5/07/2023

Leporela (Conto), de Stefan Zweig



LEPORELA

Tradução de Charlotte Von Orloff

Seu nome cristão era Crescência Ana Alvísia Finkenhuber, tinha trinta e nove anos, era filha natural e nascera numa pequena aldeia das montanhas do Zillertal. Na rubrica “sinais característicos” de sua caderneta de trabalho havia apenas um risco negativo; se, porém, as autoridades fossem obrigadas a uma descrição caracterológica, um relance de olhos teria bastado para anotar naquele lugar: “semelhante a um cavalo montanhês, esfalfado, ossudo e magro.” Pois algo, que inconfundivelmente lembrava um cavalo, havia na expressão do lábio inferior que caía pesado, no ao mesmo tempo longo e puro oval do rosto tostado, no olhar turvo sem pestanas e, principalmente, no desgrenhado e grosso cabelo, penteado e grudado na testa engordurada. Também o seu andar semelhava-se ao modo estúpido e teimoso de uma mula montanhesa, que lá, sobre os pedregosos atalhos, verão e inverno, carrega, cabeçuda, as mesmas cangalhas de madeira com o mesmo trote de solavancos ásperos. Solta do cabresto do trabalho, costumava Crescência, as mãos ossudas postas, os cotovelos enviesados, dormitar estúpida, como os animais ficam na estrebaria, por assim dizer com os sentidos recolhidos. Tudo nela era duro, bronco e pesado. Pensava penosamente e compreendia devagar: cada pensamento novo pingava abafado como através de uma peneira grossa nos seus sentidos internos; mas se adquiria, finalmente, algo de novo, segurava-o teimosa e avaramente. Não lia nunca um jornal ou um livro de oração, o escrever era-lhe penoso e as letras mal traçadas no seu livro de cozinha lembravam, estranhamente, a sua própria figura, rude, de saliências pontiagudas, destituídas de qualquer forma palpável de feminilidade. Tão dura como os ossos, a testa, os quadris, as mãos, era a voz, que, apesar dos grossos sons guturais tiroleses, rangia enferrujada — o que em verdade não era de estranhar, pois Crescência não dizia a ninguém uma palavra supérflua. E ninguém jamais a vira rir; também era inteiramente animalesca, pois mais cruel talvez que a perda da fala, e talvez a abstenção, às criaturas de Deus, do riso, esta bem-aventurada, espontânea e franca expressão do sentimento.

Como filha natural, mantida à custa da comunidade, aos doze anos já estava empregada, como criada, numa estalagem, para lavar os soalhos. Mas saiu, finalmente, dessa taberna de cocheiros onde havia chamado a atenção pela sua vontade e inclinação de boi para o trabalho, e empregou-se numa conceituada estalagem de turistas, como cozinheira. Todos os dias, às cinco horas da manhã, Crescência se levantava pontualmente, e pelejava, varria, limpava, acendia o fogo, escovava, arrumava, cozinhava, amassava, espremia e lavava pela noite adentro. Nunca pediu descanso, nunca pisava a rua senão para ir à igreja; a lenha em brasa, crepitante e quente no fogão, era-lhe o sol; as mil e uma achas de lenha, que partia no decorrer dos anos, eram-lhe a floresta.

Os homens deixavam-na em paz, ou porque este quarto de século de porfiada luta acabasse toda feminilidade nela, ou porque, pertinaz e avara de palavras, com maus modos, se desvencilhasse de qualquer tentativa de aproximação. Sua única alegria consistia no dinheiro, que ajuntava com o instinto econômico dos camponeses, tenazmente, para que, depois de velha, não engolisse mais uma vez o pão amargo da comuna.

E unicamente por causa do dinheiro, esta criatura bronca deixara pela primeira vez a sua terra tirolesa aos trinta e sete anos. Um agente profissional que a vira durante as férias de verão trabalhar de manhã à noite, em casa e na cozinha, atraiu-a, com a promessa de ordenados gordos, para Viena. Durante a viagem de trem, Crescência não comeu nada nem falou com ninguém: segurava a pesada cesta de vime com os seus objetos sobre os joelhos já doloridos, não obstante o gentil oferecimento dos companheiros de viagem para colocá-la na rede, pois o logro e o roubo eram os únicos pensamentos que a sua cabeça dura de camponesa aliviava à ideia do capital. Em Viena, durante os primeiros dias, tiveram que acompanhá-la ao mercado, porque tinha medo dos carros como vaca do automóvel. Porém, assim que ela conheceu as quatro ruas até o mercado, não precisou mais de ninguém, trotava com a sua cesta, sem erguer os olhos da porta de casa até a banca do mercado, e daí voltava para casa, varria, fazia fogo e arrumava o novo como o antigo fogão, sem notar nenhuma mudança.

Às nove horas, o horário da aldeia, ia deitar-se e comia como um animal, de boca aberta, até que o despertador a despertava de manhã. Ninguém sabia se ela se achava bem disposta, talvez nem ela mesma, pois não se chegava a ninguém, respondia apenas às ordens com um surdo: “bem, bem”, ou, quando não, concordava, com um brusco erguer dos ombros quadrados. Aos vizinhos e às outras criadas da casa, ela não dava atenção: os olhares zombeteiros de suas companheiras mais vivazes, escorriam como água na pele de urso de sua indiferença. Só uma vez, quando uma menina imitou em tom de mofa o seu dialeto tirolês, e não deixou de caçoar da amuada, esta arrancou, repentinamente, uma acha de lenha do fogão e se atirou com ela sobre a criança, que fugiu soltando altos brados. Desde este dia todos evitavam a furibunda e ninguém se atrevia à escarnecer dela.

Cada domingo de manhã, porém, ia Crescência à igreja, com sua saia pregueada de muita roda e seu chapéu chato à guisa de prato. E uma única vez, no seu primeiro dia de folga em Viena, tentou um passeio. Mas como não quis fazer uso do bonde, vendo-se no seu caminhar hesitante rodeada apenas, nas ruas que a estonteavam, por paredes de pedra, chegou somente ao canal do Danúbio; lá olhou atônita para as águas correntes, que lhe eram como algo conhecido, deu volta e trotou pelo mesmo caminho para casa, evitando, medrosamente, o meio da rua. Este primeiro e único passeio de inspeção devia tê-la, evidentemente, decepcionado, pois desde estão nunca mais deixou a casa, mas sentava-se perto da janela, ocupada em costuras ou de mãos vazias. Assim e que a capital não imprimiu nenhuma mudança à sua faina diária e costumeira a não ser que, agora, em cada fim de mês, recebia quatro notas azuis em vez de duas, nas suas mãos calosas, gastas e estragadas. Essas notas, ela as examinava muitas vezes, por longo tempo, desconfiada. Desdobrava-as cuidadosamente, alisava-as finalmente quase com carinho, antes de ajuntá-las às outras na caixinha amarela de madeira que trouxera da aldeia. Esta pequena arca, tosca e feia, era todo o seu segredo, o fim de sua vida. Durante a noite conservava a chave sob o travesseiro. Onde guardava de dia, ninguém o soube na casa.

