído vai pouco a pouco diminuindo, recolhe o rebanho ao curral, os pastores deixam de cantar, a voz dos últimos camponeses perde-se na volta da estrada. Mas o rio ainda murmura, o vento ainda suspira na rama das árvores, e o padre sozinho, com os olhos fitos na pálida lua, que começa a assomar no céu, não limpa uma lágrima de saudade e de esperança, que lhe escorrega pela face cavada pelos anos, envelhecida pelas mágoas. Saudade da terra e dos homens, que vai deixar, esperança na vida eterna, que entrevê tranquilo, crente na misericórdia do Senhor, confiado na sua infinita bondade.

Hoje a boa gente do campo volta ao adro a procurar o padre, o plátano e a cruz. Tudo tem desaparecido após o homem a planta, após a planta a pedra, tudo volveu ao nada donde veio. Sobre o cadáver do velho caiu a pedra do cruzeiro, um arrebento do plátano deu sombra à sepultura; mas a natureza prosseguiu guiada pela civilização e pelo progresso desfolhando uma saudade sobre a campa e colhendo do novo arbusto a planta sempre viçosa da árvore da liberdade.

A poesia do passado tem-se perdido. Mas o homem, que ficou meditando sobre aquela lapide, desperta das suas meditações ao grito da locomotiva do caminho de ferro, ao retinir da campainha do telegrafo elétrico, ao resfolegar das caldeiras da fabrica próxima, ao estrondo majestoso das novas eras, que nas azas do pensamento correm a cumprir a sua missão.

Naquela tarde fora a história de José o texto escolhido; e o velho descrevendo o quanto padecera o patriarca hebreu por amor dos seus irmãos, e seus compatriotas, falara tão de leve no sacrifício, prestado à honestidade; como, perdoem-nos a comparação, a raposa discorrera a propósito das uvas que não eram para seu dente.

Muitas virtudes encontrava ele no casto José, mas a de resistir com tanto denodo à mulher de Putifar, não foi das que mais encareceu. Nem por isso lhe parecia grande façanha. Para o bom do velho nada havia mais natural.

Não assim para grande parte de seus ouvintes. Aquele rasgo foi o que maior impressão deixou na inteligência sensual de muitos. No serão dessa noite não faltaram comentários e choveram ditos, alguns dos quais, posto que bastante grosseiros na forma, não deixavam de ter bom sal, e grande finura no alcance.

Terminada por fim a discussão foi votado por maioria, que tal caso era impossível; ou pelo menos, se o não era, fora um grande disparate do patriarca hebreu.

Protestou o tio Joaquim contra a decisão da assembleia, e para fundamentar o seu protesto pediu a palavra, que lhe foi concedida com o maior prazer.

— Todos, quantos aqui estão, conhecem ou tem ouvido nomear o Luís Tibúrcio, que traz de renda ao Morgado dos Cachorros o Olival grande do Brejo, no alto da estrada da Carrejosa. É um homem de bem e lavrador abastado; tem hoje um bom par de vinténs e uma das melhores lavouras dos sítios. Pois vai vinte anos não tinha onde cair morto, nem esperanças de mudar de sorte. Um caso bem parecido com o que hoje ouviram ao Sr. padre prior foi o começo da sua fortuna.

Luís Tibúrcio é do Minho. Veio por aí abaixo procurar vida e trabalho, quando por morte do pai e da mãe, ficou sozinho na terra, sem ter quem lhe valesse, nem casa que lhe abrisse a porta. Era pelo tempo da guerra, andava também a moléstia, e cada um cuidava principalmente de si, ou dos seus, e não tinha vagar para saber do mal dos outros.

Curtiu fomes e frios pelo caminho, não poucas vezes estendeu a mão à caridade, e não poucos dias pediu esmola a chorar, perdido de fraqueza, e sem esperanças de ter um bocado de pão. Ninguém cuidava em dar trabalho e era tal a desconfiança, que ninguém queria tomar para casa um rapaz, coberto de farrapos e com cara de padecente.

