INÁCIO DA CATINGUEIRA E ROMANO
Li, há dias,
numa revista a cantoria ou “martelo” que, há perto de setenta anos, Inácio da
Catingueira teve com Romano, em Patos, na Paraíba. Inácio da Catingueira, um
negro, era apenas Inácio; Romano, pessoa de família, possuía um nome mais
comprido — era Francisco Romano do Teixeira, irmão de Veríssimo Romano,
cangaceiro e poeta, pai de Josué Romano, também cantador, enfim, um Romano bem
classificado, cheio de suficiência, até com alguns discípulos.
Nessa antiga
pendência, de que se espalharam pelo Nordeste muitas versões, Inácio tratava o
outro por “meu branco”, declarava-se inferior a ele. Com imensa bazófia, Romano
concordava, achava que era assim mesmo, e de quando em quando introduzia no
“martelo” uma palavra difícil com o intuito evidente de atrapalhar o
adversário. O preto defendia-se a seu modo, torcia o corpo, inclinava-se
modesto: “Seu Romano, eu só garanto é que ciência eu não tenho.”
Essa ironia,
essa deliciosa malícia negra, não fez mossa na casca de Francisco Romano, que
recebeu as alfinetadas como se elas fossem elogios e no fim da cantiga esmagou
o inimigo com uma razoável quantidade de burrice, tudo sem nexo, à toa:
“Latona, Cibele, Ísis, Vulcano, Netuno...” Jogou o disparate em cima do outro e
pediu a resposta, que não podia vir, naturalmente, porque Inácio era
analfabeto, nunca ouvira falar em semelhantes horrores e fez o que devia fazer
— amunhecou, entregou os pontos, assim: “Seu Romano, desse jeito eu não posso
acompanhá-lo. Se desse um nó em ‘martelo’, viria eu desatá-lo. Mas como foi em
ciência, cante só, que eu já me calo.”
Com o
entusiasmo dos ouvintes, Romano, vencedor, ofereceu umas palavras de consolação
ao pobre do negro, palavras idiotas que serviram para enterrá-lo.
Isto aconteceu
há setenta anos. E desde então, o herói de Patos se multiplicou em descendentes
que nos têm impingido com abundância variantes de Cibele, Ísis, Latona, Vulcano
etc.
Muita gente
aceita isso. Nauseada, mas aceita, para mostrar sabedoria, quando todos deviam
gritar honestamente que, tratando-se de “martelo”, Netuno e Minerva não têm
cabimento.
Inácio da
Catingueira, que homem! Foi uma das figuras mais interessantes da literatura
brasileira, apesar de não saber ler. Como os seus olhos brindados de negro viam
as coisas! É certo que temos outros sabidos demais. Mas há uma sabedoria
alambicada que nos torna ridículos.
O ano passado
vi o livro dum sujeito notável que declarava, com medonhos solecismos, ter sido
um ótimo estudante de gramática. Não podia haver coisa mais extraordinária. O
cidadão a afirmar, numa linguagem erradíssima, que sabia escrever.
Imaginei as
caras dos outros leitores. Não vi nenhuma. Como, porém, ninguém protestou,
julgo que todos, gramáticos e literatos, engoliram o que o homem disse,
exatamente como aconteceu em Patos, há setenta anos.
Que pedantismo
e que miséria! Ali bocados de mitologia, aqui um português arrevesado,
pretensioso e manco.
Não devemos,
contudo, perder as esperanças. Inácio da Catingueira, esse honesto conterrâneo
do sr. José Américo e do sr. Lins do Rego, esse tipo direito, sensato,
extravagância viva num país de insensatos, deixou descendentes. Graças a Deus
isto é verdade. Será preciso mencioná-los? Talvez não seja, talvez os parentes
dele se ofendam, porque enfim, Inácio era preto e, se não me engano, solteiro.
Certamente
muitos preferem descender dos Romanos, que sempre foram os donos intelectuais
do Brasil.
Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1937.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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