6/30/2023

A seduzida (Conto), de Inês Sabino

 

A SEDUZIDA
(AO DR. MELO MORAES)

Airosa como uma palmeira, delgada, ar aristocrático, mãos pequenas, pés delicados, olhos negros, vivos e cintilantes, testa ampla e nobre, sempre oculta por uma miúda franja de cabelos crespos; alva, sem uma mancha, com a boca pequenina, ornada de uns lábios rubros, adivinhava-se já em Matilde Tinoco uma futura beleza, quando a idade desenvolvesse-lhe as formas.

Órfã, desde os cinco anos, era criada pela D. Angélica, sua tia materna, senhora bonacheirona e surda, a quem a menina iludia, sobretudo, quando conversava com o primo Gabriel, estudante do quarto ano de medicina, seu professor de francês, e que galanteador, sensual, jurou conquistar a prima, que, cedendo aos seus protestos de amor, estava até resolvida a abandonar o teto honrado em que vivia, não obstante os conselhos da velha senhora, que proibido o rapaz de frequentar-lhe a casa.

Ferido no seu amor próprio, uma noite raptou a rapariga, sentindo por isso tanta comoção a D. Angélica, que esteve às portas da morte, terminando por se lhe manifestarem incômodos imprevistos, que a torturaram deveras.

Passados alguns meses, porém, a moça principiou a sentir os remorsos invadirem-lhe a consciência. Ele, já aborrecido de seus encantos, lançara-lhe em rosto a pobreza, a posição modesta em que a achara, a sua educação abaixo do vulgar, não comovendo-se às lágrimas da vítima incauta, nem tão pouco ainda com a esperança de ser em breve pai.

Os dias, levava-os ele fora da família ilegítima criada pelo habito da sedução, procurando uma nova preza que dessa vez, rica, e de família nobre, só pelo casamento poderia obtê-la. Ambicioso, desconhecendo a dignidade, o pudor, ele, o homem que dentro em pouco ia entrar na sociedade, que abria-lhe as portas de par a par, recebendo pelo segredo de seu magistério mil confidencias, atroz, indigno e ruim, ouviu o primeiro vagido da inocente que lhe devia a vida com a mesma indiferença com que ouviria um outro vagido qualquer, no qual ele não partilhasse a alegria que sente-se, mas que se não exprime, quando a natureza dá-nos como prêmio esse entezinho que redime, que eleva nossa alma às alturas do sentimentalismo, que nos identifica mais com a própria natureza, fazendo-nos bons, sensíveis e humanos.

E ela, a jovem mãe, sublime de abnegação, de sacrifícios, amamentava à custo da própria saúde a pequenina que, ao ter a penetração da luz que desabrochava no cérebro, ria, afagava-a inconscientemente, rosada como um querubim, juntando os labiozinhos para receber um beijo dado com esse amor sem visos de recompensa mais, do que o mesmo sorriso inocente!

Ah! quantas vezes a misera ouvia o relógio dar horas sem ter tomado ainda a menor refeição, ao passo que ele, dormindo a sono solto, ao acordar, vestia-se, saía, divertia-se, sem olhar sequer para o anjinho, que seguia-o com a vista alegrezinha, acordando o silêncio da habitação com os gritos infantis e esse titubear que causa o enlevo materno.

— Perfilha-a ao menos, disse Matilde ao acadêmico, fazendo ver a necessidade de batizar a inocentinha.

— Para beneficiar somente a ela, respondeu, pegando ao colo a criança pela primeira vez na vida.

***

O abandono foi depois completo. Sob os revezes da necessidade, ela tornou dentro em pouco a mundana de mais nomeada, a que via mais admiradores lançar-lhe às mãos cheias ouro e diamantes; carruagens, cavalos de raça, tudo a troco de uma beleza nova, pouco explorada, pouco corrupta, pouco sentimental, inexperiente, conservando apenas a pureza do amor materno que a enlevava, que a desvanecia!

O Dr. Gabriel Bastos sabia a quanto havia lançado a mulher que pervertera, e já com família, com filhos, entendeu a bem da moral e do seu dever de pai, retirar da mãe, a filha.

Foi esse o pior castigo para a pecadora. A lei, favorecia o pai, e a ela, restava somente como consolo a ideia de ver a menina feliz um dia.

E passaram-se tempos.

A filha natural do médico foi recebida com repugnância pela madrasta, que a colocou em colégio diverso do da filha mais velha, apenas permitindo que se ensinasse à enteada um pouco de piano, e nada mais. A criança era odiada. Faziam-na conhecer a distância que mediava entre ela e as legítimas, como se a natureza não fosse a mesma no gérmen, como se ainda a natureza dividisse posições!