Tinha uns quinze anos, pouco mais, e já começava a saber o que era mundo. Entrava na vida pela porta da[163] desgraça e principiava a amargar a existência sem lhe ter provado ainda as doçuras.

Um dia, já sem forças, caiu à porta de uma fazenda, donde saíra descoroçoado de todo, porque depois de ter passado um dia sem comer, acabava de ser despedido pelo caseiro, dizendo-lhe, que a fazenda do seu patrão não era couto de vadios.

Luís Tibúrcio pôde, envergonhado e saltando-lhe as lágrimas pelos olhos, andar a alameda e sair o portão que do pátio conduzia à estrada; mas, ao voltar para o caminho, sentiu-se tão quebrado, tão sem ânimo, que atirou consigo para o chão, resolvido a não se levantar mais dali.

Encomendou-se a Deus e esperou a morte resignado.

O Sr. José Mateus, o dono da quinta, que assim se chamava por sinal, andava por fora, quando Luís fora pedir trabalho a Vale de Figueiras. De certo, se tivesse visto a lazeira do rapaz o recolheria por alguns dias ao menos, e lhe mandara dar de comer, pois era homem rasgado e de bom coração; mas só tarde voltou de uma outra fazenda, onde fora, e era já muito escuro, quando se aproximou de casa.

Luís estava estirado no caminho. José Mateus entretido com os seus pensamentos não deu por semelhante cousa e recolheu passando junto do pobre moço.

Caía geada, como não havia memória, e o frio era de estalar.

De manhã cedo os primeiros, que saíram encontraram-no sem apresentar sinal de vida e acudiram à fazenda a dar rebate.

O Sr. José Mateus foi o primeiro, que correu junto da pobre criança, viu-a naquele mísero estado e teve dó de tão grande desgraça em tão verdes anos. Ele também havia provado do pão que o demônio amassou, e antes de chegar a ser independente fora um pobre de Cristo.

Mandou carregar com o Luís para uma cama, e cuidou em ver se lhe dava vida nova.

O rapaz estava enregelado e hirto, os beiços arroxados, os olhos metidos numas covas negras, as mãos inteiriçadas, o coração quase sem bater.

Dir-se-ia morto.

Ao passo, porém, que ia aquecendo e que o esfregavam com panos quentes e espírito de vinho tornava pouco a pouco a si: e depois de um caldo bem forte e bastante substancial parecia outro.

O Sr. José Mateus indagou-lhe da vida e soube que a fome e o desamparo tinham sido a causa daquela doença. Compadeceu-se por vê-lo órfão tão moço e sozinho no mundo: era casado havia muito tempo, e não tivera filhos nunca, engraçou com a cara do rapaz, que era de boa feição, e adotou-o para si.

Desde esse dia começou para o Luís, a quem dentro em pouco já todos tratavam por Sr. Luís; e a quem o Sr. José Mateus chamava— o meu Luisinho— uma vida de príncipe.

Não lhe faltava nada, aprendia, estudava, trabalhava e desenvolvia-se de dia para dia.

Em poucos tempos fez-se uma flor. Parecia que medrava a olhos vistos e que cada vez ganhava maiores perfeições.

Perfeito no corpo, e mais perfeito talvez na alma, não havia para ele sol nem lua que valessem o Sr. Mateus, nem palavras ou ações que lhe parecessem demais para lhe agradecer o bem que lhe devia. Luís tinha coração de pomba.

Mas o demônio, que sempre as arma, e que parecia ter tomado o rapaz à sua conta, encarregou-se de entornar o caldo, e de deitar por terra aquelas felicidades todas.

A esposa do Sr. José Mateus, apesar dos seus quarenta puxados, era ainda mulher de primor.

