12/29/2023

Corisco (Crítica, 1940), por Graciliano Ramos


CORISCO

A notícia da morte desse tipo quase passou despercebida: surgiu na primeira página, em telegrama, encolheu-se depois nas outras folhas, foi minguando e em pouco tempo desapareceu. Havia coisa importante no jornal, a guerra da Europa; não nos interessava um cangaceiro nordestino, baleado e decapitado em consequência de numerosas estripulias.

Lampião teve um necrológico razoável, mas Lampião era chefe abalizado, gozava de enorme prestígio e perdeu a cabeça antes da guerra.

Corisco, figura secundária, não criou reputação — e finou-se quase inédito. Foi um pequeno monstro. Contudo, se as circunstâncias o ajudassem, ele seria hoje uma criatura normal e necessária. Branco e louro, com pai remediado e avô rico, senhor de vários engenhos, devia acabar, naturalmente, jogando gamão numa pequena cidade do Nordeste, à porta da farmácia, chateado por filhos brancos e louros.

Não se acomodou a isso. Na escola primária fez bagunças, indispôs-se com outros alunos mais ricos que ele e, não podendo chefiá-los, passou-se para o grupo da ponta da rua e exibiu autoridade. Não aprendeu coisa nenhuma. Remetido para um colégio da capital, foi inacessível, violento e bruto.

Preguiçando, sem esforço, faria os exames, entraria na faculdade e seria promotor. Mas Corisco não desejava ser promotor no município onde o avô, o coronel Fernandes, senhor de engenhos, exibira as suas longas barbas prestigiosas.

A usina tinha comido o engenho. E, entre sujeitar-se ao gringo, que mandava na usina, e obedecer ao negro devoto do padre Cícero, Corisco preferiu este. Largou a família, os restos de grandeza imprestável, amarrou a cartucheira à cintura e andou muitos anos, da Bahia ao Ceará, praticando horrores.

Foi um desclassificado, um indivíduo que, principiando na ordem, na família, na religião, viu de repente isso tudo falhar. De nada lhe serviram os olhos azuis, a pele branca, as barbas do avô, longas e respeitáveis, e as do pai, menores, mas ainda assim dignas de respeito.

Corisco não possui barbas nem virtude. Se tivesse permanecido em cima, acataria um certo número de coisas sérias, tomaria em consideração os domingos, as festas de guarda, a honra das donzelas. Fora da sociedade, metido no mato como um bicho, sem calendário, e sem mulher, desprezou noções rijas e antigas. Submeteu-se à lei da necessidade. Passou anos embrenhado na catinga, sujo, faminto, sedento, com um rifle a tiracolo, defendendo-se e atacando, perfeitamente bicho.

Está morto, graças a Deus. O Nordeste livrou-se dessa figura sinistra. Um branco degenerado. Há por lá muitos brancos degenerados pela miséria. Temos indivíduos que estão muito em cima, outros que estão muito embaixo. Corisco estava no meio. E desceu, obrigaram-no a descer. Que acontecerá depois?


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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