Nasci em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, Alagoas, donde saí com dois
anos. Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum
criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em
Buique, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos. Ali a
seca matou o gado — e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96.
Da fazenda conservo à lembrança de Amaro vaqueiro e de José Baía. Na vila
conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre João Ignácio,
Felipe Benicio, Teotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Maricas, minha
professora, mulher de seu Antônio Justino, personagens que utilizei muitos anos
depois. Aprendi a carta de ABC em casa, aguentando pancada. O primeiro livro,
na escola, foi lido em uma semana; mas no segundo encrenquei: diversas viagens
à fazenda de um avô interromperam o trabalho, e logo no começo do volume antipático
a história besta dum Miguelzinho que recebia lições com os passarinhos
fechou-me, por algum tempo, o caminho das letras. Meu avô dormia numa cama de
couro cru, e em redor da trempe de pedras, na cozinha, a preta Vitória
mexia-se, preparando a comida, acocorada. Dois currais, o chiqueiro das cabras,
meninos e cachorros numerosos, soltos no pátio, cobras em quantidade. Nesse
meio e na vila passei os meus primeiros anos. Depois seu Sebastião aprumou-se e
em 99 foi viver em Viçosa, Alagoas, onde tinha parentes. Aí entrei no terceiro
livro e percorri várias escolas, sem proveito. Como levava uma vida bastante
chata, habituei-me a ler romances. Os indivíduos que me conduziram a esse vício
foram o Tabelião Jerônimo Barreto e o agente do correio Mário Venâncio, grande
admirador de Coelho Neto e também literato, autor dum conto que principiava
assim: “Jerusalém, a deicida, dormia sossegadamente à luz pálida das estrelas.
Sobre as colinas pairava uma tênue neblina, que era como o hálito da grande
cidade adormecida”... Um conto bonito, que elogiei demais, embora intimamente
preferisse o de Paulo Kock e o de Júlio Verne. Desembestei para a literatura.
No colégio de Maceió, onde estive pouco tempo, fui um aluno medíocre. Voltei
para Viçosa, fiz sonetos e conheci Paulo Honório que em um dos menus livros
aparece com outro nome. Aos dezoito anos fui com a minha gente morar em
Palmeira dos Índios. Fiz algumas viagens a Buique, revi parentes do lado
materno, todos em decadência. Em começo de 1914 enjoado da loja de fazendas de
meu pai, vim para o Rio, onde me empreguei como foca de revisão. Nunca passei
disso. Em fim de 1915, embrenhei-me de novo em Palmeira dos Índios. Fiz-me
negociante, casei-me, ganhei algum dinheiro, que depois perdi, enviuvei, tornei
a casar, enchi-me de filhos, fui eleito prefeito e enviei dois relatórios ao
governador. Lendo um desses relatórios, Schimidt imaginou que eu tinha algum
romance inédito e quis lançá-lo. Realmente o romance existia, um desastre. Foi
arranjado em 1926 e apareceu em 1933. Em princípio de 1930 larguei a prefeitura
e dias depois fui convidado para diretor da imprensa oficial.
Demiti-me
em 1931. No começo de 1932 escrevi os primeiros capítulos de São Bernardo, que
terminei quando saí do hospital. As recordações do hospital estão em dois
contos publicados ultimamente, um em Buenos Aires, outro aqui. Em janeiro de
1933 nomearam-me diretor da instrução pública de Alagoas — disparate administrativo
que nenhuma revolução poderia justificar. Em março de 1936, no dia em que me
afastavam desse cargo, entreguei à datilógrafa as últimas páginas do “Angústia”,
que saiu em agosto do mesmo ano, se não estou enganado, e foi bem recebido, não
pelo que vale, mas porque me tornei de algum modo conhecido, infelizmente.
Mudei-me
para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo, agora. Aqui fiz o meu
último livro, história mesquinha — um casal vagabundo, uma cachorra e dois
meninos. Certamente não ficarei na cidade grande. Preciso sair. Apesar de não
gostar de viagens, sempre vivi de arribada, como um cigano. Projetos não tenho.
Estou no fim da vida se é que a isso se pode dar o nome de vida. Instrução quase
nenhuma. José Lins do Rego tem razão quando afirma que a minha cultura,
moderada, foi obtida em almanaques.
Revista
Leitura, 1942.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2024)
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