Desenxovalhada naquele tempo, devia ter sido linda quando andasse ali pelos vinte anos. Tinha dado brado na terra, e mais de um lhe tinha arrastado a asa, sem que ela lhe desejasse as pernas quebradas.

Casara-se pela razão, porque se casa a maior parte das mulheres, para mudar de estado; e não conhecera nunca que cousa fosse amor. Extremosa pelo marido, não constava que o tivesse sido: e, segundo se rosnava pelos sítios, se tivesse pé faria pegada.

Se a amizade de Mateus pelo Luisinho era verdadeira amizade de pai, a de Genoveva não se parecia em nada com o amor de mãe. Por mais de uma vez lhe havia deitado uns olhos, que queriam dizer muito, mas que no rapaz eram tempo perdido. Não por inocência, mas porque não queria acreditar, que fossem o que lhe pareciam.

Genoveva desesperava-se por não ser compreendida, e tinha jurado que: ou Luís se chegava à razão, ou havia de por os quartos no meio da rua.

Uma noite, chovia a cântaros, e o Sr. José Mateus não recolhera de uma feira a que fora comprar quatro juntas de bois.

Tinha-se armado uma trovoada de arrancar pinheiros e uma ventania de levar tudo pelos ares. Genoveva estava cosendo junto à mesa de jantar e Luís próximo dela lia alto um livro de romances. Era a história dos amores derrancados de dois amantes infelizes, que depois de passarem as passas do Algarve, depois do apaixonado ter andado as sete partidas do mundo e corrido perigos de todas as castas, se reuniam por fim; mas quando iam para gozar de um dedicado afeto, o marido da heroína aparecia tanto a propósito, que matava o sedutor, se o era, e fazia endoidecer a mulher com a vista do ensanguentado cadáver.

Era uma história de arrepiar defuntos, e que por isso mesmo tinha tido tanta voga que chegara até Vale de Figueiras.

De repente Genoveva, que seguia a leitura com verdadeiro interesse, e que por mais de uma vez sentira calafrios ao ouvir aquela enfiada de horrores, interrompeu o leitor, quando entusiasmado lia o passo do encontro dos dois num casal deserto no meio das serras entre alcateias de lobos, ao fuzilar dos relâmpagos, ao estalar dos trovões.

— Gostas dessa história, Luís?

— É triste, senhora Genoveva, gosto muito.

— Andas sempre triste!

— Não é por ser mal agradecido ao bem que me fazem. É gênio meu, não está mais na minha mão.

— Volta de amores talvez?

E os olhos acompanhavam a pergunta, procurando seguir o pensamento do moço, como o galgo segue a lebre por meio dos campos.

— Não, minha senhora, não são amores. Também quem me havia de querer, órfão, sem fortuna, e só devendo o pão de cada dia à caridade de meus benfeitores?

— Não digas isso, Luís, bem sabes que o trabalho que fazes, vale o pão que comes. Tu és bom rapaz e mereces quanto te fazem.

— Não mereço, não, minha senhora, e eu bem conheço as coisas, e sei agradecer tanto favor.

— Criança!

E acompanhando esta palavra, que pelo modo porque fora proferida, já queria dizer muito, Genoveva correu mão protetora pela cara do Luisito.

Porque é preciso que saibam, rapazes: nós os homens muitas vezes chamamos criança a uma mulher, sem ser por mal, nem com ideia alguma; mas em a mulher chamando criança a um homem, e de um certo feitio, é o mesmo que se lhe dissesse: tu ainda não percebeste, que eu gosto muito de ti, e tu és muito estúpido, porque não entendes o que eu te estou dando bem a conhecer.

Pela primeira vez, havia tanto tempo, desconfiou Luís deveras do caso, e àquela carícia fez-se vermelho como um pimentão.

— Então fazes-te vermelho, tens talvez vergonha de mim? Pois já não devias ter razão para isso, tenho idade bastante; não é verdade que pareço muito velha, meu Luís, anda, dize?