— Há de ser como a mãe, dizia a esposa do sedutor de Matilde às pessoas conhecidas. Mais tarde perder-se-á também.

Os lábios da menina descoravam; ela tremia, por conhecer ao vivo as iras infundadas da esposa de seu pai.

Passados cinco anos, já com as suas quinze primaveras, retiraram-na do colégio, mandando-lhe a madrasta ensinar a cozer na máquina.   

— É aí o teu lugar. Deves-te considerar venturosa por estares ao abrigo das seduções. Dize-me: lembras-te de tua mãe? tens dela saudade?

— Sempre, D. Raimunda.

— Pede a teu pai, e volta, se quiseres.

Os grandes olhos da mocinha marejavam-se de pranto; um suspiro tênue, como um ai, morria-lhe à flor dos lábios.

***

A família do médico tratava a filha deste assim, a modo de desprezo, e os conhecidos, para serem agradáveis a esta, apenas cumprimentavam a Pepita, que cozia para si toda a sua roupa modesta, fazia o serviço de seu quarto, e que só ia à sala quando chamavam-na.

Entre os habitués das reuniões de Madame Bastos, havia um moço rico, que olhava para a filha do médico com certo afeto, indo por isso sempre à magnífica chácara da morada do esculápio.

O partido era bom. A Josefina, filha mais velha da dona da casa, namorou-se do moço e dava-lho a conhecer.

Ele cortês, recebia naturalmente a diferença, mas não se expandia em cumprimentos.

— Acho que o Barbosa quer ser nosso genro, disse uma noite confidencialmente Madame Bastos ao marido.

— Eu creio que ele pende mais para a Pepita, respondeu-lhe.

Desde este dia o moço foi espreitado, jurando a filha e a mãe tomarem uma justa vingança do caso.

Uma tarde, todos no jardim virão passar uma rica caleça puxada por dois cavalos ingleses ajaezados de prata.

Uma mulher negligentemente sentada, sustentava na enluvada mão, uma sombrinha de rendas.

— Conhece, Sr. Barboza, quem seja aquela criatura, perguntou a madrasta de Pepita olhando de esguelha para a moça que conhecia a mãe, possuía-lhe a fotografia, que a respeitava, embora a falsa posição em que havia caído, amando-a muito.

— É, suponho, uma mulher do mundo equívoco, a quem desconheço, respondeu ele embaraçado.

— Pois é mãe aqui da minha enteada, replicou a madrasta da moça.

Os olhares presentes cruzaram-se, censurando a interlocutora, que vitoriosa abanava-se satisfeita.

Pepita deu um suspiro e disfarçou fitando o céu para ocultar duas lágrimas, que foram vistas pelo hospede de seu pai.

Passada uma meia hora, ouviu-se de novo o rodar da carruagem, cujos cavalos agora com o freio nos dentes, não obedeciam ao cocheiro, vindo em disparada atirar com a dama e o groom em umas pedras que haviam em frente à chácara.

A curiosidade moveu os circunstantes; todos aproximaram-se, e a mocinha ao ver sua mãe caída sem sentidos, inconsciente, de um pulo, achou-se junto àquela que dera-lhe o ser, tomando-a nos braços.

— Que pouca vergonha! disse a mãe da Josefina com desprezo, a dessa rapariga reconhecer assim a mãe às nossas vistas!

— Fez o seu dever, minha senhora, acudiu intervindo o Barbosa, que deu passagem ao dono da casa, que foi chamado às pressas. Ele lívido, trêmulo, aproximou-se da filha; ao tomar porém o pulso de Matilde Tinoco, susteve-se pensativo.

— Está morta! exclamou lugubremente.

— Mandem chamar a policia, disse um dos circunstantes.

***

Dentro em pouco, o corpo da vítima do Dr. Gabriel, era posto em uma maca e conduzido ao necrotério.

Ela, a Pepita, mais uma vez beije u afronte ainda quente da morta, entrando pelo braço do pai na residência dele sob o peso de uma dor profunda.

Barbosa sentiu então um que de anormal passar-lhe na alma. Ouviu o coração pulsar-lhe com mais força; as mãos resfriaram-se-lhe, um sentimento desconhecido invadiu-lhe todo o ser: uma nota de compaixão soou-lhe ao ouvido sentindo a moça soluçar, e, quando depois perguntou a si mesmo, o que era aquilo que experimentava pela primeira vez, o coração respondeu-lhe fazendo-o ir oficialmente ao médico pedir a mão de sua filha, porque a amava!


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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