12/29/2023

Desordens (Crítica, 1938), por Graciliano Ramos


DESORDENS

Os jornais têm andado bastante indiscretos, alarmando o público todos os dias com telegramas de arrepiar. Apreende-se aqui material bélico, ali surge o beato Lourenço em companhia de outros beatos e beatas, matam-se jagunços no São Francisco, e Porto Nacional, em Goiás, pega fogo. Um fim de mundo.

Agora chegam informações desagradáveis de Alagoas, onde os cangaceiros fizeram proezas, afugentando a população de Palmeira dos Índios, segundo as folhas. Alagoas é uma região tranquila, até demasiado tranquila, e Palmeira dos Índios um município que tem produzido cidadãos notáveis por vários modos, mas de notabilidade quase sempre realizada moderadamente, com pouco espalhafato.

No fim da semana passada apareceram lá uns discípulos de Lampião, mataram quatro pessoas em Lagoa da Areia, dirigiram-se ao povoado Canafístula, onde amarraram e espancaram diversos indivíduos, todos excelentes criaturas e eleitores até pouco tempo. Existe nessa povoação uma estrada de rodagem, que serviu para os malfeitores se deslocarem com rapidez. Felizmente o prefeito e outros cavalheiros de influência receberam auxílio das cidades vizinhas e, depois da saída dos cangaceiros, foram procurá-los na zona das operações, onde não os encontraram, naturalmente.

Prejuízo considerável: consta que mataram gente, surraram homens pacatos, roubaram dinheiro e joias. Os bandidos, é claro. Com certeza levaram pouco dinheiro e muito poucas joias, que Lagoa da Areia e Canafístula são pobres demais. Talvez até nem tenham achado joia nenhuma e as mencionadas no telegrama figurem nele como enfeite, para dar brilho e importância a esses vagos lugarejos.

Está aí um pormenor insignificante a prejudicar a verossimilhança duma tragédia. Começamos a duvidar da história. É bom duvidarmos. Para que nos vêm contar semelhantes horrores, que estragam os preparativos do Carnaval e não se harmonizam com a índole pacífica do nosso povo?

Estávamos em sossego, quase felizes, lendo as reduzidas notícias da Espanha e da China, que ficam longe, graças a Deus. De repente se descobrem armas e munições aqui perto, surgem beatos e beatas, o interior da Bahia cheira a pólvora, uma cidadezinha de Goiás se transforma em praça de guerra. E até Palmeira dos Índios, lugar de ordem, recebe visitas incômodas e assusta-se em telegramas compridos. É incrível. Afinal não há razão para sangue e barulho. Que deseja essa gente?


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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