Assim era feita esta singular criatura humana (se assim podemos dizer, de vez que o humano só se manifestava de um modo abafado e enfraquecido no seu viver), mas talvez fosse necessário justamente uma criatura com seus sentidos embotados, para suportar o serviço do igualmente singular governo da casa do jovem Barão de F... Em geral os criados não suportavam por mais tempo a atmosfera contenciosa do que o espaço fixado pela lei da entrada até a despedida. O irritado, até o histerismo, elevado tom de gritos, partia da dona da casa. Uma filha já meia entrada em anos de um rico fabricante de Essen conheceu, numa estação de águas, o muito mais jovem Barão (de má nobreza e situação financeira ainda pior) e casou apressadamente com este estroina bonitinho, refinado em encanto aristocrático.

Mas escoou-se a lua-de-mel, e já a recém-casada teve que reconhecer a justa razão da oposição dos pais contra esse casamento apressado, pois eles aspiravam a algo mais sólido e proveitoso. Além de muitas dívidas ocultas, evidenciou-se que o jovem esposo, logo arrefecido, retornava aos seus hábitos negligentes de solteiro, que o interessavam muito mais do que os seus deveres matrimoniais; não de todo destituído de bondade, no seu modo de ver, desprezava este bonito semicavalheiro todo emprego a juros do capital, considerando isto uma avara pretensão de origem plebeia. Ele queria uma vida fácil e ela uma casa sólida e ordenada à moda burguesa do Reno: isto lhe alterou os nervos. E quando, apesar da riqueza dela, teve que regatear e a esposa lhe negou a sua exigência predileta, cavalos de corrida, viu ele poucos motivos para importar-se ainda com essa alemãzinha cabeçuda e maciça, cujo tom áspero e imperioso lhe feria desagradavelmente os ouvidos, Assim ele, mesmo se costumava dizer, a deixou de lado, afastando-a de si, sem gestos duros, mas nem por isto menos decepcionantes. Se ela lhe fazia recriminações, ouvia-a amável, aparentemente atento; soprava, porém, terminado o sermão, com a fumaça do seu cigarro as violentas exortações para longe de si e fazia, incontido, aquilo que lhe aprazia. Esta lisa e quase oficial amabilidade amargurou mais a decepcionada mulher do que qualquer resistência. E como era impotente contra a bem educada, nunca ofensiva, e quase penetrante amabilidade do marido, a ira contida se abria caminho à força, em outro sentido: insultava os criados descarregando sobre os inocentes a sua revolta no fundo justa, mas aqui mal empregada. As consequências não se fizeram esperar: no decorrer de dois anos teve que trocar nada menos que dezesseis criadas, uma vez até após uma agressão física, escândalo que só pôde ser abafado com uma indenização considerável.

Unicamente Crescência, como um cavalo de carro de praça na chuva, mantinha-se imperturbável no meio deste violento tumulto. Não tomava o partido de ninguém, não se incomodava com nenhuma mudança, parecia não sentir que estes seres estranhos, com quem repartia o seu quarto de servente, mudavam constantemente de nome, de cor de cabelo, de emanação física e modos. .Ela mesma não falava com nenhuma, não se importava com as portas que batiam com estrondo, com as refeições interrompidas, as iras impotentes e histéricas. Ia, indiferente e ocupada, da cozinha ao mercado e do mercado novamente à cozinha: o que se passava além deste círculo emparedado não a preocupava. Como um mangual na incessante faina dura e inconsciente, passou dois anos de estada na capital, sem acontecimento algum que motivasse uma ampliação no seu mundo interno, a não ser as notas azuis de Banco, que se empilharam por mais uma polegada. Quando ela, no fim do ano, com o dedo umedecido, contou nota por nota, viu que não estava longe da casa mágica dos mil.

Mas o acaso tem uma verruma de diamante, e o destino, perigoso e cheio de astúcia, sabe abrir caminho nos lugares mais inesperados, causando completo abalo na natureza mais empedernida. Com Crescência a razão exterior mostrava-se quase tão banalmente como ela mesma; depois de dez anos de intervalo, o Estado lembrou-se de ordenar um recenseamento e a todas as casas foram mandados folhetos complicados para serem meticulosamente preenchidos. Desconfiado com as garatujas da criadagem, o barão preferiu preencher ele mesmo as rubricas e ordenou para este fim o comparecimento de Crescência ao seu quarto. Ao perguntar-lhe nome, idade e lugar de nascimento, verificou que ele, como caçador apaixonado e amigo do maior proprietário da região, abatera justamente no seu recanto alpino cabritos monteses e que um guia de sua aldeia natal o acompanhara por duas semanas. E como curiosamente esse guia fosse tio de Crescência, originou-se desse motivo casual uma palestra prolongada, na qual se revelou outra surpresa, isto é, que ele, aquele tempo, se hospedara justamente naquela estalagem onde ela cozinhara e onde ele comeu um excelente assado de veado. Ninharias tudo isto, mas singular pela sua casualidade, e para Crescência, que aqui, pela primeira vez, via uma pessoa que sabia algo de sua terra, simplesmente maravilhoso. Ela parou em frente dele com o rosto vermelho e interessado, curvou-se mais jeitosa e lisonjeada, quando ele passou a gracejar, perguntando-lhe, a imitar o dialeto tirolês, se ela sabia cantar à moda de lá, e outras mais destas puerilidades. Finalmente, divertido, deu-lhe uma palmada no traseiro chato à moda universal camponesa e despediu-a a rir-se. "Podes ir, boa Cenci, e aqui tens duas coroas por seres do Zillertal.”

Decerto, isto, por si só, não era motivo patético nem significativo, Mas, no sentimento íntimo daquela criatura obtusa, esta palestra de cinco minutos foi como uma pedra que cai num pântano: aos poucos e indolentemente formaram-se círculos movimentados, que ondulando, pesadamente, devagar, chegaram à orla da consciência. Pela primeira vez, em tantos anos, aquela mulher avara de palavras tivera uma conversa com uma pessoa; e sobrenatural lhe parecia que justamente esta primeira pessoa que lhe falara, ali, bem no centro desta construção de pedra, sabia de suas montanhas e até comera um dos assados de veado por ela preparados. A isto ainda se aliava aquela palmada nas nádegas, que, no idioma dos camponeses, significa uma espécie de interrogação lacônica e um cortejo à mulher. Se bem que Crescência não se atrevesse a pensar que este elegante e distinto senhor realmente tivesse tais pretensões, no entanto, os seus sentidos adormecidos reagiram agitados, de certo modo, a tal intimidade física.