E cada vez se aproximava mais dele a ponto de o bafejar com o seu hálito inflamado; e de sorte, que se confundiam os olhos dela ardentes, significativos, cobiçosos, com os dele tímidos, assustados, quase envergonhados.

— Não, senhora Genoveva, não tenho vergonha. Desculpe fazer-me corado...

— Dize-me, atalhou violentamente Genoveva, cujo temperamento nervoso e sanguíneo estava efervescente, querias estar como Paulo (era o herói do romance), assim comigo num casal deserto...

— Como estamos hoje...

— Como estamos hoje, sim Luís, e depois...

Era impossível deixar de perceber tudo. Genoveva parecia ter a cabeça perdida, tudo denotava um desejo desenfreado, e furioso.

Não se riam, rapazes, se vissem uma mulher alucinada pelo amor, arrojar-se como uma leoa, feroz, enraivecida, terrível até, compreenderiam bem quanta foi a virtude do Luisito.

Levantou-se a tremer, e cheio senão de medo, ao menos de pudor...

— Senhora Genoveva, eu não sei se compreendi; perdoe-me se a vaidade me ilude; mas, não me posso esquecer de quanto devo ao Sr. José Mateus.

E saiu, sem olhar para traz.

No dia seguinte, de madrugada, com o seu alforje arranjadinho, ia pela estrada fora, sem saber ainda para onde se encaminhava.

Ia começar de novo a vida, mas era indispensável. Se cedesse, seria o ingrato mais vil deste mundo; se resistisse, a fúria de Genoveva não o deixaria descansado por muito tempo.

A poucos passos de distancia encontrou a José Mateus, que, tendo feito o seu negócio mais breve do que pensava, recolhia cantarolando, como quem vinha nas horas do Senhor.

Luís não esperava semelhante encontro. José Mateus já o tinha visto, e não havia remédio. Demais foi o lavrador que encetou a conversação.

— Olá, Luís, tão cedo, há por lá alguma novidade?

— Nada, não, Sr. José Mateus, não há novidade nenhuma; eu é que...

— Tu é que... embatucaste? Tens alguma cousa, viste bicho? — Tu não estás em ti, desembucha.

— Eu... vou-me embora.

— Bom, homem, e por isso ficaste assim atarantado, bem te entendo; vai, rapaz, vai, eu sei o que são essas cousas. Quando voltas?

— Eu... vou de vez.

— Hein, endoideceste?

— Não endoideci, não, Sr. José Mateus, preciso ir-me embora, deixe-me ir embora, deixa?...

E o rapaz estendia as mãos, convulso como se pedisse a salvação.

— Deixo, deixo. Por onde eu te pegar, te peguem os lobos. Entendo, desinquietaram-te, apanhaste-te ensinado; mas anda que também me ensinaste, ingrato!

— Ingrato!... Serei, sou, mas deixe-me ir embora quanto antes.

José Mateus não era de hoje, nem de ontem; desconfiou do caso, e chegando-se mais para o rapaz, deitou-lhe a unha.

— Por mais que me digam, acrescentou ele, tendo-o já seguro, aqui há o que quer que seja, para tu estares assim tão apressado. Deixo-te ir, mas não sem me dizeres primeiro porque. Que demônio, parece que tens morte de homem!

Vendo-se agarrado, Luís entrou a clamar para que o deixasse, pedindo-lho por quantos santos havia no Paraíso. Por mais que buscasse, não lhe ocorria nem meia mentira. Não admira, a falta de costume...

Por fim conseguiu escorregar-se-lhe das mãos como uma enguia, e deitou a correr mais leve que um pássaro.

José Mateus voltou ainda o cavalo, para lho deitar para cima; depois, como se lhe acudisse a reflexão, exclamou:

— A cheia o trouxe, a cheia o levou. Que vá por onde não faça perca!...

E entestou para Vale de Figueiras, cismando no acontecido.