E assim começou, causado por este impulso fortuito, desobstruindo-se camada por camada, um movimento interno, até que enfim, primeiro como uma névoa, e depois cada vez mais claramente, se destacou um novo sentimento, comparável àquele repentino conhecer com que um cachorro, entre os muitos homens que o cercam inesperadamente, certo dia, dá um deles como seu senhor: desde esta hora o segue e saúda, abanando o rabo, ou com um latido, e, enviado pelo destino, torna-se seu escravo voluntário e segue-lhe os passos pisada por pisada. Tal e qual penetrara um novo elemento no círculo de Crescência, tão limitado e que até então só conhecera cinco ou seis noções: dinheiro, mercado, fogão, igreja e cama; mais um novo elemento que exigia com brusca violência espaço e pressão, e punha de lado tudo que havia sido antes. E, com aquela ganância de camponês, que nunca mais solta o que uma vez segura, observou sob a pele este novo elemento, bem dentro de si, até o confuso mundo dos instintos obtusos. Contudo, demorou algum tempo, antes que esta mudança se tornasse evidente; e também os primeiros sintomas eram de todo insignificantes, como, por exemplo, este: limpava as roupas e os sapatos do barão com um cuidado especial e fanático, enquanto deixava as roupas e o calçado da baronesa aos cuidados da copeira. Ou mostrava-se repetidas vezes no corredor e nos quartos e corria, mal ouvia o estalo da chave na porta da entrada, ao seu encontro, para receber o sobretudo e a bengala. A cozinha merecia os seus especiais cuidados: indagou com grande sacrifício o caminho, para ela desconhecido, até o mercado geral, unicamente para conseguir um assado de veado. E também na sua vestimenta exterior eram visíveis os sinais de cuidados especiais.

Levou uma ou duas semanas, até que estes rebentos iniciais do seu novo sentimento se exteriorizassem. E foram necessários semanas e semanas até que um segundo pensamento se seguisse ao primeiro manifesto, e o crescimento, inseguro, tomasse forma e cor. Este segundo sentimento não era senão um sentimento completar do primeiro, um ódio, a princípio vago, depois evidente e cruel, à baronesa, à mulher que com ele podia morar, dormir e falar e que, não obstante, não lhe tinha o mesmo respeito devotado, Seja porque ela — instintivamente mais atenta — presenciasse uma daquelas cenas vergonhosas, em que o idolatrado senhor foi humilhado de forma asquerosa pela mulher irritada, ou seja porque o contraste da confiança jovial dele para com ela a fizesse sentir duplamente a reserva orgulhosa da mulher, talvez contida e arrolhada pelo seu temperamento nórdico — o fato e que o inconsciente lhe opôs, de repente, uma certa teimosia, uma inimizade espinhosa, com mil pequenas pontas e maldades. Assim a baronesa sempre tinha que tocar, no mínimo duas vezes, a campainha antes que Crescência, com intencional vagar e patente má vontade, atendesse ao chamado. Os seus ombros fincados já anunciavam de antemão uma resoluta resistência. Ordens e recados recebia-os sem palavra e mal-humorada, e assim a baronesa nunca sabia ao certo se fora compreendida, ou não; se, porém, por prudência repetisse a pergunta, obtinha apenas um aborrecido aceno ou um “já ouvi" cheio de desprezo, como resposta. Ou então, poucos momentos antes da ida ao teatro, quando a senhora nervosa rebuscava pelos quartos uma chave importante, era inachável, para meia hora mais tarde ser descoberta inesperadamente em qualquer canto. Recados ou chamados telefônicos para a baronesas, ela se dignava esquecê-los regularmente; interrogada, atirava-lhe, sem o menor sinal de pesar, um seco: “eu me esqueci.” Nunca a encarava nos olhos, talvez com receio de não poder conter o ódio.

Entretanto, os atritos caseiros originavam cenas cada vez mais desagradáveis entre os esposos; possivelmente a inconsciente e irritante rabugice de Crescência, por demasiadamente prolongada virgindade, contribuía cada vez mais para maior irritabilidade da mulher exaltada. Fraca de nervos, amargurada pela indiferença do marido e atrevida animosidade dos criados, a torturada perdia cada vez mais o equilíbrio. Inutilmente a sua agitação era acalmada com bromo e veronal; cada vez com mais violência feria-lhe a corda demasiadamente estirada dos nervos; ela teve crises de choro e ataques histéricos, sem com isto obter, de quem quer que fosse, a mínima compaixão, ou, sequer, à aparência de um bondoso auxílio. Finalmente o médico, consultado, recomendou uma estada de dois meses num sanatório, proposta que, pelo esposo, em geral indiferente, foi aprovada com tão repentina solicitude, que a mulher, de novo desconfiada, primeiramente se opôs. Mas finalmente, a viagem foi resolvida, escolhida a camareira para acompanhá-la, enquanto Crescência devia ficar para servir ao senhor, só na espaçosa moradia.

A notícia de que o patrão seria confiado só aos cuidados dela, provocou nos sentidos pesados de Crescência uma repentina animação. Como se se agitassem violentamente todas as suas forças e humores, qual uma garrafa mágica, assim vinha agora à tona um secreto sedimento de paixão que coloria completamente os seus modos. O obtuso, o bronco e pesado escorria repentinamente dos seus membros duros e congelados; parecia que, devido a esta notícia eletrizante, obtivera como que por encanto juntas flexíveis e um andar apressado e alado. Ela corria no quarto para lá e para cá, subia e descia escadas e mal chegou a hora de cuidar dos preparativos da viagem, e sem para tal ser autorizada arrumou as malas e carregou-as ela própria até o carro.

Quando o barão voltou, à noite, da estação, entregando à prestimosa, a bengala e o sobretudo e dizendo com um suspiro de alívio, “felizmente expedida”, aconteceu algo memorável, pois repentinamente manifestou-se nos lábios cerrados de Crescência, que, como todos os animais, nunca ria, um violento dilatar dos músculos faciais. A boca alargou-se para os lados e, de repente, brotou bem do centro do seu rosto, idiotamente iluminado, um tal arreganhar de dentes, tão franca e animalescamente incontido, que o barão, penosamente surpreso com este espetáculo, se envergonhou dessa intimidade absurda e se retirou para o seu quarto sem dizer mais palavra.

***

Mas este momento passageiro de mal-estar passou logo, e já nos dias seguintes uniam-se amo e serva no comunicativo espírito de alívio, no silêncio deliciosamente sentido e na benfazeja liberdade. A ausência da mulher como que varreu à atmosfera de eterno prestar contas, voltou logo na primeira noite muito tarde e a silenciosa solicitude de Crescência oferecia um agradável contraste ao excessivo palavrório de recepção da esposa. E Crescência por sua vez atirou-se com entusiástica paixão à sua faina diária, levantava mais cedo que nunca, limpava tudo até brilhar, esfregava maçanetas e fivelas como uma possessa, desencantava cardápios excelentes. Surpreso, o barão notou no primeiro almoço que a mesa fora posta com o melhor serviço, só em ocasiões extraordinárias retirado da cristaleira. Em geral desatento não pode deixar de notar o cuidado, quase sutil, desta criatura esquisita, e bondoso como era no fundo, não regateou mostras de sua satisfação. Louvava a excelência dos pratos, atirava-lhe, de vez em quando, algumas palavras amáveis e, quando, na manhã seguinte, dia do seu aniversário, encontrou uma torta com suas iniciais e o seu brasão em açúcar artificiosamente preparado, riu gostosamente, para ela: “Vais acostumar-me mal com tanto mimo, Cenci! Que farei depois se, que Deus nos guarde, voltar minha mulher?” Numa tal intimidade sem tato, incontida até ao cinismo de um senhor para seus criados, em outros países talvez estranhável, não seria raro na aristocracia da velha Áustria: este modo inconveniente resultava do porte leviano que aqueles cavalheiros tinham na vida, como que em desmedido desprezo pelo mundo plebeu. Assim como, às vezes, arquiduques, levados a uma pequena cidade da Galícia, mandavam buscar pelo sargento qualquer criatura ordinária do bordel, cedendo-a depois, seminua, ao portador, indiferente com que, na manhã seguinte, a canalha burguesa se regalasse com a saborosa anedota, assim a alta nobreza mais facilmente se sentava com seu cocheiro ou peão à mesa durante as caçadas, do que com um professor ou alto comerciante. Mas estas maneiras aparentes de intimidade, dadas com leviandade e também assim tiradas, eram bem o contrário de sua aparência: eram sempre unilaterais, e claro, e terminavam no momento em que o senhor se levantava da mesa. E como a pequena nobreza sempre se via na contingência de imitar o gesto dos feudais, assim o barão não sentia nenhum embaraço em pronunciar-se de modo desprezível a respeito de sua senhora, diante de uma rústica aldeã tirolesa. Decerto, era calada, mas ele nem pressentia com que raivosa volúpia e paixão esta serva desajeitada sorvia suas palavras degradantes.

Contudo, por alguns dias, ele ainda se conteve, antes de atirar longe de si as últimas conveniências. Então, por vários indícios seguro do seu silêncio, começou de novo solteiro, a acomodar-se a gosto na sua própria moradia. Sem maiores esclarecimentos, no quarto dia de solteiro interino chamou Crescência e ordenou-lhe, em tom indiferente, que preparasse para a noite uma refeição de frios para dois e em seguida se retirasse, do resto ele mesmo trataria. Muda, Crescência recebeu esta ordem. Nem um pestanejar deixou transparecer que o sentido verdadeiro destas palavras lhe havia entrado na cabeça dura. Mas que bem compreendera sua verdadeira intenção, o senhor o notou com divertida surpresa, pois não só ao subir tarde da noite com uma pequena corista do teatro, encontrou a mesa seletamente preparada e enfeitada de flores, como também no quarto de dormir deparou ao lado de sua cama, a de sua mulher, atrevidamente descoberta, e até o peignoir e as chinelas postos à espera. Involuntariamente o barão sorriu dos cuidados demasiados desta criatura. E com isto caía a última barreira diante de sua cumplicidade auxiliadora. De manhã já ele tocava a campainha, para que ela ajudasse à galante intrusa; e com isto o acordo silencioso entre os dois estava selado.

E, nestes dias, Crescência recebeu o seu novo nome. Aquela travessa corista de ópera, que justamente ensaiava D. Elvira e que, entre gracejos, elvou o seu amigo carinhoso à posição de Don Juan, disse-lhe uma ocasião, rindo-se para ele: “Chame a tua Leporela.” E este nome divertiu-o, precisamente porque o parodiava de modo tão grotesco a magra tirolesa, que de então em diante nunca a chamou senão Leporela. Crescência, a princípio surpresa, depois porém tentada pelo melodioso tom das vogais, gozava este batismo como uma nobilitação: todas as vezes que o traquinas a chamava assim, os seus lábios finos se alargavam, deixando à mostra os dentes amarelos de cavalo, e serviçal, e como que de rabo abanando, chegava-se para receber as ordens do amo.

O nome era empregado como uma paródia: mas com desintencionado acerto a futura estrela de ópera, com este apelido singular, jogou à criatura uma vestimenta de palavra fantasticamente adequada, pois, idêntica à cúmplice gozadora de Dapontes, esta velha solteirona, ossificada e estranha ao amor, sentia uma extravagante e orgulhosa alegria com as aventuras do senhor. Seria talvez a satisfação de ver todas as manhãs a cama da odiada mulher revolvida e desonestada, ora por este, ora por aquele corpo juvenil, ou talvez, uma secreta complacência pela exuberante e prodigiosamente dispersiva virilidade do seu senhor crepitava nos seus sentidos? De toda maneira a rapariga velhusca, severa e carola, demonstrava uma quase violenta obsequiosidade e zelo nas aventuras do amo. Não mais tentada pelo seu próprio corpo, gasto por dezenas de anos de duro trabalho, tornando-se assim sem sexo, acalentava-se prazenteira na volúpia alcoviteira de poder ver fechar-se a porta do dormitório atrás de uma, e logo, após poucos dias, atrás de outra mulher: como um cáustico obrava a cumplicidade e o perfume picante desta atmosfera erótica sobre os seus sentidos adormecidos. Crescência se tornara verdadeiramente Leporela, e como aquele rapaz esperto, ágil e fresco tivera qualidades estranhas, como que criadas e impelidas pelo calor flutuante deste ardente interesse, apareciam nos seus modos pequenas astúcias. Pregava o ouvido às portas, espiava através das fechaduras, vasculhava quartos e camas, subia e descia, voando, as escadas, impelida por uma esquisita agitação, mal pressentia uma nova presa. As poucos esta esperteza e este curioso interesse, esta vontade de ver, convertiam numa espécie de criatura viva aquele invólucro de madeira de sua antiga estupidez. Com admiração geral dos vizinhos, Crescência se tornara repentinamente tratável, conversava com as colegas, gracejava de um modo simplório com o carteiro, principiou a bisbilhotar com os caixeiros; e, certa noite, quando as luzes do pátio estavam apagadas, as criadas ouviram, em frente ao seu quarto do fundo, esquisito ranger da janela sempre tão muda; à meia voz, grossa e rangente, Crescência cantava uma daquelas canções alpinas, como cantam as vaqueiras dos Alpes, nos pastos, ao entardecer. Com um tom partido, cortado pelos lábios desacostumados, a melodia monótona jorrava aos solavancos; contudo, tinha algo de comovente e estranho. Pela primeira vez, desde a sua infância, Crescência tentava cantar, e havia qualquer coisa de tocante naquelas notas trôpegas que vinham à luz depois de permanecerem anos e anos entulhados escuridão.