Ainda bem Luís lhe não tinha saído a porta, Genoveva, percebendo que era desprezada, e incendida pelos lumes do desejo, caía por terra espumando como um danado, e bracejando como um possesso. Estava com um acidente de raiva.

Acudiram ao motim, que fez, e levaram-na para a cama já sem dar acordo de si, tinha-lhe subido o sangue à cabeça, estava com uma febre cerebral.

Luís, escusado é dizer, não soubera de coisa alguma. Recolhera a entrouxar o pouco fato, que havia comprado, pois deixou ficar tudo que lhe deram; e embebido nos seus pensamentos, poderiam voltar a casa debaixo para cima, que não era ele que dava por semelhante coisa.

Demais morava num quarto no extremo oposto da casa, com porta que deitava para a estrada, e pode sair por conseguinte, sem saber nada do que se passava no resto da habitação.

Pouco depois da chegada de José Mateus apareceu o facultativo do sítio, que tinham mandado chamar a toda a pressa. Sangrou-a logo, mas já era tarde. O ataque tinha sido tão forte, que a sangria abrandou-lhe um pouco as fúrias e nada mais. Dali a pouco tornava à mesma, ou a pior ainda, porque desta vez dizia coisas estranhas em palavras soltas.

Estava tresvariada.

José Mateus percebeu logo que as coisas que a mulher ia dizer, não eram para ser ouvidas por toda a gente; mandou sair os que estavam no quarto, e apenas ficou sozinho com ela, deu volta à chave e escutou-a.

Soube tudo.

No meio dos seus excessos, Genoveva chamava por Luís, acusava-o de frieza, de indiferença, de ingratidão. Dizia-lhe que pensasse no seu marido, porque esse não saberia nada, e depois... haviam de ser tão felizes!

E um poder de coisas que tiraram todas as cataratas dos olhos do marido.

Este sentou-se numa cadeira, e, abatido, limpou uma lágrima. Ninguém soube nunca por quem fora, se por Luís, se por Genoveva.

Genoveva durou três dias. Disse o facultativo, que se lhe tinha rompido uma veia na cabeça; rompesse ou não, nos dois últimos não deu acordo de vida.

José apenas se certificou de que sua mulher não diria mais nada, recolheu-se ao seu quarto, donde não saiu senão para a sepultura. Não queria saber de coisa nenhuma, não dava palavra a ninguém, e se insistiam, punha todos fora, fechando-lhes a porta na cara.

Na véspera de morrer, mandou chamar um tabelião e duas testemunhas. Lá esteve com todos três, por espaço de meia hora.

No dia seguinte abria-se o testamento sobre o cadáver de José Mateus, e Luís Tibúrcio ficava sendo seu herdeiro universal.

— Acabou, tio Joaquim, atalhou dali o João Carriço, que dera provas de impaciência durante a narração, não tem mais nada que dizer?

— Eu não, e tu? Perguntou o narrador.

— Eu, perdoará a sua palavra honrada, parece me que a história não vem ao caso do que a gente dizia; pois se o rapaz não fosse tão arisco, ficava com tudo do mesmo feitio; porque eram dois a deixar-lhe... E daí não morria, nem a mulher, nem o homem.

— E parecia-te bonito pagar desse feitio os benefícios, que tivesses recebido de José Mateus?

— Olhe, tio Joaquim, lá o lê, lá o entende, mas daquele mal não morreu ninguém; o José Mateus não havia de passar pior por isso.

— Eu te contarei uma história um dia, e verás se se morre ou não. Sabes que mais, João Carriço, tens ainda a cabeça muito levantada, hás de assentar.

— Então sim, tio Joaquim, quando for lá para a idade, o que não poder haver, dá-lo-ei por amor de Deus.

E como todos soltassem uma gargalhada, o velho suspendeu a sessão, porque percebeu, que por aquele lado não fazia farinha.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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