Desta rara mudança o seu inconsciente causador quase não se apercebia, pois quem se volta para a própria sombra? Nós a sentimos, seguindo-nos fiel, sorrateira e muda atrás dos nossos passos, às vezes adiantando-se com um desejo apenas presumido, mas quão poucas vezes nos esforçamos por observá-la em suas formas parodísticas e reconhecemos o próprio eu nesta criatura! O barão não notava em Crescência senão estar sempre pronta qualquer serviço, inteiramente calada, cheia de confiança e submissa até o sacrifício. E justamente esta mudez, esta natural distância em todas as situações diretas, parecia-lhe extremamente agradável, às vezes contentava-a, negligente, como se faz com um cachorro, com algumas palavras amáveis, uma ou outra vez gracejava com ela, beliscando-a generosamente no lóbulo da orelha, presenteava-a com uma nota de Banco, ou um bilhete de teatro — ninharias para ele, que os tirava sem pensar do bolso do colete, mas para ela relíquias, que guardava respeitosamente na caixa de madeira. Aos poucos ele se acostumara a pensar em voz alta na frente dela, confiando-lhe, até, ordens complicadas — e quanto maiores eram os sinais de sua confiança, tanto mais agradecida e serviçal ela se mostrava. Um estranho instinto vasculhador e farejante apareceu nela, em caça a todos os desejos dele, adiantando-se, mesmo, a esses desejos; toda a sua vida, sem querer, parecia ter abandonado o corpo dela para instalar-se nele; tudo ela via com os olhos dele, escutava com os sentidos dele, todas as conquistas e alegrias dele ela compartilhava, graças a um entusiasmo quase perverso. Ficava radiante quando uma nova criatura feminina pisava o degrau da porta, olhava decepcionada e como que ofendida, se ele voltava, à noite, sem uma companheira carinhosa. Os seus pensamentos, de primeiro tão vagarosos trabalhavam agora lestos e impetuosos, quando dantes somente as suas mãos e os seus olhos brilhavam e faiscavam a uma nova luz viva e reveladora. Uma criatura humana nascera neste animal do trabalho, exausto e gasto — humana, sombria, calada astuciosa e temível, pensativa e ágil, ocupada, inquieta e manhosa.

Certa vez, voltando o barão antes do tempo para casa, parou surpreso no corredor: não crepitava uma estranha risada á socapa, atrás da porta da cozinha, em geral tão muda? E empurrando a porta, viu Leporela a esfregar às pressas as mãos no avental, atrevida e enleada ao mesmo tempo. “Desculpe senhor”, disse ela, passeando pelo soalho os olhos. “Mas a filha do padeiro está lá dentro... uma rapariga bonita... que gostaria muito de conhecer o senhor.” - O barão olhou-a surpreso, indeciso se devia zangar-se com tão atrevida intimidade, ou divertir-se com o serviço prestimoso da alcoviteira. Finalmente, a curiosidade masculina decidiu-o: “Deixe-me ver.” 

A menina, uma garota de dezesseis anos, loira e apetitosa, atraída por Leporela aos poucos com persuasivas lisonjas, acercou-se enrubescida, com risadinhas enteadas, empurrada insistentemente pela criada, a revirar-se, constrangida diante do homem elegante, ao qual realmente observara da loja, em frente, muitas vezes, com admiração infantil. O barão achou-a bonita e propôs-lhe tomar chá com ele no salão. Indecisa se devia aceitar, a menina voltou-se para Crescência. Mas esta, com pressa desusada, já havia desaparecido na cozinha e, assim, não restava à seduzida pela aventura senão aceitar o perigoso convite. E entrou com ele, enrubescida e estranhamente agitada

***

Mas a natureza não dá saltos, se bem que, devido à pressão , de uma tortuosa e embargada paixão, sobressaísse nesta criatura obtusa uma certa vivacidade espiritual, não ultrapassava este dom de pensar, recém-aprendido, a causa mais próxima, nisto ainda análogo ao instinto tarado dos animais. Emparedada na sua mania de servir em tudo o senhor submissamente amado, Crescência esquecia por completo a patroa ausente. Tanto mais terrível tornou-se o seu despertar: qual raio em céu azul, caiu sobre ela a nova. Uma manhã, aborrecido e mal-humorado, o barão entrou com uma carta na mão, anunciando-lhe que preparasse a casa, pois a senhora voltaria do Sanatório na manhã seguinte. Crescência parou pálida, com o boca aberta de susto; a notícia atravessara-a como um punhal. Ficou de pé estarrecida, como se não houvesse compreendido. E tão desmedida e assustadoramente este raio fustigou-lhe o rosto, que o barão achou necessário acalmá-la um pouco com palavras frívolas. “Parece-me que também não te alegras, Cenci. Mas não há nada a fazer.”

Mas já se movimentara algo no rosto fechado de Crescência. Trabalhava-a, partindo as entranhas, uma convulsão violenta, que aos poucos tingia-lhe as faces pálidas de vivo rubor. Bem devagar, com fortes golpes do coração comprimido, brotava algo: a garganta tremia sob o esforço inaudito. E finalmente, chegou ao alto e jorrou dos dentes cerrados: “Pode-se... pode-se... fazer alguma coisa...”

Duro, como um balaço mortal, isto lhe saía da boca. E tão malignamente, em sombria resolução, se confrangia este rosto convulsionado, depois desta erupção violenta, que e barão, assustado, instintivamente deu um passo para trás. Mas Crescência se voltara e começou com raivosa fúria a esfregar um caldeirão de cobre, como se quisesse quebrar os dedos nesta tarefa.

Com a volta da patroa a tempestade uivava, novamente, pela casa, batia com estrondo as portas, zunia mal-humorada pelos quartos e varria, como uma ventania, a atmosfera agradavelmente abafada da moradia. Fosse por bisbilhotices da vizinhança ou por cartas anônimas, a ludibriada soube de que modo infame o dono da casa fizera uso dos seus direitos domésticos. Ou porque a tivesse aborrecido a nervosa e patente má vontade da recepção — o fato e que os dois meses de estada no sanatório pareciam ter servido muito pouco aos seus nervos distendidos, pois crises de choro intercalavam-se com ameaças e cenas histéricas. As relações tornavam-se dia a dia mais insofríveis. Por algumas semanas o barão ainda resistiu corajosamente às recriminações, com sua até agora provada amabilidade, e respondia, evasivo e confortador, quando ela o ameaçava com o divórcio ou com cartas que dirigia aos pais. Mas justamente esta fria e desarmoniosa indiferença impelia cada vez mais a mulher descontente e rodeada de certa animosidade, para o fundo duma agitação nervosa.

Crescência encouraçou-se inteiramente no seu antigo silêncio. Mas este silêncio se tornara agressivo e perigoso. À chegada da patroa, ficou obstinada na cozinha e evitou, finalmente chamada, de saudar a recém-vinda. Os ombros teimosamente fincados, quedava imóvel e respondia de tal modo áspero a todas as perguntas, que a impaciente deixou-a de lado. Mas nas costas da patroa, porém, Crescência manifestou com um único olhar todo o seu ódio acumulado. Seu sentimento avaro sentiu-se injustamente roubado com a volta desta mulher. Expulsa da alegria de sua submissa prestimosidade, viu-se novamente atirada para a cozinha e o fogão, sendo-lhe até retirado o nome confidencial de Leporela, pois o barão evitava cuidadosamente, diante da esposa, demonstrar qualquer simpatia pela criada. Mas, às vezes, quando exausto pelas cenas asquerosas, e, anelante por consolo, queria dar expansão às suas mágoas, seguia sorrateiramente até a cozinha e sentava-se ao pé dela num duro banquinho de madeira, só para poder gemer: “Eu não a suporto Mais.”

Estes momentos, quando o idolatrado senhor vinha buscar alento à demasiada tensão de nervos, eram os mais felizes de Leporela. Nunca esta se atrevia a uma resposta ou a um consolo; muda, abismada em si mesma, permanecia sentada, contemplando apenas, de quando em quando, com um olhar atento, compassivo e torturado, o pobre patrão, e este interesse mudo fazia bem a ele. Mas depois dele deixar a cozinha, aquela ruga obstinada instalava-se novamente na sua testa, e as mãos pesadas aniquilavam a ira batendo carnes indefesas, ou trituravam-na esfregando janelas e talheres. Finalmente a atmosfera carregada, desde a volta, desfez-se em descarga tempestuosa: numa das cenas, pouco agradáveis, o barão acabou perdendo a paciência, saltou bruscamente de sua posição submissa e indiferente de colegial, bateu com violência as portas atrás de si: "Agora, basta!” gritou de tal modo furioso, que as janelas tilintaram até no último quarto. E ainda quente de ira, com o rosto vermelho, correu para Crescência, esticada e trêmula como um arco: "Prepare-me imediatamente a mala e carabina! Vou à caça, por uma semana. Este inferno nem o diabo aguenta por mais tempo; e preciso dar fim a isto.”

Crescência encarou-o entusiasmada. Sim, ele transformava-se em senhor! E uma risada grosseira rolou-lhe pela garganta: “Tem muita razão, o senhor. É preciso dar um fim a isto.” E trêmula de zelo, corria de um quarto ao outro, ajuntando, com pressa louca, tudo que encontrava em armários e sobre as mesas; cada nervo desta criatura bronca vibrava de pressão e vingança. E ela própria levou, depois, a mala e a carabina até o carro. Mas quando ele procurou palavras para agradecer-lhe as solicitude, o seu olhar se retraiu assustado, pois sobre os lábios contraídos apareceu novamente aquele sorriso traiçoeiro, que o assustava tantas vezes. Instintivamente ocorreu-lhe a visão dum gesto encolhido de animal pronto para o bote, quando lhe notou a atitude. Mas aí, já ela se agachava, sussurrando baixinho, com uma confiança quase ofensiva: “Que tenha uma boa viagem, patrão, eu cuidarei de tudo.”

***

Três dias depois o barão foi chamado por um telegrama urgente. Na estação esperava-o um primo. Logo no primeiro instante, conheceu o barão que algo de anormal se devia ter passado, pois o primo tinha uma expressão nervosa e agitada. Depois de algumas palavras de indulgente preparação, soube que a mulher fora encontrada de manhã, morta, na cama, e o quarto todo cheio de gás. Infelizmente um descuido casual estava fora de conjeturas, relatou o primo, pois a estufa de gás, agora em maio, há muito estava fora de uso, e o intento suicida era reconhecível pelo fato de a infeliz à noite ter tomado venenal. A isto acrescia ainda o depoimento da cozinheira Crescência, que nessa noite, ficara sozinha em casa e ouvira como a infeliz ainda saíra durante a noite até a antecâmara, evidentemente para abrir o medidor de gás, cuidadosamente fechado. Diante desta declaração, também o médico da polícia, consultado, declarou excluir a hipóteses de um acaso, admitindo como certo o suicídio.

O barão principiou a tremer. Quanto o primo mencionou o testemunho da Crescência, sentiu repentinamente o sangue gelar-lhe as mãos: um pensamento desagradável e repugnante subiu-lhe à mente como um enjoo. Mas suprimiu, à força, esta sensação torturante e incômoda e deixou-se levar, sem vontade própria, até à casa. O cadáver já tinha sido removido, e na sala de visitas esperavam os parentes, com fisionomias sombrias e hostis; seus pêsames eram frios como a lâmina de uma faca. Com uma espécie de insistência acusadora, julgaram dever mencionar que infelizmente não havia sido mais possível encobrir o "escândalo” porque a criada de manhã saíra à rua com altos brados: "A senhora se suicidou!" E que ordenaram um enterro silencioso, porque — e novamente a lâmina cortante apontou para ele — a curiosidade da sociedade já havia sido provocada desagradavelmente pelas várias conjeturas e bisbilhotices. O barão ouvia confuso, ergueu uma vez o olhar instintivamente até à porta fechada do dormitório e encolheu-se de novo, covardemente. Queria pensar qualquer coisa até o fim, que se agitava incessante e dolorosamente dentro dele, mas estas conversas várias e odiosas perturbavam-no. Por mais meia hora os parentes rodearam-no, sombrios e eloquentes e em seguida, um após outro, despediram-se.

Ele ficou só, no quarto vazio e semiescuro, tremendo como sob um golpe surdo, com a testa doída e as juntas cansadas.

Quando bateram à porta, disse um “entre” assustado. E sentiu atrás dele umas pisadas hesitantes, umas pisadas duras, deslizantes, de arrasto, que conhecia. De repente atacou-o um pavor: sentiu a vértebra como que aparafusada, e, ao mesmo tempo, a pele desde a cabeça aos pés, arrepiada. Queria virar-se, mas os músculos não obedeciam. Então a voz atrás dele disse, inteiramente indiferente, impassível e seca, com a maior naturalidade: — "Eu só queria perguntar se o senhor come em casa ou fora”. O barão tremia cada vez mais; agora o frio glacial já lhe subira ao peito. E três vezes tentou inutilmente falar, antes de conseguir enfim um “não, eu não como nada por enquanto.” 

Novamente os passos sé afastaram de mansinho, ele não tinha a coragem de voltar-se. E repentinamente quebrou esta rigidez: algo sacudia-o todo, um nojo ou uma convulsão. De um arranco pulou até a porta, e girou constrangido, a chave, para que estes passos odiosos não voltassem novamente a ele. Depois atirou-se na poltrona para abafar um pensamento que não queria ter e que, não obstante, voltava constantemente, frio e pegajoso como uma lesma. E este pensamento constrangente, de que ele sentia nojo, preencheu todo o seu sentimento, incessante, fatal, repugnante, e, ficou com ele durante toda a noite de insônia, e em todas as horas seguintes, mesmo quando, vestido de preto e calado, quedava à cabeceira do caixão.

No dia seguinte ao enterro, o barão abandonou precipitado a cidade; eram-lhe insuportáveis agora as fisionomias; envolvidas em compaixão, tinham (ou parecia-lhe, apenas?) um olhar observador, singular, torturantemente inquisitorial. Mesmo as coisas mortas falavam, más e acusadoras: cada peça da mobília, na casa, em particular as do dormitório, onde parecia permanecer em cada objeto o cheiro horrível do gás, fazia-o retroceder quando abria a porta. Mas o pesadelo mais insuportável do seu dormir e despertar era a descuidada e fria indiferença de sua ex-confidente, que, como se nada tivesse acontecido, ia e vinha pela casa vazia. Desde aquele instante, na estação, em que o primo lhe mencionara o nome, ele tremia de cada encontro com ela. Mal ouvia as suas pisadas, já se apoderava dele um desassossego nervoso e apavorado: não podia ver, não podia suportar mais este andar arrastado de indiferente, esta fria e muda impassibilidade. A repugnância o dominava, mal pensava nela, na sua voz rangente, no seu cabelo gorduroso, na surda, animalesca e impiedosa falta de sentimentos; e na sua ira havia ódio contra si próprio, porque lhe faltavam as forças de arrebentar com violência esta sonda que lhe estrangulava a garganta. Assim via só uma saída: a  fuga . Secretamente, sem dizer-lhe palavra, arrumou as malas, não deixando nada, além de um pequeno recado, escrito apressadamente, no qual dizia que seguia para junto de amigos em Karnten.

Aí demorou-se por todo o verão. 

Certa vez, chamado para tratar da herança, preferiu vir secretamente e hospedar-se num hotel sem comunicar-se com esta ave da morte que o esperava no lar. Crescência nada soube de sua presença, porque com ninguém falava. Desocupada, sombria como uma coruja, sentava-se o dia inteiro extática, na cozinha, ia duas vezes em vez de uma, à igreja, recebia por intermédio do advogado do barão ordens e dinheiro para a prestação de contas: mas dele mesmo nada soube. Ele não lhe escrevia e não lhe mandava dizer nada. E assim ela esperava, muda. Seu rosto se tornava mais duro e mais magro, seus movimentos endureciam-se novamente, e assim esperando e esperando, passou semanas num estado misterioso de estarrecimento.

No outono, porém, os urgentes afazeres do barão não lhe permitiram o prolongamento de sua ausência e ele teve que voltar à casa. No umbral da porta ele parou e hesitou. Dois meses entre amigos íntimos fizeram-no esquecer muita coisa — mas agora, que devia enfrentar o seu pesadelo, a sua talvez cúmplice, sentia a mesma opressiva e quase nauseabunda convulsão.

A cada degrau que subia, devagar, pela escada acima, a mão invisível lhe oprimia mais e mais à garganta. Finalmente, só com um violento esforço sobre si mesmo, reunindo toda a sua força de vontade, conseguiu obrigar os dedos rígidos a torcerem à chave na fechadura.

Surpresa acudiu Crescência da cozinha, mal ouviu a chave estalar. Quando o viu, parou um momento, pálida, e curvou-se, então, para pegar a maleta, que ele depusera, como que no desejo de se agachar. Mas ela esquecia uma palavra de saudação. Também ele não dizia nada. Muda, carregou a maleta até o quarto dele e mudo ele a seguiu. E mudo esperou, olhando para fora da janela, até que ela deixou o compartimento. Depois torceu apressado, a chave da porta.

Esta foi a saudação, depois de três meses de ausência.

***

Crescência esperava. E também esperava o barão se este horroroso mal-estar cederia diante do aspecto dela. Mas, nenhuma melhora. Já antes que a avistasse, quando apenas ouvia suas pisadas no corredor, a inquietação adejava dentro dele. Não tocava no café e se evadia, apressado, de casa, sem lhe dirigir a palavra, todas as manhãs. E demorava-se até tarde da noite, somente para evitar a presença dela. As duas ou três ordens, que era obrigado a dar-lhe, fazia-o de rosto voltado para o lado. Estrangulava-lhe a garganta respirar o ar do mesmo compartimento na companhia daquele espectro.

Crescência, entretanto, sentava-se muda, o dia inteiro, no seu banquinho de madeira. Para ela mesma, não cozinhava mais. Tinha repugnância à comida e evitava o encontro com os homens. Sentava-se e esperava, com os olhos espantados, pelo primeiro chamado do seu amo, como um cão castigado, que sabe ter praticado algo de mau. Os seus sentidos surdos não compreendiam bem o que acontecera: apenas, que o seu deus e senhor a evitava e não a queria mais. Só isto lhe pesava no coração.

No terceiro dia, após a volta do barão tocaram a campainha. Um homem grisalho, calmo, com o rosto bem escanhoado, uma mala na mão, parava diante da porta. Crescência queria mandá-lo embora. Mas o intruso insistiu que ele era o novo criado, que o senhor lhe havia marcado dez horas e que ela o anunciasse. Crescência empalideceu mortalmente, ficou por um memento parada, os dedos crispados, hirtos no ar. Depois caiu-lhe a mão, como uma ave atingida:

— “Entre, entre”, grunhiu para o recém-vindo, voltou para a cozinha e bateu a porta com estrondo.

O criado ficou. Desde este dia o senhor não precisava mais dirigir-lhe a palavra, todo recado para ela passava pelo velho e calmo criado. O que se passava na casa, ela não sabia; tudo escorria friamente por ela como a onda sobre uma pedra.

Este estado opressivo demorou duas semanas e consumia Crescência como uma doença. O seu rosto se tornara pontudo e anguloso e o cabelo, nas fontes, repentinamente grisalho. Os seus movimentos petrificavam-se inteiramente. Quase sempre permanecia sentada sobre o seu banquinho, como um toco de madeira, olhando, fixamente, com olhos vagos, para a janela vazia; quando trabalhava, porém, era de um modo raivoso, semelhante a uma erupção de ira. 

Passadas essas duas semanas, um dia, o criado entrou expressamente no quarto do amo, e do seu modesto esperar, deduziu o barão que lhe queria comunicar alguma coisa. Já uma vez o criado apresentara queixa contra essa criatura rabugenta, esse “dromedário tirolês”, como lhe chamava desprezivelmente, e propôs despachá-la. Mas, de qualquer modo, melindrado, o barão resolveu primeiramente não dar ouvidos a esta proposta. Mas, se bem que o criado se afastasse naquele dia com uma inclinação, permaneceu desta vez obstinado na sua opinião, fez uma careta singular, quase vexada, e balbuciou, finalmente, que o senhor não o achasse ridículo, mas... ele não podia... sim, ele não podia dizer de outra maneira, ele tinha medo dela. Essa mulher reservada e maligna era insuportável, e o senhor barão nem sabia quão perigosa pessoa tinha dentro de casa.  

Instintivamente o avisado assustou-se. Que queria o criado dizer e insinuar? Diante disto o criado moderou a sua alegação, qualquer coisa de positivo não podia dizer, mas tinha a sensação de que esta pessoa era um animal furioso — que facilmente podia fazer mal a alguém. Ontem, quando se voltara, para lhe dar uma indicação, percebera, inesperadamente, um olhar — não se podia dizer nada sobre esse olhar, mas parecia que ela queria atirar-se a ele. E, desde então, tinha medo dela, sim, tinha medo de tocar nos alimentos que ela preparava. “O senhor barão nem sabe” terminou o criado, “que criatura perigosa é. Ela não fala, não diz nada, mas eu penso que e capaz de um assassínio.” O barão alvoroçado lançou um olhar brusco ao acusador. Teria ele ouvido algo positivo? Sentiu que os dedos começaram a tremer, e, apressado, atirou fora o cigarro, para que não desenhasse no ar à agitação de suas mãos. Mas o rosto do velho era inteiramente ingênuo — não, ele não podia saber de nada. O barão hesitou. Depois subitamente, largou mão de seu próprio desejo e resolveu: “Espere mais um pouco. Se ela, porém, o tratar mais uma vez com maus modos, então despeça-a, por ordem minha.”

O criado inclinou-se, e, aliviado, o barão retrocedeu. Cada lembrança desta criatura misteriosa e perigosa anuviava-lhe o dia. “É melhor que aconteça, considerou ele, quando eu estiver ausente, lá pelo Natal, talvez” — já a ideia da esperada libertação lhe fazia um bem íntimo. “Sim, assim e melhor, pelo Natal”, repetiu, “quando eu estiver ausente.”

Mas já no dia seguinte, apenas se retirara para o quarto, depois do almoço, bateram na porta. Abstrato, erguendo os olhos do jornal, resmungou “Entre.” E já vinha de rastro esta pisada dura e odiosa, que atormentava os seus sonhos, para dentro do quarto. Ergueu-se espantado: como uma caveira, pálida e transparente, vacilava este rosto ossudo sobre a magra figura negra. A compaixão mesclou-se ao pavor, quando viu que a pisada angustiada desta criatura aniquilada se deteve humilde na orla do tapete. E, para esconder esta emoção, esforçou-se para aparentar ignorância: "Então que e que há, Crescência?”, indagou. Mas não o pronunciara, como queria, jovial e cordialmente; contra a sua vontade, a pergunta lhe escapara em tom desprezível e mau.

Crescência não se movia. Olhava fixamente para o tapete. Finalmente atirou, assim como se atira algo com o pé: “O criado me despachou, ele disse que o senhor me despedia.”

Desagradavelmente tocado, o barão ergueu-se. Que isto sucedesse tão depressa, ele não esperava. E com rodeios principiou a falar em torno da questão, titubeante, que a intenção não era tão rigorosa, que ela cuidasse de entender-se melhor com o criado e mais algumas frases banais, que lhe vieram à mente.

Porém Crescência continuou parada, imóvel, com o olhar pregado no tapete, os ombros erguidos. Com amargurada constância, conservava a cabeça baixa como um touro, sem fazer caso da eloquência amável, unicamente esperando por uma palavra que não vinha. Quando ele, por fim, levemente repugnado com o papel de persuasor que aqui era obrigado a representar diante de uma serva, estacou cansado, ela continuou obstinada e muda. Depois, explicou entre arrancos: “Eu só quero saber se o senhor barão deu mesmo ordem ao Antônio para me despedir.”

Disse isto com ar contrariado como que à força. E como um golpe recebeu-o o já irritado barão. Era isto uma ameaça? Queria ela provocá-lo? E subitamente se desvaneceu nele toda a covardia, toda compaixão por ela. Todo seu ódio e nojo, acumulados nestas últimas semanas, se aliviaram ao ardente desejo de dar um fim a isto. E repentinamente, mudando de tom, com aquela frieza indiferente aprendida no Ministério, confirmou impassível. Sim, sim, era certo que, de fato, deixara ao arbítrio do criado dispor todas as coisas concernentes ao governo da casa. Ele, pessoalmente, lhe desejava o melhor e até se esforçaria por suspender a despedida. Mas se ela continuasse a opor-se ao criado, então sim, ele se via obrigado a dispensar os seus serviços.

E reunindo, fortemente, toda a sua vontade, firmemente resolvido a não se deixar impressionar por qualquer secreta insinuação, ou intimidação, fitou ao dizer as últimas palavras, o olhar na mulher que ele presumia ameaçá-lo, e encarou-a resolutamente.

Mas o olhar, que Crescência erguia, agora esfriou; era o de um animal mortalmente ferido, que na sua frente vê surgir a a matilha;

“Eu agradeço..”, esforçou-se por dizer debilmente. “Eu já vou... não quero, por mais tempo, aborrecer o senhor barão...”


E devagar, sem se voltar, saiu de ombros encolhidos e passos arrastados e duros pela porta a fora.

***

De noite, quando o barão voltou da ópera, tomando as cartas recém-chegadas dispostas sobre a escrivaninha, deparou com algo estranho e quadrado. Acendendo outra luz, reconheceu um baú esquisito de madeira, trabalhado à moda camponesa. Não estava fechado: meticulosamente arrumadas dentro dele, estavam todas as miudezas que Crescência recebera do amo, os cartões postais enviados da caçada, duas entradas de teatro, um anel de prata, o maço de notas de banco cumuladas e ainda um instantâneo tirado há vinte anos, no Tirol, onde os olhos dela, evidentemente assustados pela luz do magnésio, tinham a mesma expressão fixa magoada e extática, como havia poucas horas, na sua despedida.

Um pouco confuso e desorientado, o barão empurrou o baú e saiu para perguntar ao criado o que significavam estas coisas de Crescência sobre a sua escrivaninha. O criado prontificou-se imediatamente a chamar à ordem a sua inimiga. Mas, Crescência não estava na cozinha nem em outro compartimento qualquer. E somente quando o noticiário policial descreveu o salto suicida de uma quarentona, da ponta do Danúbio, os dois deixaram de indagar para onde Leporela havia fugido.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes, 2023.
 

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